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Delito de Opinião

Diário de viagem: Capítulo 10

De novo no Cairo e a despedida com a cereja no topo do bolo

Maria Dulce Fernandes, 24.04.25

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Chegámos ao Cairo no final do dia, cansados mas encantados também. Tinham sido quase duas semanas maravilhosas, esgotantes, mal dormidas, mas a aventura esteve presente em cada passo, em cada esquina, em cada hieróglifo, em cada sombra, em todos os cartuxos e nos sorrisos lindos de gente que tinha tudo para ser  triste, mas sorria sempre à vida.

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O hotel foi um bálsamo. De pouca dura, mas sim, recuperámos as energias e iniciámos os preparativos para o regresso.

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Com todos os pormenores sob controle, deixámos os aparelhos a carregar e fomos dar uma volta pelas imediações do hotel, a título de despedida. A noite do Cairo continuava transbordante de magia.

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Na manhã seguinte, acordaram-nos às 6:30h, o que foi um luxo, e lá seguimos nós com armas e bagagens rumo à “cereja no topo do bolo", para depois regressarmos ao ponto de partida da Grande Aventura Egípcia": a nossa casa.

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Chegámos ao Grande Museu Egípcio cerca das 8:30h.

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O Grande Museu Egípcio, também conhecido como o Grande Museu Egípcio de Gizé, ou GEM, é um dos maiores e mais impressionantes museus dedicados à história e cultura do Egipto Antigo. Localizado próximo às pirâmides de Gizé, o museu abriga uma vasta colecção de artefactos, que incluirão (em Julho deste ano) toda a colecção de tesouros de Tut Ankh Amon, estátuas, múmias e muitos outros elementos que oferecem uma visão única sobre a civilização egípcia. Com a sua arquitectura moderna e exposições interactivas, o museu visa não apenas preservar a rica herança do Egipto, mas também educar e inspirar visitantes de todo o mundo.

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O Museu está parcialmente aberto e exibe 12 fantásticas salas. Vai ser totalmente inaugurado em Julho, altura em que será considerado o maior museu do mundo com exibição permanente.

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O Grande Museu Egípcio é todo ele uma imensa pirâmide dentro de um jogo infinito de formas piramidais e é espectacular.

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Saídos do Museu, que não é apenas a nossa cereja no topo do bolo, é também um diamante reluzente, uma GEMa preciosa no tempo e no espaço, que espero poder vir a visitar quando estiver a funcionar em pleno.

Depois de um bom almoço no restaurante do GEM, rumámos ao aeroporto já um tanto nostálgicos, e regressámos à nossa querida Lisboa.

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Não será seguramente a última viagem, mas tenho a certeza que nenhuma outra conseguirá superar a nossa Grande Aventura pelas terras dos Faraós. 

Até à próxima! Obrigada pela companhia.

Diário de viagem: Capítulo 9

Até à magnificência de Abu Simbel e de volta à Capital

Maria Dulce Fernandes, 22.04.25

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Como se tornou habitual, o telefone tocou para nos acordar, desta feita às 3 horas. Com as bagagens prontas para a saída às 4h, dirigimo-nos ao autocarro que nos aguardava. Foi carregar tudo e sair antes das 5 horas em direcção a Abu Simbel. O melhor a fazer seria tentar dormir no autocarro, pois a viagem seria de 3 horas de ida e outras 3 horas de regresso. A paisagem não ajudou em nada. O caminho foi quase todo uma grande travessia de deserto.

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E valeu a pena? Nem é preciso perguntar, caramba, valeu todas as penas que as minhas mazelas residentes conseguiram aguentar.

Abu Simbel é um complexo arqueológico majestoso composto por dois impressionantes templos construídos durante o reinado do faraó Ramsés II. Os templos são famosos pelas suas estátuas monumentais e relevos elaborados que retratam cenas religiosas e representações do faraó e da sua estrondosa vitória  sobre os hititas na batalha de Kadesh.

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O maior dos dois templos, dedicado ao deus Amon, tem na fachada quatro enormes estátuas de Ramsés II, cada uma com cerca de 20 metros de altura. O templo mais pequeno é o templo de Nefertari, esposa favorita do faraó, é dedicado à deusa Hathor e apresenta estátuas de Ramsés II juntamente com estátuas da sua esposa dilecta.

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Um dos aspectos mais cativantes desses templos é o chamado "fenómeno da luz solar". Este acontecimento tem lugar duas vezes por ano, em 22 de Fevereiro e em 22 de Outubro, datas do aniversário do faraó e da sua ascensão ao trono. Nesses dias, a luz do sol ilumina apenas a estátua de Ramsés II no interior do templo principal, enquanto as outras estátuas permanecem na sombra. O alinhamento solar foi projectado intencionalmente pelos antigos egípcios e é um testemunho da habilidade arquitectónica e do conhecimento astronómico da época.

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Os templos foram parcialmente transferidos na década de 1960 devido à construção da Barragem de Aswan e ao aumento associado do nível das águas do Nilo para os proteger das inundações. Esta impressionante operação de resgate foi apoiada pela UNESCO e é considerada um dos maiores projectos arqueológicos do século XX.

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É lenda local que um rapaz que  pastoreava cabras encontrou uma das cabeças gigantes, fugiu apavorado e só muito a custo conseguiu revelar à família o que tinha visto. O nome do pequeno era Abu Simbel.

Os templos são grandiosos, eloquentes, belos, esmagadores. As cenas de batalha parecem acabadas de gravar, tanto na parede, como na nossa imaginação, como uma imensa banda desenhada a encantar os corações jovens que nunca deixámos de ter, nem de sentir a pular dentro do peito.

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Não perderia esta viagem por nada. Nada mesmo.

Horas depois voltámos a Aswan para, do aeroporto, iniciarmos o regresso ao Cairo. Lá chegados teremos de ultimar os preparativos para o regresso, não antes do último presente, a cereja no topo do bolo.

Até lá.

Príncipe, a outra ilha

Ana CB, 21.04.25

Chamar caminhos de cabras aos trilhos que dão acesso às melhores praias da ilha do Príncipe é ser simpática. Até a sport wagon com pneus tamanho XL conduzida pelo Vado, um dos guias mais experientes da ilha, tem dificuldade em percorrer os poucos quilómetros de piso meio lamacento, cheio de buracos e com pedras gigantes a despontarem do solo que leva à praia Boi. Curto em distância mas longo em minutos, o percurso mói os ossos e os músculos, chocalhados sem piedade e ininterruptamente até ao final, e só o facto de ser feito dentro de uma floresta magnífica mitiga um pouco o incómodo: os olhos vão entretidos a admirar árvores desconhecidas, tão altas que apenas deixam passar uns ténues raios de sol. Isso e a praia no final do caminho. Areia fina e clara debruada a palmeiras, deserta; mar tranquilo em dégradé de azuis; sol brilhante, água morna. Perfeita!

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Tal como para as suas praias, o mote para a ilha do Príncipe podia ser este: não é fácil lá chegar, mas vale muito a pena. É preciso estar no Aeroporto de São Tomé tão cedo como se fôssemos para uma viagem internacional, não é possível levar mais do que 15 kg de bagagem de porão, e a viagem total de 40 minutos (dos quais apenas 25 em voo) é feita numa avioneta que só leva 19 passageiros, com pouco espaço, pouco insonorizada e pouco fresca. Ainda assim, a procura é tanta que actualmente estão a ser feitos três voos diários, operados pela companhia portuguesa Sevenair, e vão sempre cheios.

À chegada, meras dezenas de metros nos separam do pequeno edifício do aeródromo, pintado de amarelo-vivo. Depois aguardamos a chegada das malas numa saleta com porta aberta para o exterior, a fazer lembrar as salas de espera de antigamente das estações de comboio. Contrariando o frenesim da cidade de São Tomé que deixámos pouco antes, há uma atmosfera geral de tranquilidade, e até os ruídos do exterior soam abafados. Estranha-se esta calma, que contudo não é surpreendente se pensarmos que a ilha tem pouco mais de 9 mil habitantes (em contraste com os 80 mil da capital do país).

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Lá fora, uma mão cheia de guias aguarda a nossa saída, cada um com o nome do seu cliente escrito numa folha branca. Os turistas que chegam desta vez são poucos, a maioria dos passageiros são gente da terra. Sorridente, o Vado dá-nos as boas vindas e leva-nos ao carro. A estrada até Santo António, capital do Príncipe, é asfaltada e está em bom estado, e em coisa de 10 minutos estamos no restaurante da Residencial Mira Rio para matar a fome em frente a uma omelete – um lanche reforçado para substituir o almoço que estava em falta por causa da viagem de avião. Fazendo jus ao nome, o restaurante tem varanda e vista sobre o rio Papagaio, que nasce no pico homónimo, um dos mais altos da ilha.

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A cidade

 

Santo António é cidade com dimensão de vila e ambiente de aldeia. Fundada em inícios do século XVI, chegou a ser capital da colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe, entre 1753 e 1852, antes de a cana-de-açúcar como produção principal ter sido substituída pela de cacau e café. Com ruas arejadas e rectilíneas na área junto à baía, onde ainda se mantêm de pé vários edifícios da época colonial, em diversos estados de conservação, o casario vai-se tornando mais miúdo e irregular à medida que seguimos para sul. Nas casas baixas de cores pastel, a alvenaria alterna com a madeira e a chapa ondulada, e quando deixamos o centro da cidade os passeios são aos poucos substituídos por meras bermas, que a vegetação tenta engolir. Há palmeiras gigantescas e muitas outras árvores e arbustos, a darem uma impressão visual de frescura mesmo quando o mercúrio sobe nos termómetros. Não há qualquer sintoma de aridez nesta ilha e a água nunca falta. Além disso, garante o Vado, toda a água da cidade é tratada e potável, pode por isso ser bebida directamente da torneira. Ainda assim, cingimo-nos à água engarrafada – vale mais prevenir, que o nosso sistema digestivo europeu já se sente sobrecarregado quanto baste pelos temperos generosos da comida local.

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Se a água não falta, o mesmo não se pode dizer do combustível. Além de ter subido a níveis estratosféricos nas últimas semanas (aqui também se sentem as consequências da guerra na Ucrânia), todo o combustível vem de São Tomé por barco, em fornecimentos irregulares que por vezes deixam a ilha do Príncipe à míngua de gasolina, gasóleo e petróleo. As gasolineiras estão vazias, e para honrar o seu compromisso connosco o Vado terá de pedir combustível a um amigo – pagando-o acima do preço habitualmente cobrado nas bombas de gasolina. No Príncipe como em São Tomé, todas as oportunidades são boas para fazer negócio.

