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Delito de Opinião

Matera, singular e mágica - parte 2

Ana CB, 12.08.25

Os Sassi de Matera são dois, separados pela Civita, o centro histórico medieval: a norte fica o Sasso Barisano, afundado entre a orla mais elevada do planalto; e a sudeste o Sasso Caveoso, pendurado sobre o rio Gravina e de frente para o planalto Murgia Timone.

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As casas trogloditas

 

Na encosta leste do Sasso Caveoso, a Associazione Culturale Gruppo Teatro Matera reabilitou algumas construções do Vico Solitario, entre elas uma casa-gruta aberta ao público como espaço etnográfico. Remonta ao século XVIII e é uma habitação parcialmente escavada e parcialmente construída. Visitá-la pode parecer apenas mais uma experiência inócua, mas não para mim.

A gruta tem uma forma simples, rectangular e com tecto abobadado. Só existe uma divisão, com um pequeno nicho contíguo para a cozinha. A ventilação faz-se apenas pela porta de entrada e por uma janela minúscula no espaço da cozinha. Tudo se concentra em poucos metros quadrados: a cama do casal, alta, para servir de lugar de arrumação por baixo, com o seu colchão cheio de lã e folhas de milho; a mesa de refeições, onde todos comiam do mesmo prato de barro; a arca dos cereais, com uma divisão interna para separar o grão para consumo humano da forragem para os animais; a cómoda onde se guardava a roupa, cujo gavetão inferior poderia também servir de cama para uma criança; o baú do enxoval e a arca onde guardavam a comida; o tear onde faziam os tecidos; o calhandro para os dejectos (a habitação não tinha esgotos). Os utensílios eram pendurados nas paredes ou colocados em pequenos nichos. Um braseiro aquecia a casa no Inverno e tinham uma pequena cisterna com tampa para armazenar a água da chuva, transportada do exterior por um rudimentar sistema de canalização. Os habitantes dos Sassi não tinham acesso a nascentes ou lençóis aquíferos, pois as grutas estão escavadas sobre uma camada maciça de calcarenito.

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Além da família, sempre numerosa – cada casal tinha uma média de seis filhos, mesmo sendo a mortalidade infantil na ordem dos 50% – a casa abrigava também os animais: uma mula ou cavalo, porcos, aves de capoeira. Todos os objectos desta casa-gruta estão exactamente nos mesmos lugares em que se encontravam nos anos 50, quando a casa era habitada. Apesar de ainda ter contactado, em tempos idos, com casas rurais no nosso país em que as condições de vida eram bastante más (pelos meus padrões citadinos, obviamente), não consigo imaginar como seria viver nestas habitações sobrelotadas e insalubres.

Na verdade, nesta parte esquecida e isolada da Basilicata, e nestas condições, viviam 60 mil pessoas até meados do século passado. A sociedade italiana do pós-guerra só virou as atenções para a região depois de 1945, ano em que Carlo Levi, opositor do regime durante os anos do fascismo de Mussolini, publicou as memórias do tempo em que tinha sido desterrado para a Basilicata por razões políticas, no livro “Cristo parou em Eboli”. Descreveu os Sassi de Matera como sendo a ideia que um estudante faz do Inferno de Dante, com cavernas escuras, húmidas e sujas, onde as pessoas coabitavam com animais e as doenças se espalhavam de forma galopante.

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Em 1950, o primeiro-ministro italiano Alcide De Gasperi visitou Matera e ficou chocado com as circunstâncias precárias em que viviam os habitantes dos Sassi. A cidade foi apelidada de “vergonha nacional” e o governo italiano lançou um programa de realojamento dos moradores em casas novas, num esforço para “modernizar” a cidade. Entre 1953 e 1968, 16 mil pessoas foram transferidas para estes bairros modernos – cuja concepção, no entanto, não foi das mais felizes e levou ao isolamento de uma população que se caracterizava pela convivência e entreajuda, como se pertencessem todos a uma mesma família. Os Sassi foram esvaziados, e houve até quem sugerisse que esta parte da cidade fosse isolada com muros, para que ninguém mais se lembrasse dela. Sem vida, passaram a servir de refúgio para ladrões e traficantes. Houve, no entanto, alguns movimentos de locais que não se conformaram com a degradação do lugar em que tinham vivido, e aos poucos foram surgindo iniciativas para insuflar um novo alento aos Sassi, sobretudo a partir dos anos 80. O impulso final foi dado pela aceitação da candidatura a Património Mundial da UNESCO, em 1993.

 

A fé de Matera

 

Ao lado da casa-gruta do Vico Solitario foram recuperadas outras construções. Na neviera era armazenado o gelo para refrescar e conservar os alimentos, servir como reserva de água potável ou ser usado no tratamento de doenças. A igreja rupestre de Sant’Agostino al Casalnuovo, que remonta aos séculos XIII/XVII, pertenceu ao vizinho Mosteiro de Santa Lúcia mas foi disponibilizada para fins não religiosos e arrendada, sendo usada primeiro como habitação e depois como armazém e até como pedreira de calcário. Tal como a neviera, agora é essencialmente um espaço expositivo.

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Uma caverna natural inserida no mesmo complexo museológico funciona como auditório. Segundo o painel informativo, este era o local de socialização dos habitantes do bairro, abrigado das chuvas e das temperaturas extremas, onde os homens conviviam no final do dia de trabalho. Sítio ideal para também nós descansarmos um bocado, em frente ao ecrã de televisão que passava um documentário. Foi ao vê-lo que descobri a razão de ser das decorações festivas que tínhamos visto na véspera (estávamos em Junho) e de um quadro, pendurado no nosso quarto no Nonna Rosario, com o desenho de um carro alegórico. E que descobri também a existência de um dos acontecimentos mais impressionantes do calendário religioso italiano.

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A santa padroeira de Matera é a Madonna della Bruna, cuja festa se celebra anualmente a 2 de Julho há mais de seis séculos (2024 foi o ano da 635.ª edição). Este é um dos eventos culturais mais significativos da cidade, e porventura o mais singular, aquele em que a fé dos materanos se mostra de forma mais vívida, emotiva, até mesmo assustadora. O carácter único das celebrações e a popularidade de Matera transformaram esta festa num acontecimento que é hoje em dia alvo de reportagens em directo durante mais de 20 horas, desde a procissão dos pastores, que se realiza às quatro e meia da manhã, até ao fogo-de-artifício que encerra as festividades.

As várias procissões que decorrem ao longo do dia têm finalidades diferentes, mas são acompanhadas por milhares de fiéis de todas as idades. Na que se realiza ao início da tarde, a imagem da Madonna é transportada numa carruagem, separada da que representa o seu filho, habitualmente colocado no seu braço esquerdo. Mãe e criança são reunidas mais tarde e regressam à Catedral ao cair da noite, naquela que é a procissão mais comovente e inspiradora da festa – ou pelo menos é assim que a retratam os vários testemunhos gravados em vídeo nos anos mais recentes. Neste cortejo, as duas figuras seguem num carro alegórico triunfal, puxado por mulas, antecedido por um grupo de “guardas” a cavalo e rodeado por seguranças, que formam um cordão para proteger todo o cortejo. Antes de voltar ao seu lugar dentro da Catedral, o carro que transporta a Madonna dá três voltas à Piazza del Duomo, um ritual para invocar a protecção da cidade.

O carro alegórico é diferente todos os anos, concebido segundo um tema escolhido nas escrituras, com esqueleto de madeira e decorado com figuras e outros elementos modelados em cartão e papier machê. Depois de aliviado da sua carga preciosa – a figura da Madonna – percorre a Via delle Beccherie (a única rua dos Sassi onde é possível a passagem de carros) até à Piazza Vittorio Veneto, feericamente iluminada para a ocasião. E é quando entra nesta praça que começa a loucura. Centenas de pessoas atiram-se (literalmente!) ao carro, empurrando-se, atropelando-se, trepando umas por cima das outras, braços em riste para arrancarem um pedaço das figuras ornamentais. Em poucos minutos, o trabalho de meses é destruído, e os felizardos que conseguiram para si (ou também para os amigos, pois muitos deles organizam-se em grupos) um bocadinho de uma figura sentem-se abençoados e vão guardá-lo para sempre como amuleto de boa sorte. Dizem os estudiosos que este acto aparentemente bárbaro simboliza o triunfo do bem sobre o mal e a renovação da vida. Mariagrazia afirma que o acontecimento não é tão selvático quando parece, mas mesmo assim prefere manter-se longe. Há dois anos, o filho teve a sorte de conseguir um desses cobiçados pedacinhos. A fé materana é transversal a todas as gerações, e a tradição secular mantém-se de boa saúde.

