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Delito de Opinião

Entroido galego

Ana CB, 21.03.23

Há poucos anos, indo eu a caminho de Allariz para conhecer o seu Festival Internacional de Xardíns, calhou fazer uma paragem técnica para almoço em Verín, terrinha galega que fica a menos de uma vintena de quilómetros de Vila Verde da Raia. Da refeição não ficou grande memória e a vila não parecia ter um interesse desmedido, mas depois de comer decidi dar uma volta pelo centro histórico – já que ali estava, mais valia aproveitar. Num pequeno largo onde desaguavam umas ruelas, deparei-me com uma escultura de tamanho considerável que reproduzia uma figura mascarada algo estranha. Nestas coisas de estátuas o tamanho anda geralmente a par da importância, por isso quando voltei a casa fiz umas pesquisas online e descobri que a personagem imortalizada em pedra tem o curioso nome de Cigarrón. E descobri também que o dito cujo é a figura típica do que, para minha grande surpresa na altura, percebi ser o mais famoso de vários Carnavais galegos que fazem parte das Festas de Interesse Turístico oficiais do país nosso vizinho.

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Na bela língua galega (adorável por ser tão ciciada e ter tantos “xis”, e também por ser tão parecida com o português), não há Carnaval mas sim Entroido. São muitas as terras da Galiza que celebram a preceito esta época, com as folias a começarem várias semanas antes da terça-feira calendarizada. A tradição tem raízes documentadas pelo menos desde o século XIII e ao longo do tempo as festas foram crescendo em duração, importância e diversidade. De celebração rural num único dia, os seus excessos pagãos admitidos pela fé católica em vésperas de Quaresma jejuadora, o Entroido transformou-se em festa máxima, repartida por vários fins-de-semana, preparada com brio e publicitada como chamariz turístico. Cada localidade desenvolveu os seus próprios hábitos, calendário e figuras particulares, mas persistem algumas tradições comuns. Há os dias dedicados aos “compadres” e às “comadres”, bonecos feitos habitualmente com roupas velhas que eram exibidos e disputados em guerras de sexos animadas*, e cuja designação se ampliou para incluir gente de carne e osso – eles e elas frequentemente com disfarces que imitam o sexo oposto. Há as batalhas de farinha, que não poupam ninguém. Há as charangas e os gaiteiros, que não se poupam a esforços para animarem os foliões. E há os desfiles, encabeçados pelas figuras típicas que cada localidade criou para se distinguir das demais.

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Os Entroidos galegos mais famosos são os de Verín, Xinzo de Limia e Laza. Dizem que a curiosidade matou o gato, e eu devo ter um gene felino porque o que li sobre estas festas deixou-me curiosa. Este ano decidi ir conhecer in loco as festividades carnavalescas de Verín e Xinzo, perceber se a publicidade que lhes é feita se justifica. E (spoiler alert!) diverti-me mesmo.

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Em Verín, o dia do desfile principal é o domingo. Com início previsto ao meio-dia, antes das 11 da manhã já os vários estacionamentos da localidade – e são muitos, todos gratuitos – estavam praticamente a abarrotar, e não paravam de chegar autocarros repletos de gente. Com a sorte que não costumo ter no que toca a estacionar, consegui milagrosamente arranjar um sítio onde deixar o carro num dos parques mais centrais. O movimento de gente desaguava na Avenida de Castilla, àquela hora já parcialmente cortada ao trânsito automóvel e policiada, com as pessoas a começarem a ocupar os passeios para terem a certeza de que não iriam perder pitada do desfile. A quantidade de mascarados era impressionante, desde aqueles que se limitavam a uma cabeleira ou uns óculos excêntricos até famílias inteiras fantasiadas a rigor, incluindo bebés de colo. Os disfarces mais populares eram sem dúvida os macacões com formas de animal que agora se usam como pijama – o que é perfeitamente compreensível e muito razoável quando a temperatura do ar está nos antípodas da do Brasil nesta época do ano. Mas havia também fantasias muitíssimo elaboradas, dignas de um Carnaval de Veneza.

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Não tenho muita paciência para ficar quieta à espera, por isso fui dar uma volta pelo centro histórico. Na Praza Garcia Barbón, o coração da localidade, um enorme painel publicitava o Cigarrón como “Figura central do mellor Entroido do mundo”, expondo imagens de uma centena de máscaras diferentes usadas pelas pessoas que encarnam a figura carnavalesca típica de Verín. A origem desta personagem é incerta mas, segundo alguns estudiosos, remonta ao século XVI e evoca a figura dos odiados cobradores de impostos: esbirros ao serviço dos senhores feudais, que percorriam as aldeias para colectarem as rendas devidas pelos vassalos e, para serem mais intimidantes, usavam máscaras demoníacas inspiradas nas dos indígenas peruanos e um chicote para açoitarem quem se recusasse a cumprir com o seu dever.

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Ser um Cigarrón é uma honra transmitida de pais para filhos. Com o seu látego, impõe a ordem entre o público e ninguém pode tocar-lhe nem faltar-lhe ao respeito. O “Baptismo do Cigarrón” é um dos momentos altos das festas, habitualmente realizado no sábado de Entroido em acto solene na Praza de Mercede, quando os jovens candidatos são empossados, aprendem a vestir-se correctamente e colocam, pela primeira vez em público, a careta (máscara) que irão usar. As máscaras são feitas artesanalmente de madeira e pintadas com um rosto naif em que sobressaem as rosetas vermelhas, sobrancelhas carregadas, um bigode retorcido, um sorriso descarado e uma barba falsa. Agarrada à máscara e em jeito de chapéu, uma mitra onde é pintada a imagem de um animal autóctone, diferente para cada membro da Associação. O traje é complexo: calções com borlas e meias arrendadas presas com ligas, jaqueta com fitas e galões coloridos, um pequeno xaile pelas costas e faixa larga de cor viva à cintura, sobre a qual usam um cinto com seis chocalhos pendurados na parte de trás**.

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É o ruído quase atroador destes chocalhos que anuncia o início do desfile, com muitas dezenas de Cigarróns em corrida ritmada a abrirem caminho para os comparsas e as charangas. Há-os de todas as idades, os mais pequenos sem máscara, os mais velhos todos do sexo masculino, várias raparigas e meninas a fazerem já parte dos grupos dos mais novos – prova de que a mudança é inevitável mesmo nas tradições mais antigas. Enquanto durou o desfile, os Cigarróns foram incansáveis, com idas e vindas em pequenos grupos ao longo da avenida, mantendo o público confinado aos passeios de forma a não se atravessarem no caminho dos que desfilavam. Lá como cá, nem sempre o respeito impera.

Os desfiles destes Entroidos são (felizmente!) simples e pouco sofisticados, mas muito cheios de imaginação. Não há grandes carros alegóricos nem meninas em biquíni, as lantejoulas e os brilhos não ferem os olhos, mas não faltam animação e originalidade. No de Verín houve gaiteiros pediatras e utentes de um lar, piratas e fadas dos bosques, irredutíveis gauleses da banda desenhada, Flinstones, esquimós e gente das Arábias, veículos improvisados e outros construídos com engenho, charangas mais ou menos afinadas e moçoilos com kilts tocando e dançando em estilo “zumba no ginásio”, crítica social e ofertas de trabalho, matrafonas e motards. Uns com mais energia e espírito folião do que outros, os comparsas vão avançando enquanto dançam, tocam, pedalam, revolteiam e animam o público durante cerca de uma hora bem passada.

 

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Ainda o desfile não estava terminado, a maior parte das pessoas começaram a debandar, enfiando-se pelas ruas perpendiculares à avenida. “Entroideira” de primeira viagem, quase não me apercebi a tempo do que aí vinha: a farinhada. Em poucos instantes, ao som do rufar dos bombos, o ar encheu-se com o branco da farinha atirada com genica pelos comparsas menos desejados do desfile. Mesmo tendo conseguido distanciar-me alguns metros da confusão, não me livrei de ficar meio empoeirada. O baptismo tradicional é com água, no Entroido de Verín é com farinha. E até que tem graça!

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Depois do desfile, os turistas foram peregrinar pelas ruas do centro histórico. São obrigatórias as fotos ao pé da estátua do Cigarrón, tal como com algum dos de carne e osso que continuam aos pulos de um lado para o outro mesmo após o desfile. Os habitués não perderam tempo com estas coisas, foram directos para a Garcia Borbón e atiraram-se à cerveja e a qualquer coisa que se comesse em pé, juntando-se em grupos palradores enquanto as charangas se iam instalando na praça e debitando cantoria à vez. Os restaurantes encheram-se com os cautelosos que tinham marcado mesa, e os incautos tiveram de esperar muito tempo à porta ou simplesmente não conseguiram comer. E a festa continuou pela tarde e noite adentro, com a música a ouvir-se a quilómetros de distância – mais propriamente no Castelo de Monterrei, que fica a um quilómetro e meio em linha recta (transformado em mais de quatro pela estrada), que eu e muitos outros optámos por visitar em alternativa.

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Após um dia de interregno para ver outras paisagens (que isto de folia carnavalesca para mim tem de ser em doses homeopáticas), terça-feira foi o dia de ir até Xinzo de Limia. Vila também sem interesse desmedido, é contudo aqui que se encontra o Museo Galego do Entroido, criado para preservar as tradições carnavalescas da região – as que se mantêm, e as que se perderam. Durante os quase quarenta anos de ditadura franquista em Espanha muitos festejos tradicionais foram proibidos, entre eles os Entroidos galegos. Alguns foram sobrevivendo à revelia e regressaram em força nos anos 80, outros acabaram por desaparecer completamente, e tenta-se agora que sejam recuperados.

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O Entroido de Xinzo arroga-se ser o mais longo de Espanha, com a animação a começar mais de um mês antes do Carnaval oficial. O programa das festas estende-se por cinco fins-de semana seguidos e este ano tiveram início em fins de Janeiro com o Sábado do Petardazo (música e dança até de madrugada) e o Domingo Fareleiro, uma farinhada colectiva que tem lugar ao fim da tarde na Praza Maior.

 

Em Xinzo de Limia, as figuras centrais do Entroido são os Pantallas. Sobre eles, existe a teoria de que a sua origem remontará à época celta, representando um druida agregador dos poderes religioso, judicial e social. Talvez por essa razão, a máscara típica destes ícones locais – que também é feita artesanalmente, em pasta de papel ligada com água e farinha – inclui um barrete com ponta curva que se enrola para frente, decorado com motivos astrais e geométricos. Por baixo, um rosto meio demoníaco, com olhos protuberantes, cornichos e um bigodinho torcido nos extremos que faz lembrar a personagem principal da novela gráfica “V de Vingança”. A fardamenta tem como base o branco da camisa e das calças, presas do joelho para baixo por polainas negras. O colorido fica por conta da capa, quase sempre vermelha (mas também as há em negro, azul, verde), com franjas, rosetas e fitas de cetim em várias cores, e da faixa na cintura, onde estão presos vários sininhos.

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Mas o barulho mais característico dos Pantallas é o que ouvimos quando fazem chocar as duas grandes bexigas de vaca cheias de ar que levam nas mãos. A ideia é assustarem o público, e acompanham as batidas com saltos, cabriolas e uns bramidos guturais. Manda a tradição que se encontrarem algum homem que não esteja mascarado, o rodeiem e obriguem a ir até um bar para pagar uma rodada de copos de vinho. Se for uma mulher, deverão dançar à sua volta, envergonhando-a.

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À espera do desfile, o momento ternurento ficou por conta de um miúdo bem pequenino, vestido a rigor com o traje dos Pantallas, que insistia em escapar-se aos adultos e correr pela avenida, abanando as suas bexigas de vaca – certamente já a preparar-se para exibições arrojadas em pleno desfile daqui por uns anitos.

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E por falar em desfile, o de Xinzo de Limia abriu com um buggy verde alface conduzido por um marinheiro e levando a bordo uma figura presidencial (quiçá real), atestando desde o início a solenidade da ocasião. Logo atrás vinham os Pantallas e a sua banda sonora de sininhos e batuques secos, seguidos por umas senhoras com gigantescas couves-galegas nas mãos, que insistiam em dar a provar (cruas!) aos espectadores, e depois por um grupo misto de gaiteiros com vestes vagamente medievais e barretes com cornos.

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A partir daí, foi sempre a subir em termos de diversão, e houve alturas em que chorei de tanto rir. Agricultores em greve que “emigraram” para Portugal; uma brigada de limpeza que trabalhava rente ao chão, às voltas, de barriga para baixo sobre placas de madeira com rodinhas; quatro irmãos travestidos de donas-de-casa, com mímicas engraçadas nas suas varandas móveis, sacudindo o pano do pó ou bebendo directamente de uma garrafa; cavaleiros de competição montados em póneis cheios de originalidade, revoluteando até desabarem no chão de cansaço; uma corrida de triciclos (perdão!) karts; um animado grupo de bem vestidas majoretes, na sua maioria barbadas, de sombrinhas coloridas nas mãos e um impecável esquema de desfile; uma divertidíssima mesa de snooker onde se disputava um jogo difícil… porque as bolas eram pessoas pouco obedientes e às vezes recusavam-se a entrar no buraco; um grupo de prisioneiros que decidiu fugir do seu carro alegórico/prisão; e até uma recriação bem-humorada de “O Resgate do Soldado Ryan”. Tudo isto intervalado com charangas, grupos elegantes de comparsas mascarados, e outros quadros figurativos representados com muita imaginação. No final, vários automóveis antigos, com os seus ocupantes também disfarçados a rigor.

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Em resumo: diversão a valer, e os músculos da cara doridos de tanto rir. A tradição carnavalesca na Galiza está de boa saúde e recusa os estereótipos importados de outras latitudes. As festas continuam a ser do povo e para o povo – gratuitas e abertas a todos, tanto participantes como público. Proibições ditatoriais não as mataram, e uma pandemia também não parece ter-lhes retirado força.

 

Por motivos profissionais, a minha escapadinha carnavalesca teve de ficar por aqui. Se tivesse ficado mais um dia poderia ter assistido ao Enterro da Sardinha, cerimónia “solene” que marca o final do Entroido e início da Quaresma. Há uma procissão nocturna, seguida da leitura do testamento da defunta (reproduzida em papel), que depois é queimada. Tal como na vida real, a cremação está a tornar-se mais popular do que o enterro. E o que é que uma sardinha, bicho capturado no Verão, está a fazer numa festa de Fevereiro? Também neste caso, as origens do costume são incertas, e há versões diferentes. Uma diz que se deve à confusão linguística de “sardiña” com “cerdín”, nome de um canal madrileno onde um porco era enterrado antes da Quaresma; outra diz que um rei mandou servir sardinhas nos festejos do fim do Entroido, mas estava muito calor e as sardinhas estragaram-se, por isso houve que enterrá-las para evitar o cheiro a peixe podre. Seja qual for o motivo, o costume pegou e dura até hoje. É mais uma das características peculiares dos Carnavais galegos.

 

O Entroido é celebrado em quase duas centenas de localidades galegas, com personagens e singularidades próprias em muitas delas. Algumas destas festas ganharam tanta popularidade que já são consideradas como muito importantes para o turismo do país. Os Entroidos de Verín e de Xinzo de Limia estão oficialmente classificados como “Festas de Interesse Turístico Nacional”, e outros cinco como “Festas de Interesse Turístico da Galiza”: os de Cobres, Laza, Viana do Bolo e Manzaneda, e os Xenerais da Ulla, que percorrem 30 lugares em oito concelhos da região.

 

De ritual pagão a festividade religiosa, em boa parte do mundo o Carnaval é uma das celebrações mais antigas, reflexo de características comuns a toda a raça humana: a alegria e a gratidão por existirmos neste planeta, e por aquilo que ele nos proporciona. Se isso não é motivo para festejar, não sei o que será.

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* Esta tradição também existe em Portugal e mantém-se pelo menos parcialmente viva. Neste fim-de-semana alargado por terras raianas, encontrei “comadres” e “compadres” em Pitões da Júnias, onde o Carnaval também estava a ser celebrado a preceito.

 

** O traje e a máscara dos Peliqueiros de Laza são, aos olhos de uma leiga como eu, idênticos aos dos Cigarróns. No entanto, os puristas mais entendidos dizem que há algumas pequenas diferenças.

Portugal, outras paisagens

Ana CB, 14.02.23

 

A geografia de Portugal é tão variada quanto o somos nós, portugueses, e a nossa cultura. Este pequeno rectângulo da Europa, com fronteiras delimitadas pelo mar e pelo seu povoamento, a que se juntam dois punhados de ilhas e ilhéus no Atlântico, tem uma diversidade paisagística tão imensa que surpreende até mesmo quem já lhe conhece mais ou menos bem os “cantos à casa”.

 

Conjunto de antigo e moderno, numerosas praias de macias areias e extensas campinas verdejantes, testemunho de uma história herdada dos seus antepassados fenícios, gregos, romanos e árabes: assim é Portugal, terra acolhedora, perfumada pelas flores.” – e é assim que o jornalista e escritor André Visson (1899-1971) começa o artigo que escreveu em 1954 sobre Portugal, com o título A Garden by the Sea (traduzido como Jardim da Europa à beira-mar plantado n’O Grande Livro das Viagens publicado pelas Seleccções do Reader’s Digest, e sobre o qual já falei no meu post O culpado). Quando Visson escreveu isto Portugal era apenas mais um país minúsculo e pobre num continente que ainda lambia as feridas da mais recente guerra, e este retrato permaneceu inalterado durante décadas. Milhares de rotações terrestres e terabytes de avanços tecnológicos depois, o nosso país passou de ilustre desconhecido a coqueluche do turismo mundial, e basta uma ligação à Internet para perceber que a oferta paisagística de Portugal vai muito além das praias de areias macias e campinas verdejantes. Milhões de fotografias, divulgadas em tudo o que é website ou rede social, testemunham a variedade e riqueza do nosso património geográfico e provam que uma viagem no nosso tão pequeno país é como olhar para dentro de um caleidoscópio – a cada curva do caminho, a paisagem muda, surpreende, e nunca nos aborrece.

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E no entanto, grande parte de toda a publicidade que é feita a Portugal parece focar-se essencialmente nos mesmos lugares, que são replicados fotografia atrás de fotografia com ligeiras variações, mais ou menos Photoshop, mais ou menos saturação de cor, luz matinal ou do entardecer, ângulo mais ou menos aberto… Não discuto aqui o merecimento destas escolhas, e de muitos deles também já falei noutros posts. Mas hoje apetece-me falar de outras paisagens portuguesas, igualmente inspiradoras, igualmente importantes, igualmente dignas de serem vistas mais uma vez, em fotografia e depois ao vivo, e que estão muito menos divulgadas. Cada uma delas tem características próprias, por vezes únicas, e contribui para enriquecer a diversidade deste país a que chamamos nosso. Estas são algumas delas, entre as muitas mais que Portugal oferece a quem faz questão de o conhecer.

 

Barragem de Santa Luzia

 

Escondida entre as serranias ondulantes da serra do Açor, a albufeira da Barragem de Santa Luzia é quase uma miragem: um deslumbrante lençol de água azul-eléctrico que surge de repente quando fazemos uma curva na estrada que vem da Pampilhosa da Serra. O contraste da paisagem cria no cérebro uma sensação de incongruência, parece impossível a coabitação entre a crista quartzítica maciça que se ergue do lado esquerdo, onde o muro de betão da barragem fecha o círculo e trava o passo ao rio Unhais, e o lago tranquilo rodeado de colinas arborizadas, que se transformam em picos acastanhados mais ao longe, com a serra da Estrela a espreitar entre eles, acinzentada pela distância.

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Esta é uma parte do nosso interior beirão que se mantém relativamente tranquila e é pouco explorada turisticamente, ofuscada por outras áreas em volta que são mais publicitadas. Tem no entanto uma oferta hoteleira razoável, sobretudo ao nível do alojamento local, excelentes praias fluviais – uma delas na própria albufeira da barragem, rodeada por uma bonita mata – e, como não podia deixar de ser, uma gastronomia excelente. Foi sobre esta região que escrevi o post Nas curvas da Pampilhosa.

 

 

Buracas do Casmilo

 

Perto da aldeia de Casmilo, no Maciço de Sicó, o Vale das Buracas é um conjunto de formações geológicas resultantes do abatimento da parte central de uma colina, que deixou a descoberto as grutas que existiam no seu interior, escavadas pela água nas zonas calcárias mais porosas durante o período jurássico médio. Apesar de pouco profundas, algumas destas grutas têm uma dimensão considerável e o aspecto de todo o conjunto é magnífico e original, diferente de todas as outras formações geológicas que encontramos no nosso país.

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As grutas estão rodeadas de vegetação rasteira e oliveiras, e surgem como manchas cinzentas e negras entre o verde dominante. Na sua maioria são de fácil acesso, bastando subir um pouco pelos carreiros marcados pelos passos de muitos outros visitantes. Nota-se que algumas servirão regularmente de abrigo e local de reunião de grupos, a julgar pelos vestígios que ali são deixados, por vezes algo estranhos.

 

 

Carrascal do Juízo

 

Junto à aldeia do Juízo, num planalto meio desértico (e quase deserto) da Beira Alta, há um bosque de aspecto misterioso que poderia ser palco para o enredo de uma novela gótica. É o Carrascal do Juízo, um bosque de azinheiras onde os troncos das árvores fazem lembrar esqueletos retorcidos e estão cobertos de líquenes tão antigos que já foram objecto de estudo científico. É atravessado pela ribeira do Porquinho, que tanto pode estar quase seca como ser necessário cruzá-la sobre as poldras ali colocadas para facilitar a passagem. Quando saímos do bosque e chegamos ao ponto mais alto das redondezas, os olhos perdem-se nos muitos quilómetros da paisagem serrana que vai de Marialva a Trancoso.

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Sobre a aldeia do Juízo e o projecto de alojamento local que nela se desenvolve podem ler mais pormenores no post Juízo, uma aldeia que tem histórias.

 

 

Estuário do Sado

 

É uma das nossas Reservas Naturais e estende-se por vários quilómetros e municípios, alimentando pessoas e animais desde que há memória. As margens do Sado no seu estuário são essencialmente planícies aluviais, embora também haja algumas zonas dunares e de praia. A riqueza florestal e agrícola do estuário e a sua diversidade faunística fazem dele um local privilegiado tanto para trabalhar como para passear. Há inúmeros e variados pontos de interesse ao longo dos muitos quilómetros que rodeiam a extensão onde o Sado se encontra com o mar. Um dos meus favoritos é a zona de Alcácer do Sal a que chamam Amieira, mais noticiada por ser todos os anos invadida por flamingos em migração para outras paragens, mas que é permanentemente habitada por uma enorme quantidade de aves diferentes, desde cegonhas a garças, pernilongos, alfaiates e outras pernaltas, além das omnipresentes gaivotas, que gostam de perseguir em grande algazarra os tractores que preparam o solo para a semeadura do arroz.

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O meu local mais preferido no estuário do Sado é o cais palafítico da Carrasqueira, uma obra-prima da arquitectura popular com características únicas que o tornam verdadeiramente fora de série. Embora cada vez menos pescadores façam uso dele, tem-se mantido quase inalterado ao longo das décadas e tornou-se parte importante da paisagem cultural desta região, com o seu aspecto colorido, tosco, meio decrépito e absurdamente cheio de poesia.

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Podem conhecer mais um pouco sobre estes (e outros) locais no post 11 lugares a não perder em Portugal continental.

 

 

Estuário do Tejo

 

É uma das zonas húmidas mais importantes da Europa e ramifica-se em esteiros e mouchões de aluvião, sendo as suas margens em grande parte constituídas por campos de vasa e sapais, onde a vegetação é rasteira e predominam as gramíneas e os caniços. A importância do estuário do Tejo deve-se sobretudo ao facto de ser ambiente de permanência regular de inúmeras espécies de aves aquáticas (que chegam a atingir o impressionante número de 120 000 indivíduos), e um dos lugares onde podemos observar mais de perto muitas destas aves é o Parque Linear Ribeirinho do Estuário do Tejo, entre a Póvoa de Santa Iria e Alverca. Há inúmeros patos, as sempre presentes gaivotas, e uma enorme população de guinchos, pilritos, alfaiates e maçaricos-das-rochas, só para citar os que são mais facilmente visíveis. Nas ribeiras que desaguam no Tejo há felosas e galinhas-d’água, e no meio do verde da erva emerge de vez em quando o pescoço branco e comprido de uma garça-boieira, movendo-se com aquele balanço quase hipnótico tão típico delas.