 

Não se pode dizer que Santo António tenha uma arquitectura extraordinária. Nota-se, isso sim, alguma preocupação em manter a cidade limpa (até há caixotes destinados à separação de lixos para reciclagem) e cuidada. Olhando para algumas casas, com varandas em ferro forjado, cornijas sobre as janelas e beirais nos telhados, podemos até pensar que estamos em Portugal. No centro da cidade há meia dúzia de edifícios que se destacam, seja pelo aspecto recente, como o edifício do BISTP (o principal Banco do país); pela cor, como a casa colonial que abriga a capitania, pintada de azul céu e com um friso de bóias e âncoras, ou o edifício que ostenta o emblema do Sporting Clube de Portugal, sem vidros nem finalidade aparente, mas primorosamente pintado de verde e branco; ou pela beleza dos seus elementos decorativos, como a casa oficial da presidência, e que é sem dúvida o edifício mais bonito de todos: exterior em ripas de madeira pintadas de cinza-claro, um alpendre em toda a volta, friso de metal trabalhado a rematar o telhado, e com uma magnífica palmeira-do-viajante plantada num dos vértices, a fazer as vezes de sentinela.

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Diário de viagem: Capítulo 8

Pelo Nilo de felucca e até à “Nuba” , depois de andar pela prancha

Maria Dulce Fernandes, 20.04.25

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Depois de um par de horas para refeição e refrescar a mente e o corpo com um mergulho na piscina, voltámos ao programa e embarcámos numa felucca, pequeno barco à vela típico do rio Nilo. Elegantes e leves dada a sua construção em madeira, as feluccas deslizam pelo rio ao sabor do vento e da maré. As pequenas viagens são fantásticas e ajudam a relaxar, embaladas também pelo canto doce dos barqueiros e dos "surfistas cantores", que ziguezagueiam pelo meio dos barquinhos, sem temer o rio ou a sua fauna.

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Próxima paragem: a "Nuba". Mas porque a viagem não se pode fazer em felucca por o rio ser, naquela zona, forte em redemoinhos e pequenos rápidos, foi necessário mudar da embarcação  à vela para outra com motor. Não foi pera doce. Os barcos tinham de ficar lado a lado no meio do rio, “ligados” por uma estreita prancha de madeira e nós tivemos literalmente de “andar pela prancha” para fazer o transbordo. Não foi uma experiência mesmo nada agradável na altura, mas depois de acalmar o nervoso miudinho, admito que foi excitante e muito engraçado. Pena que ninguém filmou, preocupados que estávamos a tentar manter o equilíbrio.

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Em navegação ronceira, passámos pelo Old Cataract Hotel, pela Ilha Elefantina e o Mausoléu de Aga Kahn, sempre rodeados pela deliciosa e envolvente paisagem em ambas as margens.

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Alcançámos finalmente a “Nuba” de Gharb Soheil. Após 15 minutos de triciclo motorizado, chegámos ao “pé” do Sahara, onde o verde acaba e a imensidão do deserto começa, e onde as paisagens deslumbram pela marcante transição.

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A cultura núbia na aldeia, apesar da modernização, conseguiu preservar uma identidade única e as tradições ancestrais. O povo núbio é conhecido pela sua hospitalidade calorosa e pelo amor pela arte e pela música. Criam os próprios artigos de artesanato ao mesmo tempo que criam crocodilos e nos presenteiam com bebidas de tamarindo extraordinariamente refrescantes.

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Com o dia a fugir e a dar lugar àquela  hora mágica do entardecer, regressámos ao navio com os sorrisos mais satisfeitos de toda a viagem até então.

Esperava-nos mais um amanhã cheio de actividade e também longas viagens de autocarro, pelo que o recolher foi a opção em detrimento de mais uma louca “Noite Árabe”, a bailar pela noite fora.

Diário de viagem: Capítulo 7

Aswan, a Grande Barragem, o Lago Nasser e a pérola que é Philae

Maria Dulce Fernandes, 17.04.25

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Em Aswan, de manhã bem cedinho, antes mesmo de os Martinetes praticarem a sua famosa "imobilidade" de aves de presa, deixámos o navio para a nossa primeira visita do dia, a “pedreira” do obelisco. O Obelisco Inacabado, trabalhado em granito rosa, é o maior exemplar esculpido que existe, e que apesar de nunca ter sido concluído, traz alguma luz sobre as técnicas de construção e estatuária no Antigo Egipto, um conjunto bem montado de cunhas, declives, canais e barcaças. Foi encomendado no reinado da faraó Hatshepsut e teria cerca de 45 metros de altura se tivesse sido terminado.

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Da pedreira seguimos para a Barragem Alta e o Lago Nasser, um dos maiores lagos artificiais do mundo, que se estende por cerca de 500km. Rico em biodiversidade, alberga também cerca de 65000 crocodilos do Nilo, espécie que já esteve em vias de extinção e é essencial ao bom equilíbrio do ecossistema.

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A Grande Barragem de Aswan, uma das maiores do mundo, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento do país. Inaugurada em 1970, a barragem, além de controlar as inundações do Nilo, gerar energia hidroelétrica e fornecer água para irrigações agrícolas, teve também impactos socio-ambientais significativos, incluindo a relocação de comunidades e mudanças nos ecossistemas locais.

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De volta à cidade, dirigimo-nos ao embarcadouro dos pequenos barcos a motor, que transportam passageiros, principalmente turistas, de Aswan até à Ilha Angilika, local para onde foi transladado o templo originalmente erigido na ilha de Philae e que ficou submerso após a construção da Grande Barragem.

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O Templo de Philae é uma preciosidade. É hoje Património Mundial da UNESCO e foi dedicado à Deusa Ísis. É famoso pela sua fantástica arquitectura e por ter sido um importante centro de culto durante os períodos helenístico e romano, rodeado pelo misticismo dos rituais lá praticados.

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Voltámos a Aswan e aos 40⁰ C à sombra daquele Março que antecipava um Verão escaldante para uma incursão ao reino das essências perfumistas que estão na base de todos os perfumes de todas as marcas até hoje fabricadas. De regresso ao navio e com algumas horas livres para almoçar e tentar amenizar todas as emoções numa "fresquinha", preguiçámos na sombra quente do convés superior. 

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A manhã foi muito bem aproveitada e os passeios nos barquinhos anteciparam a vontade para a próxima saída pelo rio, desta vez em felucca, marcada para essa tarde.

Até já.

Diário de viagem: Capítulo 6

Edfu, Kom Ombo e de novo pelo Nilo

Maria Dulce Fernandes, 15.04.25

Diz-se que embarcar num cruzeiro é para apreciar a viagem e descansar. Não sei quem inventou tal coisa, mas provavelmente fui eu, mal habituada ao descanso e ao sono tranquilo da noite anterior. Tínhamos aportado em Edfu e havia visitas para fazer durante a manhã, antes de voltarmos à navegação para Kom Ombo.

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O Templo de Edfu, dedicado ao deus Hórus, é conhecido por sua arquitectura bem preservada e por ser um dos maiores templos do Egipto.

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O templo é famoso pelas suas inscrições que descrevem a mitologia de Hórus e sua luta contra Seth, o deus do caos. Essas histórias eram centrais para a religião egípcia e eram celebradas em rituais realizados no templo.

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Depois de Edfu regressámos ao barco e continuámos em navegação até Kom Ombo, para visitar o famoso templo.

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O Templo de Kom Ombo é único, na margen do rio Nilo, construído durante o período ptolomaico. Dedicado a dois deuses: Sobek, o deus crocodilo, associado à fertilidade e à criação, e a Hórus, o deus falcão, que simboliza a realeza e a protecção. Uma das características mais notáveis deste templo é a sua simetria. Divide-se em duas partes, cada uma dedicada a um dos deuses, com santuários, colunas e salas. Possui relevos e inscrições que retratam várias cenas, incluindo os rituais religiosos, a medicina e a agricultura, além de representações de crocodilos, que eram sagrados para Sobek.

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Um dos relevos mais notáveis representa instrumentos médicos. Isto sugere que o templo também tinha a função importante de ser local de tratamentos e outras práticas medicinais. 

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À saída, podemos visitar o Museu do Crocodilo, que apresenta diversos exemplares mumificados, encontrados em túmulos de nobres e sacerdotes.

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Regressámos ao barco e preparámo-nos para apreciar a passagem pela eclusa de Esna, mas o sono acabou por vencer. Acordámos mais tarde com uma série de fortes estrondos metálicos, que passado o susto inicial, verificámos serem “toques” de quando o barco encostava ao passar pelos portões, para bem se posicionar dentro da eclusa. Aí, já nada havia para ver. Voltámos ao quarto para despertar de novo bem cedinho, mas já em Aswan.

Diário de viagem: Capítulo 5

Subindo o Nilo mansarrão. Doce, fermoso e seguro. Sinónimo de vida e de riqueza. Iteru

Maria Dulce Fernandes, 13.04.25

Adeus Luxor

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Pelo Nilo

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O Rio Nilo é conhecido por ser o mais longo do planeta, com cerca de 6.650 quilômetros de extensão. Flui através de vários países da África, incluindo o Uganda, o Sudão e o Egipto, antes de desaguar no Mar Mediterrâneo.

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O Nilo é tradicionalmente dividido em Nilo Branco e Nilo Azul. O Nilo Branco, a principal nascente, está localizada no Lago Vitória iniciando o seu percurso através do Sudão do Sul, onde se junta ao Nilo Azul em Cartum, capital do Sudão. O Nilo Azul nasce na região mais montanhosa da Etiópia, no Lago Tana, e é responsável por grande parte do caudal do Nilo, especialmente durante a estação das chuvas.

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Os navios que sobem e descem o Nilo são verdadeiros hotéis flutuantes que nos proporcionam todo o conforto com vistas de paisagens encantadoras durante todo o seu percurso, em ambas as margens e em qualquer direcção em que pousem os nossos olhos.

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As nascentes do Nilo são de grande importância não apenas para a geografia, mas também para a história e a cultura das civilizações que se desenvolveram ao longo das suas margens.