O número de lugares de culto em Matera é impressionante, e rivaliza com o de cidades italianas bem maiores e mais conhecidas. O edifício religioso mais significativo, como não podia deixar de ser, é a Catedral de Maria Santissima della Bruna e Sant'Eustachio. Data de 1270 e foi construída, em estilo românico apuliano, no ponto mais alto da cidade, marcando a divisão entre os dois Sassi de Matera. As alterações de que foi alvo nos séculos XVI e XVIII deram-lhe um aspecto exterior híbrido e um interior barroco, com tectos falsos em madeira pintada com cenas litúrgicas, retábulos e capelas com mármores coloridos, e muitos elementos em talha dourada. Ainda assim, a luz que entra pelas janelas do clerestório e pelo vitral singelo, a par da abundância de branco, dão ao espaço alguma leveza, que contrabalança o excesso de elementos ornamentais.

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Também do século XIII, mas muito menos modificada, a igreja de San Giovanni Battista é outro belo exemplo da arte românica. Tem um portal magnífico, decorado com motivos florais e cabeças humanas com cabelos encaracolados. O interior é espartano, pedra à vista com arcos ogivais e abóbadas nervuradas, decoração parcimoniosa, a altura central a sobrepor-se à largura. Os olhos são encaminhados para o alto e há um convite implícito à meditação, na altura da visita reforçado pelo terço rezado a várias vozes femininas.

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(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

 

Matera, singular e mágica - parte 1

Ana CB, 01.08.25

Vista de longe, do miradouro de Murgia Timone, Matera parece uma cidade bombardeada. Uma mancha cinza e creme onde se notam paredes em ruínas, janelas que parecem buracos negros, fachadas assomando entre rochas, telhados inexistentes substituídos por pedras empilhadas ao acaso ou terra de onde despontam arbustos incipientes. Paisagem cubista com formas interligadas, extravasando em todas as direcções sem ordem evidente, sucessões de degraus que parecem não ter princípio nem fim e evocam as impossibilidades da gravura “Relativity” de Escher.

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A tranquilidade aparente dá a ideia de um lugar abandonado. E no entanto, o engano não poderia ser maior: estamos perante uma das povoações mais antigas do mundo constantemente habitada desde há 10 mil anos. Porquê? O que é que tem de tão especial? Há que visitá-la para perceber.

 

Do desconhecimento ao estrelato

 

Entrando em Matera pelo planalto, no lado norte, a cidade não difere de qualquer outra: prédios baixos pintados em cores insuspeitas, com lojas e oficinas nos pisos inferiores; aqui um mercado, uma igreja moderna mais à frente, um silo industrial ao longe, espreitando por cima dos telhados. Muitos carros, algumas árvores espaçadas ao longo das ruas. É o Piano, a parte moderna da cidade, onde vive a maioria dos seus 60 mil habitantes.

Numa viagem de carro pelo sul de Itália, o aspecto prático sobrepõe-se frequentemente ao romântico, e a verdade é que nos centros históricos é impossível estacionar. Por outro lado, andar a pé faz bem, até mesmo para digerir as maravilhosas refeições de pasta a que sucumbimos de boa vontade quando andamos por terras italianas. Decidimos, por tudo isso, alojar-nos numa das ruas principais do planalto, a uma mera caminhada de 10 minutos da cidade antiga, e onde até parecia estar à nossa espera um lugar milagrosamente vago no pequeno estacionamento do outro lado da estrada. Um início auspicioso!

Apesar de ter os seus Sassi e o Parque das Igrejas Rupestres inscritos no Património Mundial da UNESCO desde 1993, Matera permaneceu longe da ribalta turística até muito recentemente. “Até há poucos anos, quando ia a Milão e dizia a alguém que vinha de Matera, olhavam para mim com ar de dúvida e perguntavam: onde é que isso fica?” – palavras de Mariagrazia, a dona do B&B Nonna Rosario, o alojamento onde ficámos. O clique da mudança deu-se em 2019, quando Matera foi Capital Europeia da Cultura, reforçado pelas filmagens da sequência de abertura do filme “007-Sem Tempo para Morrer”, que mostrou a cidade ao mundo quando estreou nos cinemas, em 2021. Em meia dúzia de anos, Matera tornou-se uma estrela do turismo tanto nacional como internacional, e o corrupio de visitantes é contínuo.

 

Uma cidade, várias faces

 

As sombras do final de tarde já se alongavam quando saímos ao encontro do centro histórico, pese embora a temperatura do ar se mantivesse nos 20 e bastantes graus. Íamos em busca dos Sassi, anfiteatros escavados numa das vertentes do Torrente Gravina, que corre, em esses de quem bebeu demais, pela região da Basilicata. São eles o motivo principal do fluxo de visitantes da cidade, mas ainda assim permanecem uma face oculta, resquícios de vergonha antiga, escondidos que estão para quem vem da parte moderna. As construções que ocupam a Civita, o centro histórico medieval que se espalha pela orla do planalto, são um biombo formado por igrejas, palazzi e edifícios vários que impedem a visão imediata dos Sassi. Fervilhando de gente – habitantes locais à conversa, miúdos montados em patins ou bicicletas com rodinhas, casais de namorados, e uma boa dose de estrangeiros – a Piazza Vittorio Veneto é o centro nevrálgico da Matera antiga, uma espécie de foyer de um teatro onde nunca entrámos, e de que não sabemos bem o que esperar.

Quando passei os modestos arcos de acesso ao terraço-miradouro Luigi Guerricchio e consegui um disputado lugar na varanda de ferro forjado, entrei noutra dimensão. O anfiteatro de pedra do Sasso Barisano abria-se à minha frente e aos meus pés, tão amplo quanto compacto: uma amálgama de edifícios e rocha, de volumes desordenados, um puzzle concebido por um louco e que o meu cérebro teve dificuldade em processar. No cenário aloirado pelo sol da “golden hour”, qual estrela no cimo do pinheiro natalício, a catedral brilhava contra o céu sarapintado de aves irrequietas, com a torre sineira a destacar-se para assinalar a importância do edifício. Metade do Sasso já estava à sombra, dando ao quadro um aspecto ainda mais dramático. O meu coração falhou uma batida. Terá sido nessa altura que me enamorei de Matera?

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Se não foi, decerto não terá tardado muito. Aventurámo-nos pelas vielas e escadinhas íngremes, na ânsia de sentir o efeito de penetrar naquele labirinto. Os Sassi são enganadores. Olhamos para o mapa e parece que determinado ponto está ali mesmo ao lado. Orientamo-nos naquela direcção, mas as ruelas são tão imbricadas que às tantas damos por nós a andar em sentido contrário, para a seguir descobrirmos que o lugar que procuramos está dois níveis acima (ou abaixo!). Não são raras as vezes em que temos de voltar pelo mesmo caminho, para depois entrar numa outra viela, subir ou descer mais uma porção de degraus – e temos sorte se não formos dar a um beco. Meio perdida no cenário, senti-me criança a viver uma aventura livresca, quase à espera de ver o Professor Dumbledore surgir ao virar de uma esquina.

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Entre tentativa e erro, lá conseguimos dar com o restaurante onde tínhamos decidido ir jantar. Chama-se “Il Terrazzino”, e o nome não engana: uma escadaria estreita, ao ar livre, deixa-nos num terraço abrigado sob uma arcada tripla, de onde temos uma vista soberba sobre a vertente norte do Sasso Barisano. Mesas quadradas, cobertas com simples toalhas brancas, e cadeiras robustas de madeira escura, num ambiente quase espartano que realça o panorama exterior. Aqui qualquer comida saberia bem, que os olhos degustam tanto quanto o palato. E no entanto, há mais. Um atendimento sorridente e caloroso, comida tradicional deliciosa – como a parmigiana di melanzane (à base de beringela) ou as orecchiette al tegamino (uma massa típica da Puglia) – e ainda a oportunidade de conhecer uma antiga adega no subsolo do restaurante. A adega data de 1600 e foi escavada na rocha, seguindo a arquitectura típica dos Sassi. Nas suas várias salas está organizada uma exposição etnográfica, com objectos originais e fotografias que mostram como era a vida dos camponeses de Matera até meados do séc. XX.

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Quando saímos do restaurante, já sob o pano azul-escuro da noite, a cidade apresentava uma outra face, plena de contrastes. O negrume engolia certas partes dos Sassi, enquanto outras tinham ganhado uma vida diferente sob os focos de luz. A escuridão disfarçava as zonas ainda em ruínas, esbatia imperfeições e escondia guindastes, as luzes uniformizavam a pedra, às vezes criando pontos de cor. A Matera nocturna parece mais moderna, mas não menos misteriosa.