 

Esta zona do estuário é em grande parte ocupada pelo vasto Mouchão da Póvoa, onde apenas vemos desenhadas as silhuetas de algumas árvores, e o Tejo que avistamos parece só um rio estreito e tranquilo, muito diferente das perspectivas mais reconhecíveis que dele temos em vários outros troços do seu percurso.

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Fanal

 

O Fanal é um caso à parte na Madeira, uma paisagem distinta de todas as outras que encontramos nesta ilha, sobretudo pelo seu bosque de tis centenários (o til é uma árvore endémica da Madeira e das Canárias), que aqui vivem desde antes dos Descobrimentos. Neste bosque encantado, os troncos rugosos e retorcidos das árvores velhíssimas parecem ir ganhar vida a qualquer momento, e imaginamos com facilidade que de repente vão começar a falar connosco numa voz roufenha e mal-humorada, perguntando-nos porque estamos a incomodá-las no seu sono. Uma pequena lagoa, entre a orla do bosque e uma escarpa, ajuda ao encantamento; e se estiver neblina, como tantas vezes acontece, a impressão de estarmos dentro de um filme é ainda maior. Ou então, e porque estamos a altitudes que rondam os 1100 metros, podemos ter a sorte de chegar a um miradouro e ver abaixo de nós um tapete de nuvens extenso e compacto, e sentimo-nos como que a voar. É um outro mundo.

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Guadiana

 

Apesar de ser o terceiro maior rio que corre em território português e fonte do imenso lago artificial criado pela Barragem de Alqueva, o Guadiana continua a ser um ilustre desconhecido para a maioria dos portugueses. Talvez isso se deva ao facto de a maior parte da sua extensão correr em Espanha, e muito do que sobra ser fronteira entre os dois países, ou talvez porque do lado de Portugal o seu curso se faz maioritariamente em zonas pouco povoadas. O certo é que este rio tem muito menos protagonismo do que vários outros do nosso país, e por isso mesmo ainda há muito por “descobrir” nas suas margens.

 

Pouco depois de passar a ser também nosso, uns quantos quilómetros abaixo da fronteira do Caia, o Guadiana é palco para as ruínas de uma ponte com muita história. A Ponte da Ajuda foi construída no séc. XVI para ligar Elvas à luso-espanhola Olivença, quando a questão da propriedade deste território ainda não suscitava dúvidas. Tinha 385 metros de comprimento, suportados por 19 arcos, e um torreão colocado no centro. Foi destruída e reconstruída várias vezes até 1709, quando o exército castelhano a fez explodir durante a Guerra da Sucessão Espanhola. Está em ruínas desde essa altura, e é bem visível a partir da bem mais recente ponte que faz parte da estrada entre Elvas e Olivença – e que tem uma placa a indicar Espanha na extremidade em que supostamente entramos no país vizinho, mas (compreensivelmente) nenhuma placa a indicar Portugal quando fazemos o trajecto em sentido contrário.

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Lagoa de Paramos

 

A Lagoa de Paramos, também conhecida como Barrinha de Esmoriz, é a maior área lagunar da região norte de Portugal e um local fascinante. Fica muito perto do mar e à sua volta corre um passadiço de madeira com oito quilómetros, um lugar privilegiado para passear ao sol, relaxar e observar aves de várias espécies. Dependendo da altura do ano, além das habituais gaivotas e de patos variados, é possível avistar guinchos, galeirões e galinhas-de-água, pernilongos e pilritos, garças, águias-sapeiras, e também alguns pássaros menos comuns como o bispo-de-coroa-amarela ou o chamariz. Rodeada de dunas e canaviais, em certos troços do passadiço avistamos os aglomerados de casas das povoações vizinhas, mas a maior parte do tempo é passada tendo apenas por companhia a água, a vegetação rasteira e os sons das aves.

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Situada numa região que tem muito para ver, incluí-a num roteiro que já aqui sugeri há algum tempo, e que podem encontrar no post Roteiro de fim-de-semana: entre a natureza e a História.

 

 

Meandros do Zêzere

 

Um dos troços mais admiráveis do rio Zêzere é o que serpenteia entre a aldeia de Dornelas e a barragem do Cabril, conhecido como Meandros do Zêzere. Atravessando esta zona extremamente montanhosa, o rio desbrava o seu caminho moldando-se ao relevo irregular e intenso que domina a paisagem, seguindo com calma, imperturbável, pelas curvas e contracurvas que a serrania o obriga a percorrer. Da N344, a estrada que vai para a Pampilhosa da Serra, há vários locais de onde podemos observar esta maravilha da natureza. Outro dos lugares privilegiados para apreciar os Meandros é a aldeia de Álvaro, estrategicamente situada ao longo de uma crista sobranceira ao rio, precisamente no ponto onde ele forma um cotovelo muito pronunciado. Sobre esta região já falei no post Nos meandros do Zêzere, e continuo a considerá-la como um dos melhores segredos do nosso país.

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Norte da ilha das Flores

 

Entre Santa Cruz das Flores e o Farol de Albarnaz, o ponto mais remoto da ilha, os olhos voltam-se para o mar. Aqui não há cascatas nem lagoas, mas sim miradouros sobre ilhéus rochosos com nomes tão díspares como Garajau, Álvaro Rodrigues, Furado ou Abrões. Ao longe, mais ou menos visível consoante o tempo, o Corvo marca presença, e se o dia estiver desanuviado conseguimos distinguir a olho nu a brancura das casas da Vila do Corvo, brilhando ao sol entre o verde-acinzentado que cobre a ilha. A estrada que nos leva por esta parte da costa das Flores é tudo menos linear e demora algum tempo a percorrê-la, principalmente porque não resistimos à tentação de parar de poucos em poucos quilómetros (podem perceber melhor porquê no post Na ilha das Flores - parte VI), mas tirar uma manhã ou tarde para conhecer esta zona menos divulgada da ilha é tempo bem empregue.

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Quando chegamos à ventosa Ponta do Albarnaz, a sensação é de que estamos no fim do mundo. Não fossem o farol e as vacas que por ali pastam, poderíamos pensar que a vida se tinha extinguido da face da Terra. Mas mesmo não estando no fim do mundo, estamos praticamente no fim de um continente: o ilhéu de Monchique, que é considerado o ponto mais ocidental da Europa, fica a uns meros quatro quilómetros de distância, em linha recta sobre o mar para sudoeste.

 

 

Pateira de Fermentelos

 

Classificada como Zona Húmida de Importância Internacional, fértil em riqueza biológica, e habitat de muitas espécies de aves, anfíbios e peixes, a Pateira de Fermentelos é além do mais um local com uma variedade de ambientes que mudam radicalmente consoante a hora do dia, as alterações climáticas e a perspectiva de onde a observamos. É um dos lugares mais românticos do nosso país, com os seus mirantes de madeira gémeos que evocam outras latitudes e outros tempos, os canaviais que ondulam ao vento, os barcos de fundo chato resguardados entre a vegetação das margens. Podem ler mais pormenores sobre esta belíssima lagoa, que ainda tanta gente desconhece, no post Pateira de Fermentelos, a lagoa tranquila.

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Pôr-do-sol no Alentejo

 

Os melhores pores-do-sol em Portugal são os da planície alentejana. Há neles uma magia especial que transforma o céu na paleta de um pintor, mesmo quando por vezes ele é atravessado por nuvens. A amplitude da paisagem, frequentemente desprovida de grandes árvores, mostra-nos silhuetas negras sobre campos amarelos à nossa volta, enquanto faixas cor-de-rosa e laranja se destacam num fundo azul brilhante por cima de nós. Outras vezes o céu fica vermelho berrante, incendiando a planície, as casas e as estradas, ou adquire a suavidade das cores pastel, como se filtradas por um vidro fosco – mas nunca, nunca se repete.

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Portal do Inferno

 

A estrada M567 percorre de forma irregular, como se estivesse embriagada, uma parte do Maciço da Gralheira, e num dos seus troços segue por uma crista muito estreita entre duas vertentes abruptas: é o Portal do Inferno, um dos miradouros mais fabulosos do nosso país. Estamos mil metros acima do nível do mar e de ambos os lados da estrada, lá muito no fundo, correm ribeiras, cada uma para seu lado (uma delas passa pela aldeia abandonada de Drave). Em volta desdobram-se as serras da Arada, de São Macário e da Freita, e as fundas linhas de água que as cortam verticalmente, vistas daqui, dão-lhes um aspecto característico a que chamam “garra”, por fazer evocar os dedos das patas de uma ave de rapina. É mais uma paisagem única no nosso país.

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Serra de São Macário

 

A altura certa para subir a São Macário é perto da hora do sol-pôr, em dia com poucas ou nenhumas nuvens. Quando as cores quentes do ocaso começam a derramar-se sobre as serranias percebemos porque é que lhes chamam Montanhas Mágicas. Nem a profusão de aerogeradores – esses gigantes esquálidos que desenham no horizonte o contorno das serras – estraga a atmosfera, antes parece chamar (ainda mais) a atenção para as formas caprichosas da paisagem que se avista em redor. Não estranho por isso a lenda do santo que dá o nome à serra, que diz-se terá escolhido este lugar para viver como eremita, penitenciando-se por ter acidentalmente morto o seu pai, pois para viver solitário não podia ter escolhido melhor. A gruta onde supostamente viveu é agora uma capela, mas desconfio que foi a beleza do entorno o verdadeiro motivo por trás da construção de uma outra capela, maior, mesmo no pico da montanha, rodeada de um muro que a protege das ventanias e (mal) acompanhada pelas torres de comunicações ali instaladas. Neste lugar de contemplação, é como se já estivéssemos a meio caminho do céu.

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Árvores queimadas

 

Todos os anos, nas várias viagens de carro que sempre faço em Portugal, deparo-me em algum lugar com uma paisagem de árvores queimadas. Em passeio na desolação de um pinhal ou floresta devastados pelo fogo não se ouve um som – não há pássaros a piar, nem folhas a sussurrarem ao vento, nem rumor de insectos. Apenas há silêncio.

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Os incêndios são um flagelo nacional que nos afecta brutalmente todos os Verões e parece aumentar com o passar dos anos, consumindo recursos e vidas. Os seus efeitos demoram anos a desaparecer da paisagem, e permanecem para sempre no coração e na memória de quem neles perdeu os entes queridos, ou a eles sobreviveu miraculosamente.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Ruínas (e o meu fascínio por lugares abandonados)

Ana CB, 17.01.23

Mudas, contam uma história, às vezes misteriosa, outras polémica, nem sempre fácil de descobrir e frequentemente alimentada por boatos. Inertes, pedem criatividade para imaginar como seriam quando nelas havia vida. Já tiveram um propósito, talvez até mais do que um, do qual foram esvaziadas. Com sorte, servem agora algum outro, e com mais sorte ainda talvez um dia voltem à vida. São ruínas, não aquelas seculares e monumentais que se tornaram ímanes turísticos, nem as desenterradas por escavações arqueológicas, mas sim as que resultaram do simples abandono de um local, levando à sua degradação.

 

Se a memória não me falha, as primeiras ruínas deste género que fui propositadamente ver foram as da antiga Mina de São Domingos. Nessa altura, na era pré-Internet, ainda eram um local quase desconhecido e pouco visitado, e fiquei impressionada com a beleza alienígena do lugar – que continua a ser, ainda hoje, um dos meus sítios preferidos em Portugal. Junto à aldeia, agora mais famosa por ter uma das melhores praias fluviais da Europa, há algumas ruínas de edifícios usados em apoio exploração mineira do depósito pirítico de São Domingos (desenvolvida até 1966 pela empresa britânica Mason & Barry), nomeadamente das antigas oficinas ferroviárias. Há também uma enorme cratera cheia de água carregada de minérios, exposta entre camadas de rocha colorida. Mas o local de que mais gosto encontra-se poucos quilómetros mais a sul, na Achada do Gamo. O percurso até lá faz-se entre árvores, de um lado, e terra árida do outro, por vezes matizada de cores invulgares, resultantes da interacção dos resíduos minerais ainda presentes no solo. A meio do caminho, na margem oposta de um curso de água, vê-se o que resta do centro de britagem e queima da Moitinha. Depois surgem ao longe duas torres com aspecto pós-apocalíptico, e de repente somos como que teletransportados para um qualquer planeta sem vida: terra nua, num cinzento que vai do quase branco até ao negro-carvão; edifícios meio desfeitos, formas de um puzzle geométrico recortado contra um céu imaculado, paredes esboroadas, com cabos de metal oxidado que se projectam das suas entranhas como tentáculos de um animal intergaláctico moribundo, pedras manchadas pela ferrugem. E um silêncio quase total, apenas cortado pelo som da brisa que passa ou por um qualquer piar longínquo. Em todas as vezes que lá regressei, mesmo sem o factor surpresa, a emoção foi sempre a mesma: senti-me simultaneamente fascinada e comovida.

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Se tivesse conhecido este lugar quando a mina se encontrava em funcionamento, será que teria sentido o mesmo? Tenho sérias dúvidas. Máquinas em movimento, fumos, barulho, pessoas a trabalhar em condições que talvez não fossem as melhores… nada disso contribuiria para o que é agora a beleza do lugar. E aquilo que mais me comove é precisamente a fragilidade do que terá sido em tempos um grande empreendimento – fragilidade tóxica, é certo, cujos efeitos ainda perduram mesmo depois de tantas décadas de inactividade; mas também uma prova de que, se deixadas ao abandono, mesmo as maiores obras acabam por desaparecer, desgastadas pelo ar, pela água, pela terra. Tal como nós, seres humanos. Estes lugares arruinados são o espelho da nossa própria fragilidade e irrelevância.

 

Outro local que contribuiu para despertar o meu interesse por ruínas e pela sua história é o Bairro do Quelho, em Salzedas. Desta vez foi uma descoberta por puro acaso, também há já bastantes anos quando, depois de uma visita ao Mosteiro, entrei por uma ruazinha do bairro que está ao lado. Os edifícios que ficam na periferia estão recuperados e habitados, mas no coração do Bairro do Quelho existe uma zona meio arruinada, com ruelas labirínticas entre casas estreitas de pedra e madeira, com dois ou três pisos em altura, algumas unidas por alpendres suspensos, com a base feita troncos robustos. Há paredes forradas com escamas de ardósia, redes de arame que por trás de varandins toscos, janelas sem vidros e portas descaídas. É como se entrássemos no cenário de um filme passado em época medieval, um portal para o passado, mas um passado em que não há gente nem animais, apenas restos decadentes do que terá sido um bairro onde as pessoas viviam em estreita comunhão.

O passado do Bairro do Quelho, percebi-o entretanto, está envolto em mistério e polémica. Existe a teoria romântica de que terá sido uma judiaria, baseada em inscrições supostamente de simbologia judaica; outros defendem que é simplesmente um bairro de origens medievais, nascido em torno do Mosteiro, como tantos outros. O mistério adensa-lhe o encanto, e será certamente aproveitado para publicidade turística quando um dia for totalmente recuperado – se o for (sendo que a alternativa, a destruição para construir qualquer coisa sem graça, é bem menos desejável).

 

Em anos mais recentes, quando me interessei pela história dos avieiros e pela sua cultura, descobri a aldeia do Patacão. Os avieiros do Tejo, descendentes dos pescadores de Vieira de Leiria que procuravam neste rio o seu sustento durante os meses invernios, sempre viveram em aldeias minúsculas, muito isolados das vizinhas comunidades rurais. Nos anos 80 ainda existiam várias dezenas destas aldeias avieiras nas margens do Tejo, mas actualmente restam muito poucas. Algumas desapareceram totalmente, outras foram absorvidas pelos núcleos populacionais adjacentes, e outras estão em ruínas. O Patacão faz (infelizmente) parte deste último grupo. Com acesso a partir da vila de Alpiarça, não é fácil dar com o que resta dos dois núcleos de antigas casas de avieiros. Erguidas sobre pilares para sobreviverem às inundações, como é habitual nestas comunidades, o primeiro grupo alinha-se ao longo de um valado, junto à estrada de acesso a uma praia fluvial selvagem, e passa completamente despercebido a quem não souber da sua existência. São sete casas, meio escondidas pela vegetação que já quase as cobre completamente, descoloridas e esventradas, em que a madeira se mistura com a telha, o tijolo e a chapa de zinco – uma casca frágil sem nada no seu interior. Poucas centenas de metros mais à frente, do lado direito da estrada de terra batida que leva à praia, um grupo de árvores abafa mais duas ou três casas, também arruinadas.

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Apesar de durante anos terem sido feitas campanhas de limpeza para evitar que ficasse totalmente em ruínas, esta aldeia avieira acabou por cair no esquecimento. Rodeadas por terrenos cultivados, no sossego da planície ribatejana, com apenas uma linha de choupos perfilados ao longe a denunciar a existência do Tejo, de cada vez que lá passo as casas estão menos visíveis, mais engolidas pela vegetação, e mais degradadas. A natureza vai fazendo o seu trabalho, dissimulando-as na paisagem, e não tardarão muito a ficar completamente invisíveis. É mais um pedacinho da nossa cultura que desaparece.

 

Outra aldeia, também completamente desabitada e em ruínas mas que – espero eu! – não parece ir ter o mesmo fim, é Drave. A esta aldeia onde já não vive ninguém em permanência desde o ano 2000, situada no fundo de um vale entre três serras e invisível a partir das estradas que serpenteiam em redor, só se chega a pé. Chamam-lhe “aldeia mágica”, e é verdade que tem o poder de enfeitiçar quem se decide a conhecê-la, apesar do seu acesso difícil. Talvez seja este poder que faz com que a sua capela e várias casas ainda se mantenham de pé, ou talvez (mais provavelmente) isso se deva ao facto de Drave estar desde 1995 sob a protecção do Corpo Nacional de Escutas, sendo desde 2003 a Base Nacional dos Caminheiros, (que passou a ser designada por Drave Scout Centre a partir de 2016). Estes escuteiros implementaram um projecto de recuperação de algumas casas e realizam regularmente actividades na aldeia.

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Não há electricidade, água canalizada ou gás, não há carros nem motas, e a probabilidade de encontros com outras pessoas é reduzida. Este é sem dúvida o maior atractivo de Drave, que se tornou uma espécie de Meca para quem gosta de caminhar na natureza – outra das razões para esta aldeia, apesar de desabitada, não estar abandonada. O ambiente é de tranquilidade total e sabe bem passear por entre as suas casas de pedra escura, umas ainda quase intactas, outras já a caminho da ruína completa, espreitar para dentro da capelinha, branca e bem cuidada, piquenicar junto ao ribeiro – onde nem falta uma pequena cascata – ou apenas vegetar no prado verde que ocupa uma das encostas (e parece coisa de filme).

 

Preservar a memória das aldeias que ficam desabitadas é sempre um desafio, mas qualquer que seja a solução encontrada, será sempre melhor do que o seu desaparecimento completo. Na Galiza, em As Pontes de García Rodríguez, uma exploração mineira de lignito causou o esvaziamento de várias aldeias limítrofes, agravado pela instalação em Vilavella de uma enorme central térmica – por sinal, a maior de Espanha, onde se destaca a gigantesca chaminé com 356 metros de altura, o que faz dela a construção mais alta do país e a chaminé com maior volume no mundo. Ao lado desta aparatosa central térmica, qual David junto a Golias, aninham-se três casas desabitadas e semi-recuperadas, parcialmente invadidas pela vegetação, um pequeno espigueiro, um cruzeiro e uma igreja.

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Esta incongruência arquitectónica tem uma razão de ser. Com o encerramento da exploração de lignito em 2007, foi decidido que a mina e a escombreira seriam inundadas e transformadas num lago artificial, agora parcialmente utilizado como praia fluvial. No âmbito deste processo de revitalização da área, foram também reabilitadas algumas construções rústicas que ainda subsistiam junto à depuradora, supostamente destinadas a um futuro núcleo museológico das peças arqueológicas da mina. No entanto, nesta altura o único edifício ainda visivelmente utilizado é a igreja, que é de origem medieval, e mantém-se a incógnita do que acontecerá aos edifícios sobreviventes da aldeia.

 

Por vezes, a solução mais ou menos temporária encontrada para alguns destes lugares degradados, ou mesmo abandonados, é usar a sua decrepitude como atracção turística. Num mundo em que é constante a busca da novidade, do que é diferente ou até mesmo excêntrico, estes ambientes “estranhos”, se devidamente publicitados, suscitam a curiosidade e transformam-se em fonte de rendimento.

 

Alguns são usados como espaço de diversão, como é o caso dos ruin bars de Budapeste, uma ideia já replicada em muitas outras cidades. O Szimpla Kert, o mais famosos destes bares do Distrito VII de Pest, ocupa o edifício de uma antiga fábrica e, no seu interior, o estado decadente das paredes grafitadas condiz com a acumulação de objectos kitsch ou reutilizados que servem de decoração, à mistura com plantas, mesas e bancos desirmanados, num labirinto psicadélico colorido que à noite se enche de música, projecções, muito barulho e gente em constante movimento.

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Também apelativos, por motivos e para fins diferentes, são os cenários cinematográficos abandonados. Um dos exemplos mais antigos, e ponto de paragem obrigatório para quem visita o deserto tunisino mais interior, quase junto à fronteira com a Argélia, é o cenário do primeiro filme da saga Guerra das Estrelas. Fica nas dunas de Mos Espa, entre Nefta e o Chott Chtihatt Sghat, e tive a sorte de o visitar quando ainda não tinha sido invadido pelos vendedores ambulantes habituais em todos os pontos turísticos mais famosos. Foi durante uma louca e muito divertida excursão num 4x4 possante, cujo condutor galgava dunas a toda a velocidade, com paragens repentinas nas descidas abruptas, em que o veículo ficava quase na vertical e nós em risco de aterrar no pára-brisas, se não estivéssemos presos pelos cintos. Como anticlímax, no lugar onde está instalado o cenário não havia mais ninguém além de nós, e não se ouvia um único som a não ser o dos nossos passos sobre a areia. Vistos de longe, os pequenos edifícios – largamente inspirados na arquitectura tradicional dos ksars da região de Tatouine – confundem-se com o ambiente, e só as portas pintadas de azul-acinzentado se destacam ligeiramente nos brancos e ocres da paisagem. Isso e as formas estranhas de algumas “esculturas” vanguardistas que permanecem no local, agora transformado em mais uma das curiosidades que alimentam a indústria turística da Tunísia.

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Menos visitado e muito menos famoso, até porque o filme para o qual foi construído nunca chegou a ser rodado, é o cenário de uma aldeia viking na Islândia. Fica na região sudeste, entre o mar e a Vestrahorn (uma das duas montanhas mais fotografadas do país), e foi criado em 2010 para um filme islandês. Está situado numa propriedade privada, que também é alojamento local, e é preciso pagar bilhete para o visitar – o que prova que um dos trunfos de uma indústria turística bem conseguida é saber aproveitar até mesmo o que não tem qualquer valor histórico. Ao longe, o sítio em si não parece muito prometedor: uma longa paliçada cinzenta que mal se vê, perdida na planície aos pés da magnífica montanha que é a Vestrahorn, cujos picos rochosos abruptos atingem mais de 450 metros de altura. Mas quando passamos para o lado de lá da cerca de madeira, a opinião muda. As casas estão bem recriadas – várias são inteiramente feitas de toros de madeira, outras têm portas e ombreiras com motivos esculpidos, e os telhados foram recobertos de erva. A paliçada tem estacas irregulares e aguçadas, há escadas e caminhos de madeira rudimentares e treliças feitas com finos ramos de árvore, e nem sequer falta uma masmorra, fechada com um forte gradeamento de metal. Com uma ou outra excepção, as casas que estão abertas não têm nada no interior, ou só têm restos de madeira, e pilares e escoras para suportar as paredes e os telhados. Dá para perceber que o cenário só se destinava mesmo a ser usado para filmar exteriores.

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Por estranho que pareça, o local acaba por ser fascinante, assim como que uma espécie de parque de aventuras para adultos, entre o primitivo e o arruinado. Subi e desci, espreitei pelas aberturas e pelas janelas, entrei por um lado e saí por outro, fotografei até à exaustão, e quando dei por mim já se tinha passado quase uma hora. E gostei.