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São cerca de trezentos os navios que cruzam ininterruptamente o rio de Luxor a Aswan, de Aswan a Luxor, de ambos os destinos até Abu Simbel, até ao Cairo e também para outras paragens mais a sul, até onde o Nilo é navegável.

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O rio tem sido uma fonte vital de água, transporte e fertilidade para milhões de pessoas ao longo dos séculos.

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A viagem de Luxor a Aswan, com paragem em Edfu e Kom Ombo, é espectacular, calma e agradável. Deixou muitas saudades.

Desde o remanso da vida nas margens, passando durante a noite pela eclusa de Esna, até às “boleias” de barcos a remos, que vendem de tudo aos turistas e se tornaram por si só uma atracção durante os cruzeiros fluviais.

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Desde um mergulho na piscina a uma garrafinha de água fresca a acompanhar um livro preguiçoso. Desde relaxar no fresco da cabine, com a varanda aberta para o rio, a ver-se em palpos de aranha na balbúrdia da noite árabe, nas noites temáticas em todos os percursos. Foi fantástico.

Adorámos cada minuto.

Se pudesse, regressava ao rio já amanhã.

Diário de viagem: Capítulo 4

Luxor, al-quṣūr, que anteriormente foi Tebas, a capital. Vale dos Reis e Templo de Hatshepsut

Maria Dulce Fernandes, 10.04.25

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Com a experiência das cidades anteriormente visitadas bem viva na nossa ideia, chegar a Luxor foi uma fantástica surpresa. Maravilhosa, limpa, colorida e com gente bonita e menos ataviada de roupagens. Talvez o calor de Ra, por se fazer sentir com mais intensidade, dê aos habitante uma perspectiva de vida mais brilhante e mais sã.

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Mal chegámos, fomos conduzidos ao barco que seria a nossa morada fluvial nos próximos quatro dias e onde pensámos poder preguiçar e relaxar das andanças dos primeiros dias. Mas não foi assim. Segundo o Yousif, no Egipto só se descansa  depois de morrer.

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Fomos separados do grupo inicial por termos programas diferentes, e juntámo-nos a um simpático casal nortenho, que tinha como único defeito o de sofrer de lampeonite aguda. Passámos a ser um grupo de cinco, contando com o omnipresente Dino, possuidor de  um conhecimento enciclopédico, nosso guia e companheiro até Aswan.

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No mesmo dia da chegada a seguir ao almoço, tinhamos visita marcada aos templos de Karnak e Luxor. Karnak, em particular, é um fabuloso complexo de templos que homenagiava Amon e outros deuses, famoso pelo seu Grande Salão Hipostilo. O Templo de Luxor também foi dedicado à adoração a Amon, além de ter sido um local de muitos rituais. Presentemente acolhe diversos festivais lúdicos e culturais. 

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Caiu a noite e saímos para um passeio de charrete pela cidade que vibrava de alegria. As pessoas que ficavam em casa e encerravam os seus pequenos negócios durante o dia para melhor poderem fazer o jejum, trabalhavam à noite e contribuíam para o colorido do Ramadão. Por todo o lado se ouvia “Ramadan Kareem” acompanhado de beijos e abraços.

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No regresso recebemos instruções para o dia seguinte. A manhã acorda cedo e nós também, com partida para o Vale dos Reis, Templo de Hatshepsut,  Colossos de Memnon e visita a uma fábrica artesanal de peças em alabastro. Saída às 7 horas.

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Pelas sete, frescos que nem uma alface pelo mimo de seis horas de bom dormir, seguimos para o Vale dos Reis, que por muito incrível que possa parecer, já fervilhava de turistas. Alguns faziam ouvir bem alto  o seu descontentamento por a tumba de Tut Ankh Amon se encontrar encerrada. Uma idosa alemã chorava copiosamente, manifestando o seu desalento. Foi um revés? Foi. Mas há por ali muito mais  para visitar. Entrámos em três tumbas muito bonitas de três Faraós de nome Ramsés, o III, o IV e o IX. Bem preservadas e com pouquíssimas zonas restauradas, foi um autêntico deleite imergir na história que era contada nas paredes e tectos dos túneis e câmaras e antecâmaras  funerárias.

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Partimos para o Templo de Hatshepsut, mulher, Rainha, Faraó e dirigente extraordinária durante mais de 20 anos, com um reinado grandioso em paz e grande prosperidade. Hatshepsut, uma das poucas mulheres a governar como faraó, focou-se em projectos de construção, comércio e desenvolvimento económico, o que contribuiu para a estabilidade do país. Esse período é frequentemente visto como um dos mais prósperos da história do Egipto antigo. O Templo localizado em Deir el-Bahari é completamente escavado na rocha, é belo ao longe e ainda mais belo à chegada.

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Dali, seguimos para Memnon, para ver os colossos, duas enormes estátuas de pedra que representam o faraó Amenhotep III. Seguimos para o artesanato em pedra e de lá para o navio que iria zarpar pelas 14 horas, rumo a Edfu e Kom Ombo.

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Tivemos uma tarde em cheio.

Diário de viagem: Capítulo 3

História de Duas Cidades: o Cairo e a Capital Turística

Maria Dulce Fernandes, 08.04.25

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Por aquelas paragens, madrugar esteve na ordem do dia… todos os dias. Se o que se quer é uma visita com qualidade, chegar cedo é fundamental. Isto implica acordar às 6:30h, tomar pequeno-almoço e estar no lobby pronto para o autocarro entre as 7:30h e as 8 horas. Éramos quase sempre os primeiros e assim tínhamos tempo para conversar com o guia sobre as visitas. Se existe coisa de que não nos poderemos nunca queixar, é da organização e da pontualidade dos muitos representantes da agência egípcia que nos transportaram e guiaram aos mais variados destinos, alguns num português-do-Brasil quase perfeito, outros num excelente espanhol. Foram todos, sem excepção, óptimos profissionais.

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Com o grupo completo, rumámos à mesquita de Muhammad Ali, também conhecida como Mesquita de Alabastro, um importante local de culto e também um símbolo da era de modernização do Egipto sob o governo de Muhammad Ali Pasha. Visitámos também a mesquita mameluca de na-Nasr Mohammed, que é um exemplo impressionante da arquitectura mameluca, com grandes cúpulas, minaretes altos e belos detalhes decorativos. Ambas as mesquitas estão situadas dentro da Cidadela de Saladino, o famoso Salah ad-Din Yusuf ibn Ayyub, fundador da dinastia aiúbida. A cidadela foi projectada para proteger a cidade de invasões, especialmente durante as Cruzadas.

Foi a primeira vez que entrámos em mesquitas calçados (era opção por 10EGP) e apenas com protectores de sapatos.

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Dos muros da Cidadela, a vista panorâmica sobre a cidade é de tirar o fôlego, de tão fantástica quanto deprimente. Pelo caminho avistámos a Cidade dos Mortos, que não conseguimos visitar por estar a decorrer um funeral. 

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Depois do almoço em restaurante típico, visitámos o bairro copta. Este bairro é o centro da comunidade cristã copta do país, uma das mais antigas tradições cristãs do mundo. O pequeno tesouro que é a Igreja de S. Sérgio e S. Baco, erigida sobre a casa na qual a Virgem Maria, o Menino Jesus e S. José viveram quando da sua fuga para o Egipto, merece destaque. Visitámos também a antiga igreja de Santa Bárbara convertida em sinagoga. Paredes meias com uma mesquita construída sem minaretes nem altifalantes para não perturbar as orações na sinagoga, funcionam cada uma no seu culto e ambas em perfeita e pacífica coabitação. Visitámos também o grande bazar de Khan el Khalili e o Museu Egípcio. 

Como dois lugares distintos, um pardacento e sombrio, o outro arrumado e alegre, Cairo-a-Capital e o Cairo Turístico, vivem lado a lado, dissonantes, como duas metades em que as disparidades são por demais flagrantes debaixo da mesma luz, duas faces da mesma moeda cuja cara que cai voltada para o sol é a renda que alimenta o país.

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O Museu Egípcio, apesar de desfalcado de grande parte do seu acervo, é ainda muito interessante. Apresenta  a exposição por categorias e sem ordem cronológica, mas está muito bem organizado.

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A sua maior atracção é (e será até Julho) parte do tesouro de Tut Ankh Amon. Está exposta a máscara funerária, o sarcófago de ouro e um sem número de gargantilhas, coroas e outros objectos pessoais confeccionados nesse metal precioso, imprescindíveis ao percurso da alma após o  Tribunal de Osíris e todos os processos de vida, morte e regresso da alma ao corpo. Por ser sagrado ou profano, não percebi bem o porquê, não é permitido fazer fotografias ou vídeos da sala deste faraó... mas se se pagar com antecedência pela sessão fotográfica depois do horário de encerramento podemos fotografar, algo que à data desconhecia completamente.

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Hatshepsut

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Já entardecia quando regressámos ao hotel para preparar tudo para a aventura seguinte. Nas ruas recomeçava a azáfama para mais um iftar, e a letargia do jejum dava lugar à antecipação do banquete que, onde quer que fosse, era sempre farto e bastante variado e cujos aromas esvoaçavam por toda a cidade, carregados pelos ventos de final de tarde. Pelas estradas, voluntários ofereciam água e tâmaras àqueles que demoravam no regresso a casa, para que pudessem quebrar o jejum depois das 6 da tarde, hora em que o sol, apesar de ainda iluminar, deixava de se ver no horizonte e em que, do alto dos minaretes de todas as mesquitas, por todo o país, os muezim cantam o adhan para as primeiras orações da noite.

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Também nós tínhamos algumas tarefas a ultimar. Acordar às 2 horas da madrugada, sair às 3 horas, chegar ao aeroporto às 4 horas, passar pelas diversas revistas de segurança e às 6 horas voar rumo a Luxor.

Assim foi e mal o avião descolou já começava a preparar a aterragem.

Diário de viagem: Capítulo 2

De um paraíso mediterrânico, a “noiva” é agora uma lixeira em céu aberto

Maria Dulce Fernandes, 06.04.25

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O programa de viagem tinha como destino a visita à cidade mediterrânea de Alexandria no dia seguinte. Madrugámos com grande expectativa e encetámos alegremente os cerca de 220km que separam esta cidade da capital.