De regresso ao alojamento, nova passagem na Piazza Vittorio Veneto, onde o movimento decuplicara no espaço de apenas duas horas. A cidade inteira parecia ter saído à rua. O ambiente era de festa e até estavam montados grandes arcos de iluminação em vários pontos da praça, mas as suas lâmpadas mantinham-se apagadas. Só mais tarde viria a perceber porquê.

 

O pão de Matera

 

Na manhã seguinte, Mariagrazia serviu-nos o pequeno-almoço numa sala-cozinha luminosa, a divisão central do seu B&B. De um saco de papel retirou um pão estranho, com uma crosta escura e um ar tosco. Cortado em fatias, o miolo revelou-se amarelo, a fazer lembrar o nosso pão de milho, mas ao prová-lo percebi que era muito diferente, com uma textura e um ligeiro pico azedo a evocarem o pão alentejano. Sem o saber na altura, estava a comer um pão tradicional centenário, típico dos Sassi de Matera, actualmente classificado como IGP (Indicação Geográfica Protegida) e produzido segundo critérios rígidos que evitam a sua desvirtuação.

A base do verdadeiro pão de Matera é idêntica à de tantos outros pães: farinha, fermento, água e sal. Mas esta identidade é apenas genérica, pois tanto os ingredientes como o processo de produção têm particularidades que, somadas, resultam num produto muito especial. O ingrediente mais importante, a farinha, obtém-se a partir da sêmola de grãos de uma variedade de trigo tradicional muito difundida na região lucana, conhecida como “Senatore Cappelli”. Este tipo de trigo conserva no seu património genético características que não se encontram noutras variedades, e que conferem ao pão de Matera aroma e sabor únicos, além de ter um glúten mais facilmente digerido. A fermentação é longa e tem um segredo: é usada massa-mãe que envolveu a maceração de uvas e figos fermentados em água de nascente local. Finalmente, a cozedura tem obrigatoriamente de ser feita em forno de lenha alimentado com essências típicas da região.

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Dizem os locais que o formato do pão de Matera – comprido, alto e arqueado, quase um cone – se assemelha ao das elevações abruptas da Murgia, a região geográfica em que a cidade se insere. Antes de a massa ir para o forno, leva três cortes rituais, em representação da Santíssima Trindade. O pão foi durante séculos a base da alimentação dos habitantes dos Sassi, e esta era uma forma de agradecerem a Deus o alimento que lhes permitia sobreviverem. A massa era cozida em fornos comunitários, e para evitar confusões cada pão era marcado com um carimbo de madeira ou terracota que tinha gravadas as iniciais da família a que pertencia. Os carimbos são hoje acervo de museu, mas o pão tradicional continua a ser o preferido pelos materanos.

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A magia da pedra

 

No extremo oriental da Basilicata, região do sul de Itália, o sulco geológico a que dão o nome de Gravina di Matera define o território da Murgia Materana, um planalto calcário caracterizado por fendas profundas, ravinas, rochas e cavernas, coberto de vegetação mediterrânica. Os achados arqueológicos mostram que esta região é habitada desde o Paleolítico, quando as suas grutas e saliências rochosas de formação natural serviam de abrigo aos humanos, nessa altura caçadores-recolectores. Com a agricultura e o sedentarismo, por alturas do Neolítico, surgiram os primeiros assentamentos, que aproveitaram as cavernas escavadas nas encostas das ravinas, num exemplo perfeito de adaptação humana ao meio natural, tirando o máximo partido da geomorfologia e do espaço locais.

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Estas habitações trogloditas nunca deixaram de ser usadas e o seu número foi aumentando ao longo dos séculos. Na Antiguidade tardia e início da Idade Média já eram a forma de povoamento mais difundida em Matera, constituindo um labirinto de grutas que se estende para lá do imaginável: o que está à vista é apenas 30 por cento do total, que ascende a um número entre 1500 e 3000, dependendo do critério usado para contabilizar as estruturas. Muitas delas foram adaptadas e modificadas ao longo do tempo, com construções de alvenaria prolongando a frente das grutas – nos Sassi, as casas foram construídas para satisfazer as necessidades das famílias. Estas habitações subterrâneas espalham-se em grupos, de forma irregular, acompanhando as camadas de rocha calcária macia. Com o passar do tempo, a forma pré-histórica de viver numa gruta cristalizou-se no modelo de habitação característica de Matera.

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No entanto, embora os agricultores, pastores e comerciantes menos endinheirados vivessem nas casas trogloditas, a população pertencente às classes mais abastadas (clero, nobres e negociantes bem-sucedidos) construiu para si, na parte mais alta da cidade, palacetes e mosteiros mais consentâneos com a sua posição social, ao gosto de cada época. Esta é a razão pela qual existe uma diferença acentuada entre a morfologia dos edifícios da Civita e dos Sassi.

Ainda assim, quando no dia seguinte parámos no miradouro da Piazzetta Pascoli (a “varanda” de Matera), de onde temos uma vista abrangente sobre o Sasso Caveoso, não pude deixar de admirar a forma como ali tudo parece fundir-se naturalmente. As construções mais elaboradas transfiguram-se mais abaixo em casas que se projectam das grutas, esculpidas na colina, desdobrando-se até se confundirem com a paisagem. Casas e ravina misturadas, feitas de uma mesma rocha, unidas pelas mesmas tonalidades cruas e acinzentadas. Caos e harmonia em coabitação pacífica.

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Em dia quente e sem ponta de vento, subir e descer ruas íngremes e escadinhas sinuosas não é um passatempo recomendável. Mas Matera parece irradiar uma energia especial que torna tudo mais leve. Durante as várias horas em que percorremos os Sassi, os meus joelhos não se queixaram das centenas de degraus que subi, os pés resistiram sem mossa aos milhares de passos que dei, o calor não me incomodou, o humor esteve sempre em alta. Coincidência ou sortilégio? Na dúvida, apetece-me mais optar pela segunda hipótese.

(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Cerejeiras e escritores: um roteiro no Fundão

Ana CB, 04.07.25

Há sítios que se visitam com os olhos, outros com os pés. O território do Fundão – uma discreta preciosidade encostada à serra da Gardunha – merece ser percorrido com ambos, mas também com o coração aberto e um bom livro na mochila. Entre encostas pintalgadas de branco pelas cerejeiras em flor e lugares que guardam séculos de histórias, este roteiro é uma viagem por palavras, paisagens e memórias.

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Entre palavras e cerejeiras: um passeio onde a literatura floresce

 

Nesta Primavera tenho andado em busca de lugares floridos. Talvez seja uma forma de equilibrar o meu estado de espírito, tão cinzento quanto os meses passados, desencadeado por esta espécie de retrocesso humano e civilizacional da época em que vivemos. As flores são uma prova de que a vida tende a renascer ciclicamente, e de que vale a pena ter esperança. E são sempre uma fonte de alegria quando dela mais preciso.

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No nosso país, em que metade da fronteira acaba em mar, há lugares felizes onde se começa pelo que brota da terra. A Cova da Beira é um deles. Ali pela primeira ou segunda semana de Abril, a região transforma-se num postal em movimento, com milhões de flores de cerejeira que rebentam em festa. É um espectáculo efémero e, por isso mesmo, memorável. O resultado de tanta efusividade chega com o prenúncio do Verão, quando as cerejas despontam como rubis brilhantes entre o verde da folhagem.

Mas há mais. Por aqui, as cerejas misturam-se com as palavras (afinal, todas elas vêm sempre umas atrás das outras…) e podemos seguir os rastos da poesia de Eugénio de Andrade e do elefante Salomão de José Saramago, enquanto conhecemos aldeias serranas com identidade própria, uma culinária que aproveita os produtos locais, e pessoas que não se esquivam a uma boa conversa.

 

“A aldeia era uma aldeia como já não se vêem nos dias de hoje”

 

Apesar de ter decidido viver em Lanzarote durante uma boa parte da sua vida, Saramago nunca escondeu o seu gosto por Portugal, pela sua história, pelas suas paisagens, pelos seus lugares remotos ou despercebidos. Em 2009, um ano depois de lançar o seu último livro, “A Viagem do Elefante”, e um antes da sua morte, o escritor viajou pela rota que imaginou para pano de fundo deste livro, entre Lisboa e Figueira de Castelo Rodrigo. O intuito foi chamar a atenção para algumas regiões do interior de Portugal que permanecem na sombra dos itinerários turísticos.

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A páginas tantas do seu livro – que relata a hipotética viagem de um elefante oferecido por D. João III ao seu primo Arquiduque Maximiliano de Áustria, à data regente de Espanha e residindo em Valladolid – a comitiva que acompanha o elefante Salomão chega a uma aldeia. O nome da dita cuja nunca é referido, mas no roteiro da visita de Saramago assumiu-se que ela seria Castelo Novo. Entre a breve descrição no livro e a localidade tal como a vi na altura da minha visita, nada há de coincidente – nem o século, nem o mês, que a viagem do elefante se desenrolou no Verão e nós cumprimos este roteiro numa Primavera cinzenta e meio chuvosa.