 

Não é incomum encontrar grandes edifícios cuja ruína até me faz doer a alma. Um dos que me intrigou durante bastantes anos fica perto de Sortelha, pouco antes de começarmos a subir por entre os impressionantes rochedos graníticos da serra: o antigo Hotel da Serra da Pena, mais conhecido por Termas de Radium. Construído quando ainda se pensava que os efeitos do rádio eram benéficos para a saúde e que as águas que possuíssem este elemento eram, consequentemente, boas para tratar toda uma panóplia de males físicos, este hotel requintado podia hospedar até 150 pessoas e possuía instalações termais equipadas com tudo o que era imprescindível para os tratamentos recomendados na época, que incluíam a ingestão de água – obviamente radioactiva – na quantidade de um litro por dia. Esta água era também engarrafada e vendida para o exterior. Após a constatação de que, afinal, as águas radioactivas da Serra da Pena não eram a panaceia apregoada, mas antes o inverso, a estância termal do hotel foi encerrada em 1945. O hotel continuou a ser explorado, passando por vários donos, mas os seus dias estavam contados. Vendido o recheio e deixada a propriedade ao abandono, o seu proprietário actual adquiriu-a em leilão e é português. Existem vagos planos de recuperação do local, mas nunca saíram da gaveta.

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Enquanto isso, o edifício continua a resistir como pode às inclemências do tempo, sem perder a sua imponência. Algumas das suas paredes, construídas com grandes paralelepípedos de granito, mantêm-se pé, e no alto, em destaque, ainda há colunas rematadas por pináculos e frisos recortados a evocar ameias. Todo o complexo é um jogo de volumes diferentes, cada parte do edifício com o seu próprio formato e características, mas o efeito final continua harmonioso, mesmo faltando-lhe já muitos dos seus elementos essenciais. Afastado da estrada principal e tendo como cenário de fundo os penedos graníticos da serra e alguns pinheiros, o lugar é silencioso e transmite paz, apesar do seu passado sombrio e do seu aspecto de lugar tenebroso, quando visto de longe. É mais um daqueles lugares que nos relembra que tudo neste mundo é transitório e não podemos dar nada por garantido, nem sequer aquilo que hoje se considera uma verdade inquestionável. O tempo e o (suposto) progresso encarregam-se de mudar a nossa perspectiva sobre o que nos rodeia e a forma como vivemos, e são implacáveis para o que (e quem) cai em desgraça.

 

Bem mais visível e popular, apesar das sucessivas (e infrutíferas) tentativas de o interditar ao público, o edifício arruinado que em tempos foi o Hotel Monte Palace, na ilha açoriana de São Miguel, tem uma história prosaica. Projecto megalómano de luxo numa época em que o turismo nos Açores ainda era algo incipiente, teve uma fase inicial acidentada e uma vida curta: apenas esteve aberto durante cerca de 18 meses, nos anos de 1989 e 1990. O motivo do encerramento foi, obviamente, a falta de rentabilidade financeira. O seu trunfo era (e continua a ser) a localização. Situado na Vista do Rei, o miradouro panorâmico sobre a Lagoa das Sete Cidades, e elevado vários metros em relação à estrada, é uma espécie de ninho de águia com uma visão de 360° sobre toda a parte oeste da ilha. O tempo não tem sido generoso para com ele, nem as pessoas. Sem vigilância há muitos anos, não é preciso grande engenho para conseguir entrar no recinto murado que o rodeia, e os visitantes são frequentes – mais, certamente, do que os que teve na sua diminuta existência como hotel. Os 88 quartos que oferecia, a par de salas de conferência, restaurantes, bar, salão de jogos e discoteca, nunca atraíram tanta gente quanto atraem agora as suas ruínas. Paredes verdes de musgo, grafitadas, lixo, entulho e água das chuvas, a estrutura vai resistindo (a qualidade da construção parece justificar pelo menos parte dos milhões de escudos investidos), e permite aos “salteadores” mais afoitos vistas fabulosas sobre algumas das belezas de São Miguel – com a vantagem de não ter à frente as dezenas de cabeças dos turistas que habitualmente enchem o miradouro oficial da Vista do Rei. Fosse a entrada no edifício cobrada, mesmo que a preços módicos, se calhar os seus donos já teriam um mealheiro jeitoso para ajudar a sua reconstrução…

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Destino diferente tiveram as roças de São Tomé. Pedra basilar sobre a qual assentou durante vários séculos a economia da ilha, primeiro com a cultura da cana-de-açúcar e depois com as de cacau e café, as grandes roças santomenses eram uma espécie de cidades em miniatura, e praticamente auto-sustentáveis. Além da componente habitacional e dos edifícios administrativos ou dedicados às várias etapas da produção, incluíam estruturas destinadas aos cuidados de saúde, à educação e ao culto religioso, bem como oficinas, pequenas fábricas e outras comodidades de usufruto comunitário. Nacionalizadas em 1975, após a independência, passaram a ser administradas pelo Estado, mas a sua organização e os modos de produção pouco se alteraram. Uma “reforma agrária” nos anos 90 e a ausência de modernização e manutenção levaram a um progressivo desinteresse pela produção agrícola, e a que muitas das estruturas existentes fossem esvaziadas das suas funções e deixadas à sua sorte.

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Arruinadas, mas não desabitadas, as roças de São Tomé continuam a abrigar muitas centenas de pessoas, e cada uma delas constitui ainda um núcleo coeso e semi-fechado dentro do território, com estrutura social e organizativa própria. Algumas foram parcialmente reabilitadas, para fins produtivos ou turísticos, mas na sua maior parte impressionam sobretudo pelos grandes edifícios arruinados que são seu ex libris, como sucede nas roças Agostinho Neto e Água Izé, duas das maiores, mais antigas e (em tempos) mais desenvolvidas do país. Em ambos os casos, as construções visualmente dominantes são os hospitais, ruínas do que foram nos tempos áureos da exploração do cacau, agora com a pintura a descascar, os vidros partidos ou ausentes, invadidas por plantas, porções do telhado desaparecidas ou a cair. Algumas partes parecem habitadas, outras são recreio de miúdos ou de cabras e porcos, num lugar onde intimidade parece ser palavra desconhecida. À volta, espalham-se habitações de todas as espécies, por vezes não passando de um amontoado caótico de madeira e chapa ondulada, outras um aproveitamento das antigas estruturas das sanzalas e dos edifícios de alvenaria que em tempos abrigaram proprietários, capatazes e trabalhadores qualificados, quase todas em mau estado de conservação. A pobreza gritante dos edifícios mimetiza a das pessoas que ali vivem, no país que é o segundo mais pequeno de África e onde o PIB per capita actualmente não chega aos 1700 euros. E contrasta com a intensidade da vida que fervilha dentro dos seus limites. Antes motor de desenvolvimento económico, marco histórico importante e símbolo cultural e social, hoje como ontem, as roças continuam a ser o retrato do que é a vida em São Tomé.

 

O tempo, esse conceito abstracto que criámos para compartimentar a nossa existência, anda de braço dado com a deterioração até mesmo daquilo que não tem vida tal como a concebemos. A natureza tende a reclamar o que é seu por direito, e tudo o que não é cuidado acaba por definhar ou ser engolido por ela. Cada ruína, cada lugar abandonado, mesmo que tenha pouca importância arquitectónica, conta uma história, ensina-nos sempre alguma coisa – e alerta-nos para a nossa própria transitoriedade.

No sobe-e-desce das Cinque Terre

Ana CB, 02.12.22

 

Imaginem um pedaço de costa europeia banhado pelo Mediterrâneo, com colinas altas que descem vertiginosamente até à água. Imaginem que nestas encostas há socalcos com vinhedos, limoeiros e oliveiras, definidos por muros de pedra, e trilhos pedestres criados por séculos de povoamento. Imaginem ainda que junto ao mar e no topo das colinas há pequenas aldeias com casas coladas umas às outras, coloridas como rebuçados, trepando pelos declives, as de cima espreitando sobre as que estão mais abaixo. Agora coloquem tudo isto num dos países mais fascinantes da Europa – a Itália – e com o selo de Património Mundial da UNESCO. O resultado são duas pequenas palavras: Cinque Terre. É por aqui que agora vos convido a passear.

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Apesar de haver vestígios do seu povoamento desde pelo menos a época romana, esta estreita faixa de terra costeira a sul de Génova, na região da Ligúria, só passou a ser conhecida como Cinque Terre por volta do século XV, reportando-se a cinco pequenas aldeias com semelhanças geográfico-territoriais e económicas: Monterosso al Mare, Vernazza, Corniglia, Manarola e Riomaggiore. Nestas aldeias, durante muito tempo remotas, os habitantes dedicavam-se à pesca e simultaneamente à agricultura, aproveitando as riquezas do mar e dos solos para a sua subsistência. Hoje como ontem, no mar pescam sobretudo a anchova, entre Junho e Setembro, pelos métodos tradicionais com lâmpadas ou com redes de cerco. Aperfeiçoaram também as técnicas de conservação deste peixe, fumando-o ou preservando-o em óleo ou sal – é famosa a anchova salgada de Monterosso. Na agricultura, o relevo acidentado e a sua orientação, com boa exposição ao sol e ao abrigo dos ventos de norte, levou à escolha da videira como planta de eleição para cultivo, a par da oliveira. Os terrenos foram desmultiplicados em socalcos, estabilizados por muros de granito, e o vinho e azeite aqui produzidos são de qualidade reconhecida.

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Considerada “paisagem cultural viva”, a região das Cinque Terre foi integrada em 1997 na lista do património protegido pela UNESCO, e em 1999 foi delimitada como parque nacional, abrangendo também uma área marítima. Em toda a área do parque estão definidos percursos pedestres, alguns dos quais foram durante séculos a única ligação entre as várias aldeias e entre elas e o interior do país. Há percursos de vários tipos, tanto em meio rústico como urbano, e com vários níveis de dificuldade, o que faz desta região um destino ideal para quem gosta de caminhar. O mais famoso destes trilhos é o Sentiero Azzurro, que liga as cinco aldeias – o trecho que liga Riomaggiore a Manarola é tão romântico que lhe puseram o nome de Via dell’Amore.

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Como contraponto à melhoria das condições de vida dos seus habitantes permanentes, o aumento da popularidade das Cinque Terre como destino turístico tem trazido alguns problemas. O trabalho ligado ao turismo tornou-se uma alternativa mais fácil e mais rentável, e cada vez menos pessoas se dedicam ao cultivo das terras. O abandono da agricultura levou à deterioração das condições dos terrenos, instáveis por natureza, e dos muros que os sustêm, o que se torna problemático quando ocorrem chuvas torrenciais – ainda está na memória de todos a enxurrada de 2011, que devastou uma grande parte de Monterosso e Vernazza, e cujos efeitos demoraram vários anos a ser ultrapassados. À data de hoje, dois troços do Sentiero Azzurro (de Corniglia a Manarola e de Manarola a Riomaggiore, a famosa Via dell’Amore) continuam encerrados devido a deslizamentos de terras, e só se prevê que reabram dentro de dois ou três anos, no mínimo. Apesar dos esforços desenvolvidos nas últimas décadas para incentivar o turismo responsável e sustentável, e pese embora as Cinque Terre continuem a atrair muitos adeptos da caminhada, a maioria dos visitantes hoje em dia concentra-se sobretudo nas aldeias junto ao mar.

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Não é difícil perceber porquê. As Cinque Terre estão ligadas entre si por uma linha férrea que corre junto ao mar e nos deixa, a intervalos de poucos minutos, no coração de cada uma das aldeias. A excepção é Corniglia, a única que está situada no cimo de um promontório, mas cujo acesso ao comboio é facilitado por um pequeno autocarro em constante vaivém entre a aldeia e a estação; ou, em alternativa, por uma escadaria – tão icónica que até tem nome próprio: Lardarina. Esta ligação ferroviária foi construída durante a segunda metade do século XIX como parte do projecto de unir as cidades de Ventimiglia, na Ligúria (junto à fronteira com a França), e Massa, na Toscânia. Uma empreitada que não se revelou fácil devido ao recorte acidentado da costa liguriana, sobretudo na região das Cinque Terre, e que obrigou à construção de 23 pontes e 58 túneis (que totalizam 28 km) ao longo dos 44 km deste troço da obra. A linha só ficou pronta em 1874, e foi um passo gigante para contrariar o isolamento a que estas aldeias estavam votadas. Concebida com uma única linha, obviamente para reduzir despesas, só nos anos 70 do século passado é que foi alargada para duas vias, facilitando ainda mais o acesso à região – e catapultando-a para a popularidade turística. Actualmente, o comboio das Cinque Terre corre entre Levanto, a norte, e La Spezia, a sul, com intervalos de mais ou menos 15 minutos na época alta (entre fins de Março e inícios de Novembro), e levando a bordo centenas de pessoas em cada viagem. É o meio de transporte preferido pela maioria dos cerca de 2 milhões e meio de visitantes anuais que a região recebe.

Outro meio de transporte popular para visitar a região na época alta é o barco. Modernas e rápidas, as embarcações que prestam este serviço funcionam com horários regulares, que vão variando ao longo do ano, sobretudo entre Porto Venere (perto de La Spezia) e Monterosso. Apenas não param em Corniglia, onde não existe cais, e têm como maior atractivo oferecerem a possibilidade de admirarmos a costa e as aldeias de outra perspectiva, já que elas estão todas viradas para o mar.

Cinque Terre 7.jpegEvidentemente, ir de carro também é uma opção, mas só aconselhável na época baixa. As aldeias têm parques de estacionamento à entrada (no interior, as vias são quase exclusivamente pedonais), mas são pequenos e francamente insuficientes para o enorme afluxo de visitantes da região. Além disso, são pagos, e não são baratos.

 

A oferta de alojamento nas Cinque Terre não é abundante. A maioria dos visitantes ficam alojados nas cidades vizinhas de La Spezia ou Levanto, onde há mais variedade e a preços mais em conta. Pessoalmente, acho mais compensador ficar a dormir numa das aldeias, para poder usufruir completamente da experiência. Quando lá estive fiquei alojada em Vernazza, e foi uma excelente opção. Ao segundo dia, o bem-disposto dono do snack-bar onde tomávamos o pequeno-almoço já nos conhecia e conversava connosco. E jantar ao lusco-fusco num dos restaurantes da piazza junto ao porto, na atmosfera tranquila que se instala depois do êxodo da maré de turistas, é muitíssimo agradável.

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MONTEROSSO AL MARE

 

Monterosso é a localidade que fica mais a norte e a maior das cinco, com uma população de cerca de dois mil residentes – mais vila do que aldeia, na verdade. É sobretudo famosa pela sua extensa praia de areia clara e vibe de estância balnear. Na realidade, tem duas faces bem distintas: uma mais moderna e cheia de movimento; a outra mais recatada, onde ainda pairam algumas memórias dos tempos em que esta povoação era apenas uma aldeia piscatória. A separação entre as duas é bem nítida e está marcada pela torre Aurora, erguida num promontório rochoso sobre o mar, e pelo seu vizinho Convento dos Frades Capuchinhos, construído no cimo do monte San Cristoforo. São as testemunhas mais antigas da história da localidade, que se reporta à época romana. A torre que hoje existe, construída sobre o local de outra mais antiga, data do século XVI. Quanto ao convento, foi criado na primeira metade do século XVII, e desde então teve períodos de actividade alternados com outros de abandono. A partir de 2006 voltou a dedicar-se à sua vocação espiritual inicial, pese embora aberto a actividades turísticas.

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A zona leste de Monterosso é conhecida como Fegina, o nome da praia e da avenida que a acompanha. É nesta avenida que ficam a estação de comboio, a pequena mas engraçada igreja de Sant’Andrea e, no extremo, a estátua do Gigante, como é conhecida localmente – uma representação de Neptuno com uns impressionantes 14 metros de altura, esculpida em 1910 como parte da decoração da Villa Pastine. Infelizmente, estava tapada para reparações quando lá estive. A Via Fegina tem antigos palacetes transformados em hotéis, fachadas com buganvílias, loendros e outras árvores de pequeno porte, esplanadas simpáticas e um passeio pedonal a todo o comprimento. Um rochedo fotogénico compõe a paisagem marítima, melhor apreciada ao fim da tarde enquanto se saboreia um gelado.

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Na extremidade oeste da Via Fegina, um túnel deixa-nos no acesso ao bairro medieval, onde o ambiente de praia desaparece e é substituído pelo de uma aldeia. Uma aldeia turística, sem dúvida, mas bastante diferente da outra metade. Na praça de entrada, o campanário de pedra da igreja de São João Baptista – que foi em tempos uma torre de vigia pertencente às fortificações construídas no século XIII – contrasta com as riscas em mármore negro e branco da fachada e das colunas que separam as naves no interior do monumento. As riscas bicolores repetem-se no Oratório da Confraternidade Mortis et Orationis, quase ao lado da igreja, que por sua vez contrastam com as tonalidades vivas dos edifícios entre os quais está encaixado. Nas ruas e pracetas, que parecem ter sido feitas para descansar, há toldos listrados e bancos de madeira. As ruelas são cruzadas por arcos, e as cores vibrantes das casas combinam com as das flores que estão espalhadas por todo o lado, em grandes vasos ou espreitando sobre os muros. Há toalhas de praia a secar nas varandas de ferro forjado, e as janelas estão protegidas com venezianas pintadas de verde-escuro. É aqui que se sente verdadeiramente a atmosfera das Cinque Terre.

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VERNAZZA

 

A paisagem de Vernazza é dominada pelas ruínas do “castrum”, uma fortificação defensiva acastelada que data do século XI. O ex libris da localidade é a Torre Doria, bem visível no topo da falésia que brota abruptamente das águas do mar da Ligúria, a mais de 70 metros de altura. A aldeia tem uma única rua principal, a Via Roma, que desce até ao porto. Dela saem ruelas e escadinhas, tão irregulares como ramos de uma árvore. Passear por Vernazza é um sobe-e-desce constante, ora viramos para um lado, ora para outro, numa desorientação total que acaba por nos deixar longe do sítio para onde queríamos ir. O bónus é descobrir perspectivas diferentes sobre o mar de casas que escorrem pela encosta, e sobre os marcos arquitectónicos que se destacam contra as vinhas, os penhascos e o azul-esmeralda da água: as torres, o Convento de São Francisco, e a Igreja de Santa Margarida de Antioquia.

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A inundação de 2011 danificou quase todos os edifícios da aldeia e deixou toneladas de lama na Via Roma. Foram necessários dois anos para recuperar aquela que é muitas vezes definida como “a pérola das Cinque Terre”. Hoje já não há quaisquer vestígios da tragédia, e Vernazza recuperou todo o seu esplendor. Os pisos térreos das casas, que têm no máximo meia dúzia de andares, e na sua maioria menos do que isso, estão ocupados com lojas, cafés e restaurantes. Na estação de comboio há pessoas a entrar e sair a toda a hora, e o ruído das rodas dos trolleys é uma constante.

O porto de abrigo está definido por um pequeno paredão, que protege umas quantas dezenas de barcos de pescadores, muitos dos quais acumulam funções turísticas. Há também uma praia minúscula com areia escura que, apesar de não ser muito convidativa, é bastante procurada quando o tempo está mais quente – ou até mesmo à noite, para uma partida familiar de futebol. Acima da praia, o olhar é atraído pela igreja de Santa Maria de Antioquia, com a sua torre sineira octogonal coroada com arcos e uma cúpula em ogiva. Em contraste, o corpo do edifício é em pedra escura, marcada pelos séculos, denunciando o estilo românico original deste monumento religioso, que é um dos mais famosos das Cinque Terre.

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Paredes-meias com a igreja, uma piazza repleta de esplanadas e rodeada de edifícios em cores pastel, onde apetece fazer uma refeição ao final da tarde, quando as sombras avançam sobre as colinas e a luz do sol é gradualmente substituída pela dos candeeiros, reflectindo-se nas águas do porto. Um verdadeiro cenário romântico italiano.

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CORNIGLIA

 

Está posicionada centralmente em relação às suas “irmãs” e difere delas porque não está ao nível do mar, mas sim num promontório 90 metros mais acima, encaixada entre vinhedos. A sua posição privilegiada permite-lhe também ser a única que tem um miradouro de onde se avistam simultaneamente as outras quatro aldeias. E é, de todas elas, a mais pequena e mais tranquila.

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Há quem considere Corniglia como a menos atractiva das Cinque Terre, mas eu discordo totalmente. É uma aldeia cheia de cor, e de recantos e caminhos perfeitamente deliciosos. A ausência de uma ligação directa ao mar é largamente compensada pela sua originalidade e pelos pormenores surpreendentes que encontramos em todo o lado. Em vielas estreitinhas, as lojas e restaurantes parecem competir entre si pela fachada mais fora do comum, seja com elementos decorativos extravagantes, com trepadeiras ou vasos cheios de flores garridas, ou com peças de artesanato que chamam a atenção. Casas de pedra exposta alternam com outras pintadas em cores de rebuçado, e alguns recantos fazem lembrar as aldeias portuguesas: ferros forjados, sardinheiras e roupa a secar ao sol.

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O Largo Taraggio é o ponto central de Corniglia, rodeado de cafés e restaurantes, esplanadas e bancos para descansar. Subindo umas escadas, o Oratório dos Disciplinados de Santa Catarina, e por trás dele um terraço com vistas magníficas para o mar e a costa. No extremo oposto da aldeia, a igreja de São Pedro, monumento religioso do século XI com exterior gótico – onde dá nas vistas uma lindíssima rosácea em mármore branco, nitidamente recuperada em tempos recentes – mas barroca no interior, com paredes e piso em branco e preto e tectos abobadados cobertos de pinturas muito coloridas.

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Obrigatório em Corniglia é percorrer a Scalinata Lardarina, uma escadaria de tijolo com 382 degraus distribuídos por 33 patamares. Liga a aldeia à estação de comboio, e os mais corajosos atrevem-se a subi-la. Quanto a mim, optei pelo melhor dos dois mundos: subi de autocarro até à aldeia, e desci pela escadaria no regresso à estação.

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MANAROLA

 

Manarola começou a crescer no século XII, quando uma parte dos habitantes da aldeia de Volastra (situada poucos quilómetros mais acima na encosta) desceram para se instalarem junto ao mar e resgatarem novos terrenos para cultivo. Em 1276 passou a ser governada por Génova, e a arquitectura das suas casas-torre, empoleiradas na falésia de rocha compacta, é testemunha das influências genovesas que perduram até hoje. Da época medieval, quando toda a costa liguriana estava sujeita aos ataques de piratas, restam meros vestígios do bastião defensivo do castelo, actualmente meio despercebido entre as casas de habitação construídas sobre e à volta das suas ruínas.

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Também aqui, as vinhas trepam pela encosta, disputando o espaço com as habitações, e criam um contraste encantador. A aldeia de Manarola é um puzzle intrincado de casas que parecem caixas de fósforo e ruelas estreitas que se transformam em escadarias de xisto, desdobrando-se e serpenteando em ladeiras que pedem muito fôlego e energia para percorrer – mais ainda nos dias quentes de Verão.

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Um longo túnel liga a estação de comboio à rua principal da localidade, que a percorre a todo o comprimento, de leste para oeste. Subindo, chegamos à igreja de São Lourenço, construída em 1338 em estilo gótico, mas com pormenores barrocos no interior. Em frente está a Torre Sineira, que foi em tempos uma torre de vigia. Ao lado da torre, um excelente miradouro sobre o casario de Manarola com o mar por fundo, e mais ao lado, encostado a umas escadinhas que se perdem entre as casas pintadas de cores quentes, o Oratório dos Flagelados.

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Descendo até ao outro extremo da aldeia, entre lojas e restaurantes, chegamos ao porto de abrigo, que acumula as funções de praia. Não é uma praia tradicional – são apenas rochedos, alguns com uma altura respeitável, no meio dos quais foi construída uma rampa de acesso para as embarcações – mas é muito concorrida na época alta, sobretudo pelos mais jovens, que estendem as toalhas em qualquer saliência ou nesga de rocha mais plana e depois passam o tempo exibindo-se em saltos para a água, no meio de gritos de excitação.

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Depois há que voltar a subir, trepando pelas escadinhas e caminhos construídos no promontório do lado norte de Manarola, a Punta Bonfiglio. Chegamos ao cimo com os bofes de fora, mas a recompensa é grande: de um lado, a vista de postal ilustrado sobre o porto, a falésia e parte da aldeia; do outro, uma visão da costa até Corniglia e mais além.

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É aqui que há um bar com esplanada (o Nessun Dorma) que é provavelmente o mais espectacular das Cinque Terre, não pelo bar em si mas pela vista. Também há um jardim com área de piquenique e parque infantil, cheio de árvores e flores, a que chamam “Paradiso” e que é gerido e arranjado por voluntários que habitam na aldeia – ou, pelo menos, é isso que se declara em azulejos pintados à mão e afixados num muro.