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Nada nos faria pensar que Alexandria seria também uma ruína, mas efectivamente assim é. Andrajosa, suja e superpovoada, a cidade mais cosmopolita de todas as cidades egípcias é um caco e um perfeito caos.

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Salvou-se a visita a Kom el Shoqafa, um complexo funerário subterrâneo greco-romano-egípcio, a biblioteca que é uma pérola rara no meio de tantos escombros de construções habitadas e do lixo que é uma constante por todo o lado, a Fortaleza de Quaitbay, o Pilar de Pompeu, o demasiado ventoso Parque Montazah e a Corniche que se estende por quilómetros e que apesar do vento e do frio (11⁰C) consegue ser bonita.

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Quando Alexandre fundou a cidade e lhe deu o seu nome não lhe passou pela cabeça que se tornaria num Nó Górdio, sem lâmina que o consiga desatar.

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O passeio em si foi conseguido e o truque é não ser optimista. Se nunca se esperar demasiado, nunca ficaremos desapontados.

Voltámos à estrada, para mais 220 quilómetros rumo à cor, à música e aos inebriantes aromas do iftar que conferem ao pardacento Cairo a alegria que debaixo do sol é difícil de encontrar.

 

Diário de viagem: Capítulo 1

Um sonho dentro de um pesadelo

Maria Dulce Fernandes, 03.04.25

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Quando somos pequenos, todas as histórias de países distantes e misteriosos, cujos usos e costumes são tão diferentes dos nossos que avivam a imaginação e se tornam mágicos, aguçam o bichinho da aventura que,  dormente durante anos, ressurge desperto e renovado  e pede que o sonho se realize.

Pensada e repensada, a decisão foi tomada e partimos para o Cairo, numa fria tarde de Março, para fugir às altas temperaturas de um Verão prematuro. As seis horas de viagem passaram lentas mas correram bem. Depois de todas as peripécias de vistorias de segurança, chegámos ao hotel quase ao nascer do sol para nos refrescarmos, pois a primeira visita tinha saída às 8:30h. Havia pequeno-almoço  apesar de ser tempo de Ramadão e o autocarro apresentou-se à hora marcada para o tour a Memphis e Saqqara, e depois do almoço as famosas pirâmides e a esfinge.

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Atravessar o Cairo é um susto, mesmo da perspectiva do alto de um autocarro de turismo. Primeiro, porque toda a cidade é já ela um susto, suja na cor e no lixo que enche as ruas por todo o lado em que se passe. Os edifícios pareciam saídos de um filme de guerra prestes a desmoronar-se, não se avistavam semáforos, passadeiras para peões ou rotundas, nem sei se existe código da estrada, pelo que era um “Insha’Allah” e tudo ao molho. É uma questão de cultura, tenta explicar o guia, mas é tirada que não convence. Ter uma cidade com cerca de 20 milhões de almas e a aumentar de dia para dia, sem condições para nela se viver, as casas meio destruídas, com pessoas a dormirem debaixo dos viadutos e arcadas de prédios e na interminável Cidade dos Mortos, um enorme cemitério onde mortos e vivos coabitam, no meio de casas térreas clandestinas e de túmulos, onde há arte, comércio e vida e morte, numa existência tão plácida como tétrica.

 

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O Cairo é triste e assustador, mas as pessoas são alegres e bem dispostas e à noite as luzes artificiais das fanous, as lanternas do Ramadão, a música e o colorido, com grandes mesas ruas afora onde todos se juntam para o Iftar,  mascaram a premente necessidade com festa e luz, onde os mais ricos alimentam os pobres e todos os que vierem por bem. A noite, essa sim, é mágica.

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (8)

Balanço

Cristina Torrão, 21.02.25

A 23 de Dezembro, três semanas e meia depois da sua chegada a casa, Jette fez um balanço da sua viagem. Ao organizar um livro de fotografias, recordou, passo a passo, as suas vivências e apercebeu-se, mais do que nunca, da singularidade da sua experiência.

Atravessou o rio Reno de ferry; amarrou a Pinou à porta de um supermercado; dormiu num estábulo; o pai levou-a através da França, para que ela pudesse retomar a viagem em Burgos; cavalgou ao longo do Atlântico; dormiu em casa de pessoas desconhecidas, incluindo homens acabados de conhecer, apenas porque eles a abordaram de maneira simpática e perguntaram: “queres dormir aqui?”. Porém, diz Jette, nunca sentiu receio ou insegurança. Todas as pessoas se revelaram prontas a ajudá-la, com a melhor das intenções.

Jette notou igualmente a diferença que a viagem operou na Pinou. A égua dormiu em alguns sítios sozinha e/ou ao ar livre, assim como num estábulo com cavalos que lhe eram estranhos. As duas atravessaram florestas solitárias, Pinou chegou até a caminhar solta, à sua frente. A égua emagreceu um pouco, mas seria praticamente impossível evitá-lo, numa jornada tão longa. Mantendo-se em contacto com a dona, Jette sabe, entretanto, que a Pinou recuperou o seu peso normal e se encontra calma e feliz. A relação de completa confiança estabelecida entre ela e o animal, as pessoas incríveis que conheceu e as lindas paisagens foram, segundo a moça, as melhores vivências.

Ao folhear o livro de fotografias, Jette apercebe-se de como foi incrível elas não terem desistido. E conseguir regressar à Alemanha, sem levar a Pinou consigo. O facto de logo ter sido solicitada para tratar, montar e educar novos cavalos ajudou-a a diminuir as saudades da Pinou.

A moça agradece ainda o apoio dos pais, do namorado, de família, amigos e da dona da Pinou. Acompanharam o seu diário de viagem, comentaram, deram-lhe ânimo. As novas tecnologias têm muitos aspectos positivos, basta dar-lhes o uso adequado.

Jette diz que nunca se sentiu sozinha, durante a viagem, pois tinha a Pinou a seu lado. E eu penso ter sido precisamente isso a dar-lhe uma permanente sensação de segurança. Ela não fez a viagem de bicicleta, tinha um animal consigo, um ser vivo. Embora a Pinou pertença a uma raça relativamente pequena, um cavalo impõe sempre respeito. É o suficiente para afugentar quem nada entende de animais, ou cobardes. E sabemos: homens que molestam mulheres são cobardes. A não ser que estejam munidos de uma arma para, neste caso, dar cabo do animal. Mas isso, na nossa Europa, é felizmente raríssimo.

Neste postal, a comentadora Susana V. não deixou de referir ser imprudente “uma jovem de 20 anos com a responsabilidade enorme de tratar de uma égua, a viajar por terras despovoadas”, embora diga também que “as boas aventuras são muitas vezes comportamentos inconscientes que correram bem”.

Admiram-se sempre as aventuras dos rapazes, enumerando, com entusiasmo, os perigos por que passaram. Em relação a raparigas, somos mais críticos. Há mais perigos à sua espreita. E duvida-se mais facilmente das suas capacidades (neste caso, em tratar de uma égua). Mas a Jette provou que não tem de ser assim.

E não, não pretendo igualar os sexos, mas o respeito e a consideração que se lhes devota. Trata-se de não ver, num ser humano, uma presa à mercê de alguém, apenas por ser mulher. Por mais que muita gente insista em que a sociedade evolui por si própria, num processo natural, sem necessidade de exageros e sobressaltos, estes são essenciais. Tem de haver solavancos e rupturas. São necessárias pessoas que se atrevam a dar passos no desconhecido, quebrando tabus. A Jette não foi a primeira mulher a viajar sozinha. Mas mulheres dessas ainda representam uma excepção.

E não esqueçamos igualmente a mentalidade europeia. Foi na velha e bela Europa que isto aconteceu. Não poderia ter acontecido em muitas outras partes do mundo.

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Outras formas de turismo: repensar o acto de viajar

Ana CB, 11.02.25

Em 2008, planeei pela primeira vez uma viagem totalmente com recurso à Internet. É certo que nos anos imediatamente anteriores me socorria de uma agência de viagens online (que não era portuguesa). Mas só quando quis ir fazer uma viagem pela Costa Rica e não encontrei nenhum programa de operador turístico que me levasse aonde eu queria e durante o tempo que eu queria é que me decidi a organizar tudo por minha conta e risco. E, com uma pequena excepção, não voltei a viajar de outro modo.

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Olhando para trás, no que toca a viagens, tenho feito um percurso inverso ao que seria mais provável hoje em dia. Quando comecei a viajar com regularidade para fora de Portugal, nos já idos anos 90, não era concebível reservar uma viagem de avião sem ser através de uma agência de viagens. É certo que de carro ou comboio podíamos partir à aventura sem nada marcado, mapa na mão e procurando alojamento nos sítios em que decidíamos parar. Foram várias as viagens que fiz em Espanha e França com pouco mais do que uma vaga ideia de querer ir ver isto ou aquilo. E corriam geralmente bem – uma avaria ocasional que nos atrasava os planos, ter de passar uma noite no carro ou num alojamento menos confortável por não encontrar outro melhor. Nada que me estragasse o prazer de viajar.

Mas se queríamos ir para destinos mais longínquos, e a não ser que tivéssemos todo o tempo do mundo para partir à descoberta e nenhumas responsabilidades a prenderem-nos para voltar, então tínhamos mesmo de recorrer às agências de viagem e conformar-nos com o que elas nos ofereciam. Hoje, numa altura da vida em que já seria compreensível (e talvez expectável) querer sopas e descanso e embarcar em cruzeiros, ou ir para resorts, ou que me fizessem a papinha toda e apresentassem viagens prontas a consumir, estou quase completamente no espectro oposto. Não virei mochileira (embora ande muitas vezes de mochila às costas), mas só vou aonde quero e da forma que quero, fugindo das viagens estereotipadas e, dentro do possível, das épocas mais pressionadas pelo turismo. Não é que não vá, ou não queira ir, àqueles lugares de que toda a gente gosta. Mas não aprecio confusões, e portanto tento evitá-las. Se há tanto para conhecer por esse mundo fora, porque é que havemos de ir todos para o mesmo sítio ao mesmo tempo?