 

Tranquilidade com selo literário

 

Castelo Novo é cenário natural para introspecções literárias. Aqui há algo do ritmo lento e reflexivo de Saramago, da densidade dos silêncios, da beleza escondida nas pequenas coisas. Vaguear é a atitude certa para percorrer esta aldeia histórica, com a certeza de que cada rua revelará alguma novidade: uma capela de pedra, vasos de flores na escada de uma casinha amorosa, uma torre que espreita por trás de um telhado, uma porta pintada de verde-lima, dois gatos que bebem água da chuva e parecem o espelho um do outro.

Encaixada numa vertente da Gardunha, Castelo Novo vive entre a vertigem da encosta e o acolhimento das suas ruas de pedra. Tudo parece ter sido desenhado com calma: as casas baixas e sólidas, os portais góticos, os caminhos estreitos que se entrelaçam como versos livres. A aldeia está impecavelmente conservada, todavia sem perder o seu carácter rústico e genuíno.

Um dos seus maiores encantos é o som constante da água, ampliado pelas chuvas recentes. O Chafariz da Bica é um dos ex-líbris da aldeia, exibindo a sua estética barroca no cimo de uma escadaria que hoje parece demasiado aparatosa para uma finalidade tão básica: dar de beber a homens e animais. O acto de simplesmente deitar a mão a uma torneira para termos água potável faz-nos esquecer que nem sempre foi assim.

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No Largo do Pelourinho, a água cai das três bicas de outro chafariz, este dedicado a D. João V. Há um aviso na parede: “água não controlada”. Quando é que deixámos de confiar nas águas que durante séculos serviram para matar a sede aos nossos antepassados? Será assim tão dispendioso verificar a sua origem e assegurar que pode ser bebida? O chafariz deixaria de ser um mero ornamento arquitectónico, tornado obsoleto pela sua inutilidade, e poupavam-se umas quantas garrafas plásticas que vão acabar sabe-se lá onde.

Mas adiante. Este chafariz barroco está encostado à Casa da Câmara e Cadeia, que são manuelinas, tal como o pelourinho em frente. A patine do tempo encarregou-se de esbater as diferenças entre os estilos: o granito está igualmente manchado e desgastado em todas estas estruturas, e unifica o conjunto. Acima do largo ergue-se a Torre Sineira, que até parece fazer parte da Casa da Câmara, mas na verdade está inserida na muralha do castelo.

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Porque o nome não engana: Castelo Novo nasceu à sombra de uma fortificação. O castelo medieval, de que hoje apenas restam ruínas evocativas, foi erguido no século XIII, em plena fase de reconquista e consolidação territorial. Apesar do adjectivo “novo”, o castelo já viu muito mais do que a maioria de nós verá: batalhas, reis, reformulações – e agora, selfies. Do alto das muralhas (do que resta delas), 650 metros acima do nível do mar, a vista alonga-se por muitos quilómetros: serranias a perder de vista (em dias claros vê-se ao longe a Serra da Estrela), com a Cova da Beira lá em baixo, como um tapete verde e fértil. Ninguém escapa à tentação de pousar ali uns minutos, mesmo com vento pouco convidativo, só pelo privilégio de tão extenso panorama.

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N’ “A Viagem do Elefante”, Saramago foi omisso quanto à opinião do paquiderme sobre a aldeia perdida nas encostas da Gardunha. Terá ele também apreciado a paisagem, tão diferente da sua Índia natal? Nunca saberemos. Mas nós, humanos, temos motivos de sobra para ir conhecer Castelo Novo.

 

Segredos de Alpedrinha

 

A escolha de José Saramago para aldeia do seu livro podia bem ter sido outra. Alpedrinha é hoje vila, mas na verdade tem ambiente de aldeia. Ainda mal tínhamos saído do carro e já o Sr. António, bengala na mão e sorriso maroto nos lábios, metia conversa connosco. Logo ficámos a saber que todas as manhãs faz questão de estar naquele miradouro, junto à Capela de Santo António, à hora a que passa o comboio rápido com destino à Guarda. Palavra puxa palavra, contou-nos uma boa parte da sua longa história de vida, com graça e boa disposição. E quando lhe pedimos sugestão de lugar para almoço, não hesitou em guiar-nos até um restaurante ali próximo e recomendar-nos ao dono.

Mesa marcada, despedimo-nos do Sr. António e encaminhámo-nos encosta acima – afinal, havia que criar apetite para o que já calculávamos ir ser uma refeição não muito leve. Alpedrinha é feita de calçadas estreitas, empedradas, de escadinhas irregulares que serpenteiam por entre casas de granito. Tudo aconselha andar devagar, muito devagar. A pressa poderia fazer com que não nos apercebêssemos de certos pormenores, e é frequente serem os pormenores que marcam a diferença. Como a fonte desactivada em frente à casa dos Paços do Concelho, modernista, em metal oxidado e com ar de recente, mas que vista de perto percebemos ser afinal muito antiga: a placa colocada no topo diz “Lusalite - Lisboa”, e esta fábrica (à porta da qual passei tentas vezes) fechou em 1999. Ou a casita meio degradada com uma pequena cruz de ferro na frontaria, entre um nicho com uma imagem religiosa de idade indecifrável e uma janela emoldurada por granito, agora pintado de branco, com dois arcos recortados na cornija.

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Alpedrinha foi uma aldeia rica, estratégica e influente, e esse estatuto ainda ecoa nas fachadas e nos brasões das casas. Despercebido não passa o antigo Solar dos Pancas, que agora é creche da Santa Casa da Misericórdia. Palacete do século XIX com abundantes varandas de ferro forjado, tem um jardinzinho anexo e faz reconto com a bonita Capela de Santa Catarina, tardo-gótica (1501), à qual chamam também Capela do Leão. Este nome vem do fontanário que está ao lado, uma das mais antigas fontes de Alpedrinha – tão antiga que a imagem esculpida, de onde jorra um fio de água, já muito desgastada pelo tempo, poderá de facto representar um leão… ou outro bicho qualquer.

Sempre a subir, atalhámos caminho pela Igreja Matriz, dedicada a São Marinho Bispo. No muro, uma placa metálica lembra as vítimas mortais do saque de que a localidade foi alvo em 1808, durante a 1ª Invasão Francesa.

Chegámos finalmente ao cimo de Alpedrinha, e a um dos monumentos mais emblemáticos da vila, o Chafariz D. João V. Aquele que foi apelidado de “Rei-Sol português” parece ter sido muito popular aqui pelas bandas da Gardunha, e este fontanário não lhe desmerece o estatuto: um grande tanque, uma escadaria simétrica, remates com bolas, volutas e um baluarte com três bicas, encimado por uma coroa.

Num plano ainda mais elevado, vêem-se os muros do Palácio do Picadeiro, à porta do qual passa uma calçada romana. Construído no século XVII, este solar barroco é mais um ex-libris de Alpedrinha, mas tem tido uma vida atribulada. Já foi tribunal, hospital e (pasme-se!) tipografia, e é actualmente um museu e espaço cultural (mas, infelizmente, fechado para remodelação há já algum tempo). O seu amplo pátio é, além do mais, um mirante de excelência sobre a vila e a paisagem da Gardunha.

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Alpedrinha não vive apenas de memórias antigas. Todos os anos, em Setembro, a vila transforma-se no palco do Chocalhos-Festival dos Caminhos da Transumância, uma homenagem às rotas percorridas pelos pastores da Beira Interior. Há música, exposições, artesanato, petiscos… e chocalhos, claro. O som metálico percorre as ruas e anima as esquinas, numa festa que une tradição e contemporaneidade. Uma homenagem diferente aos pastores, e em especial ao já falecido “Ti Lopes”, é o mural pintado por Styler (a.k.a. João Cavalheiro) num edifício quase à entrada da vila.

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Depois do passeio, o almoço foi no Degusta-me Petiscos, onde o cardápio varia em função da época. O prato estrela do dia era cabrito, de que não sou grande apreciadora, e optei pelo bacalhau assado, que estava excelente. Ainda assim, e por insistência do chef, que me garantiu que o seu cabrito é temperado de maneira especial e não fica com o sabor intenso que eu não aprecio, atrevi-me a provar um pouco. E tive de concordar com ele, pois estava muito apetitoso. Em conversa, falou-nos de um dos segredos da sua cozinha: o uso de uma erva aromática pouco conhecida mas bastante usada nas Beiras, parecida com o tomilho e a que chamam serpão. Escusado será dizer que saí do restaurante quase a rebolar…

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Póvoa de Atalaia: onde nasceu um poeta

 

Foi não muito longe de Alpedrinha, em Póvoa de Atalaia, que por capricho da natureza ou dos deuses nasceu um dos nossos maiores poetas: Eugénio de Andrade. Embora tenha vivido grande parte da sua vida no Porto e em Lisboa, José Fontinhas (o seu nome de registo) nunca renegou a sua aldeia. Pelo contrário, os campos, as árvores, a luz e até o silêncio da Beira perpassam muitos dos seus versos.