Manarola é também palco de uma tradição natalícia curiosa que, só por si, deve valer bem a pena uma visita em Dezembro. Publicita-se como o Maior Presépio do Mundo, e é inaugurado todos os anos em princípios de Dezembro, mantendo-se até fins de Janeiro. Foi idealizado e começou a ser construído em 1976 por um senhor de nome Mario Andreoli, nos socalcos da encosta norte da aldeia. É composto por mais de 300 figuras em tamanho natural, feitas com materiais reciclados ou inutilizados, e para além dos personagens tradicionais de qualquer presépio todos os anos são acrescentadas novas figuras (no ano da pandemia foram adicionados médicos e enfermeiros). A iluminação é ligada todos os dias, entre as cinco da tarde e as dez da manhã seguinte, e fornecida por oito quilómetros de cabos eléctricos e 17 mil lâmpadas – alimentadas desde 2008 por uma instalação fotovoltaica construída especialmente para o efeito, uma prova de que mesmo as maiores atracções turísticas podem ser ambientalmente sustentáveis.

 

RIOMAGGIORE

 

Situada no vale do curso de água que lhe dá o nome (um pequeno ribeiro, que agora corre num túnel por baixo da aldeia), Riomaggiore não é muito diferente das suas vizinhas. A norte e sul da via principal, as casas trepam pelas escarpas, parecendo nascer umas das outras, com os seus telhados de ardósia e as suas cores fortes. Diz a tradição oral que o uso destas cores chamativas servia para que os pescadores, ao regressarem ao porto, conseguissem identificar de longe a sua habitação, mesmo quando o tempo dificultava a visibilidade.

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O acesso a partir da estação também é feito por um longo túnel rasgado sob a serrania. O tecto abobadado está pintado de um azul brilhante, e os muitos metros de parede são uma obra de arte e paciência: um mural de 200 metros de comprimento com uma sequência de mosaicos compostos por pedaços de azulejo que formam desenhos variados, alguns facilmente identificáveis, outros abstractos, misturados com pedras e seixos, pedaços de mármore, espelhos, conchas e peças em cerâmica. O projecto é do artista Silvio Benedetto, que executou todo o trabalho manualmente, no local, e lhe deu o nome de “Sequência da memória”. A assinalar o meio do túnel, a reprodução de uma grande e multicolorida estrela do mar.

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O túnel desemboca no centro da aldeia. Para cima e para sul, a zona mais rural. Para baixo, na direcção do mar, o bairro dos pescadores, parcialmente construído sobre rocha. Também aqui há um pequeno porto, com rochedos e praias de pedra de ambos os lados, acessíveis por um caminho cimentado que percorre a orla marítima para sul. Há barcos a remos em quantidade, dentro de água e fora dela, e lojas que anunciam passeios ou vendem bricabraque turístico ao lado de restaurantes, mas nem sombra de ambiente de aldeia piscatória.

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Para norte do bairro dos pescadores, no topo da colina de Cerricò, o castelo. É novamente preciso subir, e subir ainda mais, por ruazinhas em declive ou escadinhas que passam por baixo das casas, até que finalmente deparamos com as muralhas. Lá em cima, como seria expectável, a vista é soberba e desafogada: casas entre vinhas para um lado, casas sobre o mar para o outro, e as balaustradas da interditada Via dell’Amore a definirem o contorno das formações rochosas obliquamente estratificadas. Ao lado do castelo, o Oratório de São Roque, construído depois de uma praga que assolou a região e exteriormente algo insípido (e a precisar de ser pintado). Descendo para a Via Pecunia, a igreja gótica de São João Baptista e, na rua mais abaixo, o Oratório de Santa Maria Assunta. Tal como nas outras aldeias das Cinque Terre, a quantidade de lugares de culto numa localidade tão pequena mostra bem o peso que a igreja católica sempre teve, e continua a ter, nesta região italiana.

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Embora unidas pela geografia comum, cada uma das Cinque Terre tem as suas características particulares, e se parecem quase iguais umas às outras quando as vemos em fotografia, facilmente percebemos as suas dissemelhanças quando as visitamos. Qual delas é a mais bonita? As respostas vão variar tanto quantas forem as pessoas a quem fizerem a pergunta. Cada um sentirá mais afinidades com uma ou com outra, ou terá uma experiência mais marcante nesta ou naquela. Ou então será mesmo incapaz de escolher, porque todas elas têm qualquer coisa de especial. Mas uma coisa é certa: ninguém sai de lá desiludido.

 

(Também publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Capelas curiosas

Ana CB, 28.10.22

Desconheço se há algum inventário completo de todas as capelas e ermidas que temos em Portugal, mas tenho as minhas dúvidas de que exista. Serão muitas centenas, um trabalho de compilação gigantesco. País maioritariamente católico desde a fundação, em Portugal encontramos pequenas capelas por todo o lado – seja nas maiores cidades ou nas aldeias mais remotas ou minúsculas, no coração das localidades ou no meio de nenhures, quase incógnitas entre edifícios ou em grande destaque e rodeadas de aparato. São uma das formas de expressão mais genuína da devoção religiosa popular, e assumem uma enorme diversidade de aspectos, muitas delas com características únicas e excepcionais pela sua história, localização ou aparência. Há muitas que são particularmente curiosas, e com a minha apetência especial por locais fora do comum tenho coleccionado memórias de várias destas capelas “diferentes”, algumas das quais já visitei mais do que uma vez – não por questões religiosas, mas apenas porque são lugares que me atraem, cada um à sua maneira. Estas são só algumas das minhas preferidas.

 

Anta-capela de Alcobertas/Igreja de Santa Maria Madalena

(Alcobertas, Rio Maior)

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As antas-capelas são um dos muitos exemplos que mostram a forma como a religião cristã adaptou em seu benefício as tradições pagãs, e a sua concepção original faz com que sejam das construções religiosas mais interessantes do nosso país. Existem apenas seis em Portugal, e nem todas em bom estado. A de Alcobertas já foi autónoma, nela se venerando Santa Maria Madalena. Algures entre os séculos XVII e XVIII, perdeu a independência e passou a ser capela lateral da igreja dedicada à mesma santa – razão pela qual o seu acesso é feito pelo interior desta igreja. Imediatamente a seguir ao arco, forrado a azulejos da mesma época, por onde se entra na capela, são visíveis os esteios e a laje de cobertura do corredor do dólmen. Graníticos e de grande dimensão (têm cerca de cinco metros de altura, o que faz do conjunto um dos dez maiores monumentos megalíticos do género situados na Península Ibérica), os esteios da câmara ovóide já perderam a sua protecção superior original; o cimo da capela é agora fechado por um muro de tijolo e um tecto abobadado, sobre o qual assenta o telhado, de aspecto recente. Calcula-se que este dólmen date de finais do Neolítico (entre 4000 e 3500 a.C.), e terá sido cristianizado no século XVI.

 

A obscuridade do interior é aligeirada pela cor branca do tecto e da toalha que cobre o altar, revestido de azulejos tricolores que incluem uma representação não muito vulgar de Maria Madalena, arrojada na sua seminudez. Também curiosamente, sobre pedras colocadas num plano superior está uma pequena imagem quinhentista, em barro pintado de várias cores, que se supõe ser de Santa Ana, representada com um livro aberto no colo. Ainda outra curiosidade é o facto de os esteios terem gravadas, na sua superfície, muitas “covinhas” (nome técnico: fossetes), motivos rupestres encontrados com grande frequência em rochas e monumentos megalíticos, cuja finalidade continua a ser desconhecida, pese embora as várias possíveis explicações que lhes têm sido atribuídas.

A este lugar de devoção secular a Santa Maria Madalena estão associadas duas lendas, que se baralham entre si. Uma conta que foi esta santa a criadora das pedras que compõem o dólmen. A outra diz que por esta anta ter sido lugar de culto pagão, os populares tentaram demoli-la; mas cada tentativa de destruição era contrariada pela santa, que voltava milagrosamente a erguê-la. Respeitando a aparente vontade de Santa Maria Madalena, optou então o povo por dar a volta à situação, convertendo o local numa capela católica.

 

 

Capela e Gruta de Nossa Senhora da Lapa

(Entrevinhas, Sardoal)

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Dois quilómetros a sudeste da localidade de Entrevinhas há uma zona de lazer, nas margens da ribeira de Arecez. A montante, perto da modesta Barragem da Lapa, existe uma gruta onde desde há séculos é venerada a Virgem Maria. A entrada da gruta foi redesenhada em alvenaria, destacada por uma faixa amarela, e está protegida por um gradeamento de ferro. No interior, uma série de degraus feitos de pedras xistosas, em jeito de altar, conduzem os olhos até a um nicho, também realçado com ornamentos em amarelo, onde foi colocada uma pequena escultura policromada da Nossa Senhora da Lapa, na sua representação mais habitual. Este culto mariano, tão antigo que se desconhece quando terá começado, levou a que em meados do séc. XVII o Abade João Cansado mandasse edificar uma capela na margem oposta da ribeira, criando assim um pequeno santuário dedicado a Nossa Senhora. Há registo de um breve do Papa Alexandre VII, com data de 28 de Março de 1659, concedendo privilégios especiais a quem rezasse missa na capela. E em 1926, um jornal local dava conta de uma peregrinação eucarística ao local no dia de São João, tradição já antiga.

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Meio encaixada num maciço rochoso elevado, a salvo de enchentes em épocas de muita chuva, acede-se à capela por uma curta escadaria dupla. É uma construção simples, com alguns elementos barrocos na fachada e um arco sineiro sobre um dos lados do telhado, mas já sem sino. Nota-se que está a precisar de uma renovação. Está classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1996, mas é uma capela privada e as visitas ao interior (que está descrito como sendo bem mais rico do que o exterior) só são possíveis por marcação com o seu proprietário.

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A zona de lazer onde se situa a capela é tranquila e agradável. Acompanhando a ribeira, filas extensas de árvores de grande porte criam uma área fresca para passear, piquenicar, ou até mesmo tomar banho, nos dias em que o calor aperta. Uma ponte de troncos e tábuas de madeira faz a ligação entre as duas margens. No extremo oposto ao da gruta há um parque de merendas, chorões frondosos, uma barreira de pedra para controlar o fluxo da água, e uma pequena cascata mais à frente. É um sítio bom para relaxar, dotado de um certo encanto, pese embora tenha no geral um aspecto pouco cuidado.

 

 

Capela do Calvário/Capela de Santa Maria Madalena

(Ferreira do Alentejo)

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É possivelmente a capela mais estranha do nosso país, e se não fosse a cruz de metal bem visível no topo, ninguém faria a mínima ideia da sua finalidade. Pequena, branca e cilíndrica, a fazer lembrar uma redoma, tem uma faixa amarela pintada na sua base, um lanternim sobre a cúpula, e várias dezenas de pedras irregulares de granito incrustadas nas paredes, concentrando-se sobretudo na parte superior. Além de estranha, é também misteriosa, pois desconhece-se o porquê de tão curiosa decoração. Moda alentejana, já que ornamentação semelhante existe na vizinha localidade de Beringel e consta que terá existido uma outra no mesmo género em Beja? Evocação do calvário de Jesus (que parece ser a explicação mais comum)? Ou da salvação de Maria Madalena (condenada a apedrejamento e uma das figuras representadas no altar da capela)? No interior, a parede do altar está pintada de azul-céu e decorada com estuques brancos com formas vegetais ou representando alguns Arma Christi (Instrumentos da Paixão, símbolos associados ao martírio de Jesus). O azul repete-se em faixas geométricas pintadas na abóbada.

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Calcula-se que a sua construção date dos séculos XVII ou XVIII. Originalmente, foi erguida num outro local da vila, a antiga Rua do Calvário, e transferida em 1868 para um dos extremos da então Rua de Lisboa, que agora é a Avenida Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Classificada como Imóvel de Interesse Público em 2003, a espécie de praça onde se encontra é zona de protecção especial, com a capela no seu centro, isolada e bem visível. À volta há edifícios baixos, de traça tradicional, um ou outro com ar apalaçado, e uma fonte ornamental moderna, com bicas e repuxos, que dá um certo ambiente de frescura a esta vila alentejana.

Seja qual for a razão das suas origens, o certo é que esta capela se tornou no ícone máximo de Ferreira do Alentejo – que é, de resto, uma vilazinha pacata, bem arranjada e limpa, com vários outros motivos de interesse para uma visita mais demorada.

 

 

Capela de Nossa Senhora das Vitórias

(Furnas, São Miguel)

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Praticamente isolada na margem sul da Lagoa das Furnas, esta capela é muito diferente de qualquer outro monumento religioso em São Miguel e, por ter bastante altura e uma torre aguçada, passa facilmente por igreja. Meio dissolvida entre a água e todo aquele verde, com a pedra manchada e avermelhada pelo tempo, as suas formas elaboradas tornam-se incongruentes num enquadramento tão simples. Visto de longe, o conjunto tem um ar algo surreal.

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Foi mandada construir em fins do século XIX por José do Canto, um abastado proprietário açoriano, para servir de mausoléu à sua mulher e a ele próprio. José do Canto era um intelectual progressista e botânico amador, e esta capela encontra-se precisamente numa das suas antigas propriedades, a mata-jardim a que foi dado o seu nome. Construída em estilo neogótico, possui uma dimensão bastante generosa, com uma torre sineira alta, pontiaguda e ornamentada. No interior, chamou-me primeiro a atenção, por não ser muito habitual, o belíssimo piso de mosaicos coloridos. Os vitrais das janelas altas, que do exterior parecem desenxabidos, mostram-se bem mais ricos quando vistos de dentro. A pedra cinzenta nua da estrutura, com as tonalidades dadas pela passagem dos anos, contrasta com a madeira castanha do gradeamento, do púlpito e dos altares. Incomum é também a ausência da talha dourada, tão habitual nos lugares de culto em Portugal, mas isso em nada lhe diminui o encanto.

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Capela de São Mamede

(Janas, Sintra)

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Saindo de Janas para norte na direcção de Fontanelas, encontramos a poucas centenas de metros, do lado esquerdo, um terreno descampado onde se ergue uma construção branca e baixa, de formato circular, que à primeira vista não dá a ideia de ser um edifício religioso. Mas é, como o provam as pequenas cruzes que se erguem no topo, visíveis se olharmos com mais atenção. Dedicada a São Mamede, esta capela data presumivelmente do séc. XVI, embora até agora não tenha sido possível saber exactamente quando foi construída. Suspeita-se inclusivamente que a sua origem seja bem mais remota, reportando-se à época romana, e que no local tenha existido um templo consagrado ao culto da deusa Diana. A razão para esta suspeita prende-se com a romaria que ali se realiza anualmente em meados de Agosto, e que se reveste de um carácter muito particular: os lavradores da região trazem até ali o seu gado (e por vezes animais domésticos), e com ele dão três voltas à capela no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Mais tarde, como pagamento das suas promessas ou como pedido de protecção para os seus animais, colocam ex-votos e oferendas agrícolas no interior da capela. Embora estas festividades sejam em honra de São Mamede, protector do gado, as suas características assemelham-se em muito às dos antigos cultos dedicados a Diana, a deusa romana das florestas e protectora dos animais, cuja principal festa ocorria no dia 13 de Agosto. Existem documentos dos séculos XV e XVII que referem esta festa dedicada a São Mamede com pormenores semelhantes aos de hoje, o que prova que esta tradição já é bastante antiga.

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É uma das poucas capelas de planta circular existentes no nosso país, e a sua concepção é atribuída, por alguns entendidos na matéria, a Francisco d’Olanda, embora tal facto não esteja de maneira nenhuma confirmado. Tem ainda a particularidade de possuir um alpendre que acompanha metade da circunferência do edifício, com colunas de pedra e janelas que lhe dão um invulgar aspecto de casa de habitação. É por este alpendre que se acede à porta de entrada na capela, cujo interior é bastante simples e despojado – como todo o edifício, aliás. Apesar de estar junto à estrada, o local onde se ergue a Capela tem uma certa aura de serenidade, e sente-se no ar o cheiro intenso dos pinheiros que estão plantados em redor. Os bancos corridos de pedra no interior do alpendre convidam a sentar e relaxar, a descontrair da correria diária, a aproveitar o sossego.

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Capela de Nossa Senhora da Orada

(Melgaço)

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Já são muitas as centenas de anos que passaram pelas pedras manchadas da Capela de Nossa Senhora da Orada. À saída de Melgaço, na estrada que vai para São Gregório, e encaixada entre os muros de uma quinta vinhateira e umas quantas casas rústicas vulgares, pode facilmente passar despercebida a quem vai de carro com a atenção mais virada para a paisagem aberta do lado do rio. E no entanto, esta capela do século XIII é um dos edifícios mais surpreendentes da arquitectura religiosa do Alto Minho (já de si riquíssima em exemplares soberbos do período românico). Dizem os entendidos que mostra ser do período tardo-românico, por possuir alguns elementos protogóticos. Mais leiga do que eles, os meus olhos notam sobretudo o portal com colunas e arcos muito trabalhados, os cachorros com símbolos e figuras esculpidas, sob as cornijas, e um motivo vegetal por cima da porta norte que (mais uma vez de acordo com os peritos) representa a árvore da vida e é único em Portugal.

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Na sua escrita tão característica, Saramago descreveu a Capela da Orada no livro “Viagem a Portugal”, e foram precisamente as palavras dele que me trouxeram aqui pela primeira vez, há já muitos anos:

 

Mas a Igreja da Nossa Senhora da Orada, pequena construção românica decentemente restaurada, é tal obra-prima de escultura que as palavras são desgraçadamente de menos. Aqui pedem-se olhos, registos fotográficos que acompanhem o jogo da luz, a câmara de cinema, e também o tacto, os dedos sobre estes relevos para ensinar o que aos olhos falta. Dizer palavras é dizer capitéis, acantos, volutas, é dizer modilhões, tímpano, aduelas, e isto está sem dúvida certo, tão certo como declarar que o homem tem cabeça, tronco e membros, e ficar sem saber coisa nenhuma do que o homem é.

 

Em tempos, junto à capela esteve colocado um cruzeiro – erguido em 1567, ano de peste e portanto de fervor religioso acrescido. Questões logísticas ligadas à quantidade de devotos que o contornavam nos dias de romaria acabaram por o deslocar, em fins do século XIX, para um pouco mais acima, no outro lado da estrada, local que é agora um miradouro de excelência sobre Melgaço, o rio Minho e terras galegas. Tal como sucede com a capela, a imagem de um tosco Cristo crucificado e o desgaste do granito acusam as centenas de anos a que este cruzeiro já sobreviveu.

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Anta-Capela de São Dinis

(Pavia, Mora)

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Outra anta-capela de que gosto particularmente, pela sua harmonia estética, é a de Pavia. A sua importância histórica levou a que fosse classificada como Monumento Nacional em 1910. Não sendo difícil de reconhecer, pode passar despercebida a quem não souber da sua existência e for desatento, meio escondida que está no recanto de um largo com árvores, bem vindas pela sombra mas que também funcionam como cortina visual.

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Apesar das intervenções feitas pela mão humana, são bem visíveis os sete grandes esteios (agora unidos por alvenaria) do monumento megalítico original, mais ainda porque a capela está virada de costas para as vias de acesso principais. A anta terá sido erguida algures pelos milénios IV ou III a.C., e por desígnios misteriosos sobreviveu até ser cristianizada, provavelmente no século XVII. A sua transformação em capela dedicada ao culto de São Dinis não envolveu nem grandes complexidades, nem grandes quantidades de cimento: um alçado saliente, com a abertura para entrada, protegida por portas de madeira e portões de ferro, e uma cruz no topo; um pequeno campanário rectangular mais elevado, que abriga o sino; e três degraus para acesso ao interior, mais elevado do que o nível da rua.

Por dentro, a capela não poderia ser mais minimalista: paredes nuas e apenas um frontal de altar revestido de azulejos azuis e brancos, decorados com volutas e querubins e com uma representação fora do comum de São Dinis ao centro, em tamanho reduzido. Sobre o altar, um pano branco bordado e uma jarra de cerâmica com flores artificiais. O despojamento interior, que o contraste com os azulejos de influência barroca acentua sobremaneira, condiz bem com o aspecto geral desta capela, onde as características primitivas não foram abafadas pelas alterações posteriores e permanecem bem marcadas.

 

 

Capela de Nossa Senhora do Monte

(Santarém)

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Na cidade a que chamam “capital do gótico” não faltam monumentos religiosos, mas esta capela é uma curiosidade. Primeiro que tudo, porque é românico-gótica, com origens no século XII, mas também tem características renascentistas, fruto de uma remodelação no século XVI. Depois, porque se encontra em meio urbano, quase “abafada” pelas construções que a rodeiam e que, embora sejam baixas, roubaram a vocação que este lugar já teve de miradouro privilegiado sobre o vale que se estende para oeste da cidade. E finalmente, porque é desde há uns anos a sede da Paróquia Ortodoxa Romena de Santarém, cujo nome é “Ascensão do Senhor”, utilização que não é habitual nos edifícios de raiz católica apostólica romana.

A capela é toda de pedra nua, com excepção de um “acrescento” lateral em alvenaria. Rectangular e com vários volumes, a sua característica mais marcante é a galilé (alpendre com colunas) que ocupa a totalidade das fachadas oeste (a principal) e sul. Assentes sobre um murete baixo, as colunas elegantes terminam em capitéis decorados, cada um de sua maneira, com elementos vegetais, volutas e cabeças de onde saem asas, representando anjos. Na fachada nascente há um nicho muito elegante, que os peritos dizem ser quinhentista, tal como os alpendres, e de recorte mudéjar. Abriga uma escultura que representa a Virgem Maria, que terá sido bem colorida em tempos mas agora apenas tem uns restos de tinta azul no manto. Alguém terá achado por bem “embelezar” o nicho com algumas flores artificiais que já viram melhores dias, entre elas uma rosa, de tamanho desproporcionado e cor já muito desbotada, colocada sobre as mãos unidas da imagem.

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A história desta capela também não é desprovida de particularidades algo fora do comum. Pertencendo originalmente à Colegiada de Santa Maria de Alcáçova, em meados do século XIII passou para a posse da Casa de São Lázaro – hospital e leprosaria criados em Santarém por D. Afonso II, que contraiu lepra e escolheu isolar-se nesta cidade, onde veio a morrer em 1223. A partir do século XVII, o Hospital de São Lázaro passou a ser administrado pela Misericórdia, o mesmo sucedendo à capela. Datam deste século os lambris de azulejos que existem no interior.

 

Apesar de encafuada entre casas e carros, que lhe retiram uma parte do protagonismo no local, a Capela de Nossa Senhora do Monte mantém uma aura de encanto e um aspecto de dignidade, de que sobrevive ali por mérito próprio, há muitos séculos, e ali continuará por muitos mais, qualquer que seja o destino dos edifícios que a cercam.

 

 

Anta-capela de São Brissos/Capela de Nossa Senhora do Livramento

(Santiago do Escoural, Montemor-o-Novo)

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O nosso Alentejo é uma região riquíssima no que toca a vestígios pré-históricos, e é na estrada que liga Santiago do Escoural a Évora que encontramos mais um monumento megalítico adaptado a local de culto católico. Isolada, com um ar meio perdido junto à entrada para um couto de caça, passa facilmente despercebida a quem não vai propositadamente à sua procura. Tem entre cinco e seis mil anos e o seu nome religioso é Capela de Nossa Senhora do Livramento, atribuído após a sua transformação e cristianização no séc. XVII. Classificada como Monumento Nacional desde 1910, da anta primitiva restam alguns esteios, um dos quais está caído ao lado da capela, e parte da laje de cobertura, que foi integrada no tecto da ermida. Está pintada de branco, com uma faixa azul na base, à maneira das casas típicas alentejanas, e só é possível visitar o interior mediante marcação antecipada.

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Até recentemente foi lugar de romaria, especialmente por alturas da Páscoa. A Senhora do Livramento está tradicionalmente associada ao parto, mas a que está nesta capela tem desempenhado também uma outra função: a de invocar as chuvas em anos de seca prolongada, atribuição que lhe advém de uma daquelas lendas em que nós, portugueses, somos pródigos, e cuja origem mística se perde nos tempos. São Brissos é um santo português que terá sido o segundo bispo de Évora e supostamente martirizado pelos romanos no séc. IV d.C. Existem no Alentejo várias povoações com o seu nome, uma delas bem perto da anta-capela, e a imagem do santo ocupa lugar de destaque na igreja da localidade. Diz então a lenda que a Senhora do Livramento e São Brissos tiveram um filho, também representado na anta-capela ao colo da sua mãe. Ora sucede que o dito santo acabou por trair a mãe do seu filho com a Senhora das Neves (talvez em dia de muito calor, quem sabe, que esta Senhora devia ser fresquinha…) e o casal ficou de candeias às avessas para todo o sempre. Quando a seca já vai longa e a chuva começa a fazer falta, os habitantes da localidade transportam a Senhora do Livramento para a igreja de São Brissos, onde a colocam de costas voltadas para o seu antigo amor. No entanto, o filho permanece na anta-capela – e então a Senhora, com saudades da criança e obrigada a estar ao pé do homem que a traiu, chora rios de lágrimas, lágrimas essas que se transformam em chuva. Uma lenda ao gosto da nossa tão portuguesa costela trágica.

