Uma história com GPS
Acho que a primeira vez que ouvi falar em GPS foi no Moto Jornal, que lia religiosamente de fio a pavio durante as duas semanas do Paris-Dakar. Este novo instrumento de navegação revolucionou a mais dura competição automóvel que, para além de cavalos no motor, dependia da orientação no Saara. Isto era ainda no tempo em que esta prova acabava na capital do Senegal. O que tinha começado por ser uma ferramenta de uso exclusivamente militar, começava a ser usado para fins civis. Nesses tempos o sistema não tinha a precisão actual, uma vez que o sinal ainda estava sujeito a um erro deliberado para assim manter a vantagem das tropas dos EUA, que o criaram e desenvolveram. A vantagem do uso dos satélites relativamente aos azimutes tirados por experientes navegadores náuticos era demolidora.
Só uns bons anos mais tarde, já quase ao virar do milénio, é que interagi pela primeira vez com um desses equipamentos. Um amigo meu comprou um para uma viagem que fizemos a Marrocos num grupo de jipes. Sendo o único aparelho da caravana, tínhamos o monopólio da localização e por isso fomos sempre o carro da frente. Saber onde se está, sendo que cada lugar é traduzido num longo conjunto de algarismos, pode valer de muito pouco se não o soubermos interpretar. Conhecer a nossa velocidade e rumo, ignorando a distância e a direcção ao ponto a que nos dirigimos, tem muito pouca serventia. Sem uma base de dados de pontos, o GPS é quase inútil.
Através de um amigo que conhecia alguém, conseguimos uma cópia de uma folha de papel escrita a lápis com coordenadas de algumas cidades marroquinas. A partir daí, e já em cima de um normal mapa de estradas, estimamos por onde passavam os graus certos dos paralelos e meridianos, que riscámos com uma esferográfica preta. Com essa grelha, para saber as coordenadas de um qualquer local do mapa bastava recorrer a uma régua de plástico e a uma calculadora. Media-se a distância do ponto que nos interessava às linhas do grau mais próximo, e depois era só fazer um proporção. Algo trabalhoso, mas mesmo quando se lidava com um erro de um quilómetro, sabíamos que não estávamos perdidos. Tecnologia maravilhosa. Mais tarde já no terreno, quando havia um erro de navegação, leia-se uma saída de cruzamento mal escolhida que obrigasse a uma inversão de marcha, nenhum membro da caravana queria saber da inexperiência dos navegadores e, a plenos pulmões, reclamava entupindo as normais comunicações via CB. A composição do grupo era propícia a um certo nível de caos. Onze conterrâneos distribuídos por cinco carros, sem que houvesse um líder que conseguisse decidir o que quer que fosse sem longos debates e considerandos. Muito se discutiu, muito se ralhou, muito se gritou e mesmo assim lá fomos avançando.
Lembro-me de um episódio ocorrido na travessia de Zagora para Foum-Zguid. Já íamos com quase uma semana em cima, muitas horas de condução, longos e bem regados serões, seguidos de noites curtas e dormidas em chão torto. Nesse dia, já tínhamos feito algumas centenas de quilómetros fora do alcatrão. Um bardanal de vento, a que os locais chamavam em espanhol la tormenta não nos deu tréguas. Ignorando a esfoliação de pele gratuita e da pintura dos carros, a imagem mais próxima de uma tempestade de areia é a de um dia ventoso com nevoeiro, sendo que os tons são mais para o ocre e menos cinzentos do que um dia de Verão nas praias do Oeste.
A etapa diurna foi toda assim. Muito pó, muita inexperiência, alguns atolanços evitáveis e um furo após o atropelamento do esqueleto de um camelo. A esmagadora maioria do grupo estava pela primeira vez no país e nunca ninguém ali chegara tão a sul. As dúvidas eram mais que muitas e a emoção de pisarmos os troços do Dakar injectava-nos uma energia de encher o peito.
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A tempestade amainou e escureceu. Sabíamos que tínhamos progredido pouco para o que nos tínhamos proposto. A dúvida foi sempre o décimo segundo elemento da viagem. Pára-se para jantar, ou come-se em andamento, montam-se as tendas e fica-se onde calhar ou continuamos? O fuso horário dos estômagos não quer saber de explicações muito elaboradas. A escuridão só não era total devido aos nossos faróis e às inúmeras estrelas no firmamento. “Mas a Ovelha Negra (nome de código do carro da frente) tem GPS e nunca sabe onde é que andamos?”. A gritaria não parava. A única reacção natural era responder aos palavrões com mais palavrões, o que sabemos que, não resolvendo nada, aliviava. A tensão e o cansaço sentia-se.