Nos últimos 60 anos, as viagens “democratizaram-se”. O que antes só era acessível para quem ou fosse muito endinheirado, ou tivesse uma alma hippie, hoje em dia é mais ou menos alcançável para uma boa fatia da população mundial. Por um lado, as plataformas online tornaram possível a muita gente, como eu, viajar com mais facilidade; por outro, a maior oferta de alojamentos de vários tipos e de transporte (sobretudo na aviação) fez reduzir os custos das viagens, de um modo geral. As redes sociais encarregaram-se de alimentar e acelerar as vontades (por vezes apenas latentes) de ir mais longe, mais alto, mais fundo – ou simplesmente de ir passar férias num sítio que não o do costume, de preferência num daqueles em que é possível tirar belas fotos sem grande esforço nem sapiência.

Fonte (por vezes principal) de rendimento, emprego e desenvolvimento em muitos países, esta revolução no turismo trouxe também problemas evidentes: os destinos cheios de resorts uniformizados, a proliferação de pacotes de “tudo incluído” e a febre dos locais “instagramáveis” dominam o sector. Para muitos, viajar deixou de ser uma forma de descoberta cultural e pessoal para se tornar num acto performativo, mais voltado para acumular carimbos no passaporte ou quantidades de países visitados do que para viver experiências autênticas.

O turismo de massas tem vindo a exacerbar, a nível mundial, várias questões ambientais e sociais. Do ponto de vista do ambiente, não podemos ignorar a poluição causada pelo transporte aéreo e marítimo, a sobrecarga de ecossistemas frágeis, o desperdício de recursos naturais como água e energia, ou o aumento da produção de resíduos. Socialmente, contribui para a sobrecarga de infra-estruturas em cidades icónicas, a gentrificação de bairros históricos, o aumento do custo de vida para as populações locais, a exploração laboral no sector do turismo e a degradação da autenticidade cultural devido à excessiva comercialização. Além disso, ao comprometer a qualidade de vida em destinos muito procurados, a afluência descontrolada de turistas pode gerar (e tem gerado) tensões com as comunidades locais.

E eu encontro-me agora, com este meu grande apetite por viajar, num dilema: uma vez que faço parte do problema, como posso também fazer parte da solução? Como posso conciliar a minha paixão por conhecer o mundo (enfim, parte dele, pelo menos) com o meu desejo de contribuir o mínimo possível para piorar situações que são já por si insustentáveis? Sei que não sou a única a preocupar-me com estas questões, e não tenho qualquer pejo em defender que está na altura de repensar o que queremos quando viajamos, e qual a melhor maneira de o fazer. Há vida para lá dos formatos padronizados de viagem, e outras formas de turismo que podem ser igualmente (ou ainda mais) recompensadoras.

 

Turismo sustentável: uma responsabilidade colectiva

O turismo sustentável é uma abordagem que visa equilibrar a satisfação dos viajantes com a protecção do meio ambiente e o bem-estar das comunidades locais. O conceito surgiu como resposta primeira e directa aos efeitos negativos do turismo de massas. Através de práticas conscientes, é possível minimizar a pegada ecológica e maximizar o impacto positivo nos destinos visitados.

Por exemplo, optar por transportes menos poluentes, como os comboios, é uma forma de reduzir as emissões de carbono associadas às viagens de avião. A escolha de alojamentos amigos do ambiente, que recorrem a energias renováveis e têm programas de reciclagem, é outra medida concreta. Para além disso, a consciência ambiental deve estender-se ao consumo local: privilegiar mercados, restaurantes e lojas geridos por comunidades locais fortalece as economias locais sem explorar os recursos naturais de forma excessiva. Já falei mais em detalhe sobre esta questão aqui.

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Muitos destinos também estão já a adaptar-se a estes cânones. Exemplos como as Galápagos ou o Butão, que limitam o número de turistas anuais, demonstram que é possível preservar ecossistemas sensíveis ao mesmo tempo que se oferece uma experiência única e com qualidade. Esta limitação e qualidade envolvem custos – o que, por sua vez, dá origem a outro tipo de questões: num mundo que deveria ser cada vez mais democrático e acessível, é justo vedar certos destinos a quem tem menos posses, mesmo que com base em motivos nobres? Nesta como noutras áreas, não é fácil encontrar um equilíbrio.

 

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Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (3)

Cristina Torrão, 17.01.25

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Chegada a Krefeld, depois de vinte e um dias de viagem e quase 570 km percorridos, Jette deixou a Pinou bem entregue e descansou três dias, alojada em casa de um tio. O namorado foi ter com ela. Na bagagem, trazia uma ração especial para a Pinou, própria para cavalos sujeitos a maiores esforços.

Jette e Pinou bem precisaram de todos os confortos proporcionados por esta estadia. Ao retomarem a viagem, a 1 de Outubro, tinham a Eifel pela frente, uma cordilheira montanhosa, na Renânia-Palatinado, que se estende por 5300 km², entrando na Bélgica e no Luxemburgo e atingindo, no seu ponto mais alto, à volta de 750 m.

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Não eram apenas os montes a tornarem custosas as etapas. Os dias eram já curtos e o tempo mudou, tornando-se frio e chuvoso. Por vezes, chovia um dia inteiro. Nas pausas, para comer a merenda, Jette abrigava-se debaixo de uma árvore. E nem sempre encontrava quem lhe cedesse um quarto para dormir.

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Pernoitando na tenda, com temperaturas entre os 0ºC e os 4ºC, Jette tinha frio, apesar de se deitar vestida com calças de ski e de cobrir o saco-cama com uma manta da Pinou, feita de pêlo de ovelha. Por vezes, tinha de montar a tenda em relvados totalmente alagados. Deste modo se apresentavam igualmente muitos caminhos, obrigando-as a fazer grandes desvios.

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Havia dias em que só avançavam 18 ou 20 km. Cheia de andar à chuva, Jette começava a procurar alojamento pelas duas e meia da tarde. E, caso só lhe restasse dormir na tenda, a preparação da viagem, no dia seguinte, era penosa, debaixo da chuva. Jette sentia pouca motivação para continuar e demorava uma eternidade até ter tudo pronto, só arrancando pelas 11 horas.

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A jovem começou a duvidar se devia prosseguir. Sempre soube que ia deparar com dificuldades, mas seriam estes desafios extremos boas lições de vida, ou contribuíam apenas para a deprimir? Sentia muita falta do namorado, da família e de uma rotina caseira. Não saber, dia após dia, onde e como ia passar a noite, era psicologicamente exaustivo. E parecia-lhe que as mudanças constantes esgotavam também a Pinou. A todo o momento, poderia solicitar ao pai que a fosse buscar de carro, trazendo um atrelado para a égua. Acabaria por o fazer?

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Depois de dez dias de canseiras e extremo desconforto, encontrou uma pequena quinta com gente muito simpática. A Pinou teve direito a um estábulo coberto e, apesar de a família não ter um quarto disponível para a Jette, ela pôde dormir numa divisão aquecida, deitada no seu colchão de ar.

No dia seguinte, talvez notando que ela estava realmente esgotada, sugeriram-lhe que ficasse mais uma noite. Num primeiro momento, ela recusou, queria avançar. Mas mudou de ideias. Era Domingo e, se ela e a Pinou estavam tão bem instaladas, porque não aproveitar aquele dia para descansar?

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A primeira coisa que fez, depois do pequeno-almoço, foi tornar-se a deitar. Aquela possibilidade de poder descansar, a qualquer momento, sem preocupações, fez-lhe sentir a familiaridade típica de um Domingo. Convidaram-na para almoçar e, em seguida, como não chovia, resolveu ir dar um passeio com a Pinou. Poder cavalgar, sem sujeitar a égua ao peso da bagagem, trouxe-lhe uma sensação de verdadeira felicidade.

Na segunda-feira, fizeram-se novamente à estrada. Os montes continuaram a cansá-las, mas o tempo melhorara e Jette notava que a Pinou, entretanto treinada, vencia melhor as subidas. Passado uns dias, numa outra aldeia, a jovem teve de escolher entre a tenda, ou levar o saco-cama para um antigo curral de vitelos, o abrigo da Pinou, guarnecido com feno fresco.

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Escolheu ficar com a égua, o que se revelou a melhor solução. Durante a noite, Pinou deitou-se duas vezes ao lado dela, algo que, naquela situação, lhe deu conforto e felicidade imensos. Estabelecia-se uma verdadeira cumplicidade entre as duas, baseada, como sempre acontece numa relação entre um humano e um animal, numa total confiança mútua.

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O saco-cama de Jette, no curral onde ela dormiu ao lado da Pinou

A jornada prosseguiu, novamente com alguma chuva. Por vezes, tinham sorte e encontravam um lugar agradável para dormir, com gente que a convidava para jantar. Outras vezes, tinham de se contentar com mais um terreno alagado, onde a moça montava a tenda, enquanto a noite se aproximava fria.

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Jette ia resistindo, deixando a Eifel e as suas montanhas para trás, à medida que se aproximava do Saarland, onde o pai surgiria, a fim de as transportar até Espanha. Isso dava-lhe naturalmente motivação extra.

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O pai e ela encontraram-se a 20 de Outubro, perto da fronteira francesa. A moça e a égua tinham percorrido quase 1000 km, em quarenta dias.

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (2)

Cristina Torrão, 10.01.25

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A viagem de Jette (Iéta), que se propôs ir da Alemanha até Portugal a cavalo, começou da melhor maneira, a 8 de Setembro do ano passado. Teve sorte com o tempo. Houve mais sol do que o costume e as temperaturas mantiveram-se amenas durante todo esse mês. Além disso, o Norte da Alemanha é plano, facilitando o avanço, e o alojamento estava planeado para a primeira semana.

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A fim de não cansar demasiado a Pinou, que carregava com a bagagem, Jette não passava os dias num galope desenfreado, como gostamos de imaginar. Na maior parte das vezes, limitava-se a uma marcha lenta e descontraída. E, não raro, desmontava e caminhava ao lado do animal, guiando-o pela rédea. Fazia também muitas pausas, a fim de que as duas pudessem descansar e alimentar-se.

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Passado uma semana, Jette tinha vencido cerca de 160 km por terrenos aprazíveis, cheios de erva fresca para a Pinou. Encontrava-se na pequena localidade de Wunstorf, no dia 15 de Setembro, e os pais e o namorado foram passar o fim-de-semana com ela.

Jette encetou a viagem na segunda-feira, mas, apesar do tempo continuar bom, caiu numa onda de tristeza, depois de ter estado com os entes queridos. Sentia, todos os dias, faltar-lhe a motivação para continuar.