A outra face de Serralves

Ana CB, 27.09.22

Oito e meia da tarde e já está escuro, embora o céu ainda tenha aquele tom anilado típico das noites quentes de Verão. Estamos a entrar no Outono mas não se nota nada, há três dias que estou no Porto e ainda não vesti um agasalho.

 

Apesar do horário pouco usual para uma visita, o portão norte de Serralves está aberto e vão entrando pessoas, aos pares ou em pequenos grupos. O ambiente é tranquilo, um segurança indica que a entrada é mais abaixo, outro pega nos bilhetes e faz-lhes um corte. Serralves está em luz e é altura de conhecer uma face diferente deste mundo, aquela que nunca vi – a sua face nocturna.

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Quando comprámos os bilhetes deram-nos um livrete que explica a exposição, o seu percurso e as várias instalações, mas ignorei-o propositadamente. Prefiro ir à aventura, desconhecendo o que me espera, para não ter ideias preconcebidas e simplesmente sentir o que vou ver e viver. Gosto das experiências cruas, de não saber o que me aguarda, ou saber só o essencial. Mesmo quando preparo as minhas viagens, nunca vou esmiuçar tudo ao pormenor. Sei que há um qualquer sítio que pode ser interessante, marco-o nos meus planos, mas resguardo-me para o factor surpresa.

 

O início do percurso é psicadélico, uma alternância rápida de cores vivas que se reflectem em paredes claras e tubos dispostos em linhas enviesadas que se cruzam. Depois seguimos por um corredor definido por muros baixos de betão, e instala-se a calma. Atrás dos muros há árvores esquálidas iluminadas por focos de cor, e atrás delas a escuridão total. Sinto-me como numa porta de entrada para outra dimensão. Mais à frente, nova mudança de ambiente, esta o negativo da anterior: as árvores são agora silhuetas negras sobre o fundo feérico de cores quentes que tinge a parede do museu, e a janela da biblioteca brilha como um farol.

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O ritmo do passeio é lento, a noite pede sossego e até as vozes baixam de tom. O ar está morno e parado e uma neblina leve desfoca ligeiramente tudo o que me rodeia. Sigo o percurso marcado, algo monótono nesta primeira parte, uma sucessão de árvores e arbustos alumiados a espaços, alternando com zonas de negrume. Há uma banda sonora de fundo, sons musicais que me parecem provir de taças tibetanas, e de vez em quando aparece uma instalação luminosa: o roseiral, declinado em roxo, vermelho e azul intermitentes; o corte de ténis, onde se alinham campânulas de vidro com feixes de luz interactivos, que se movem verticalmente quando os cruzamos – como soldados perfilando-se em sentido à passagem do seu comandante; aros fluorescentes desenhando o contorno dos troncos de gigantescos eucaliptos; linhas de luzes que unem várias árvores acima da minha cabeça, a fazerem lembrar teias de aranha (li depois que a ideia é evocarem as micorrizas, as “ligações entre redes de fungos e as raízes das árvores e plantas”, mas a minha impressão não desapareceu).

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A tranquilidade é quebrada ocasionalmente pela passagem barulhenta de um avião na sua descida para o aeroporto. O ruído e as luzes poderiam fazer parte da exibição, como elemento disruptor, mas são apenas uma coincidência que me transporta bruscamente para a realidade. Felizmente, apenas por alguns momentos. Fora isso, é a imersão total na atmosfera que me rodeia. Caminhar e sentir, caminhar devagar, parar de vez em quando para observar as instalações, tirar fotografias aos cenários criados pelo contraste entre a luz e a sua ausência, às pessoas prensadas em silhuetas bidimensionais. O parque de Serralves está transformado num mundo onírico e, tal como nos sonhos, não sei o que é que vai acontecer a seguir.

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Por entre o arvoredo surgem barras de luz que mimetizam um movimento circular, ora azuis, ora vermelhas, ora alaranjadas, às vezes transformam-se em pontos que me parecem estrelas. Só quando se iluminam todas ao mesmo tempo, brancas e muito brilhantes, é que me apercebo de que estou ao pé do lago. A composição luminosa foi colocada em torno da ilha, as árvores estão engolidas pelo escuro, e a água é uma superfície de breu que apenas reflecte as luzes da instalação, impotentes para iluminar o que as cerca. Mais ao lado, atrás das gigantes pernas de madeira do passadiço elevado, flutuam globos esféricos que mudam de cor, do branco-amarelado ao rubro, jogando às escondidas entre eles e connosco. A seguir subo até à Casa do Cinema por um caminho ladeado de bambus, cujo verde foi substituído por cores cálidas. Na fachada lateral do edifício é projectado um filme que mostra, a velocidade supersónica, silhuetas de elementos vegetais sobre rectângulos de tonalidades fortes roubadas ao arco-íris. O som que acompanha a projecção é uma espécie de martelar rítmico repetitivo e juntos, imagem e música, têm um efeito hipnotizante. Tivessem colocado um sofá naquele sítio e eu poderia ficar ali durante tempos infindos, sem dar por nada do que se passasse à minha volta.

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O percurso leva-me pelo arvoredo ao lado do parterre central. No meio dos troncos há paralelepípedos brancos, cuja iluminação realça as silhuetas dos ramos finos colocados no seu interior. E é ao descer pela alameda que conduz à fonte que tenho o primeiro vislumbre da Casa. Não a conhecesse eu já de outras visitas e teria muita dificuldade em a associar à imagem que vemos nas fotografias. A sua icónica cor rosa-salmão foi mascarada com azul-forte, as janelas e aberturas vibram em tons laranja, amarelo ou rosa – a Casa irradia felicidade, parece estar em festa, a aguardar convidados para uma soirée esfuziante de animação. O parterre é a passadeira vermelha por onde subo até ela, e a enorme escultura de metal negro de Rui Chafes (Comer o coração) que instalaram à sua frente pode bem simbolizar os seguranças que controlam a entrada no evento.

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Mas é só a minha imaginação a trabalhar. Na verdade, a esta hora a casa não está aberta ao público. Há, de facto, um segurança de carne e osso, mas a sua função é precisamente evitar qualquer equívoco, não vá alguém mais entusiasmado achar que pode entrar por ali adentro. O percurso é também muito explícito, com as setas a conduzirem os visitantes pelos caminhos que contornam o edifício. Passo por uma fonte banhada em luz verde-água, depois pelos arbustos podados que escondem no interior uma árvore e um banco de jardim, ambos envoltos na neblina audivelmente vaporizada por uma máquina e iluminada por um projector. Mais à frente, outra árvore está rodeada por uma cerca alta feita de espelhos, percorrida por luzes, que poderia facilmente passar por uma nave espacial. Lá dentro os espelhos replicam o tronco robusto até ao infinito, e as luzes multiplicam-se na sua lenta deslocação, cruzando-se ou chocando umas com as outras.

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Após a passagem por trás da Casa, o ambiente volta a transformar-se. Primeiro aparecem túlipas gigantes, rubras, espalhadas ao longo do caminho. Depois surge uma árvore-fantasma, de que só vemos o tronco parcialmente delineado por fios de luz azul. Até que desemboco no parterre lateral e sinto que entrei novamente num filme – talvez de ficção científica, ou talvez de terror. Da Casa iluminada, ao fundo, parecem emanar feixes de luz vermelha, rentes ao chão, como se ela estivesse prestes a erguer-se nos céus, viajando para outro planeta, ou então fosse habitada por um espírito demoníaco, lançando raios de fogo sobre os incautos que dela se aproximam.

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A realidade é bem mais prosaica. São apenas raios laser colocados junto ao solo, completamente inofensivos, que atravesso tal como os outros visitantes, convertida em simples silhueta negra ambulante, quiçá com movimentos de zombie. Já passaram duas horas desde que entrei em Serralves, o dia foi longo e o corpo ressente-se, os músculos e a coluna gritam por uma pausa para descanso. O percurso de três quilómetros está quase no fim. A alameda dos liquidâmbares, por onde é habitualmente feita a entrada no parque, leva-me agora até à saída. Também ela é atravessada por grupos de raios laser colocados nas árvores, ligando-as umas às outras. Os aspersores de neblina pulsam ruidosamente; fecho os olhos, e parece-me que são as próprias árvores a respirar. Abro-os e vejo a alameda embrulhada em azul; as luzes estão dirigidas para cima, para as copas ainda exuberantes com a folhagem que dentro de poucos meses terá desaparecido, e quase não vejo onde ponho os pés.

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Depois da The curious vortex de Olafur Eliasson (um dos autores do fantástico Harpa de Reiquiavique), que mal se adivinha, o piso é inundado pela cor vermelha, que cria sombras acastanhadas nos liquidâmbares; tal como vermelha é a cor da gigantesca Colher de Jardineiro (de Claes Oldenburg, falecido em Julho deste ano, e Coosje van Bruggen), uma das esculturas mais chamativas do Parque. A caminho do portão de saída, um último vislumbre da fachada do Museu, iluminado à maneira de um pôr-do-sol, e onde se recorta a escultura de Rui Chafes que dá nome à mostra dos seus trabalhos actualmente em exposição: Chegar sem partir.

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Serralves é um mundo onde coabitam algumas das minhas “coisas” preferidas: a natureza, a arte e a educação. Tive a sorte de visitar este mundo pela primeira vez quando o espaço tinha aberto ao público há poucos meses e a Casa ainda funcionava como museu. Ao longo dos anos o projecto cresceu e consolidou-se, e embora eu não seja visitante assídua, de cada vez que volto nunca fico desiludida. É sempre uma satisfação regressar a um local onde a cultura é tão bem tratada e descobrir, em cada vez, mais uma faceta deste mundo que consegue, por vezes, fazer-me viajar para outros mundos.

Arte, museus e boas surpresas

Ana CB, 18.07.22

Quando eu era miúda, de vez em quando a minha mãe gostava de pegar em mim e na minha irmã ao domingo e levar-nos a visitar um museu de Lisboa, ou um palácio ou monumento. Vivíamos nos arredores da cidade e ela nunca tirou a carta de condução, por isso a saída implicava uma viagem mais ou menos longa em transportes públicos, mas nada que a desencorajasse. O meu pai, que conduzia mas se apartava voluntariamente destas excursões – não sei se por razões de trabalho, de falta de vontade, ou porque as suas preferências se inclinavam mais para areia e mar – tinha no escritório os dois magníficos volumes de “As Maravilhas Artísticas do Mundo” do Ferreira de Castro (que nós só tínhamos o direito de abrir sob estrita supervisão parental), mas reservava as visitas a museus para quando viajávamos. Foi ele que nos levou pela primeira vez ao Louvre e ao Museu Britânico, teria eu uns 12 ou 13 anos, apesar de no ano anterior ter ignorado o MoMA em Nova Iorque. Na verdade, o interesse dos meus pais pelos museus tinha menos a ver com o gosto pela arte em geral do que com o prazer de observarem “coisas bonitas”, e a sua noção de beleza restringia-se ao que fosse classicamente identificável, melhor ainda se tivesse ouro ou prata à mistura. Estando as raízes de um e de outro em famílias humildes de origem rural, já era bastante disruptor o facto de os seus interesses incluírem a literatura e as artes plásticas, e na verdade foi suficiente para criarem nas filhas o gosto e um interesse mais alargado pelas artes.

 

Procurei replicar depois com o meu filho aquilo que os meus pais tinham feito comigo e a minha irmã, talvez ainda de forma mais exagerada e com algum sacrifício da parte dele. Nos episódios mais memoráveis está uma visita guiada ao Palácio de Mafra em que ele, com ano e meio de idade e se calhar já aborrecido de marchar (literalmente!) por tanto corredor interminável, decidiu fugir do grupo e atirou-se em corrida contra uma das estantes da famosa biblioteca; e uma incursão ao Louvre quando tinha cinco anos, no final de um dia em que já tínhamos percorrido um exagerado número de quilómetros a pé, em que aproveitou cada banco em cada sala para se sentar, sem um queixume, enquanto os seus impassíveis pais paravam a observar mais um quadro, mais uma escultura, mais um objecto. Apesar destes maus-tratos, creio que não ficou traumatizado, e ter escolhido para curso universitário precisamente uma área artística parece-me ser disso uma prova.

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Museu do Louvre, Paris

 

Da minha mãe também herdei algum jeito para o desenho, e até chegar ao ciclo preparatório dizia que queria ser pintora. Claro que para os meus pais isso não preconizava um futuro bem sucedido, e a pouco e pouco lá conseguiram orientar-me para outra área que eu também apreciava e prometia ser mais rentável O êxito dos seus esforços foi apenas parcial, e à medida que fui crescendo, cresceu também o meu apreço pelas várias formas de expressão artística, sobretudo pela pintura e o design (acabei por tirar depois um curso nesta área), com preferência especial pelas correntes modernas e contemporâneas. Os museus foram, obviamente, parte importante na descoberta do meu gosto – falo de um tempo em que a tecnologia ainda não tinha posto na ponta dos nossos dedos o acesso imediato a (quase) tudo o que se vai fazendo por esse mundo fora. Tínhamos os livros, o cinema e alguma televisão, e tudo o mais tinha de ser “ao vivo”. Sem os museus e as exposições temporárias da Gulbenkian, nos anos 80 não me teria apaixonado por Vasarely e a Op Art, por Escher e as suas construções impossíveis, pelas cores fortes das obras de Robert e Sonia Delaunay, pelo génio de Vieira da Silva, Paula Rego e tantos outros artistas portugueses, pelos objectos fabulosos de Lalique e as estampas estilizadas de Hokusai. Sem o Museu Nacional de Arte Antiga não teria conhecido, ainda bem novinha, os belíssimos biombos Namban ou a pintura onírica e angustiante de Bosch. Sem o Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo (entretanto substituído pelo Museu das Artes de Sintra) nunca teria aprendido nada sobre a arte minimalista.

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Sala Lalique, Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

 

 

O espaço e a atmosfera

Nessa altura os museus, fosse qual fosse o seu tema, ainda eram maioritariamente espaços básicos de exposição (da obra de arte) e contemplação (por parte do visitante). Entretanto evoluíram, tal como as manifestações artísticas, e agora temos não só museus com exposições interactivas, muito orientados para atrair ou entreter camadas mais jovens da população, como também museus com espaços mais variados na sua concepção de base, mutáveis e criados para se adaptarem e realçarem as obras expostas, imaginados para enriquecerem a experiência do visitante e combaterem o cansaço que por vezes se instala quando os percorremos. Ainda me recordo da minha visita, há bastantes anos, ao Kunsthistorisches Museum de Viena, onde vi obras icónicas de Bruegel e Arcimboldo, só para citar dois dos grandes pintores representados nas colecções do museu – e que também incluem obras de ourivesaria, relojoaria, escultura e uma variedade enorme de outras peças. A meio da exposição, eu o meu filho, na altura adolescente, já tínhamos uma overdose de arte e de tédio, e estávamos ansiosos por chegar ao fim: as obras sucediam-se monotonamente umas às outras num ambiente meio soturno, expostas e iluminadas sempre da mesma maneira. Em franco contraste, no quarteirão ao lado, os vários museus que integram o Museumsquartier, dedicados à arte moderna e contemporânea, já eram na altura espaços bem mais interessantes e motivadores (apesar de eu nem sequer apreciar muitas das peças), menos pela diversidade do que expunham do que pela forma como as obras estavam organizadas.

 

Outro que me aborreceu solenemente foi o Museu Egípcio do Cairo. Abriga um espólio de tamanho descomunal e valor incalculável, mas mostrado ao público sem qualquer imaginação. Senti-me como se estivesse a visitar um armazém, às tantas já não podia ver à minha frente múmias, sarcófagos, estatuetas, amuletos e tudo o mais que é exibido – em lotes, em prateleiras, e em quantidade. Nem a sala da Colecção Tutankhamon escapa à monotonia, embora a observação das peças expostas seja obviamente bem mais excitante e o ponto alto da visita. Felizmente, prevê-se para Novembro deste ano, quando se celebra o centenário da descoberta do túmulo de Tutankhamon, a abertura (sucessivamente adiada) do GEM, o Grande Museu Egípcio em Gizé, que irá mostrar de forma condigna – a acreditar na divulgação mediática – parte das colecções do Museu Egípcio de Tahrir e do Museu Nacional da Civilização Egípcia. A visitar num futuro próximo.

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Museu Egípcio, Cairo

 

No capítulo atmosfera, um dos meus museus preferidos é o Victoria & Albert, em Londres. É provavelmente o maior museu do mundo de artes decorativas e design, com uma colecção permanente com mais de 4,5 milhões de peças que abrangem 5000 anos de história e versam temas tão variados como moda e têxteis, fotografia, teatro, pintura, arquitectura, joalharia, cerâmica, mobiliário, vidraria. Há objectos da Europa medieval, renascentista e barroca, do Médio Oriente islâmico, da Ásia do Sul, do Japão, e ainda a colecção Gilbert, com cerca de 1200 belíssimos objectos feitos à mão, na sua maioria miniaturas em metais preciosos, esmalte ou mosaico. As exposições distribuem-se por cinco pisos, com as colecções divididas por salas temáticas, e o museu consegue a proeza de não ser minimamente enjoativo para quem o visita. Tem além disso a vantagem de ser gratuito (apenas as exposições temporárias são pagas), tal como sucede com vários outros museus londrinos. Mais ainda, tem um café que abre para o jardim interior, e que também abre o apetite só de olhar para a comida exposta, e uma loja com artigos tão atractivos que apetece comprar tudo.

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V&A Museum, Londres

 

Foi a visitar vários dos excelentes museus de Londres que comecei a reparar tanto na diversidade de pessoas que povoam estes espaços, como na forma como elas observam as peças expostas, como se movem, como interagem com o museu – e como elas também contribuem para a atmosfera mais ou menos acolhedora do lugar. Gosto (e aproveito para fotografar) sobretudo quando há um ambiente descontraído, com pessoas que conversam umas com as outras, crianças que se sentam no chão, entretidas com uma qualquer actividade, casais que descansam relaxadamente num banco ou sofá – como se o museu fosse a casa de um amigo que visitam com frequência. Quando as pessoas se mantêm em silêncio ou falam em sussurros, como se estivessem numa igreja, e vão progredindo monotonamente umas atrás das outras, a fazerem lembrar objectos no tapete transportador de uma qualquer unidade industrial, o ambiente é bem mais aborrecido e desmotivante, mesmo que a exposição seja de grande interesse.

 

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Tate Modern, Londres

 

Outro museu de Londres que aprecio particularmente é o Tate Britain, que expõe colecções de arte britânica datadas do séc. XVI até à actualidade. Embora com grande incidência na pintura, os trabalhos que exibe abrangem todo o espectro das artes visuais. Tanto podemos encontrar aviões de combate transformados em obra de arte por Fiona Banner, como uma exposição temporária de esculturas de Henry Moore. Um dos mais importantes espólios à guarda da Tate é constituído pelo legado de J.M.W.Turner, considerado o maior pintor inglês, o qual engloba 300 pinturas a óleo e vários milhares de esboços e aguarelas, incluindo todos os trabalhos que se encontravam no estúdio do pintor aquando da sua morte em 1851. As obras de Turner são mostradas ao público num espaço especial, a Clore Gallery, em exposições que vão mudando pontualmente – e num ambiente que me faz ter vontade de ficar tempos infindos a olhar para cada quadro.

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Tate Britain, Londres

 

De vez em quando, sou surpreendida por exposições que me deixam maravilhada – e feliz! Aconteceu-me, só para dar um exemplo, quando há uns meses visitei o Fotografizka de Estocolmo. Creio que foi o bilhete de museu mais caro que paguei até hoje, mas valeu cada cêntimo. À entrada, um caminho de patas de cão estilizadas guiava-nos para o Pet Show: várias salas com fantásticas fotografias de animais de companhia, intercaladas com filmes e algumas esculturas, uma mostra de trabalhos de 25 artistas firmemente destinada a despertar emoções, desde a ternura ao riso e à angústia.

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Fotografizka, Estocolmo

 

No piso superior, a imersão num mundo ao mesmo tempo tenebroso e colorido: “Between These Folded Walls, Utopia” são obras concebidas pela dupla (Sarah) Cooper & (Nina) Gorfer, que associam fotografia e colagem em retratos híbridos de jovens mulheres que se viram forçadas a migrar. A ideia por trás deste projecto é chamar a atenção para as tragédias humanitárias e para a perda de identidade e reinvenção de quem é obrigado a afastar-se das suas raízes; ou, como afirmado no texto de apresentação, “a perda da utopia e a nossa capacidade de voltar a sonhar”. Num ambiente de quase câmara escura, os quadros fundiam-se por vezes com a própria parede em que estavam expostos, criando um impacto bem maior do que se estivessem simplesmente pendurados numa parede de cor neutra e completamente iluminada – prova cabal de que para lá da qualidade da obra que se expõe, a forma como ela é exibida faz toda a diferença.

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Fotografizka, Estocolmo

 

É também em Estocolmo que fica o Museu do Vasa, um dos museus mais originais e espectaculares que já encontrei nas minhas viagens, totalmente concebido em torno de um único motivo (e que não tem nada a ver com artes plásticas). O Vasa, navio de guerra do século XVII considerado o supra-sumo da tecnologia naval da época, naufragou na baía de Estocolmo durante a sua viagem inaugural em Agosto de 1628. Resgatado do leito marinho, quase intacto, nos anos 60 do século passado, à volta deste “artefacto” de inegável valor histórico e artístico foi construído um grande museu, onde ficamos a conhecer em pormenor toda a arquitectura e história não só do navio, como da época em que ele foi concebido, das pessoas que nele pereceram, e da forma como foi recuperado. A “estrela” da exposição é obviamente o próprio Vasa. Ver de perto uma nau verdadeira, não uma reconstrução ou embarcação imaginada, é no mínimo excitante. Pensar que esteve durante três séculos debaixo do mar e foi possível recuperá-la, preservando-a e colocando-a em exposição, é perceber o valor do trabalho dos milhares de pessoas (investigadores e não só) que têm contribuído para que a memória do mundo não desapareça. E ainda por cima é um regalo para os olhos, tanto pela riqueza artística das suas ornamentações como pela forma como está exposta e iluminada. O Museu do Vasa é, em todos os sentidos, um tributo ao engenho humano.

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Museu do Vasa, Estocolmo

 

 

Casas que são museus

Lugares de excepção são também as casas que já foram morada de artistas, ou que têm características tão especiais que foram convertidas em museus. Uma das minhas preferidas, neste caso por ser um exemplo primoroso da arquitectura do ferro portuguesa, é a Casa-Estúdio Carlos Relvas, que fica na Golegã. Figura proeminente da alta sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX, proprietário de explorações agrícolas, inventor e fotógrafo de excepção, Carlos Relvas concebeu e mandou construir em 1872 uma lindíssima casa destinada a servir como estúdio fotográfico. Edifício original e ecléctico inserido num jardim romântico, é actualmente um museu dedicado à fotografia, e é para mim um dos edifícios mais bonitos de Portugal.

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Casa-Estúdio Carlos Relvas, Golegã

 

Em terras dos nossos vizinhos, o Museu de Arte Nova e Art Deco em Salamanca está alojado na Casa Lis, um palacete modernista construído em 1905-1906 em estilo Arte Nova mas seguindo os preceitos da arquitectura industrial. Foi mandada construir por Miguel de Lis, um empresário industrial da cidade, que encomendou o projecto ao arquitecto Joaquín de Vargas (que também concebeu o belíssimo edifício do Mercado Central de Salamanca). Uma das suas particularidades é ter duas fachadas bem distintas: a da entrada em pedra e ladrilho, e a maior, virada a sul e sobre um declive, em ferro e vidro. Outra é ter as suas salas dispostas em torno de um pátio interior, com uma abóboda de vitrais coloridos que, tal como os que decoram a fachada sul, são trabalhos de uma delicadeza e originalidade excepcionais e transmitem uma atmosfera quase diáfana às salas agora ocupadas pelas exposições. Na parte de trás do piso da entrada existe uma cafetaria absolutamente encantadora, decorada no estilo da casa e com vistas para o exterior através dos vitrais. Sou grande apreciadora dos estilos Arte Nova e Art Deco, mas confesso que nunca tinha ouvido falar deste museu até começar a preparar a minha viagem a Salamanca – e que lamentável teria sido passar ao lado desta preciosidade! As colecções do museu incluem um número impressionante de peças de artes decorativas criadas entre fins do século XIX e até ao final do período entre as duas Grandes Guerras. Há vidros, estatuetas, bronzes e esmaltes, jóias, leques e têxteis, mobiliário, e uma das mais importantes colecções de bonecas de porcelana em todo o mundo. A casa e o seu museu complementam-se na perfeição.