Pequena, com pouco mais de 200 habitantes, Póvoa de Atalaia carrega o peso doce de ser berço de um dos poetas mais universais da língua portuguesa. E a aldeia presta-lhe justa homenagem na forma da Casa da Poesia, um espaço museológico e cultural dedicado à sua vida e obra, a funcionar na antiga escola primária onde o poeta deu os primeiros passos nas letras – literalmente.

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Na modorra de um início de tarde em que a chuva tinha feito uma pausa bem-vinda, vagueámos em volta da casa enquanto esperávamos pela hora de abertura. O edifício foi restaurado com respeito pela traça original e tem um pequeno parque infantil à frente; só a placa no muro identifica a sua finalidade. Uma das fachadas está totalmente ocupada por um mural alusivo a Eugénio de Andrade e à sua obra, concebido pela artista plástica polaca NeSpoon. Nas traseiras, alguns poemas traduzidos em inglês foram colocados nos vidros. A poesia casa bem com o perfume das cerejeiras em flor que dão sombra ao lugar.

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Quem nos guiou na visita à casa foi a Marta Barroso Ramos, dinamizadora cultural (além de cantora e cineasta) e profunda conhecedora da obra e vida de Eugénio de Andrade. O espaço inclui uma sala com documentos, fotografias, edições várias, cartas, manuscritos e objectos pessoais. Mas mais do que um lugar para “ver coisas”, a Casa da Poesia é um sítio para sentir a presença do poeta. As palavras dele vivem ali, nas paredes ondulantes forradas de cortiça, nas frases e nos poemas que surgem aqui e ali, em jeito de bálsamo ou inspiração.

Ver o exterior da casa que o poeta habitou na infância foi pretexto para passear um pouco pela aldeia – que é simples mas está bem cuidada. Não é fácil dar com a casinha minúscula, onde a pedra já se mistura com o cimento mas o lintel e os pilares se mantêm em granito. Unificada com as casas idênticas que a ladeiam, consta que pertence agora a uma família estrangeira e é usada para alojamento local. Uma placa ao lado da porta confirma que ali “viveu Eugénio de Andrade quando menino”. Quando ainda não se sabia que ele iria ser um dos nossos maiores poetas.

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(Já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (6)

Cristina Torrão, 07.02.25

Continuamos pelo planalto do Norte de Espanha, Comunidade Autónoma "Castela e Leão", rota: Burgos, Valhadolid, Salamanca (parcialmente ao longo do Duero/Douro) - uma região inóspita, esparsamente povoada, mas cheia de gente capaz de reconhecer e recompensar a coragem de uma jovem.

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A 1 de Novembro, 55.º dia de viagem, Jette montava a tenda, quando um homem veio ter com ela, perguntando se precisava de ração para a égua. Ela aceitou logo, Pinou necessitava de mais do que apenas relva. Foram a casa dele. O homem tinha dois cavalos e Pinou acabou por ser levada para junto deles. O espanhol acabou por dizer a Jette que ela podia dormir no seu quarto de hóspedes. Ao pensar no frio da tenda, ela aceitou, apesar de ele viver sozinho (ou, pelo menos, estar sozinho, naquela altura). Ele encomendou pizza para o jantar. E tudo correu bem, sem surpresas desagradáveis. No dia seguinte, à partida, a moça recebeu ainda um saco de comida.

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Quatro dias mais tarde, Jette recebeu uma mensagem desse mesmo espanhol, perguntando-lhe onde estava e se a podia ajudar a encontrar um local para dormir. A moça deu-lhe as informações e, dez minutos depois, ele enviou-lhe um endereço de uma família que se prontificava a alojá-la, com lugar para a Pinou.

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Numa manhã, um homem veio ter com ela ao caminho, de tractor, dizendo-lhe que gostaria de lhe mostrar os seus cavalos. Além de admirar os belos animais, Jette já não seguiu viagem, acabou por ficar a dormir nessa quinta.

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A próxima cena é tipicamente ibérica, poderia ter acontecido também em Portugal: Jette chegou à praça principal de uma aldeia e, de repente, tinha cerca de quinze pessoas à sua volta. Falavam todas ao mesmo tempo, fazendo-lhe perguntas, mas a moça não as entendia. Uma mulher acabou por surgir com alguém que sabia inglês. E convidou Jette para ficar na sua quinta, que, além da família, albergava um rebanho de trezentas ovelhas.

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A 7 de Novembro, 60.º dia de viagem, Jette chegou a Moríñigo, perto de Salamanca. Pernoitou, mais uma vez,  em casa de uma família e, no dia seguinte, “um homem muito simpático, sobre um belo cavalo espanhol”, acompanhou-a, mostrando-lhe o caminho para Arapiles, onde lhe tinha arranjado estadia.

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Depois do jantar, em Arapiles, Jette foi levada à bela Salamanca.

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Na manhã seguinte, ela tornou a ser acompanhada, durante alguns quilómetros, por um cavaleiro, amigo da família onde pernoitara. O mesmo aconteceu dois dias mais tarde. Os espanhóis revelavam-se, não só bons cavaleiros, como também cavalheiros.

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Nas últimas etapas, antes da fronteira portuguesa, Jette dava, constantemente, com portões. Deixavam-se aliás abrir facilmente e ela não hesitava em passar por esses terrenos, era-lhe difícil encontrar alternativas. Felizmente, não foi admoestada.

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Passava por manadas de bovinos e a Pinou surpreendia-a, mantendo-se calma, contrariando o comportamento  apresentado, antes da viagem: sempre se mostrara nervosa na presença de vacas, ou mesmo de ovelhas e cabras.

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Atrás de mais um portão, porém, Jette deparou com uma quinta de touros! A avaliar pelo vídeo (Tag 64), eu diria que eram de vinte a trinta animais. A moça ainda hesitou, mas acabou por entrar. Coragem, ou inconsciência, irresponsabilidade?

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O certo é que o insólito aconteceu: os touros comportaram-se como cordeirinhos! Ficaram calmos, enquanto a moça passava por eles, sobre a égua. Nem sequer reagiram, quando Pinou não resistiu e começou a comer de um dos montes de palha espalhados pelo terreno.

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Que conclusão tirar? Que os touros não são tão agressivos como se pensa? Que estes estavam habituados a ver cavaleiros e seus cavalos? Que sentiam a descontracção de Jette e de Pinou, respeitando-as e/ou não as vendo como ameaça? Os animais têm de facto sensibilidade especial para ler estados de espírito, digamos assim, uma espécie de sexto sentido. Aprendi isso com os cães. E todas as amizades entre humanos e animais, mesmo tratando-se de animais selvagens, como leões, por exemplo, são baseadas numa confiança incondicional, estabelecendo um compromisso que nunca lhes passa pela cabeça quebrar.

Muitos dirão ter sido apenas sorte, no caso de Jette. Não excluo essa hipótese. Mas é fascinante ver as fotografias e os vídeos postados pela moça.

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Estava-se a 10 de Novembro. Nesse dia, Jette chegou a Sancti-Spíritus e tinha apenas mais três etapas, até à fronteira portuguesa: Ciudad Rodrigo, Gallegos de Argañán e La Alamedilla. O planalto ia dando lugar à região montanhosa, que plenamente se desenvolve no lado português. A paisagem já era mais verde. Jette acabou por apanhar alguma chuva, o que aliás, tem as suas vantagens.

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Dez dias atrás, a moça lamentava, no seu diário, ainda lhe faltarem mais de 300 km até Castelo Branco. Nesse serão, escreveu que, apesar de se alegrar com a aproximação a Portugal, também se sentia um pouco triste, perante o fim da aventura. O fim desta viagem da sua vida.

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (5)

Cristina Torrão, 31.01.25

Depois de ver o pai ir-se embora, deixando-a no meio daquela região seca e solitária, na região de Burgos, Jette não conseguiu evitar a tristeza. Preocupava-se igualmente com a Pinou, já um pouco emagrecida. Conseguiria encontrar relva fresca, por aqueles caminhos de cascalho, que tinham ainda a desvantagem de acelerar o desgaste dos  “sapatos” da égua?