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O facto de já não ter alojamentos reservados, tornou-se, porém, vantajoso. Livrara-se da obrigação de vencer determinada distância, a fim de alcançar um destino marcado. E encontrar um local para dormir revelou-se mais fácil do que o esperado. As pessoas que Jette ia encontrando pelo caminho faziam-lhe perguntas e, inteirando-se da sua história, gostavam, geralmente, de a ajudar. Logo lhe indicavam um local, em determinada aldeia, onde ela poderia pernoitar, com estábulo para a Pinou. Essas casas de lavradores nem sempre tinham um quarto à disposição para ela, mas autorizavam-na a montar a sua tenda nalgum relvado, ou a dormir numa roulotte, caso a tivessem. Por vezes, convidavam-na para jantar.

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Havia outras surpresas agradáveis. Num dia, estavam ela e a Pinou a fazer uma pausa, quando um carro parou à sua frente. Depois das perguntas habituais, Jette foi convidada a deslocar-se à quinta dessas pessoas, onde lhe ofereceram maçãs e água para a continuação da viagem. Num outro dia, passando por uma pequena localidade, viu uma gelataria e resolveu comer um gelado. Um homem abordou-a, ao vê-la acompanhada de um cavalo, e, ao saber dos seus planos, fez questão de lhe pagar o gelado, surdo às tentativas de recusa da moça.

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Ir às compras, de vez em quando, era inevitável e, à boa maneira western, Jette amarrava a Pinou à entrada dos estabelecimentos, suscitando olhares estupefactos. Normalmente, porém, as pessoas eram simpáticas. Pediam-lhe autorização para as fotografar e algumas até se atreviam a fazer festas à égua. Nestes, como noutros casos, não lhe era possível evitar passar pelo meio das localidades. A sua presença suscitava sempre grande surpresa e interesse. Nem toda a gente a encarava satisfeita, mas não a molestavam.

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Depois de duas semanas de jornada, e ainda na sequência da ressaca provocada pelo encontro com os pais e o namorado, Jette confessou, no seu diário de viagem (Tag 14), estar a ser extremamente cansativo. Todos os dias se tinha de adaptar a novos locais e responder às mesmas perguntas, além de se lhe depararem constantes desafios. Depois de encontrado alojamento, tinha de cumprir muitas tarefas, até poder descansar: livrar a Pinou de toda a bagagem, tratar da alimentação da égua e, por vezes, limpá-la, antes de se tratar a ela própria.

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Por vezes, tinha ainda de montar a tenda. De manhã, em sentido inverso: desmontar a tenda, tratar da Pinou e dela, reunir toda a bagagem, selar a Pinou e carregá-la. Por outro lado, escreveu ela, era igualmente interessante conhecer locais e pessoas diferentes todos os dias. E aprendia algo a cada desafio. No fundo, era esse o sentido da viagem: amadurecer a cada nova experiência.

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Deparava constantemente com obstáculos, obrigando-a a grandes desvios, por vezes, significando voltar vários quilómetros atrás, apenas para os recuperar em seguida. Certa vez, preparava-se para atravessar uma auto-estrada e encontrou a ponte fechada por motivo de obras. Lá lhe indicaram uma alternativa, mas também isso lhe custou vários quilómetros.

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Numa zona de ribeiros, deu com várias pontes barradas com um pequeno poste. Tratava-se de um percurso pedonal e de ciclistas e os postes evitavam que as pontes fossem usadas por motorizadas ou outro tipo de veículo a motor. Mas impediam igualmente a sua passagem com a Pinou. E Jette pensou que uma família em passeio com um carrinho de bebé veria o seu avanço igualmente barrado.

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Em dias de muita chuva, dava com caminhos impossíveis de serem passados devido à grande quantidade de lama. Jette receava que a égua escorregasse e partisse uma perna. Via-se constantemente obrigada a procurar alternativas à rota planeada, daí esta sua viagem ser bem mais longa do que feita pela auto-estrada, ou mesmo por uma estrada nacional.

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Apesar de todas as canseiras e desânimos, Jette prosseguia. E, ao 21º dia de viagem, a 28 de Setembro, chegou a Krefeld, cidade de 240.000 habitantes, na Renânia do Norte-Vestfália. Jette fez quase 570 km para lá chegar. De Hamburgo a Krefeld, pela auto-estrada, são cerca de 400 km.

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A atravessar o rio Reno numa barcaça (ferry)

 

Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas se podem encontrar no diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (1)

Cristina Torrão, 03.01.25

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Jette é uma alemã de vinte anos, moradora nos arredores de Hamburgo e cuidadora da égua Pinou.

Muitas meninas alemãs são fascinadas por cavalos, uma fascinação que começa pelos cinco ou seis anos de idade. As escolas de equitação proliferam e o sexo feminino está em clara maioria, tanto a nível de alunos, como de professores. As crianças mais pequenas iniciam a sua aprendizagem com póneis.

Muitas vezes, essa fascinação acaba por desaparecer na adolescência. Caso se mantenha, os pais com mais posses compram cavalos para as filhas e alugam lugares nos estábulos das escolas ou de quintas. As moças pertencentes a famílias, cuja situação financeira não permite tal aquisição, prontificam-se a cuidar dos animais e a limpar os estábulos em troca da prática gratuita de equitação.

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Jette (pronuncia-se Iéta) trata da Pinou desde 2023. No ano passado, porém, a dona da égua resolveu mudar-se para Portugal, para os lados da Bemposta, alguns quilómetros a norte de Castelo Branco. Penso que essa senhora terá mais animais e não sei pormenores da mudança. Sei que ela não levou logo a Pinou, deixando-a num estábulo conhecido e aos cuidados de Jette, até organizar o seu transporte.

Depois de completar o liceu, Jette ainda não decidiu como continuar a sua vida. Muitos jovens alemães tiram um ano para viver no estrangeiro, ou exercer alguma actividade relacionada com serviço social, no seu país, antes de prosseguirem os estudos. Jette passou quase três meses na Nova Zelândia, no ano passado, a cuidar de cavalos e a dar aulas de equitação. E tenciona tornar a ir. Entretanto, regressada à Alemanha, no Verão, a mãe sugeriu-lhe, em tom de brincadeira: “porque não levas tu a Pinou, fazendo uma viagem a cavalo até Portugal?”

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A ideia não mais saiu da cabeça de Jette. E contactou a dona da Pinou que, depois de reflectir uns dias, lhe respondeu: “Faz isso, então, se é o que queres”.

Decidida a provar a si própria e aos outros de que seria capaz, Jette começou a treinar mais intensamente com a égua e a preparar a viagem. Os pais e o namorado colaboraram, discutindo os planos com ela. Iniciando-se a jornada em Setembro, e como seria irrealista atravessar os Pirenéus no Inverno, o pai prontificou-se a levá-la de carro através da França, até Bilbao, caso ela realmente conseguisse atravessar a Alemanha, de Hamburgo até à fronteira francesa, no Saarland (quase 1000 Km, na rota escolhida por ela; a viagem na auto-estrada é 300 km mais curta).

Reservaram dormidas para a primeira semana, em locais de turismo rural, com distâncias de 30 a 40 km entre eles. Depois, Jette teria de se desenvencilhar sozinha, munida de uma tenda, deixando o destino decidir. Os pais e o namorado comprometeram-se igualmente a ir buscá-la, fosse onde fosse, caso ela se achasse incapaz de prosseguir, ou algo lhes acontecesse (a ela e/ou a Pinou).

A 8 de Setembro de 2024, Jette iniciou a viagem da sua vida.

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas são retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Bilhete-postal do fim do mundo: Ushuaia

Ana CB, 31.12.24

Foi com um sorriso aberto e um “Hola chicas!” que Ada nos abriu a porta do Los Calafates B&B, que gere com o filho Hernán. A quase 12 mil quilómetros de distância de Portugal e depois de várias horas de viagem desde Buenos Aires – autocarro, avião, táxi – esta recepção calorosa e familiar fez-me sentir como se chegasse a casa. O frio patagónico ficava lá fora e o fim do mundo já não me parecia assim tão distante do nosso rectângulo do outro lado do Atlântico. Intuindo que estaríamos cansadas, Ada não nos maçou com grandes pormenores e deixou para mais tarde os protocolos burocráticos habituais: deu algumas informações básicas e levou-nos de imediato ao nosso quarto. Uma amostra da informalidade e simpatia que iria ser o mote quase generalizado dos dias que passámos em Ushuaia.

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Conquistada pelo estômago e pela simpatia

Na Primavera austral o céu mantém-se claro até tarde, o que ajudou a ajustar o nosso relógio interno para as 4 horas de diferença daquelas longitudes. Se estivéssemos por cá, jantar quase à uma da manhã seria inconcebível para nós. Só que em Ushuaia ainda não eram 10 da noite, e o almoço já era uma vaga recordação. A pizaria Dieguito – uma sugestão da nossa anfitriã – estava à cunha, mas assim que entrámos o dono saudou-nos com uma alegria tal que parecia que nos conhecia há anos. De imediato arranjou uma mesa para as “chicas”, e enquanto nos acomodou bombardeou-nos com as habituais perguntas de quem percebe que está a receber forasteiros de terras longínquas – o que, de resto, em Ushuaia não é difícil, atendendo a que a cidade está distante de tudo, mesmo se só pensarmos na Argentina. Suspeito também que o nosso espanhol mal-amanhado e com sotaque europeu tenha contribuído para essa conclusão…

 

A atmosfera estava tão abafada que tivemos de ficar só de t-shirt – tal como toda a gente, de resto. Tirando o calor quase excessivo, o ambiente podia ser o de uma cervejaria portuguesa sem pretensões. Mesas e cadeiras simples, de madeira escura envernizada; caixas de cerveja local (com a marca “Beagle”, como o canal que banha a cidade) empilhadas a um canto; paredes e tecto com fotografias várias, cartazes e t-shirts de clubes de futebol, a condizer com o jogo que passava no ecrã de televisão, e uns quantos troféus expostos sobre uma estante. No meio da aparente agitação, a comida foi servida rapidamente, estava saborosa, e o serviço esbanjou simpatia.