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Museu de Arte Nova e Art Deco, Salamanca

 

Nascido em Viena em 1928, o artista visual e arquitecto Friedrich Stowasser ficou conhecido para a posteridade pelo nome de Hundertwasser e pelas suas opiniões vincadas sobre a protecção ambiental e o repúdio pelas “linhas direitas” – princípios que estão bem visíveis no mural de azulejos “Submersão de Atlântida” que criou, por alturas da Expo 98, para a estação de metro Oriente em Lisboa. Tal como as suas obras, a casa onde viveu na sua cidade-natal é um edifício colorido e assimétrico tanto exterior como interiormente, onde até o piso foi concebido com ondulações (segundo ele, “um piso irregular é uma melodia para os pés”). É aqui que está actualmente instalado o Kunsthaus Wien, museu que expõe pinturas, trabalhos gráficos e arquitectónicos do artista. Visitá-lo foi imergir num mundo diferente, e saí de lá com toda uma outra visão sobre o que pode ser a arquitectura.

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Kunsthaus Wien, Viena

 

Irregulares e fora do comum são também as Casas Colgadas, na cidade espanhola de Cuenca. Em periclitante equilíbrio sobre o abismo cavado pelo percurso do rio Huécar, este pequeno conjunto de edifícios medievais de finais do século XV é uma visão simultaneamente excêntrica e encantadora. Nelas está instalado o Museu de Arte Abstracta Espanhola, que exibe em permanência uma colecção absolutamente notável de pintura e escultura de artistas espanhóis de meados do séc. XX. Distribuídas pelos vários pisos destas casas, em que o exterior e o interior estão em forte contraste, as salas de exposição são pequenas e acolhedoras, cada uma exibindo poucas obras, e o resultado é ao mesmo tempo intimista e dinâmico – e uma agradável surpresa para quem, como eu, gosta de arte contemporânea.

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Casas Colgadas, Cuenca

 

Tal como o seu excêntrico dono, a casa onde Salvador Dalí viveu entre 1930 e 1982 é tudo menos banal. Fascinado pela paisagem de Cadaquès, uma localidade junto ao Cabo Creus, no extremo nordeste da Catalunha, Dalí escolheu uma pequena casa de pescadores situada na Cala de Portlligat para aí instalar o seu refúgio – que habitou com Gala, a sua muito amada mulher, até à morte desta. Ao longo de quarenta anos acrescentou e transformou a pequena casa branca à sua imagem, decorando-a por dentro e por fora com cores e objectos dos mais díspares, a maior parte deles criados por si. Ali fez o seu atelier e ali recebeu os seus convidados e amigos – no entanto, apenas os acolhia nas dependências exteriores da sua casa, à volta da piscina, pois tanto ele como Gala eram extremamente ciosos da sua privacidade. Hoje a casa está transformada num museu, com visitas guiadas e rigorosamente cronometradas, onde quase tudo está preservado tal como em vida do pintor. É uma casa labiríntica, quase orgânica. Os vários espaços interligam-se uns com os outros, cada um tendo uma função bem definida. Nas palavras de Dalí, era “como uma verdadeira estrutura biológica, (...). A cada novo impulso da nossa vida correspondia uma nova célula, uma divisão”. Uma casa a roçar o surreal, tal como o seu criador.

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Casa Salvador Dalí, Portlligat, Cadaquès

 

Mais conhecida pelo seu espaço exterior – os incontornáveis Jardins Majorelle – a icónica casa azul e amarela que Yves Saint-Laurent comprou em 1980 em Marraquexe também inclui um museu. Complemento perfeito aos jardins, que são um autêntico oásis no calor marroquino, com vários ambientes exóticos onde a água e a cor são elementos importantes, o Museu Pierre Bergé das Artes Berberes expõe centenas de objectos, coleccionados ao longo dos anos por Pierre Bergé (mentor, sócio, companheiro e eterno amigo de Saint-Laurent) e pelo próprio costureiro. Articulado tematicamente em espaços distintos, o museu é ao mesmo tempo um testemunho e um tributo à riqueza e diversidade da cultura dos “homens livres” do Norte de África.

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Casa Majorelle, Marraquexe

 

 

Para lá dos museus

Por feliz coincidência, visitei Veneza durante a Biennale. Este evento de divulgação artística realiza-se desde 1895 e continua a ser um dos mais importantes do género – mesmo hoje em dia, quando são organizadas anualmente mais de 300 feiras e bienais de arte em todo o mundo (até finais do século passado eram apenas 50…). A cidade, já por si só senhora de um charme muito especial, deitava arte por todos os poros, com inúmeras manifestações e exposições à margem do grande acontecimento. As surpresas surgiam ao virar de cada esquina, num passeio pelos canais, numa montra, num jardim, na varanda de um hotel, em palácios e igrejas. Fiquei encantada com esta facilidade de convivência, com a enorme quantidade de exposições de livre acesso para o público, e com a descoberta de obras inesperadas até em situações triviais. E foi precisamente num local insuspeito, uma espécie de armazém na margem do Dorsoduro, longe dos Giardini da Biennale e das confusões, que tropecei por acaso numa das exposições mais interessantes que já vi até hoje, concebida à volta de um objecto que faz parte da vida diária de milhões de pessoas: a chávena de café. Criada pelo director cénico americano Robert Wilson para a conhecida marca de café Illy, e com o sugestivo título “The dish ran away with the spoon - everything you can think of is true”, esta exposição sensorial celebrava o 25º aniversário da Colecção de Arte Illy, que na altura já contava com 400 chávenas de café (e seus inseparáveis pires) com o formato icónico lançado pela marca, decoradas por 111 artistas de renome. Ao longo de sete salas sucediam-se ambientes surrealistas diferentes, parcialmente inspirados na Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, cada um mais delirante do que o anterior e com grande impacto visual e sonoro. Uma exposição inesquecível.

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Exposição Illy, Veneza

 

De facto, se há país onde se respire arte, esse país é a Itália. No Palazzo Vecchio de Florença, depois de admirar o magnífico e recém-renovado Pátio de Michelozzo, dei por mim numa enorme sala povoada por figuras híbridas e desproporcionadas, estilizadas, estranhas, homens que são animais, animais com rodas… São assim as esculturas de Paolo Staccioli, ceramista toscano que expandiu entretanto os seus dotes para o bronze. Na Sala de Armas do Palácio, dividida em seis espaços definidos por pilares e abóbadas cruzadas, as esculturas estavam expostas como instalações individuais, mas visualmente unidas pela sua morfologia similar. Muito a propósito, a esta exposição foi dado o título “Nel Ventre Antico del Palazzo. Esercizi di guerra e giochi di bimbi”.

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Palazzo Vecchio, Florença

 

Em Madrid, o magnífico Palácio de Cristal, no Parque do Retiro, é lugar habitual de exposições temporárias, e ficou-me particularmente na memória a instalação criada de propósito para aquele espaço pela artista coreana Kimsooja e baptizada como “Respirar - una mujer espejo”: um espelho contínuo colocado no solo, que reflectia não só os visitantes (que tinham de entrar descalços) como também as cores do arco-íris criadas pela película de difracção translúcida que recobria a estrutura envidraçada do palácio. Como “música” de fundo, os sons da respiração da própria artista.

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Palácio de Cristal, Madrid

 

E na localidade de Alarcón, pequena vila na província espanhola de Castilla-La Mancha, existe uma igreja do século XVI que foi esvaziada e dessacralizada, e é hoje a “casa” de um projecto incomum executado pelo pintor Jesús Mateo. Apadrinhados pela UNESCO, que os classificou como obra de interesse artístico mundial, os murais criados por Mateo evocam, pelas formas e pelas cores, a pintura primitiva, ao mesmo tempo naïf e surreal. É uma obra esmagadora pela dimensão, surpreendente pelo contraste entre o vanguardismo da temática dos murais e o cariz religioso da arquitectura do edifício, simultaneamente envolvente e remetendo para espaços sem fim. Um lugar com alma própria, que se pode amar ou detestar, mas ao qual de certeza ninguém fica indiferente.

Afinal, não é este o cerne de qualquer obra de arte?

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Antiga igreja de São João Baptista, Alarcón

 

Judiarias

Ana CB, 04.05.22

 

Sou mais de pensar no futuro do que no passado, mas nas minhas viagens gosto de visitar bairros antigos. Presto atenção particular à arquitectura, sobretudo quando não está “maquilhada” pelas falsas reconstituições que tantas vezes alteram o carácter original dos lugares (assunto com pano para mangas, que poderá ser motivo para outro artigo). Estes bairros são muitas vezes a linha que me conduz a conhecer um pouco da história de cada lugar, frequentemente a posteriori, e também frequentemente para tentar separar o trigo do joio, ou seja, o que é facto histórico verificado daquilo que é efabulação ou exagero para chamariz turístico. Nos últimos anos, o acaso tem levado os meus passos até algumas antigas judiarias em cidades e vilas europeias, e tenho vindo a interessar-me progressivamente por estes bairros, que de uma forma geral mantêm algumas das suas características originais e terão sido menos adulterados pelos modismos da passagem dos séculos.

 

HERVÁS

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Diz a publicidade turística que o seu bairro judeu é um dos mais interessantes e melhor conservados em Espanha. Para mim, foi um dos que mais gostei de visitar até hoje. Hervás fica a pouco mais de 100 km da nossa fronteira, entre Plasencia e Salamanca, entre florestas de castanheiros e carvalhos na região do vale do rio Ambroz. A vila tem as suas raízes em finais do século XII, quando as terras foram doadas por Afonso VIII a monges templários, que ali erigiram uma ermida e apoiaram o povoamento local, submetido à autoridade do Duque de Béjar.

 

Em 1391, estalou em Sevilha uma revolta contra a população judaica, que se alastrou depois a várias cidades dos reinos de Castela, Aragão e Navarra. A Europa sofria os efeitos devastadores da peste de 1348, e no imaginário colectivo havia que atribuir a tragédia a alguém. Ferrán Martínez, arcediago de Écija, foi o grande instigador da revolta, no culminar de vários anos de pregação antijudaica, e os seus seguidores ficaram conhecidos como “matadores de judeus”. Para escaparem aos assassinatos em massa, muitos judeus foram obrigados a assumir a fé católica, e outros fugiram para localidades mais pequenas, onde a convivência religiosa era pacífica e os senhores feudais asseguravam alguma protecção aos habitantes das suas terras. As primeiras referências documentadas sobre a presença de judeus em Hervás datam de 1464, mas é provável que algumas famílias já se tivessem instalado na localidade em datas anteriores.

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Em 1492, quando finalmente unificaram o Reino de Espanha, os Reis Católicos decretaram a expulsão de todos os judeus. Das 45 famílias judaicas que viviam em Hervás, apenas 14 decidiram ficar na localidade, convertendo-se ao cristianismo; as restantes foram conduzidas à fronteira com Portugal, onde se refugiaram. No entanto, vários desses exilados regressaram a Hervás dois anos mais tarde, beneficiando de um édito régio que conferia uma carta de segurança aos conversos castelhanos que quisessem retornar ao reino, garantindo-lhes também formas de recuperarem os seus bens. Uma das pessoas regressadas foi o rabino Samuel, que ingressou na confraria de São Gervásio e pôde assim continuar dissimuladamente a apoiar a prática judaísta e a coesão desta comunidade em Hervás. Apesar de tudo, a aceitação de cristãos-novos na vida da localidade permaneceu difícil e demorada, com estatutos discriminatórios e perseguições que levaram alguns deles à fogueira até que, em 1661, a duquesa D. Teresa Sarmiento de la Cerda aboliu as discriminações impostas e a integração das famílias de cristãos-novos pôde finalmente prosseguir sem grandes entraves.

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O bairro judeu de Hervás começa junto ao rio Ambroz, na ponte medieval da Fonte Chiquita, que é o monumento mais antigo da vila. Vai depois subindo suavemente por ruas estreitas e sinuosas (a Callejilla tem apenas 55 cm de largura!), cheias de recantos e becos, até ao local simplesmente conhecido como La Plaza, uma confluência de ruas marcada por uma oliveira e uns bancos de jardim. As placas toponímicas com uma estrela de David ajudam a identificar as ruas do bairro, que foi declarado conjunto histórico-artístico em 1969 e alvo de uma reabilitação profunda nos anos 90, na qual os próprios habitantes também se empenharam. A arquitectura das casas é tradicional, com paredes de pedra e adobe ou taipa, e tabique em madeira de castanheiro – construções irregulares que ignoram a simetria, com dois ou três pisos, o último sendo muitas vezes saliente ou até mesmo unido à casa do lado oposto da rua. As paredes estão ocasionalmente cobertas por telhas árabes invertidas, colocadas na vertical, ou por pranchas de madeira em sobreposição – soluções de isolamento térmico pensadas para aligeirar os rigores do calor estival e os ventos frios que sopram do Pico Pinajarro. Cabos eléctricos e tubos metálicos convivem com varandins de ferro forjado e vasos de flores, e as portas e janelas ainda não sucumbiram à tentação do alumínio.

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Para capitalizar o potencial turístico da judiaria de Hervás, desde 1997 que se realiza em inícios de Julho a festa “Los Conversos”. Há exposições, música, degustações e uma recriação histórica teatralizada da vida na localidade em tempos medievais e de eventos marcantes na história da sua comunidade.

 

 

BOLONHA

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A história da comunidade judaica em Bolonha remonta à segunda metade do século XIV, quando cerca de quinze famílias se instalaram na cidade. Apesar de verem as suas actividades continuamente controladas e das limitações que lhes foram sendo impostas ao longo dos anos, e envolvida sobretudo no comércio da seda e da joalharia, nos empréstimos bancários e na medicina, esta comunidade prosperou de tal forma que em meados do século XVI as sinagogas já eram em número de onze – mais do que as existentes em Roma – e Bolonha tinha uma prestigiada academia rabínica. Famosas eram também as oficinas gráficas da cidade, onde em 1482 foi impressa a primeira versão física do Pentateuco com comentários do Rabi Shlomo Yitzhaki, mais conhecido como Rashi.

 

Em 1555, um decreto do Papa Paulo IV ordenou que os judeus fossem separados do resto da população, e em Bolonha ficaram confinados a um bairro definido por muros e por portões que eram abertos quando o sol nascia (para que os seus habitantes pudessem ir trabalhar noutros locais, pois a segregação religiosa tinha o cuidado de não abranger as suas actividades, muito importantes para a cidade), fechados ao anoitecer, e constantemente vigiados. Além disso, eram obrigados a usar uma marca distintiva, para serem facilmente identificados, e apenas foi permitido que uma sinagoga continuasse em funcionamento. Uma das entradas deste gueto ficava na Via de’ Giudei, uma rua estreitinha e sombria que principia na Piazza di Porta Ravegnana, onde se erguem as famosas Duas Torres de Bolonha (durante o período fascista e anti-semita em Itália, a Via de’ Giudei passou a chamar-se precisamente Via delle Due Torri); outra encontrava-se no cruzamento da Via del Carro com a Via Zamboni; e uma terceira entrada fazia-se pelo arco que liga a Via Guglielmo Oberdan ao Vicolo Mandria.

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A criação do gueto judaico de Bolonha suscitou óbvia agitação e alguma resistência, e apesar de ter sido escolhida a zona da cidade onde a maioria das famílias já vivia, muitas outras foram forçadas a vender as suas casas e mudar-se. Por outro lado, cristãos que viviam dentro do perímetro definido para o gueto tiveram de sair dos seus domínios e arrendá-las aos novos habitantes (os judeus passaram a não estar autorizados a possuírem propriedades). Tendo uma área disponível tão pequena, a comunidade aproveitou todo o espaço o melhor que podia, construindo em altura e até mesmo por cima das ruas, num puzzle tridimensional de que hoje ainda restam muitos vestígios. A espinha dorsal do bairro é a Via dell’Inferno, onde até 1943 existiu uma sinagoga (no actual número 16), que foi destruída pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. O nome da rua não se devia a nenhum motivo religioso: resultou de uma mera associação do fogo às chamas do inferno, pois antes da criação do gueto existiam na rua várias oficinas de ferreiro.

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Uma nova bula pontificial expulsou em 1569 os judeus que viviam em quase todos os territórios directamente governados pela Igreja Católica Romana. Readmitidos por Bolonha em 1586, voltaram a ser banidos sete anos depois, desta vez por mais de dois séculos, até à chegada dos franceses de Bonaparte em 1796, que libertou a cidade da influência papal.

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O traçado do gueto judeu de Bolonha permanece bem identificável na actualidade, definido por um labirinto de becos e ruelas que se entrelaçam, arcadas e passagens suspensas, casas muito próximas umas das outras, com janelas pequenas e várias portas (algumas delas falsas, estando as entradas verdadeiras mais dissimuladas), varandas que se misturam com semi-arcadas, e onde a pedra e os grafitis alternam com as cores soalheiras das casas renovadas, que têm portadas garridas nas janelas e plantas que se derramam pelas paredes abaixo.

 

 

BUDAPESTE

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A presença judaica na área de Budapeste data do período romano, e há documentos que atestam a sua importância e prosperidade tanto na Idade Média como durante o tempo em que a região pertenceu ao Império Otomano. No entanto, quando em 1686 uma coligação de exércitos cristãos reconquistou Buda, a sinagoga foi incendiada e todas as pessoas que nela se encontravam presentes pereceram. A comunidade judaica que vivia a oeste do Danúbio foi praticamente dizimada.

 

No século XVIII, começou a nascer em Pest um novo bairro judeu, que corresponde actualmente à metade interior do Erzsébetváros (o Distrito VII), dentro do perímetro definido pela rua Király, avenida Erzsébet, rua Dohány e avenida Károly. Em 1867, os judeus húngaros passaram a ter direitos civis idênticos aos da restante população, e a comunidade floresceu. Budapeste estava em rápido crescimento urbano e económico, atraindo cada vez mais habitantes, que em 1910 já ultrapassavam o milhão – e quase um quarto das pessoas professavam a fé judaica. O bairro judeu era uma área comercial e residencial vibrante, e constituía o núcleo cultural e religioso da comunidade, contando com três sinagogas.

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Depois da Primeira Guerra, o Império Austro-Húngaro desintegrou-se e a Hungria perdeu dois terços do território que detinha antes do conflito e mais de metade da sua população. A instabilidade económica crescente levou ao descontentamento social e a uma cada vez maior animosidade contra os judeus, que se transformaram em alvo preferido dos líderes húngaros, em especial depois da subida ao poder de Miklós Horthy, que instaurou um regime de extrema-direita influenciado pelas políticas anti-semitas da Alemanha nazi. Após a ocupação alemã em Março de 1944, as autoridades húngaras ordenaram que o bairro judeu fosse transformado em gueto e completamente separado do exterior. Em apenas 56 dias, muitos milhares de judeus foram deportados para os campos da morte na Polónia, e o partido ultranacionalista NYKP, que esteve no poder entre 15 de Outubro de 1944 e 28 de Março de 1945, matou mais de dez mil. Dos que restaram, a maioria morreu de fome, doença ou hipotermia nas ruas do gueto.

 

A chegada do exército soviético em Janeiro de 1945 libertou o gueto e os seus poucos sobreviventes, mas durante a era comunista a população do bairro foi diminuindo, atraída pela modernidade dos distritos mais periféricos de Budapeste. O declínio e as adulterações imobiliárias foram alterando o carácter original da judiaria, e a gentrificação ocorrida nos últimos vinte anos deu-lhe um rumo diferente. Permanecem as três sinagogas, das quais a da rua Dohány é a mais frequentada e também a mais famosa, por ser a maior da Europa. E é de facto um edifício belíssimo e impressionante, construído em meados do século XIX em estilo neo-românico combinado com elementos mouriscos e bizantinos. Permanece também o traçado meio irregular das ruas densamente construídas, onde ainda predominam os edifícios de arquitectura historicista, as suas fachadas debruadas ou forradas a pedra, com grandes janelas e elementos ornamentais ilustrativos de todos os “neos” – neoclássicos, neogóticos, neobarrocos.

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As cicatrizes dos acontecimentos da Segunda Grande Guerra ainda são visíveis actualmente, como também o são os danos provocados pelas décadas de abandono a que o bairro foi votado. E no entanto, qual fénix renascida das cinzas, é precisamente devido à sua degradação que este antigo bairro judeu é agora um dos locais mais trendy da Europa, elevando o Erzsébetváros à categoria de distrito mais populoso de Budapeste. As rendas baixas de edifícios dilapidados em ruas negligenciadas começaram a atrair, nos primeiros anos deste século, uma população jovem e empreendedora, pese embora com poucos meios financeiros para investir. O primeiro caso de sucesso foi o Szimpla Kert, ícone dos chamados “ruin bars” que são agora uma espécie de imagem de marca da cidade. O que começou por ser uma tentativa de salvar da demolição um complexo que em tempos abrigou habitações e uma fábrica, tornou-se primeiro no local mais cool de Budapeste, frequentado pela juventude liberal e vanguardista, e depois numa atracção turística que é obrigatório visitar. O espaço degradado foi sendo progressivamente preenchido com toda a espécie de móveis velhos, objectos mais ou menos estranhos, bugigangas, plantas, luzes e tudo o que se possa imaginar, funcionando simultaneamente como café e bar, local de espectáculos, festas e eventos, mercado de produtos agrícolas ao domingo de manhã, e loja de artigos kitsch. Cada sala é um mundo diferente, há escadas e recantos, grafitis nas paredes, cores vibrantes, banheiras que são assentos, bicicletas penduradas no tecto, manequins, e até um carro. Uma miscelânea caótica que atordoa os sentidos à noite, quando o barulho das pessoas e da música alta nem nos deixa pensar, mas é surpreendentemente convidativa durante o dia, quando o lugar está tranquilo e quase vazio. Duas faces de uma mesma moeda.

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Atrás do sucesso do Szimpla Kert vieram lojas, ateliers, restaurantes com comida de todo o mundo, mais bares, e muita arte de rua. Na nova vida deste bairro convivem o antigo e o novo, judeus e gentios, habitantes e turistas, a tradição e o vanguardismo. Claro que nem tudo são vantagens, e como em tantos centros históricos de outras cidades, a popularidade e o turismo estão a fazer subir os preços das habitações, e a afastar os residentes para outros distritos mais baratos e mais tranquilos. É mais uma fase na história do bairro judeu de Budapeste.

 

 

CASTELO DE VIDE

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Embora não haja certezas quanto às origens do bairro judeu de Castelo de Vide, há indícios de que as primeiras famílias judias se tenham instalado na localidade em princípios do século XIV. Apesar da segregação existente, que tinha como vantagem fortalecer laços dentro da própria comunidade e manter inalterados os seus hábitos religiosos e culturais, a convivência entre cristãos e judeus era pacífica e mutuamente benéfica. Por tradição, além da sua vocação mercantil, a comunidade judaica apostava no estudo e no desenvolvimento intelectual, razão pela qual muitos dos seus elementos desempenhavam funções socialmente importantes, fosse como físicos, botânicos, professores, prestamistas ou homens de leis. Foi aqui que nasceu Garcia da Orta, filho de judeus conversos, que mais tarde estudou medicina na Universidade de Salamanca e exerceu esta profissão em Goa a partir de 1534.