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Jette fixou a sua atenção nos aspectos positivos. O sol brilhava e a temperatura era amena (17ºC). E encontrava fontes pelo caminho, como aliás já lhe haviam dito ser usual em Espanha, onde a Pinou podia matar a sede.

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Para a primeira noite, Jette encontrou, inclusive, um relvado com uma fonte, à saída de uma aldeia. Teve algumas reservas em montar a tenda em terreno público, sem permissão, mas ninguém reclamou. Pelo contrário. Várias pessoas passeavam por ali, com os seus cães, e cumprimentavam-na. Muitas tentavam conversar com ela, mas Jette quase nada entendia. Mesmo servindo-se do tradutor do Google, a comunicação era difícil. E ela estava cansada. Não obstante a simpatia das pessoas, a situação mostrava-lhe as dificuldades que teria de enfrentar, naquele país. Quando se recolheu na tenda, a moça sentiu-se muito sozinha.

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Nos dias seguintes, Jette tinha dificuldades em encontrar onde dormir. Sucediam-se as aldeias e quintas abandonadas.

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Num certo serão, era já bem tarde, quando encontrou uma localidade habitada. Sem vontade de procurar um lugar adequado, montou a tenda num parque infantil relvado. Ainda ali brincavam algumas crianças, preocupando Jette, pois os pais poderiam não ficar satisfeitos.

Mas niguém reclamou. Na verdade, os petizes ficaram muito entusiasmados com aquelas viajantes exóticas e até arranjaram maneira de carregar o powerbank de Jette.

Numa outra aldeia, parcialmente abandonada, Jette sentia os olhares curiosos pousados sobre si, quando lá entrou. Acabou por encontrar os obrigatórios fonte e relvado. Montou a tenda e encontrava-se a planear a rota para o dia seguinte, quando um carro parou à sua frente. Um espanhol começou a falar com ela. Sem o entender, Jette acabou por responder apenas “Sí”. O homem abalou. Passado um quarto de hora, surgiu-lhe com um saco de comida. E a surpreendida Jette acabou por jantar bem melhor do que pensava.

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Depois de mais uma noite passada na tenda, uma mulher veio ter com ela, convidando-a para tomar o pequeno-almoço e autorizando-a a tomar duche em sua casa. Lá chegada, Jette constatou que o marido sabia falar inglês, tornando a comunicação bem mais fácil.

Surpreendeu-se com o pequeno-almoço, onde abundavam os croissants e as bolachas. À despedida, ainda lhe deram um saco de comida.

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Numa outra aldeia, quando estava a montar a tenda, foi abordada por uma idosa, que tinha vivido oito anos na Alemanha e sabia falar alemão. Os outros habitantes aperceberam-se da conversa animada entre as duas e, inteirando-se da jornada de Jette, trouxeram-lhe o jantar. A idosa, apesar de não ter um quarto para a moça, quis mostrar-lhe a sua casa, onde vivia sozinha e onde as duas passaram o serão a ver fotografias da sua família.

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Apesar destes bons momentos, Jette passava dias inteiros sem encontrar ninguém, pelo caminho, enquanto percorria o planalto seco. Além disso, os dias ficavam cada vez mais curtos e, à noite, a temperatura chegava a descer aos 8ºC, com vento. Condições difíceis para dormir na tenda.

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A 31 de Outubro, o 54.º dia da viagem, Jette atravessou o Douro (Duero), a caminho de Traspinedo, perto de Valhadolid.

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Ao serão, escreveu no diário (tradução minha): “Neste momento, apenas desejo chegar ao destino. Segundo o Maps, são ainda 330 km até Castelo Branco, embora eu saiba que acabarão por ser mais. Sinto-me esgotada e noto que também a Pinou está cansada. Talvez a bonita paisagem nos consiga ainda animar, mas, por agora, estamos as duas cheias desta jornada."

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Logo a seguir, porém, tentou animar-se (admiro esta sua capacidade de olhar, sempre, para os aspectos positivos): “Por outro lado, fascina-me a confiança total que a Pinou deposita em mim. Ela seguir-me-ia incondicionalmente para todo o lado. E constato que, em Espanha, as pessoas são generosas, muitas vezes, melhores do que se pensa. Tenho de ter sempre presente este tipo de experiências, nos meus pensamentos – uma oportunidade enorme, um presente inacreditável."

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Compensou acreditar na generosidade das pessoas. A hospitalidade de nuestros hermanos não deixou de surpreender Jette. Talvez eu própria, ao ler o seu diário, tenha ficado ainda mais surpreendida do que ela.

Num serão, depois de encontrar um relvado, a moça preparava-se para tirar a sela a Pinou, quando uma mulher veio ter com ela. Sabia falar inglês, morava ali mesmo ao lado e convidou-a para jantar e pernoitar em sua casa. Veio mesmo a calhar, sendo as noites já tão frias.

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Numa outra aldeia, foi abordada por várias pessoas e, quando ela disse não falar espanhol, foram logo buscar quem soubesse inglês. Este “tradutor” convidou-a para jantar e pernoitar na casa da sua família, podendo a Pinou ficar no terreno relvado do vizinho. Além disso, entrou em contacto com conhecidos na aldeia onde Jette programara passar a próxima noite, logo lhe arranjando alojamento.

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Talvez não fosse assim tão difícil continuar até à fronteira portuguesa, em pleno Novembro...

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (4)

Cristina Torrão, 24.01.25

Além da alegria pelo reencontro com o pai, Jette passou um serão muito agradável, com a senhora que os hospedou, o seu neto e o cão da família.

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Estavam apenas a 10 km da fronteira francesa e, num acto simbólico, Jette atravessou-a a cavalo, enquanto o pai esperou por ela do lado francês.

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Depois de acomodarem a Pinou no atrelado, fizeram-se ao caminho, em direcção a Espanha.

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Jette queria, porém, realizar um sonho: cavalgar ao longo do Atlântico. Fizeram, então, uma paragem em Capbreton, pequena localidade costeira perto de Bayonne. Aí, Jette e Pinou viveram momentos inesquecíveis.

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A moça cavalgou durante cerca de uma hora, na praia. Jette escreveu (tradução minha): “Penso que nunca tinha galopado a tamanha velocidade. Depois de tanto tempo no atrelado, a Pinou estava cheia de energia, fazendo a areia voar à nossa volta. Um grande sonho meu tornou-se realidade e não consigo expressar em palavras os sentimentos que me abalroam. Tenho uma sorte incrível em poder viver tudo isto."

Há um vídeo, feito pela própria Jette, a galopar. Quem tiver Instagram, pode vê-lo, no 43º dia de viagem (Tag 43). Ponho aqui um frame desse vídeo, onde se vê a crina da Pinou a voar.

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Realizado este sonho, Jette e o pai retomaram a viagem. Atravessaram a fronteira e alojaram-se numa bonita quinta, nos Pirenéus, onde ficaram três dias.

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Aproveitaram para visitar Bilbao, a cerca de hora e meia de distância.

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Em princípio, Jette retomaria a sua viagem a partir do alojamento, mas, tanto ela, como o pai, pensaram ser melhor deixar os Pirenéus para trás. Uma boa ideia, sobretudo, tendo em conta que já se encontravam em fins de Outubro. Avançar sozinha com a Pinou, por zona tão montanhosa, onde não se exclui a caída de neve, podia tornar-se perigoso. Seguem-se algumas imagens minhas, igualmente frames, de um troço da auto-estrada entre Vitoria (Gasteiz) e Burgos. O vídeo foi feito durante a nossa viagem, em Abril do ano passado.

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A 24 de Outubro, o pai de Jette deixou-a na zona de Burgos. Confesso que esta era a fase da jornada que mais curiosidade me despertava: o longo planalto espanhol, entre Burgos e a fronteira portuguesa.

O Horst e eu já fizemos este caminho inúmeras vezes, nos últimos trinta e dois anos. Mesmo da auto-estrada, dá para perceber como a região é seca e solitária, quase um deserto de rochas e pó. Na Primavera, ainda se vê algum verde a cobrir as colinas, salpicado com o vermelho das papoilas. No Verão, há culturas de girassóis e, nos últimos anos, cada vez mais, de colza. No Outono, porém, já se colheu tudo, restando uma paisagem queimada, onde proliferam as aldeias abandonadas.

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Como iria Jette dar-se nesta inóspita região, tendo ainda (evitando estradas principais) cerca de 500 km até à fronteira portuguesa, com apenas uma égua por companhia e sem saber falar espanhol? Conseguiria alimentação suficiente e lugares de pernoita? Seriam nuestros hermanos (os poucos que ela encontraria) hospitaleiros? Temos sempre a impressão de que os espanhóis são arrogantes, pouco amigos de ajudar…

Depois de ver o pai partir, Jette sentiu-se muito sozinha. Já não estava na Alemanha, onde podia comunicar na sua língua. E, já nem os pais, nem o namorado, podiam vir ter com ela, no espaço de meia dúzia de horas.