A partir deste episódio reparei em como tanta gente reage à incerteza e ao stress. Mais tarde, e noutras situações, vi confirmado o que ali tinha observado. Perante dúvidas sobre o que se vai passar a seguir ou o desconforto sobre um ambiente desconhecido, mais incerto do que nas normais rotinas, há muito quem desate a ralhar, aos berros e vire essa sensação de insegurança contra quem está à sua volta. E resolve alguma coisa? Nada, apenas complica. Quem tiver a iniciativa de estar a tentar ultrapassar essas dificuldades, além do assunto em si, tem de conseguir encaixar os excessos de quem se aproxima mais rapidamente da histeria.
E foi assim, com o cansaço de vários dias fisicamente desconfortáveis, a ter de decidir sobre a direcção a tomar por uma caravana de carros numa zona semi-desértica, já depois de anoitecer, onde nunca tinha estado, com um GPS em que ainda estava a aprender a mexer, a ouvir umas quantas prima donnas aos berros pelo rádio, que este vosso escriba achou que urgia dar o passo seguinte. Com um frontal na testa e aos solavancos no lugar do pendura, pega no mapa, copia a extensa sequência de algarismos do receptor de GPS para um bloco de notas, começa a converter graus, minutos e segundos em decimais (sim eu agora também sei que isso se pode simplificar mexendo na configuração da máquina), saca da régua escolar, recorre à calculadora e estima a posição da caravana. O resultado das contas correspondia a um ponto no mapa que coincidia com a pista pretendida. Estando as contas bem feitas, a pouca distância dali passava um oued, um rio temporário que na prática é apenas uma depressão mais empoeirada que o habitual, com umas dezenas de metros de largura. Olhando para o seguimento do tracejado no mapa, após aquele oued a direcção da pista mudava de sudoeste para oeste. Além de todo o desconforto, era a demora do jantar que estava a deixar aquelas princesas para cima de nervosas. O motim aproximava-se. Vocês não fazem ideia onde é que estamos! A esta hora já chegamos à Argélia!
Consciente do momento crítico e do risco de incinerar o resto da já pouca credibilidade da Ovelha Negra, peguei no micro e pressionei o PTT. Após os normais impropérios, que funcionavam como senha e contra-senha de comunicação, informei a caravana que íamos atravessar uma vala e que depois mudaríamos muito drasticamente de direcção, para a nossa direita. Em menos de duas horas estaríamos no destino previsto. As respostas pelo rádio atropelaram-se num caos que, felizmente, não conseguimos entender no detalhe. O teor geral era claro, descrédito e desconsideração pelas nossas capacidades. Querem reclamar, contactem a agência de viagens, pá! O mais parecido que tínhamos tido com tal capricho, tinha sido naquele serão em que levei o mapa e o abri na mesa de café. Não exijam mais a quem se mete nisto com um planeamento em cima do joelho. Sabem bem que, já a contar com esta, é a primeira vez que por aqui andamos, respondemos. Contra-atacamos ainda com o facto de, num dos carros de trás, todos os tripulantes levantavam o mindinho quando emborcavam uma cerveja. Quem levanta o mindinho não tem direito a fazer reclamações, vão à gaita! O ruído daquela turbe ressacada só diminuiu quando finalmente uma vala apareceu à nossa frente e, incrível, menos de cem metros depois, a pista inflectiu à direita.
Os quatro carros da oposição lá se acalmaram e meteram a viola no saco. Dentro da Ovelha Negra festejava-se como se já tivéssemos chegado a Marraquexe. Abriram-se três minis quentes e empoeiradas, chocaram-se as garrafas a toque de brinde, e assim foram saboreadas com a dignidade de quem bebe champanhe, mas com o mindinho recolhido.































































































































































