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O número de famílias judaicas em Castelo de Vide cresceu sobretudo após 1492, ano em que os Reis Católicos de Espanha ordenaram a expulsão de todos os judeus que viviam nos seus territórios, muitos dos quais se refugiaram em Portugal, onde ainda podiam professar a sua religião sem incómodos de maior. Crê-se que mais de cinco mil judeus vindos de Espanha tenham passado por ali, e bastantes terão ficado. No entanto, o Portugal como refúgio tranquilo foi sol de pouca dura. A negociação do casamento de D. Manuel I com Isabel de Aragão, filha dos Reis Católicos, levou a que o nosso rei fosse pressionado a, também ele, expulsar do reino quem não se convertesse ao catolicismo, o que acabou por suceder em 1496. Quarenta anos mais tarde foi criado em Portugal o Tribunal da Inquisição, marco negro na história da convivência religiosa no nosso país, onde se iniciou um terrível período de perseguição aos cristãos-novos que só terminaria em 1767 com a reforma pombalina e com o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

 

Apesar das conversões forçadas, a prática do judaísmo nunca desapareceu completamente em Portugal, e Castelo de Vide testemunha bem esse facto. Nas ruas do antigo bairro judeu, entretanto sujeito a modificações e recuperações, ainda se notam elementos característicos do tipo de ocupação que tiveram, e que continuaram preservados ao longo dos séculos. A judiaria desenvolveu-se na encosta nascente da vila, a partir das muralhas do castelo. O largo onde fica a Fonte da Vila é o centro radial deste bairro – e a fonte é, além disso, o ex-libris de Castelo de Vide. Aproveitando as águas de uma nascente, a fonte terá sido ampliada ao longo dos tempos, datando do século XVI o essencial da forma que lhe conhecemos hoje: rectangular, ornamentada e com uma cobertura piramidal suportada por colunas de mármore. Deste largo saem as ruas da Fonte, do Arçário, do Mestre Jorge e a rua Nova, que ligam a várias outras num padrão sinuoso e irregular. Nas ruas empedradas que levam ao Castelo, as casas têm habitualmente duas portas no piso térreo: uma daria acesso às escadas que levavam ao piso superior, de habitação, e a outra seria a da loja onde era desenvolvida a actividade comercial da família. Muitas destas casas ainda conservam os pórticos ogivais de granito, alguns com gravações nas impostas que suportam o arco, que podem ser símbolos profissionais ou pequenos entalhes com cerca de 10 cm, característicos do culto judaico, que têm o nome de “mezuzot”.

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Na esquina da Rua da Fonte com a Rua da Judiaria encontramos o edifício da antiga Sinagoga, que agora é um museu. As sondagens arqueológicas efectuadas durante as obras de recuperação revelaram que o edifício teve períodos de ocupação distintos desde pelo menos o século XIV, com uma primeira fase até ao século XVI e uma outra mais tardia. Crê-se que no piso superior se encontraria o Tabernáculo e um espaço dedicado ao ensino. Escavados na base do piso inferior descobriram-se três silos, que também apresentam indícios de terem sido usados em épocas diferentes. Terá passado a servir de residência particular no século XVIII, e foi reconstruída em 1972 de acordo com a sua traça original.

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Deste passado, mantém-se na memória colectiva a importância da celebração da Páscoa em Castelo de Vide. Da prática do judaísmo nesta vila foi herdada a bênção dos borregos, cujo abate posterior tem semelhanças com o ritual judaico tradicional.

 

***

 

Estes são apenas quatro exemplos de bairros judeus, entre os muitos que estão bem identificados em vários países da Europa. Como tudo o que envolve reconstituição histórica secular, há sempre alguma (por vezes bastante) controvérsia em torno destes bairros. Mas isso não lhes retira o encanto, nem afecta a minha capacidade de imperfeitamente imaginar como terá sido o dia-a-dia das pessoas que ali viveram ao longo dos tempos, e que outras histórias interessantes aquelas paredes contariam se pudessem falar.

Blogue da semana

Ana CB, 03.04.22

Eles são a Diana e o Ricardo, e adoram viajar e comer. No blogue Explorandar vão falando sobre as suas experiências em viagem, principalmente em Portugal mas também lá por fora, sobre o que vêem e o que vão provando. Também partilham sugestões úteis para viajantes, histórias de outros bloggers de viagem, e “culinarices” (a expressão é deles).

Escrevem bem, os textos são fluidos e nada maçadores. Aprecio sobretudo o facto de tentarem fugir ao “mais do mesmo” – mal de que sofrem tantos blogues. Só não lhes perdoo terem aderido ao novo AO! Mas fecho os olhos a este pormenor porque eles são um casal muito simpático.

Se gostam de viajar e de experimentar comidinhas diferentes e fáceis de fazer em casa, passem por lá!

Odessa

João Pedro Pimenta, 11.03.22
Por que Odessa, na Ucrânia, tem valor especial para Putin? - BBC News Brasil
 
"A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel".
 
No mini-clássico A Ideia da Europa, de George Steiner, fica-nos desde logo este trecho. Odessa, a maior cidade e maior porto do Mar Negro ("a Paris do Mar Negro"), não só cenário dos contos de Babel mas também famosa por ser o cenário de O Couraçado Potemkin, esse clássico do cinema mudo de Einsenstein , está à espera da força bruta que se prepara a atacar do mar, sabe-se lá com que armas. Há umas décadas foram as SS alemãs, Agora são os russos.
 
Há uns anos, vislumbrando uma oportunidade de ir finalmente a Istambul, não me quis ficar pela metrópole do Bósforo e desenhei um percurso que me levaria de barco, ferry ou cargueiro, se fosse possível, até Odessa, através do oeste do Mar Negro, que em parte já conhecia. Iria à "Paris do Mar Negro", daria um pulo a Tiraspol, capital dessa estranha micro-URSS chamada Transnístria, agora mais conhecida pelo clube Sheriff que o Braga eliminou, e daí iria conhecer Kiev, antes de voltar para Portugal.
 
Hoje esse percurso tornou-se absolutamente inviável e só existe em sonhos, como outros em que aliás já tinha pensado. Traçar planos para viagens mais extensas é quase impossível nos dias que correm. Espero que Odessa e outras cidades da região permaneçam intactas, sobretudo as suas populações e o seu espírito.

Blogue da semana

Pedro Correia, 05.03.22

Um intervalo na análise e na perspectiva deste drama provocado pela agressão da Rússia à Ucrânia. Agora que vários leitores do DELITO começam a programar as férias possíveis em 2022, ficam aqui sugestões num dos blogues de viagens e turismo mais lidos e mais influentes dos EUA: o Road Affair. Que nos fala, por exemplo, das 25 mais belas aldeias do planeta, nos enumera as 30 mais belas igrejas à escala mundial ou nos fornece as dez melhores pistas para aproveitar bem uma visita a Roma, entre tantos outros possíveis destinos de viagem.

É o nosso blogue da semana.

O sol da meia-noite

Ana CB, 18.02.22

 

Saímos do aeroporto para uma via rápida, asfalto cinza antracite delimitado por barreiras metálicas e o habitual tracejado branco entre faixas. Tínhamos pela frente quase 40 quilómetros de estrada praticamente recta e deserta, o brilho de uns faróis traseiros algumas centenas de metros à nossa frente, e o dos faróis dianteiros de um ou outro carro que se cruzava connosco muito de vez em quando. De ambos os lados da estrada, terra plana e nua, e ao fundo, longe como uma miragem, a fiada de luzes que indiciava os arredores da cidade grande, o nosso destino.

 

Por cima de nós, muito baixas, nuvens cinzentas em rebanhos ou emprateleiradas, diáfanas umas, outras mais escuras, com formas achatadas, estranhas, nitidamente estrangeiras. Acima dos estratocúmulos, o céu desdobrava-se em gradientes de azul até ao rosa-quase-branco, um brilho a prometer raios de sol aberto para breve – assim as nuvens o deixassem. O carro ia comendo quilómetros, o motor a ronronar suavemente, e eu estava como que hipnotizada por aquele céu surreal. Eram duas horas da manhã, íamos a caminho de Reiquiavique e eu via, pela primeira vez na minha vida, o sol da meia-noite.

6 Diário Islândia - estrada para Reiquiavique

Num Verão da minha infância, os meus pais ausentaram-se durante algum tempo para irem num cruzeiro à Escandinávia. Regressaram satisfeitos, cheios de histórias com palavras novas e conceitos estranhos, como “fiorde”, “tivoli”, ou “sol da meia-noite”. Para uma criança de poucos anos, associar sol e noite é uma ideia inconcebível, e devo ter feito o que fazia com tudo aquilo que ultrapassava a minha compreensão: registei e arrumei na memória, sem pensar mais no assunto. Depois cresci, nas aulas de Geografia aprendi que o eixo da Terra é inclinado e que é essa a razão da existência das estações do ano, e o que são equinócios e solstícios, meridianos e círculos polares. Percebi finalmente o que é que significava, na teoria, “sol da meia-noite”. A hora de Verão, que só apareceu para mim quando já era adolescente, mostrou-me o que era ter claridade no céu até quase à hora de ir dormir; e numa viagem de comboio entre São Petersburgo e Moscovo assisti, às quatro da manhã, a um fascinante nascer-do-sol filtrado pela neblina que se desprendia de uma floresta interminável. Mas nada nem ninguém me preparou para a tremenda emoção causada pela beleza daquele meu primeiro verdadeiro sol da meia-noite.

 

É essencialmente pela visão que me apercebo do mundo. Nenhum estímulo é para mim tão forte como o visual. Os sons, cheiros e sabores complementam o que vejo, e o toque é o motor de certas reacções físicas – mas o deslumbramento, a fascinação, esses chegam-me pelo nervo óptico. E esta viagem que fiz na Islândia foi um festim para os meus olhos. Nuvens criativas, com formas bizarras, em colunas, em camadas, umas quase transparentes, outras de um cinzento carregado, às vezes tão baixas que parecia que bastava esticar o braço para lhes tocar, envolvendo os picos das montanhas como chantilly num bolo, ou confundindo-se com a água do oceano. Mar chão a fingir-se de espelho, reflectindo casas e barcos de cores berrantes, tornadas baças pela neblina parada. Ou em serpentinas brilhantes ondulando sobre a areia da praia na maré baixa. Cascatas magníficas de águas revoltas, despenhando-se em quantidades inimagináveis, espumando de ferocidade, mesmerizantes. Gelo de um azul inacreditável, ou muito branco mas raiado de negro, como se alguém tivesse deixado escorrer tinta-da-china, ou transparente como cristal. Montanhas nuas, pintalgadas de cores tão inesperadas que mais parecem uma tela saída das mãos de Cézanne, ocres e laranjas misturados com branco, cinzento-azulado ou antracite, verde-musgo, amarelo-desbotado e negro-lava. Nuvens de vapor a brotarem da terra fervente com aspecto de paisagem marciana. Se há lugares onde a expressão “excesso de beleza” é bem aplicada, a Islândia é um deles.

233 Diário Islândia - Hverir

271 Diário Islândia - Godafoss

Viajar pela “terra de fogo e gelo” foi um carrocel – de trilhos e de emoções. Na maior parte do tempo éramos só nós, a estrada e a paisagem, ora contornando fiordes compridos, entrando pela terra adentro como garras de um qualquer dragão imaginário (ou não, quem sabe… no país das sagas, tudo é possível), ora subindo e descendo entre montanhas, percorrendo desfiladeiros que nos levavam, em menos de um ai, do verde dos pastos ao branco da neve, da atmosfera límpida à neblina fantasmagórica, do asfalto em espaço aberto ao caminho de cabras trepidante à beira de uma ravina. De vez em quando lá surgia um carro, uma caravana, um ciclista solitário, um trio de ovelhas, uma quinta rodeada de fardos de feno embrulhados em plástico verde-menta ou rosa-bombom. Depois chegávamos a uma cidade com ar de aldeia, casas baixas forradas a chapa perfilada, mais raramente de madeira, dispostas a espaços ao longo de ruas desenhadas a régua e esquadro, um pequeno supermercado, uma bomba de gasolina, uma igreja minimalista, uma quase ausência de pessoas. Nada que nos fizesse apetecer parar, por isso seguíamos rapidamente de volta à magnífica solidão das paisagens sem vivalma. Ou então encontrávamos uma localidade daquelas saídas directamente de um cartão-postal: à beira de um fiorde, com casinhas coloridas, um jardim, uma igreja original, arte urbana a animar as ruas – aqueles sítios onde apetece ficar.

157 Diário Islândia - Westfjords

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Houve um sem-fim de momentos inesquecíveis nesta viagem. Houve dias luminosos, em que o sol nos aqueceu o suficiente para ignorarmos os casacos durante algum tempo. Houve dias gélidos, em que o frio ou o vento nos impeliam a voltar para o abrigo morno do carro, apesar de nos apetecer ficar mais uns minutos (ou horas!) a passear. Houve um final de dia de viagem dentro de uma piscina de água quente, com vistas para o mar e para a ilha de Drangey. Houve dias em que o sol nunca se mostrou, e menos ainda nas supostas horas nocturnas: o céu mantinha-se cinzento, só percebíamos que estava na hora de recolher apenas pela ligeira diminuição da luminosidade e pelos números digitais no relógio do carro.

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E houve outros sóis da meia-noite, com o céu pintado de rosa e roxo, ou tingido com cores de fogo sobre o branco-fosco do glaciar Vatnajökull. Mas nenhum deles foi para mim tão emocionante como aquele meu primeiro sol da meia-noite.

Regresso de férias

José Meireles Graça, 03.09.21

A trombuda no balcão tinha começado a trabalhar há pouco tempo, vestia bem de cara e do resto e a fila não era grande. Como a companhia era low-cost e recente (creio, nunca tinha ouvido falar da WIZZ) seria de esperar que a moça tivesse melhor catadura. Enfim, era uma maldita diaba teutónica, partilhando o país de nascimento com o monstro Adolfo, há que dar um desconto. Ao ver os cartões de embarque, impressos no hotel, perguntou pelos PLC.

Qu’é essa merda, teria perguntado se estivesse a tratar da logística, tarefa que felizmente competia, no grupo familiar, a pessoa mais competente e aprazível do que eu.

PLC quer dizer passenger locator card e a necessidade de semelhante papeleta constava de um e-mail da companhia de aviação que não foi lido até ao fim. As companhias, quando ganham tiques majestáticos, e ganham quase sempre, julgam que as tretas que ejaculam merecem atenção. É preciso ir a um site e preencher as seguintes informações:

Nome completo

Nº do documento de identificação

Data de nascimento

Género (prevê a hipótese “outro”, que seria o que me conviria, por ser da variedade que não reconhece géneros mas apenas sexos, mas parece que é uma que não está reconhecida entre as 73 oficiais)

Morada completa em Portugal

Número de telemóvel

Endereço de correio electrónico

Morada permanente

O preenchimento tem macetes: para indicar datas tem de se ticar nos calendariozinhos disponibilizados, Deus nos livre de simplesmente escrever; e para indicar o número de telefone tem de se pôr “+” e o indicativo do país, mesmo que o que lá está pré-assumido esteja correcto. Senão, nicles.

Vencido o Gólgota informático, recebe-se no e-mail o tal cartão. Mas, para o abrir, é precisa uma chave, que vem a ser o número do documento de identificação. Deus nos livre porém de pôr espaços onde não há (os cartões de cidadão, ao contrário dos antigos bilhetes de identidade, têm espaços e letrinhas, sabe Deus para quê), ou não os pôr havendo, que o sistema não está para frescuras: não abre e pronto.

Parece que quem não tiver esses telefones que dão acesso à internet, ou não souber navegar nos mares da burocracia internética, recebe um papel para preencher. Em teoria. Na prática, os únicos papéis que vi disponibilizar foram guardanapos, para quem encomendasse bebidas.

Durante o almoço no aeroporto, porque havia tempo, desembrulhou-se a meada e cada uma das pessoas do alegre grupo de três ficou munida do cartão de cidadão, do digital de vacinação, do de embarque e deste PLC. Sem o primeiro não se existe e sem o de embarque não se viaja, e doutra maneira não se vê que possa ser.

Agora, que sem o de vacinação se seja um pária que nem consegue ser servido num restaurante, dormir num hotel ou ver um espectáculo, custa a engolir: quem se quer proteger vacina-se, mas como o vacinado continua a poder infectar e ser infectado (ao contrário de outras vacinas para outras doenças, por exemplo o sarampo) não se vê qual é o bem comum que a obrigatoriedade protege - a menos que seja a autoridade, sem peias, das autoridades, que precisamente não é um bem mas um mal, e dos piores.

De cedência em cedência, estamos lentamente a ficar chineses na irrelevância dos direitos do indivíduo e na prepotência intrusiva dos poderes públicos. E isto seria, se a comunicação social não fosse um corpo de eunucos analfabetos, atentos, veneradores e obrigados aos poderes, fonte de permanente escândalo.

Mas no meu querido Portugal as coisas ganham, às vezes, contornos inesperados. Porque o tal cartão PLC não foi pedido nem na porta de embarque, nem no avião, nem à chegada, nem em lado nenhum. Em suma, não serve para nada.

Portugal é um país, e não deve haver muitos, onde por vezes se encontra o que se diz ser um atributo divino: fazer direito por linhas tortas.

Blogue da semana

Maria Dulce Fernandes, 20.06.21

Com os sucessivos confinamentos e limitações, a liberdade de poder percorrer o país, voar para fora e planear viagens, ficou na prateleira à espera de melhores dias. 

Costumo ler o Viagens à Solta, que traz muitas informações sobre o nosso país continental e insular, sobre muitos outros, claro, e dá boas dicas sobre como preparar uma viagem. A fotografia também é de grande qualidade, o que torna a leitura bem mais agradável e ajuda a colmatar o vazio da aventura adiada.

Malandrice, empatia e fair-play

João Campos, 11.05.21

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Em Agosto de 2019 tive a oportunidade de passar duas semanas a trabalhar na Malásia na companhia de colegas com os quais até aí só falara por telefone ou chat. Quis a sorte que os astros se alinhassem e que cá em casa pudéssemos tirar partido disto: a minha companheira conseguiu tirar férias, conseguimos comprar-lhe um bilhete, e lá fomos até ao Sudeste Asiático (em vôos separados, o que foi uma chatice, mas valeu a pena). Enquanto eu passei os dias a trabalhar, ela entreteve-se a passear por Kuala Lumpur - algo bastante conveniente também para mim, pois provavelmente não teria ido a metade dos sítios que visitei naqueles finais de tarde se não estivesse acompanhado (não sou grande turista, admito, enquanto a Ana planeou tudo, tratou de comprar bilhetes para os monumentos a visitar, etc).

No início da primeira semana calhou a visita à Torre de Kuala Lumpur. Saí do trabalho, meti-me num Grab (a versão local da Uber), e fui ter com a Ana à entrada da torre. Vista magnífica do topo, a dar a dimensão real da capital malaia. Naquele tempo ainda se viajava, pelo que não faltavam por ali turistas de inúmeras nacionalidades - percebíamos pelas palavras que íamos ouvindo, de idiomas europeus como o francês ou o italiano a idiomas asiáticos para nós incompreensíveis. E, como não podia deixar de ser, não éramos os únicos portugueses nas imediações - identificámos o casal como sendo português assim que saíram do elevandor, mesmo antes mesmo de os ouvirmos falar, pois o rapaz vestia uma camisola do Sporting.

Aqui talvez valha a pena explicar que dois dias antes (um dia e meio se considerarmos o fuso horário?) o Benfica tinha derrotado o Sporting por 5-0 na Supertaça.

Inevitavelmente, o primeiro pensamento que me ocorreu foi aproximar-se do meu compatriota, levantar a mão e dizer-lhe na língua de Camões "dá cá mais cinco". Ainda nos rimos a imaginar a cena, eu e a Ana, que como eu é também benfiquista. Já o segundo pensamento - não sou muito impulsivo - foi um pouco mais empático: a dezasseis mil quilómetros de casa, com ar de quem tinha discutido com a namorada no elevador, e ainda a ressacar pela derrota distante contra o eterno rival, decerto que a última coisa que aquele rapaz quereria encontrar no topo daquela torre naquele magnífico fim de tarde seria um sacana de um benfiquista a gozar o prato. Seria cruel, convenhamos. Com isso em mente (e com algum instinto de auto-preservação, confesso - não sou especialmente bem constituído, estava para aí a trezentos metros de altitude, e a ciência ainda não me deu um jetpack), optei por não dizer nada. E continuámos, eu e a Ana, a deliciar-nos com aquela vista espantosa de Kuala Lumpur, que com o cair da noite se assemelhava mais e mais às vastas metrópoles da ficção científica cyberpunk de que ambos somos fãs (a fotografia lá no topo não é grande coisa pois nem a câmara nem o fotógrafo eram grande coisa, mas fica o registo).

Recupero esta memória, que hoje parece tão distante, no dia em que o Sporting se sagra campeão nacional de futebol. A esta altura do campeonato já não tinha nenhum cavalo nesta corrida - do pouco que vi do Benfica em campo não me pareceu que merecessem ganhar o que quer que seja, e fora do campo a coisa dá asco - pelo que o resultado do jogo de hoje me era mais ou menos indiferente. Por norma, se tiver de escolher entre o Porto e o Sporting até prefiro ver os leões a vencer, se bem que nunca saia a perder dos confrontos - afinal, as derrotas leoninas são sempre um bom pretexto para provocações malandras aos meus amigos sportingistas.

Mas a verdade é que são justamente esses amigos quem importa hoje. Os anos têm-me tornado mais introvertido, mas tenho a sorte de manter muito bons amigos - e, entre eles, vários sportinguistas. Alguns já ouviram (leram) as inevitáveis provocações em privado, claro, e ainda terei mais algumas para os próximos dias. As piadas, admita-se, até se escrevem sozinhas (da última vez que isto tinha acontecido ainda andava eu na escola secundária, agora só em 2040, etc). Mas hoje esses amigos estão felizes, tão felizes como eu estava naquele entardecer há dois Verões, numa cidade espantosa que até então nunca tinha pensado visitar; e eu, pela parte que me toca, fico feliz pelos meus amigos. Por isso, e porque o desporto vale nada sem fair play, dedico esta memória, estas provocações bem intencionadas e este texto mal amanhado (começa a faltar-me prática, a Teresa Ribeiro bem me avisou há uns anos num jantar do Delito) aos meus amigos lagartos de tantos e tantos anos - ao João e ao Jorge, ao Miguel e ao Fernando, à Susana e ao Ricardo. E ao nosso Pedro Correia, claro, e aos leões e às leoas do Delito. Hoje a festa é vossa - aproveitem!

Viajar em tempos de Covid

Cristina Torrão, 18.10.20

Faz hoje duas semanas que regressámos à Alemanha, depois de uma estadia de três semanas e meia em Portugal. Não fomos obrigados a fazer quarentena, mas confesso que, enquanto não passaram estes quinze dias, não me quis pronunciar. Afinal, atravessámos meia Europa de carro, com quatro noites dormidas em França (duas na ida e outras duas na volta).

Não foi fácil decidir viajar. Mas há dois anos que não via os meus pais, de 83 e 78 anos. Por motivos pessoais, não pudemos viajar, em 2019. Contávamos poder compensar a falha em 2020. E, depois de termos cancelado, em cima da hora, os planos de uma Páscoa passada na aldeia, confraternizando com parentes e amigos que raramente vejo, ficou difícil prescindir das férias em Setembro.

Em fins de Agosto, como se sabe, a situação começou a piorar, se bem que os números diários de novas infecções fariam inveja aos de agora: a Alemanha registava cerca de 1.200, Portugal andava pelos 300/400. Fizemo-nos à estrada e passámos cinco fronteiras sem qualquer controlo: Holanda, Bélgica, França, Espanha, Portugal.

Como acima referi, pernoitámos duas vezes em França. Confesso que, quando chegámos ao primeiro hotel, em Compiègne (cerca de 50 km a norte de Paris), senti um certo receio, até porque Paris já se encontrava em situação complicada. Mas todas as regras de higiene eram cumpridas: uso de máscara, lotação do hotel a menos de metade (com quartos vazios entre os ocupados), bom arejamento, desinfectante à disposição, distância social respeitada, etc. Além disso, íamos prevenidos com toalhinhas desinfectantes para superfícies, interruptores e maçanetas. Mas ficam sempre dúvidas: pairavam ainda aerossóis perigosos no quarto? Alguém infectado teria dormido naquelas camas? (Noutros lençóis, é claro, mas sabe-se lá do que o vírus é capaz…).

Enfim, como em tudo, o que custa é começar. Confesso que, depois de mais um dia na estrada, não senti tanto receio na segunda noite, em Bayonne (País Basco). Acresce dizer que, durante toda a viagem, não fomos ao restaurante, nem comprámos nada para comer, ou beber. Levámos de casa tudo o que precisávamos.

Chegados a Portugal e, depois de constatar que a situação piorava de dia para dia, decidimos ficar na nossa região transmontana e cancelámos vários planos, que incluíam uma ida ao Porto, com visita à Feira do Livro. Mesmo condicionados, adorei estar finalmente em Portugal, ouvir falar português e, claro, poder enfim conversar pessoalmente com os meus pais, embora com alguns cuidados. Valeu-nos o bom tempo, que nos permitia instalar-nos no jardim, achando, ainda assim, conveniente cumprir as distâncias. Os meus pais encontram-se bem de saúde e esperemos que assim continuem.