À despedida do pai, um sorriso para a fotografia.

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas (à excepção dos frames na auto-estrada, como explicado) foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

São Petersburgo e Moscovo, metades diferentes da mesma laranja

Ana CB, 30.08.22

 

Foi apenas há três anos que estive de férias na Rússia, mas parece que foi há muito mais – sucedeu tanta coisa entretanto que ao invés de encolher, como é costume, o tempo esticou para o dobro. Não houve nenhum apocalipse, mas dou por mim com a sensação de viver num (mau) filme de ficção científica, entre avanços tecnológicos brutais e alterações climáticas com consequências impiedosas, entre regressões sociais e agressões políticas, e com a sensação cada vez maior de que em vez de evoluir, o ser humano está em franco retrocesso.

 

São Petersburgo era um daqueles destinos que estava há muito tempo na minha lista de desejos, e quando uma amiga me desafiou a ir com ela numa viagem de uma semana às duas maiores cidades russas, nem hesitei. Não sou grande adepta de viagens organizadas por agência (esta era), sobretudo porque o habitual é cingirem-se a levar-nos aos sítios aonde toda a gente vai e ocuparem-nos os dias inteiros com visitas pré-programadas. Mas neste caso o roteiro até nos deixava alguns períodos livres e o programa era interessante q.b.

São Petersburgo - Catedral de Nossa Senhora de Cazã.jpegCatedral de Nossa Senhora de Cazã, São Petersburgo

 

A ordem da visita às cidades era à nossa escolha, por isso optámos por começar por São Petersburgo. A desvantagem foi termos de fazer escala em Moscovo antes de seguirmos para a cidade imperial, por azar em dia de greve do pessoal de handling do aeroporto de Sheremetievo. Como consequência, as nossas malas não foram despachadas no voo para São Petersburgo em que seguimos, e depois demorámos mais de duas horas no aeroporto de Pulkovo para fazermos a reclamação – porque havia umas boas dezenas de pessoas com o mesmo problema que nós. Com tanta demora, o senhor do transfer para o hotel praticamente deitava fumo pelas orelhas quando finalmente saímos ao seu encontro; mas o ambiente no carro desanuviou quando, logo após deixarmos as imediações do aeroporto, teve de parar para deixar passar… uma pata que atravessava, em passada decidida e seguida pelos seus vários filhotes em obediente fila indiana, a estrada tipo via rápida que percorríamos. Depois de doze horas de viagem e da preocupação com as malas, esta visão tão inesperada quanto incomum e ternurenta foi um anticlímax bem vindo. Viajar são surpresas atrás de surpresas.

 

Três ou quatro dias em metrópoles tão grandes e cheias de história como São Petersburgo e Moscovo são claramente insuficientes, mas ainda assim serviram para que eu aprendesse mais alguma coisa sobre a Rússia, e principalmente que há grandes, enormes diferenças entre as duas maiores cidades do país. E que, por extrapolação, grandes diferenças existirão também em relação a outras cidades e regiões. Para mim, tentar entender a complexidade de um país tão vasto e variado (onde coabitam perto 200 grupos étnicos diferentes) é tarefa inglória e destinada ao fracasso, e não é por aqui que quero ir. Sou uma mera observadora.

 

A arquitectura destas cidades é o primeiro e mais visível indício da dicotomia que as marca. São Petersburgo é imperial, Moscovo é soviética. Onde São Petersburgo é água, Moscovo é betão (o rio é um mero acessório sem importância). São Petersburgo espraia-se ao longo dos recortes do rio Neva e do golfo da Finlândia, com edifícios de poucos pisos e recorte clássico, ou mais altos e simples nos bairros periféricos recentes; Moscovo é um círculo que mimetiza o sol, com o Kremlin como núcleo e as vias principais os seus raios, propagando-se em todas as direcções (a comparação com um polvo e os seus tentáculos também me parece adequada), e com edifícios que se projectam em altura, ambicionando conquistar os céus.

São Petersburgo - Neva.jpegO Rio Neva em São Petersburgo

Moscovo vista da Colina dos Pardais.jpegMoscovo vista da Colina dos Pardais

 

São Petersburgo nasceu no século XVIII da vontade de Pedro I, o Grande, primeiro imperador da Rússia. Conquistado em 1703 o forte sueco de Nyenskans, nas margens do Neva, durante a Guerra do Norte, decidiu ali fundar uma grande cidade, que servisse sobretudo de porto marítimo utilizável durante todo o ano. Construída sobre terrenos pantanosos à custa da vida de camponeses arrebanhados de toda a Rússia e de prisioneiros de guerra, Pedro projectou São Petersburgo à imagem das grandes capitais europeias da época, e essa é uma das razões pelas quais a arquitectura da cidade é tão homogénea.

São Petersburgo - Praça do Palácio.jpegPraça do Palácio, São Petersburgo

 

Esta aproximação à imagem da Europa faz parte da dualidade histórica constante da Rússia, que pisca um olho ao ocidente e outro à Ásia, enquanto baralha e dá as cartas ao seu jeito. Não admira por isso que Putin tenha invocado este imperador para justificar a invasão da Ucrânia, argumentando que Pedro I entrou em guerra com a Suécia não para conquistar, mas sim para recuperar território que pertencia à Rússia por direito – e que a guerra na Ucrânia tem os mesmos fins.

 

Em 1712, Pedro I elevou São Petersburgo a capital do império, estatuto que manteve até 1918 (com apenas dois breves intervalos, em que o posto foi ocupado por Moscovo). Duzentos anos de protagonismo enriqueceram a cidade, e esta riqueza ostentada – e ainda presente depois de tantos anos de modelo soviético – foi um dos aspectos que mais me surpreendeu durante toda a minha visita. Para onde quer que me virasse, via cúpulas e torres douradas. O Hermitage, de que só vi uma parte e em passo meio corrido, é um deslumbramento, tanto na decoração das suas salas como no valor das obras de arte que exibe. A fantástica agulha da torre sineira da Catedral de Pedro e Paulo, que faz dela o segundo edifício mais alto da cidade, brilha como um farol, sob o sol de Verão. No interior, onde estão expostos os túmulos de quase todos os governantes da casa Romanov, o ouro é tanto que ofusca. E a iconóstase desta catedral é deslumbrante: em vez de uma parede plana com ícones e pinturas, como é habitual na maioria das igrejas ortodoxas, aqui ela eleva-se ao centro para formar uma torre, estando primorosamente trabalhada e completamente recoberta a ouro.

Catedral de Santo Isaac, São Petersburgo.jpegCatedral de Santo Isaac, São Petersburgo

Loggias de Raffaello, Hermitage, São Petersburgo.JPGLoggias de Raffaello, Hermitage, São Petersburgo

Hall do Pavilhão do Pequeno Hermitage, São Petersburgo.JPGHall do Pavilhão do Pequeno Hermitage, São Petersburgo

Torre da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo.JPGTorre da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo

Iconóstase da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo.JPGIconóstase da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo

 

O romantismo melancólico da cidade é sublinhado pela água: do Neva, tão largo que parece mais mar do que rio, e dos seus vários canais e tributários, que totalizam 300 km de vias fluviais. Onde há rios há pontes, e são mais de 300, todas diferentes. Em São Petersburgo nunca estamos muito tempo longe da água, o que dá à cidade um ambiente leve e arejado.

Ponte Bank, São Petersburgo.jpegPonte Bank, São Petersburgo

Castelo Mikhailovsky, São Petersburgo.jpegCastelo Mikhailovsky, São Petersburgo

 

A viagem para Moscovo foi em comboio nocturno. No nosso compartimento ia também um casal espanhol, mas a hora avançada da partida, quando já estávamos todos cheios de sono, não nos deu vontade de grandes conversas. Apesar de algum conforto (até tivemos direito a chinelos e artigos de higiene), a falta de escuridão total, o ressonar do nosso companheiro valenciano e uma azia provocada pela digestão difícil de um jantar tardio fizeram com que eu não conseguisse dormir bem. O Verão é o período das noites brancas, com apenas duas ou três horas de escuridão. A má disposição empurrou-me para o corredor, onde fui brindada por uma paisagem quase contínua de floresta e pelo nascer-do-sol mais fascinante a que já assisti, com uma cortina de névoa a desprender-se do solo, pairando entre as árvores que passavam em corrida desenfreada do outro lado da janela. Foi um dos episódios mais marcantes de toda a viagem, pelo deslumbramento que senti. Estive mais de uma hora naquele corredor e só voltei ao compartimento, com alguma relutância, porque outros viajantes começavam a despertar e a movimentar-se pelo comboio, quebrando a minha paz.