Gostámos tanto que no dia seguinte voltámos lá ao almoço, desta vez para provar aquele que é um dos petiscos gastronómicos mais populares em toda a Argentina: as empanadas. Receita herdada da colonização espanhola, no século XVI, foram adaptadas aos ingredientes locais, e cada província da Argentina desenvolveu sua própria fórmula, criando uma variedade infindável de recheios e formas de preparação. A empanada tornou-se especialmente popular entre os trabalhadores rurais, pois era fácil de transportar e consumir em qualquer lugar. Embora parentes das empadas ibéricas, as argentinas são maiores e de formato semicircular ou oval. Têm geralmente uma massa mais fina e flexível, e mais recheio, o que as torna menos pesadas e muito ao meu gosto. Em Ushuaia, as do Dieguito são assadas no forno de barro onde cozinham as pizas e entraram directamente para a lista das minhas delícias favoritas no mundo, seguidas de perto pelas de marisco do quase vizinho restaurante Doña Lupita.

 

Entre a montanha e o mar

Na língua do povo yámane (ou yagán), que habitou a parte sul da Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos, Ushuaia significa “baía ao fundo”. Para mim, o nome soava-me a vastidão do mar, vento agreste e solidão, mas não podia estar mais enganada. Quando a vi de longe, Ushuaia pareceu-me uma pequena cidade alpina, encaixada entre as montanhas pintadas de branco e a água parada do Canal Beagle. Mais perto, apercebi-me da cacofonia arquitectónica generalizada, como se tivessem decidido fazer dela um mostruário de todos os tipos de edifícios que é possível construir, em todos os estilos e com todos os materiais. Há de tudo, desde o modernismo geométrico com betão e vidro ao utilitário nórdico de chapa ondulada, passando pelos chalés em madeira e os prédios “pintados” de pedra ou tijolo, iguais a tantos outros que vemos por aí.

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Na zona mais plana e movimentada da cidade, as ruas formam um quadriculado perfeito, que se vai deformando à medida que a área urbanizada se afasta do mar e trepa pela encosta. A amálgama de estilos contagiou o comércio e abundam os letreiros com letras garrafais e os anúncios garridos, entre o folclórico e o kitsch, aqui e ali uma loja mais sóbria ou um café com uma decoração mais clean. É a Europa nórdica desconjuntada pelo “jogo de cintura” sul-americano e apimentada pelo sangue quente da herança espanhola. Ushuaia pode estar no fim do mundo, mas a verdade é que vivem ali quase 80 mil almas, número que engrossa substancialmente durante os meses da época alta do turismo.

A avenida que acompanha a curvatura da baía ao longo da cidade é rota de passeio agradável, mesmo sob um céu a ameaçar chuva. Não é que haja muito para ver… Deixando para trás as casinhas dos operadores turísticos e os nada atraentes barracões e contentores armazenados no porto, sobra a vista sobre o Onashaga (o nome do Canal Beagle na língua nativa), imperturbável como um lago, mimetizando a cor cinza da atmosfera. Há veleiros de recreio espalhados pela baía, entre outras embarcações coloridas, e um navio de cruzeiro mais ao fundo. Encostado a uma espécie de dique de cascalho, meio adernado, o rebocador Saint Christopher já viu melhores dias, e parece recordar com nostalgia a sua época de glória, quando se chamava HMS Justice e participou no Dia “D” da Segunda Grande Guerra, desembarcando tropas aliadas na Normandia. Abandonado há quase 70 anos após uma avaria, já faz parte da paisagem, e em todo este tempo a cidade decerto mudou muito mais do que ele.

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Para lá da água, estendem-se até ao infinito montanhas negras marcadas por dedos de neve, cumes brancos entrelaçados num manto de nuvens baixas. São uma bela moldura e por isso, turismo oblige, a palavra Ushuaia em letras garrafais não podia faltar, completando o enquadramento ideal para as fotos da praxe.

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Uma via pedestre de cimento pintado com formas coloridas encaminha-nos para o local a que chamam Paseo de los Antiguos Pobladores. Estão ali algumas das construções mais antigas da cidade, agora convertidas em espaços culturais e institucionais. A Casa Pena, pintada de amarelo e verde, é hoje o Museu da Cidade, onde uma exposição etnográfica conta a história de Ushuaia desde a sua origem. Na Casa Torres foi instalado o museu “Pensar Malvinas”, que expõe informação sobre a guerra que, em 1982, agitou a opinião pública em todo o mundo e terminou com o Reino Unido a manter a soberania (detida desde 1833) sobre o arquipélago do Atlântico Sul, situado perto da costa argentina, a que os britânicos chamam Falklands. A Câmara de Turismo da Terra do Fogo funciona na discreta e bonita Casa de Lisardo García, revestida de chapa ondulada cinzenta embelezada com madeiras pintadas de branco. Mas o edifício que mais chama a atenção, pela sua arquitectura extravagante, é a antiga Casa Bebán, que agora é centro cultural e de exposições. Num arroubo de excentricidade, o primeiro dono, Tomás Bebán, mandou vir da Suécia toda a estrutura da sua futura casa de família, cuja montagem ficou terminada em 1913.

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Depois há que ir ao melhor miradouro da cidade, o Paseo del Centenario. Uma escadaria moderna, com formato irregular e vários pontos de paragem, coroada por um monumento que homenageia as várias correntes migratórias que deram origem a Ushuaia. Renovado em 2021, e apesar do pedido de cuidado feito pelo Intendente Walter Vuoto aquando da reinauguração, já apresenta infelizmente alguns sinais do vandalismo que desfigura, cada vez mais, as zonas urbanas: tags (a que incorrectamente é hábito chamar grafitis) pulverizadas sobre as “espigas” de cimento que fazem parte da estrutura da escadaria. Nem as terras do fim do mundo escapam à falta de civismo e de respeito, e só mesmo a vastidão e serenidade da paisagem que se nos oferece a partir do miradouro conseguiu apaziguar o meu espírito.

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Um banco com vista: Caneiras

Ana CB, 27.11.24

Manhã quente de Verão. O rio leva pouca água. Aqui e ali nota-se a sombra clara da areia por baixo do azul líquido, ou revela-se um tronco preso no leito, que a fraca corrente não consegue arrastar; até os mouchões mais rasos estão visíveis e pujantes de erva verde. Sob a copa larga de um salgueiro, o banco de madeira sem encosto é repousa-pés ideal para quem precisa de matar o tempo até à hora de almoço, pese embora o assento escolhido não seja o banco mas sim uma cadeira de campismo. É domingo, e para quem aqui vive pouco mais haverá para fazer do que contemplar a paisagem e aproveitar a sombra para fugir do calor.

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O rio é o Tejo e ao lugar deram-lhe o nome de Caneiras. Fica a uns curtos cinco quilómetros a sul de Santarém e é o aglomerado sobrevivente e ampliado da aldeia avieira ali fundada há mais de um século. O assentamento original terá sido destruído pelas cheias de 1941, e grande parte das construções que vemos hoje também já sofreram a adulteração intrínseca à “modernidade”; mas ainda se notam muitas características das antigas casas avieiras, e continua a ser habitada por alguns pescadores que não desistem do seu modo de vida: sair para o rio em busca da fataça (tainha), do sável ou da quase desaparecida lampreia.

 

Os nómadas do rio Tejo

 

Não há datas certas, mas estima-se que foi a partir de meados do século XIX (e sobretudo na primeira metade do século XX) que famílias de pescadores da zona de Vieira de Leiria começaram a deslocar-se para as áreas ribeirinhas do Tejo entre Abrantes e a Póvoa de Santa Iria, fugindo aos rigores do Inverno que não lhes permitia procurarem o seu sustento no mar. Trocavam os barcos de mar que usavam na arte xávega por embarcações de traça semelhante, mas bastante mais pequenas – as bateiras, a que os avieiros chamam simplesmente “barco” – fazendo delas a sua casa temporária. Era na bateira que pescavam, comiam e dormiam, usando um simples toldo para se abrigarem. O homem lançava as redes e a mulher remava, além de organizar toda a vida da família e ir vender o peixe às localidades vizinhas, transpondo para o ambiente do Tejo os papéis que cada um desempenhava na sua terra de origem. Era também na bateira que os filhos iam sendo criados e aprendiam as lides da pesca de rio, que lhes garantiria a sobrevivência no futuro, num tempo em que a vida era muito diferente. A embarcação é de tal modo característica e assumiu uma (óbvia) importância tão grande para estas comunidades que, em 2016, a sua construção e uso foram inscritos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, com a indicação da necessidade de salvaguarda urgente.

Inicialmente, estas deslocações eram sazonais, e os pescadores voltavam à Praia da Vieira quando o tempo melhorava. Com o crescimento da família e o cansaço dessas idas e vindas, e porque o Tejo (e também o Sado) lhes proporcionavam peixe o ano inteiro, acabaram por se ir fixando nas margens destes rios – primeiro em simples palhotas feitas de caniço, que crescia à beira de água e era material leve e fácil de encontrar, e depois em casas de madeira, assentes sobre estacas, para evitarem ser inundadas quando o rio transbordava as suas margens. Nasciam as aldeias avieiras (de que já falei no meu blogue).

 

A aldeia das Caneiras

 

A partir dos trabalhos de levantamento feitos até à data, foram identificados cerca de 40 assentamentos de avieiros nas margens do Tejo, a maioria deles já desaparecidos ou completamente em ruínas, como é o caso do Patacão, perto de Alpiarça, que tem dois núcleos ainda visíveis mas já em rápido declínio, apesar das tentativas de preservação que foram feitas até há alguns anos. Entre as aldeias que sobrevivem contam-se o Escaroupim, assumido como ex libris turístico da cultura avieira, Porto da Palha (Lezirão) e Palhota, esta última trazida para a ribalta no romance “Avieiros”, de Alves Redol. O aldeamento das Caneiras, talvez por estar muito perto de Santarém, também tem resistido ao desaparecimento, pese embora a descaracterização e a construção desregulada das últimas décadas.

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A aldeia é um rectângulo com uma espécie de rua principal que desemboca em nenhures, encaixada entre o rio e a estrada de acesso ao mundo exterior. É ao longo desta estrada que se vêem as construções mais modernas, moradias concebidas com mais ou menos gosto, rodeadas de hortas e pequenos pomares. O núcleo mais antigo das Caneiras está bem escondido por trás destas casas vulgares, e até parece que o espírito recatado e quase impenetrável dos antigos pescadores ainda paira por ali – as comunidades avieiras eram muito fechadas, assentes no núcleo familiar e segregadas tanto por vontade própria como por animosidade da população rural, mantendo ao longo dos tempos algum secretismo sobre o seu modo de vida e as suas artes piscatórias.