Para o regresso, tornámos a levar de casa comida e bebida suficientes para dois dias e meio. Apesar de a situação ter piorado (entretanto, a região da Grande Lisboa era já considerada de risco, na Alemanha, assim como toda a Espanha e várias regiões de França), pareceu-nos haver menos cuidado nos hotéis (que eram diferentes dos da ida). Dormimos a primeira noite nos arredores de Bordéus, num hotel muito frequentado, não se verificando quartos livres entre os ocupados. O quarto também nos pareceu pouco arejado e, numa altura em que o meu marido foi à recepção, deparou com uma enorme nuvem de fumo, por detrás do vidro protector. O funcionário fumava lá o seu cigarro electrónico!

Na manhã seguinte, partimos debaixo da tempestade Alex. Felizmente, não sentimos a sua máxima força, embora, durante cerca de 200 kms, debaixo de chuva e vento fortíssimos, a visão fosse uma desgraça e a auto-estrada se encontrasse completamente alagada, obrigando-nos a uns míseros 60 a 70 km/h. Cheguei a pensar que bem podíamos escapar ao vírus, mas seríamos levados na enxurrada. Valeu-nos avançar em direcção a Paris, enquanto a tempestade seguia outro rumo. Ao serão, em Valenciennes (perto da fronteira belga), vimos o noticiário da TF1 e pasmámos com a destruição nos Alpes franceses e italianos, havendo inclusive vítimas mortais a lamentar. No fundo, tivemos sorte…

Tornámos a passar todas as fronteiras sem o mínimo de controlo e, chegados a Stade, sem saber bem o que fazer (quarentena, teste?), resolvemos ligar para a linha de saúde local. Apesar de termos atravessado várias zonas de risco, explicaram-nos que só se aplicam medidas especiais, caso se passe mais de 48 horas numa dessas zonas (ou país).

Demos, então, início à nossa vida normal, continuando a respeitar as regras básicas: máscara, distanciamento, lavagem frequente das mãos. Estamos bem e esperamos assim continuar.

E vocês, aí desse lado, fiquem igualmente bem!

Oscilações

Maria Dulce Fernandes, 11.10.20

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Em Dezembro de 2019 preparei Abril de 2020. Tem sido um destino adiado, principalmente pelas escalas nos voos até ao destino, duas na ida, uma na volta. Tudo com a Lufthansa, quando nós somos TAPpers de primeira água. Enfim, em querendo muito, não se pode ser esquisito e resolvemos agendar Dubrovnik, com duas escapadas, uma a Kravice e Mostar, e outra a Kotor e Budva.

Como é de calcular, não houve qualquer viagem em Abril e foi um filme conseguir remarcar, já que o reembolso nunca se pôs. Remarcámos para Novembro. Afinal fazemos quarenta anos de casados (é obra!) e merecemos oferecer-nos o presente de não ficar a arder com o valor já pago pela viagem. Ora, isto passa tudo até lá e vamos comemorar com a melhor vista para os muros da cidade velha.

Eis-nos então a praticamente um mês do acontecimento e estamos abalados nesta resolução com apenas duas opções: viajamos ou não viajamos.

No pico da primeira vaga retraímo-nos, receámos, acatámos, alterámos. E agora? Já chegou a segunda vaga ou ainda está em pré-campanha? Afinal o bicho é um globetrotter, caramba, atacando em força nos quatro pontos cardeais com todos os colaterais.

Vou contactar a agência para me aconselharem, tendo em consideração que tenho que oferecer algo, propor um qualquer upgrade, porque desta vez não encerrámos fronteiras apesar de os números contrariarem grandemente as previsões.

Não sei se quero arriscar. Mas se vou adiando para o final da segunda vaga, quem garante que fica por aqui? E depois vem-me sempre à ideia, não a tal frase batida, mas  aquela brincadeira com a estátua de Bocage em Setúbal (ainda no mesmo lugar e sem pinturas!), em que se diz que o poeta está com um corte de fazenda ao ombro, a aguardar pela última moda.

 

Foto do Google

Andar à boleia

Paulo Sousa, 03.09.20

Andar à boleia, no seu sentido literal, está fora de moda, diria mesmo em vias de extinção.

Um tio meu que estudou em Lisboa era assim que ia e regressava. Esta foi durante décadas uma forma comum de um jovem se deslocar pelo país. Viajava-se sem despesa e em troca fazia-se companhia ao condutor que assim tinha alguém com quem conversar. Com o seu apurado sentido estético, o meu tio deixou-nos um incrível espólio fotográfico, no qual consta uma fotografia que nos transporta para os anos 60, ali à beira da estrada para Lisboa que na altura ainda passava à frente do Mosteiro de Alcobaça.

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Foto Rafael Coelho de Sousa

Várias décadas mais tarde, a boleia continuava a ser uma forma regular de transporte para gente mais nova. O meu irmão e o meu primo, uns anos mais velhos do que eu, quando estudaram em Lisboa era também assim que iam e vinham a casa no fim de semana. De cada boleia traziam uma história diferente, quase sempre divertida. Pelo menos era divertida a forma como a relatavam.

Num verão, no final dos anos 80, fizeram-se à estrada em direção à Suíça. Iriam apanhar morangos para depois gastar o dinheiro dos morangos num Interrail pela Europa. Esse era o plano. O que aconteceu foi diferente e, apesar de terem chegado a Geneve, a oportunidade de emprego não se concretizou. Os morangos, esses, foram apanhados por outras mãos ou então comidos pelos pássaros. As parcas poupanças que levavam mal lhes permitiu chegar a casa, cheios de saudades de um prato de sopa, de um banho e de, finalmente, poderem dormir descalços. Trouxeram dois ou três rolos de 24 fotografias para revelar e inúmeras horas de relatos de episódios que me fizeram concluir que já conhecia todos os cruzamentos de nossa casa até ao Lago Leman. Importa lembrar que neste tempo ainda não existiam telemóveis e, durante a viagem, as notícias que chegavam a casa tinham a forma de um postal ilustrado com uma semana de atraso. Além disso terão feito dois ou três telefonemas a partir de cabines telefónicas, ávidas sorvedoras de moedas de elevado valor cambial.

No dia em que eles partiram, já depois de terem apanhado a primeira boleia de casa até à EN1, lembro-me do meu pai ter dito que eles iriam viver uma aventura, o que foi uma insuficiente tentativa de conforto das preocupações da minha mãe. Não sei quando ouvi isso lá por casa, mas mais que uma vez foi assunto a máxima de que os filhos são, ou devem ser, criados para o mundo e não para os seus pais, o que pode parecer um detalhe mas não o é.

Uns anos mais tarde chegou a minha vez de ir e vir à boleia para Lisboa. A distante aura de aventura de ir para a beira da estrada nacional de polegar estendido tornou-se realidade. De cada viagem sobrava uma estória completamente diferente da anterior. Era como tirar bombons coloridos à sorte de dentro de um pote. Os sabores variavam mas eram sempre agradáveis. Desde automóveis topo de gama até carros que hoje seriam imediatamente apreendidos na inspecção, passando por camiões de mercadorias, posso dizer que me calhou de tudo um pouco. Apanhei boleias de dia, de noite, à chuva e com sol e, literalmente, do Norte ao Algarve.

Ninguém que circule a 120 km/h pára para dar boleia, por isso importa escolher uma zona onde os carros circulam devagar. Essa lógica torna (ou tornava…) as portagens num bom local. Normalmente no final da semana quando regressava a casa apanhava o 45 da Carris até ao Prior Velho, e seguia a pé até à extinta portagem de Sacavém, onde todos os carros que seguiam para norte tinham de parar.

Quando o destino final de quem apanha boleia era diferente do de quem a dava, importava saber o sitio onde sair. Por vezes a ligação a pé até chegar a uma zona onde se pudesse apanhar a boleia seguinte poderia demorar algum tempo e obrigar a caminhar uns quilómetros adicionais. Ao andar à boleia não se pode ter um horário rígido. Pode ser comparado a um velejar pela estrada fora, em que tanto se apanha vento pela alheta e mar direito como vagas altas e marés contrárias. Tenho saudades de não ter uma hora para chegar ao destino.

Um dia, antes de um período de exames, saí de casa pela manhã para ir para Lisboa começar um daqueles retiros que quem adia o estudo para a semana anterior às frequências bem conhece. Antes de almoço já tinha chegado ao destino que era São Domingos de Benfica, a poucos metros da Buraca. Quando tentei abrir a porta reparei que tinha deixado a chave em casa. Azar do caraças. Regressei ao Rossio pela linha de Sintra, meti uma bucha num tasco na estação, apanhei o 45 até ao fim da linha no Prior Velho, segui a pé até à portagem, novamente boleia até casa onde tinha ficado a chave do apartamento. Repeti depois o trajecto da manhã e cheguei finalmente a casa, à hora de jantar. Com 400 km distribuídos por três boleias podia finalmente começar a estudar.

Um dos episódios mais memoráveis que tenho com boleias passou-se durante uma ida ao Porto para assistir ao concerto que os Pixies deram no Coliseu nos idos de 1991. O Blitz classificou-o então como o concerto do ano.

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O concerto foi de facto incrível mas não consigo desligar as memórias que dele guardo do bouquet dos diferentes imprevistos que adoçam a boca de quem aprecia sentir-se como uma rolha a flutuar no oceano que é a vida.

Desta vez éramos três e o local que escolhemos para pedir boleia não era nada favorável. Após algum tempo lá parou um carro mas só podia levar um de nós. Não quisemos perder a oportunidade e por isso seguimos separados. Tínhamos assim o desafio adicional de nos encontrarmos no Porto, cidade que desconhecíamos. Neste tempo os telemóveis eram ainda coisa de ficção científica.

Os dois restantes, eu e o outro companheiro, conseguimos seguir viagem um pouco mais tarde. A nossa boleia terminou logo no final da ponte da Arrábida. O carro seguiu para Braga e nós seguimos a pé. À hora marcada lá entramos no Coliseu dos Recreios e, quase como se tivéssemos combinado, encontramos o nosso tresmalhado companheiro de viagem no centro da plateia, mesmo durante a hora do tormento. Não consigo deixar de ouvir Pixies sem recordar as vagas alterosas daquelas horas.

Terminada esta provação seguimos, em modo de bola de flippers, batendo aqui, acendendo luzes ali, uns finos acoli, um petisco acolá, quase até desaguar junto ao Douro. Importa lembrar que isto se passou num tempo em que não havia voos low cost, nem booking, nem camones. A onda não era má mas em alguns recantos também não era muito boa.

E para lá andamos, noite fora até que chegou a hora de procurar um canto para pernoitar, o que é sempre uma matéria paracientífica. Não podia ser num canto muito central, porque isso não existe, nem muito obscuro, porque já estavam ocupados. Após várias tentativas, acabámos por nos estender ali à frente, dentro de uma embarcação estacionada numa das rampas de acesso ao rio. Não me recordo do frio, mas da humidade sim.

Para o regresso, calhou-me seguir a solo. Por desconhecimento do terreno não sabia onde pedir boleia. Alguém me deixou na última saída antes da portagem dos Carvalhos e segui a pé. Depois de um bom bocado de polegar esticado sem conseguir o merecido transporte de regresso avistei um camionista sozinho a mudar um pneu, tarefa que é sempre mais fácil quando feita por dois. Depois de me ter voluntariado a dar uma ajuda não há como negar uma boleia. E assim, foi dentro de um TIR de 20 toneladas acabado de carregar no porto de Leixões, que terminou a aventura.

Um minuto antes de um carro parar para nos dar boleia é impossível antecipar qual será o nível e o tema da conversa que se irá desenrolar, e nessa incerteza encerra-se parte da magia. Sem se confiar num desconhecido nada disto é possível. Actualmente somos todos muito mais desconfiados, e também isso explica que andar à boleia esteja em vias de extinção. Há para aí umas aplicações de partilha de trajectos mas mais não são que uma vaquinha das despesas com avaliação mútua dos respectivos users. São coisas diferentes.

Quem já teve o privilégio de, em locais recônditos, sair fora dos circuitos turísticos e tropeçou nos acasos das viagens concordará com uma das mais repetidas conclusões dos viajantes do improviso. A esmagadora maioria das pessoas são boas. É da natureza humana sentir empatia por um estranho que viaje em paz e que necessite de ajuda. É claro que todos somos diferentes, e isso é positivo, mas para uma imensa parcela da humanidade o conforto, a absoluta previsibilidade das rotinas e do planeamento é imprescindível. Não só, mas também por isso a minha conclusão é que existe demasiada gente que teme a liberdade.

De volta à estrada

Maria Dulce Fernandes, 21.06.20

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Dulce, a pasta com os mapas está onde? Vi-a em cima da credência, pai. Se lá a viste, lá ficou. Vai buscá-la e deixa a porta bem trancada. Anda lá que está toda a gente à espera. Corri lance após lance, degraus dois a dois (sim, é verdade, acreditem!) até ao terceiro andar, peguei a pasta e voei escada abaixo. Os amigos já nos aguardavam, aqueles que não sendo da família em que nascemos, são a família que escolhemos e éramos inseparáveis. Os Afonso eram três, um casal com uma filha, a Tita, e os Silveira eram quatro, o casal, a Mica e o Gil, que o mano rabiava e apelidava de Gileia, por ser para o anafado.

Íamos todos partir de viagem e sempre que saíamos com o carocha atravancado com a proverbial data de tralha e equipamento essencial ao campista moderno, toda a vizinhança vinha dizer adeus à janela e desejar boa viagem. Adeus D. Sofia! Adeus D. Jo! Adeus!! Boa viagem! Adeus!

O destino era Andorra-la-Vieja, capital e principal cidade do pequeno principado de Andorra encalhado nos Pirenéus, verdinha e fresca no Verão e branca e fria no Inverno, apelativa para caminhadas e prática de desportos na neve, vivia e ainda vive do comércio e do turismo. Como as marcas consagradas mundialmente não pagam impostos nos seus representantes em Andorra, os preços são convidativos, num permanente ambiente de Outlet, que era exactamente o que os amigos Afonso procuravam: a André Jamet e uma tenda com duas assoalhadas e cozinha.

 

Metemo-nos à estrada, cada família no seu carro, e entre cantorias e despiques chegámos a Talavera de la Reina onde passámos a primeira noite. Dali seguimos para Toledo. Adorei Toledo: a sua catedral, o seu ar medieval com espadas e armaduras em todos os pontos de comércio, a glória de Espanha, nas palavras do da triste figura.

Seguiu-se um detour para visitar a imponência do Valle de los Caídos, que é exactamente isso, imponente. Continuámos viagem e pernoitámos em Fraga, estreando um pequeno hostal recém construído, Las Brujas. Foi uma noite memorável.

 

A seguir ao jantar um céu de breu trouxe raios, trovões e um dilúvio. Acomodados nuns quartos catitas a cheirar a novo, ouvíamos os estrondos lá ao longe, encantados pelo aconchego dos lençóis.

De repente, boom! E tudo ficou escuro. Um apagão! A luz que entrava nos quartos era a que vinha da janela e apenas quando havia relâmpagos. Subitamente  o som de alguém a regurgitar, passos apressados e corpos a cair fez-nos sentar na cama meio desnorteados e completamente assustados, até outro som, o de incontroláveis gargalhadas chegar até nós, cada vez mais forte.

Qual enredo de tragicomédia, o Gil foi deitar-se indisposto e apavorado com a “noite nas Brujas”, extravasou a indisposição pelo chão, incapaz de, no escuro, localizar a porta da casa de banho. A sua mãe foi em seu auxílio e pumba, escorregou e caiu. O pai foi em auxílio da mãe, mas não teve melhor sorte e pimba, no chão. Os amigos nas outras suites vieram em socorro com fósforos acesos, acabando por se perder nos corredores… enfim. Ninguém dormiu muito, mas rimos que nem doidos.

Ainda hoje a história da noite nas Brujas nos leva às lágrimas.

 

A manhã seguinte cheirava a chuva e a verde e, depois de mais uma barrigada de riso, voltámos à estrada e chegámos finalmente a Andorra, quedando-nos por Encamp, Camping Meritxell, um paraíso para o campista habituado ao pó: era frondoso, arrelvado e com um ribeiro límpido e borbulhante.

Cada um foi à sua faina de estacas e cordas e ficámos prontos num par de horas para a primeira noite nos Pirenéus.

De manhã, enquanto os adultos foram ao minimercado eu, o mano, o menino, a Tita, a Mica e o Gil, fizemos o reconhecimento do camping e sentámo-nos a ler tranquilamente, todos com o recado de que não se podia deixar o menino sem vigilância, nem por um segundo que fosse. A verdade é que um segundo é seguramente uma infinidade de tempo…

Com os adultos de regresso ao Camping, almoçámos e preparámo-nos para ir às compras, quando demos pela falta dos chinelos. Ninguém tinha trazido os chinelos? Eu guardei os meus! E eu! Eu também!… Como que movidos por um magnete olhamos todos para o menino que sorria, safado e feliz… tiraste os chinelos? Para quê? Fiz corridas de barcos no ribeiro, retorquiu o pequeno patife com aquele olhar de céu travesso… bem que os procurámos, mas o mais certo seria terem já desaguado no Mediterrâneo... o que vale é que em Andorra o comércio é rei e tinham chinelos de todas as cores e feitios.

 

De Encamp sai o teleférico que sobe até ao pico Els Cortals. Fomos todos. Em 1976, as cabines eram pequenas. Não mais do que três pessoas por cabine. Depois de instalados, eu e o mano resolvemos asnear, nem sei porquê, mas chegou-nos a brilhante ideia de abanar a cabine na horizontal armados em thrill seekers, dare devils ou simplesmente palermas. Felizmente não teve desfecho trágico, mas valeu-nos sobejos ralhetes e descomposturas descomunais.

Lá em cima era lindo e valeu por tudo: a vista, o lago azul que espelhava o céu.

Os visitantes, homens principalmente, provavam a sua virilidade, ou fibra, vá, segurando com uma só mão um porrón, jarro de vidro de boca estreita e bico comprido cheio de vinho tinto. Com uma mão atrás das costas, tinham que beber sem tocar com a boca no bico do jarro nem sujar a roupa com vinho. Escusado será dizer que muito poucos desceram a Encamp com as camisas limpas.

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Depois de os Afonso se decidirem por uma tenda azul e branca e pelos apetrechos necessários à arte de bem acampar, deixámos Encamp, Andorra e os Pirenéus rumo a Barcelona. Já em Andorra os Silveira tiveram notícias menos boas de Oeiras. Barcelona foi de fugida, Valência também e regressámos a Lisboa muito mais cedo do que o previsto e ainda a tempo de passar as duas últimas semanas em Albufeira, mas desta feita com a tenda em casa.

On the road again

Maria Dulce Fernandes, 10.06.20

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Depois da Grande Aventura Europeia, o meu pai começou a enfastiar de conduzir. Trocou a Variant por um Carocha cor de areia e sedentarizou os nossos dias de férias, que é como quem diz, passámos a acampar “cá dentro”, mais especificamente em Lagos, no Parque de Turismo, com tenda montada de Março a Setembro, não sem antes termos vivido duas aventuras meio loucas, uma em Andorra e a outra em Algeciras e Marrocos. É destas que falarei primeiro, começando de sul para norte.

Com o Carocha escachado sob o peso da tenda e apetrechos indispensáveis a qualquer bom campista que se preze, mas com a panache tão típica do meu pai, deixámos Lisboa rumo a Algeciras num Agosto magnífico de 1977. Desta feita íamos apenas os cinco, o pai, a mãe, eu, o mano e o menino já com sete anos, um pirralho levado da breca.

Primeira paragem em Sevilla, descarregar o carro, jantar e dormir, que viagens longas de automóvel sem ser por autoestrada são uma estafa. No dia seguinte o pai e a mãe tiraram a manhã para ir às compras com o menino e eu e o mano fomos almoçar fora. Os dois. Sozinhos! Coisa insólita e meio atrapalhada, mas tirámos o melhor partido que pudemos.

E lá seguimos para Algeciras onde chegámos a meio da tarde. Camping Costasol. Cheio, quase indisponível, barulhento e bastante poeirento, mas era o que havia.

Montar a tenda, encher colchões, arrumar a data de tralha, não perder o menino de vista… tudo tarefas hercúleas, principalmente a última, que garantidamente o semideus riscou dos seus 13 trabalhos.

O jantar e a noite passaram-se em sobressalto com o barulho dos camiões a acelerarem ali do outro lado da sebe, mas rapidamente chegou a alvorada e o dia amanheceu lindo. Partimos rumo à cidade prontíssimos para embarcar no ferry para Ceuta, para o primeiro de quatro dias em Marrocos: Ceuta, Tetouan, Chouen e Tanger.

A minha primeira impressão de Marrocos foi o cheiro. Era uma mescla de pó com suor, especiarias, curtumes e sebo. Ceuta - muita gente, muita confusão. Como em tudo o que é excursão organizada, tínhamos à nossa espera um guia e um autocarro. Tour pelos pontos turísticos mais importantes, as muralhas da cidade velha, casa dos dragões, Plaza de los Reyes, o tradicional souk, os camelos e as cobras para a fotografia, tudo isto sempre com um olho no camelo e o outro no menino.

Almoço e partida para Tétouan, a Joia do Rif. Ampla, bonita, moscada e de labiríntica medina, Tétouan traz-me as primeiras agradáveis recordações de uma civilização diferente e afável do nosso primeiro contacto com a África setentrional. O hotel era simpático, apesar de as camas terem ar de dormidas, mas parece que há 40 e tal anos as infraestruturas para desenvolvimento das povoações interiores e do turismo ainda deixavam e deixariam muito a desejar.

No dia seguinte o azul e branco de Chouen, entalado entre montanhas do Rif, com vistas estupendas, em que o nevoeiro brincava às primeiras horas de luz por entre cristas e picos até se diluir no azul do céu. O bairro Andalui, a medina, um souk com moscas a mais e contínua abordagem para oferta de substâncias ilícitas, gente risonha. Muita carne caprina às refeições e felizmente muita e variada fruta. Compras, eram um desnorte. Mostrar interesse, por mínimo que fosse, em qualquer artigo produzia uma marcação cerrada e feroz e uma perseguição contínua por parte dos vendedores até à capitulação total.

Mais uma alvorada e nova partida, desta feita para Tanger. Passeio e almoço em restaurante típico com muita música, dança do ventre e o melhor chá de hortelã que já bebi.

Regressámos a Algeciras e ao camping e nos dias seguintes deambulámos por Marbella, Fuengirola, Torremolinos… as praias mais in do sul de Espanha, com águas cálidas e a areia escura. Meu belo Algarve de praias douradas…

Foi então que a minha mãe teve a feliz ideia de voltar a Ceuta para umas comprinhas que não teria podido fazer, porque o menino era ocupação e preocupação para todos os minutos de todos os dias passados pelas terras de Alah.

Combinou-se que ficaríamos os três filhos confinados ao Camping, prometidos e comprometidos a vigiar o menino com olhos de águia. Assim foi. Tudo para a piscina! Confinada a um espaço só com um acesso, bastante grande e com água corrente contínua que jorrava da boca de um leão colocado a um dos topos, espreguiçadeiras e sol, convidava ao lazer e à preguiça.

Tão bom a sonolência, tão calmo tão… sísmico? Tudo a correr e a fugir e a barafustar, sentei-me na cadeira com o coração aos pulos, “Niño Loco, niño loco" mas o quê? Quem? Eis senão quando consigo entender a causa de tanta confusão: o niño loco não era outro senão o menino que, qual enguia, se esgueirara de mansinho, escalando a cabeça golfante do leão que alimentava a piscina e travava risonho e feliz a saída da água com ambas as mãos e braços, de tal modo que encharcava violenta e caudalosamente tudo e todos em seu redor. O problema foi conseguir tirá-lo de lá. Ninguém saiu ileso, ou enxuto, vá lá.

Um buraco! O meu reino por um buraco! Eram descomposturas em catadupa nos mais variados dialectos. Eram pedidos de desculpa mal amanhados e envergonhados enquanto se lutava com braço do malandrim, que insistia em voltar à acção.

A partir desse dia, assim que o niño loco entrava na piscina, todos os utentes iam mudando a espreguiçadeira de lugar, porque bastava um segundo a olhar noutra direcção para o patife voltar à carga.

No fim olhava para as caras zangadas com aqueles olhos brilhantes cor de água emoldurados pelas melenas douradas e desarmava tudo e todos, que ainda acabavam por lhe comprar gelados. Que safado.

O niño loco voltou para casa em Lisboa, mas passados dois anos uns amigos que acamparam no Camping Costasol calhou mencionarem o niño loco. Não havia funcionário que se não lembrasse. E tiveram direito a um gelado cada, como mandava a tradição.

Bom Dia de Portugal para todos.