 

A miscelânea arquitectónica das Caneiras tem tanto de surpreendente como de fascinante. As antigas palhotas palafíticas têm vindo a ser transformadas cada uma à sua maneira. Nas que ainda permanecem elevadas em relação ao solo, as estacas de madeira foram substituídas por pilares de alvenaria. As tradicionais varandas de acesso ao piso superior já quase desapareceram, e poucas construções as mantêm – a maioria das pessoas prefere espaço interior em detrimento do espaço de socialização, uma das funções principais das varandas das casas avieiras. A madeira ainda está bastante presente, em versões de cor escura e variados estados de conservação; são, para mim, as construções mais bonitas da aldeia, algumas realçadas com pormenores em branco ou cores vivas. É nelas que se notam os pontos de contacto com as casas típicas da região de origem dos avieiros, sobretudo as da Praia da Tocha e, mais tenuemente, as da Costa Nova.

Não faltam também os atentados arquitectónicos ao carácter original da aldeia, em que a alvenaria substituiu os materiais anteriormente utilizados, a ponto de agora não passarem de vulgares paralelepípedos com telhado, quase sempre pintados de branco e com as faixas azuis ou amarelas que voltaram a ser, em tempos recentes, populares na construção que se quer fazer parecer tradicional, mesmo quando completamente deslocadas do contexto. Deste mal enferma igualmente a Capela dedicada ao Sagrado Coração de Maria, um edifício desenxabido cuja única desculpa talvez seja o facto de datar de 2006 (embora tenha ares de reconversão de algum edifício anterior).

Num arroubo de imaginação e quiçá influência forasteira, alguém resolveu forrar o exterior de uma das casas com chapa ondulada e juntar-lhe um pormenor americanizado. Não é que seja feio – é só descabido. Prefiro a tinta a descascar e o telhado arqueado de uma outra casa, com a sua chaminé periclitante (as chaminés também são um acrescento moderno nas casas avieiras).

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Na rua principal há também um banco, mas este não tem nada a ver com o da beira-rio. É tosco e torto, tal como o casinhoto que está ao lado, uma espécie de telheiro abrigado para acumular tralhas diversas. Tento imaginar o que terá levado alguém a colocá-lo ali. Talvez para apanhar sol nos dias frios de Inverno? Para conversar com quem passa? Alguém que não tinha nada para fazer e decidiu construí-lo? As questões ficam sem resposta, porque por aqueles lados não se vê vivalma.

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Ao entrar numa espécie de beco, surge a casa que de imediato elejo como o supra-sumo do kitsch da aldeia. Uma manta de retalhos com metade em madeira escura e a outra em chapa ondulada, o rés-do-chão pintado de azul Chefchaouen, aparelho de climatização e antena parabólica bem visíveis, à mistura com cabos vários, uns trepando pelas paredes, outros cruzando o ar. Ao pé da porta, mais um banco de jardim, este bem harmonioso, em madeira e ferro forjado, tendo por companhia duas cadeiras plásticas rosa-bombom saídas directamente do mundo da Barbie. Com os seus anacronismos, parece-me ilustrar bem o espírito geral desta aldeia que tem crescido ao sabor do acaso, um pé na tradição e preservação cultural e outro na vontade de se modernizar.

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De volta ao carro, passo outra vez pela área junto ao rio, que se nota ter sido alvo de arranjo há não muitos anos: deck amplo em madeira, delimitado por postes baixos ligados com corda grossa, intercalados com painéis que exibem fotos da actividade piscatória dos avieiros. Árvores frondosas, bem cuidadas, e uma zona de merendas ao fundo, ao lado do parque de estacionamento. O banco foi abandonado, mas a cadeira de campismo colorida ainda lá está, sossegada, à espera do seu ocupante habitual. Tal como a aldeia, suspensa no limbo de decisões por tomar e herdeira de um passado que em breve será considerado obsoleto, decerto para dar lugar a mais um destino “típico” a explorar turisticamente.

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Fonte usada para pesquisa: http://www.e-atlasavieiro.org/

 

Sugestões de leitura:

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A viagem do Lancia Dedra (4)

O regresso

Paulo Sousa, 19.09.24

Depois de nos despedirmos do nosso anfitrião parisiense, que até hoje por lá continua, ainda tínhamos uma tarefa a cumprir. Já bem a sul de Paris, tínhamos de parar em casa dos tios deles, que nos esperavam para um jantar. Daquele grupo de cinco jovens, o casal conhecia apenas o seu sobrinho. Os outros eram o filho deste ou daquele que se lembravam da mocidade lá na terra. Só quem conhece o emigrante português que emigrou na mesma época em que os tios destes nossos amigos o fizeram é que consegue imaginar o gosto com que tinham preparado a refeição. O primeiro dos cinco pratos que nos serviram veio a ser aquele de que se falou durante mais anos, ainda hoje nos salta à memória sempre que alguém usa a expressão que, mais adiante, divulgarei. Iguarias sem igual, saumon fumé a gasto, champignons criados num búnquer da Segunda Guerra, mais galinha da campanha, cerveja a fazer render para não dar mau aspecto e para não envergonhar o dispensa do tio, uns enormes coelhos de chocolate (lembro-me dos coelhos e por isso é provável que tenhamos ido na época da Páscoa) e ainda um melão para comer durante a viagem. É como se tivesse sido uma festa de casamento em formato compacto de duas horas. Saímos de lá mesmo bons para ir conduzir ou fazer companhia ao condutor.

Como dizia atrás, e para não seguir já para a fronteira de Espanha, a entrada do banquete era composta por uma travessa com ovos cozidos cortados ao meio, barrados com uma pasta de atum, uma verdura qualquer e ainda umas azeitonas sem caroço, cortadas às rodelas, a dar o toque final. Tudo arrumado com grande apuro e estética. A nossa simpaticíssima anfitriã, que ao longo da refeição foi sempre explicando a composição e a confecção de todos os pratos, começou logo por chamar à atenção para algo que nunca notaríamos. Faltava meio ovo para que estes estivessem em número par. Depois de “alguém” (o tio foi logo ali desmascarado) ter feito o que poderíamos designar por controlo de qualidade, ela ficou furibunda e tentou redistribuir os meios ovos de maneira a que aquela falha passasse despercebida. E redistribuiu-os impecavelmente, pois, como já disse, não fosse ela insistir na explicação do ocorrido e não estaria agora a escrever sobre isto. Incomodada com aquela falha no plano que imaginara, mal sabia ela onde é que tínhamos dormido nos últimos dias e onde é que o outro sobrinho estava a viver, e disse a frase: “Não são restos de ninguém!”. Imagino que não lhe terá soado bem, pois acrescentou “O (tio) provou ao almoço”. Hum… silêncio incómodo. “Mas, não são restos de ninguém!” “O (tio) provou só um bocadinho ao almoço”. Nesta parte, tenho ideia que entrou em loop e voltou a repetir a explicação. Não fosse o tio a dizer-lhe “Deixa lá isso, oh mulher! Serve mas é a comida!” e lá teríamos continuado ainda mais tempo, incomodados com o incómodo da senhora, tão empenhada em nos agradar. Desde então, como já disse, não posso ouvir a expressão “isto não são restos” sem logo me lembrar da viagem do Lancia Dedra.

De regresso à estrada, o último episódio digno de registo ocorreu na madrugada seguinte, já na entrada em Espanha. Dois polícias, perante tanta olheira, barbas por fazer e a nuvem de Gauloises que nunca largava o carro, ordenaram a toda a gente que saísse. Chamaram um colega com um cão, as bagagens foram todas retiradas do carro e o perro para ali andou, para a frente e para trás, a meter o focinho em todo o lado, até que nos mandaram seguir. Não sem que alguns largassem uns pinguinhos.

Dali em diante, parece que foi sempre a descer. Um de nós lá conseguiu convencer o condutor a ceder o lugar e provavelmente vim a dormir até Vilar Formoso, pois não me lembro dessa travessia de Espanha.

Nota final: Felizmente tudo isto ocorreu numa época em que o projecto de integração europeia ainda não estava suficientemente consolidado que permitisse que as multas parisienses fossem remetidas para as empresas de aluguer de automóveis nacionais, o que tornou a memória dos flashes disparados sobre nós no Périphérique ainda mais divertida.

A viagem do Lancia Dedra (3)

Paris

Paulo Sousa, 18.09.24

No dia seguinte o nosso anfitrião teve de ir trabalhar. A confusão sobre os dias em que lá estaríamos levou a que só lhe fosse permitido folgar nas datas que tinha avisado o patrão. Por isso, fomos os cinco, sem ele, passear por Paris. Já não me recordo do que fizemos em cada dia, mas passámos pelos locais prováveis. Torre Eiffel, Champs-Élysées, La Defense e o seu arco recentemente inaugurado. Lembro-me que era muito fácil estar perdido e não saber como é que se saía dali. O pendura ia sempre com o mapa da cidade entre os braços abertos, e o stress aliviava-se a toque de palavrões em barda.

Nos outros dias, andámos sempre os seis dentro do carro. Afinal quem é que nunca circulou com excesso de lotação? Recordo-me de ouvirmos bastantes buzinadelas, de termos passado meia dúzia, ou mais, de feux rouges, de andar no Périphérique em excesso de velocidade, à noite era mais divertido por causa dos flashes da caça à multa. Lembro-me também da romagem que fizemos à campa do Jim Morrison no cemitério Père-Lachaise e de um demorado passeio nocturno em primeira velocidade pelo Pigalle e, noutro serão, pelo Bois de Boulogne. Que fauna incrível aquela.

Já precavidos da exiguidade das lojas de conveniência, passámos a ir abastecer-nos a um Carrefour perto do sótão onde vivíamos. A mala do Dedra era generosa, mas mesmo assim era preciso engenho para ali conseguir colocar o recheio de dois carrinhos de compras, um com comida e outro com cerveja. Só para se conseguir fechar a bagageira, algumas tinham de ser bebidas logo antes de arrancar. Debatia-se com frequência se quem bebia mais era o Dedra, ou quem andava nele, mas nunca se chegou a nenhuma conclusão.

A semana passou rapidamente e não fora o cartão Visa que um de nós já tinha, e não teríamos conseguido sustento, para nós e para o veículo, até casa.