 

Ao contrário de São Petersburgo, Moscovo tem uma história bem mais antiga, documentada desde o século XII, crescendo progressivamente em torno do seu Kremlin a partir do século XIV. Talvez porque o grande incêndio de 1812 – que se suspeita ter sido ateado pelos próprios russos, depois de terem evacuado a cidade na altura da invasão pelas tropas de Bonaparte – destruiu três quartos dos seus edifícios, ou talvez porque foi escolhida para capital da União Soviética logo após a revolução bolchevique, Moscovo não mostra nada que a ligue ao seu passado remoto. É prática, pragmática e megalómana a todos os níveis, cheia de monumentos e empreendimentos gigantescos (ao bom estilo soviético), e os edifícios só não parecem tão grandes porque geralmente estão separados uns dos outros por avenidas larguíssimas, ou porque dentro do nosso ângulo de visão há sempre outros ainda maiores.

Moscovo - Praça Vermelha no séc. XVIII.jpegA Praça Vermelha de Moscovo no séc. XVIII

Kremlin, Moscovo.jpegO Kremlin de Moscovo

 

São Petersburgo foi concebida para mostrar a grandeza de Pedro I e, mais tarde, de Catarina II. Moscovo foi recriada para ostentar a grandeza do poder soviético e, agora, de Putin. Estaline mandou construir os altíssimos edifícios conhecidos como as Sete Irmãs (ou também, mais popularmente, como “os caprichos de Estaline”), os mais emblemáticos e fotografados arranha-céus da cidade. Vistos de longe – e conseguem ser avistados de bem longe… – parecem todos iguais, mas na realidade existem diferenças entre eles tanto em altura como na própria configuração. Embora nitidamente inspirados nos arranha-céus norte-americanos, são eles os melhores exemplares do estilo a que se convencionou chamar classicismo soviético ou monumental.

Edifício Kotelnicheskaya, Moscovo.jpegEdifício Kotelnicheskaya, Moscovo

Universidade Estatal de Moscovo.jpegUniversidade Estatal de Moscovo

 

Estaline teve os seus caprichos, mas Putin não parece querer ficar atrás. Na linha do horizonte de Moscovo destaca-se hoje nitidamente o bairro que tem o nome oficial de Centro Internacional de Negócios de Moscovo ou, na sua forma mais curta, a City de Moscovo. Para este projecto, que começou a ser concebido nos anos 90, foi destinada a área de uma antiga pedreira junto a uma das curvas do rio Moscovo. É aqui que se encontram actualmente alguns dos maiores arranha-céus da Rússia, todos de cariz futurista e onde se incluem, com alturas superiores a 300 metros, sete dos dez maiores da Europa – isto por enquanto, uma vez que as possibilidades de construção futura ainda não estão esgotadas.

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City de Moscovo (1).JPGA City de Moscovo vista do Parque Pobedy

 

Outro edifício moscovita que ilustra a tendência da Rússia actual (e a volubilidade da sua História) é a Catedral de Cristo Salvador. É tecnicamente a catedral mais importante de Moscovo, e também um exemplo de fénix renascida das cinzas. Mandada erguer por Alexandre I depois da retirada das tropas napoleónicas, foi igualmente uma obra megalómana (103 metros de altura e capacidade para 10 mil pessoas) e só ficou concluída em 1883. Associada ao czarismo e em consonância com o desprezo pela religião advogado pelo regime soviético, foi destruída em 1931 para dar lugar a um futuro palácio monumental, que nunca chegou a ser construído, por falta de fundos. O espaço acabou por ser ocupado por uma piscina pública. Depois da desagregação da União Soviética, o governo autorizou o Patriarcado de Moscovo a reconstruir a catedral, que foi reinaugurada no ano 2000 e é praticamente igual à primeira. Com a liberdade religiosa decretada entretanto, a percentagem da população que se assume como cristã ortodoxa subiu de 31% para 72%, e a propagandeada (aparente) convergência de ideias político-espirituais entre o Patriarca Kirill e Vladimir Putin não parece ser mera coincidência.

Catedral de Cristo Salvador, Moscovo.jpegCatedral de Cristo Salvador, Moscovo

 

Viagem organizada por agência significa guias, e guias significam, além de muita informação sobre os locais que visitamos e (com um bocadinho de sorte e diplomacia) alguma informação também sobre outros assuntos mais sensíveis – sendo que, num país como a Rússia, sensível é tudo o que disser respeito à política e à sociedade. E até neste aspecto notei a diferença entre as duas cidades. A guia de São Petersburgo falou-nos de artes e letras, de História e arquitectura, de questões sociais. Mostrou-nos a figurinha do cão parecido com Putin que está numa vitrina do Hermitage, explicou que a maior parte das pessoas (mesmo os jovens) não têm grande interesse em falar outra língua que não o russo, e revelou que na generalidade os papéis sociais dos homens e mulheres ainda são vistos de forma tradicionalista, as mulheres sendo consideradas como responsáveis pelo bem-estar da família e pelo trabalho doméstico – apesar de quase todas terem os seus empregos. Quanto às guias de Moscovo, realçaram a importância da cidade, a resistência e bravura dos seus residentes, a magnificência do metropolitano ou a monumentalidade dos edifícios, e o facto de grande parte das mulheres russas admirarem Putin por este ter implementado medidas que apoiam a natalidade e – supostamente – o género feminino.

 

Correndo o risco de ser simplista neste paralelismo, São Petersburgo e Moscovo parecem-me simbolizar duas das correntes de pensamento político que grassam actualmente na Rússia: uma de aproximação aos valores europeus, pelos quais são definidas as regras de harmonização social e actuação política; outra de que a Rússia é superior na sua essência, e portanto tem o direito de ser ela a ditar as regras pelas quais a Europa deveria reger-se. A rejeição europeia é, em termos práticos, a adoptada pela actual linha política russa, e não parece provável que Putin se desvie dela enquanto continuar no poder. No entanto, com a capacidade de torcer a verdade que tem mostrado, quem sabe se um dia…? Num país de tantos contrastes, tudo é possível.

Viagem à Guiné - 8

Paulo Sousa, 16.07.21

8 – O almoço no Cacheu, as crianças da Guiné e a despedida

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A fortaleza do Cacheu
Foto Paulo Sousa

Na véspera do regresso fizemos ainda uma visita ao Cacheu. Esta pequena cidade foi, por mais que uma vez, a capital da Guiné Portuguesa. A sua pequena fortaleza ainda lá está, recheada com estátuas de figuras históricas, nem todas em boas condições de conservação. Modesta e humilde seriam os adjectivos a que poderíamos recorrer para descrever esta construção, mas apesar disso não deixa de estar cheia de significado. O primor do seu estado de conservação rima com o fraco apego que temos à nossa história, assim como com a indiferença que os guineenses lhe dedicam.

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A fortaleza do Cacheu
Foto Paulo Sousa

No Cacheu almoçamos sob o telheiro do restaurante que ali está, virado para a praia. Alguém foi apanhar umas galinhas e depois foi só esperar que as cozinhassem. O molho de chabéu está para a culinária guineense como o azeite está para a nossa, e graças a ele tudo fica com aquela cor alanjadada.
Durante a espera, que ainda foi alguma, contemplamos aquela praia onde Diogo Gomes terá aportado a primeira embarcação portuguesa no sec. XV. Quanta história, e quantas estórias, terão passado por aquele porto?

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Restaurante junto ao largo do Cacheu
Foto Paulo Sousa

Em 2016, já depois desta nossa viagem, foi inaugurado ali ao lado o Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro do Cacheu. Quando falamos da escravatura dos povos africanos pelas potências coloniais, não falamos de toda a escravatura ocorrida na história da humanidade. Segundo a ONU, esta prática ainda persiste em diversos pontos do globo, nomeadamente em África. No livro do nobelizado V.S. Naipaul, A curva do rio, é referido como ponto de discórdia histórica entre as diferentes etnias da região onde se desenrola a acção, o facto de algumas delas se ter dedicado à captura de gente das tribos vizinhas, para venda, primeiro aos árabes e mais tarde aos europeus. Nada disto pode reduz ou minimiza o sofrimento por tamanha crueldade, mas este tema tem sido tratado de forma demasiado direccionada, e de forma a fazer por ignorar que a abolição da escravatura resultou das questões éticas e de consciência levantadas dentro das sociedades esclavagistas. É um assunto complexo e doloroso, e que dispensa abordagens maniqueístas, e não serei eu que o irá aqui debater e muito menos resolver.

Frente ao porto do Cacheu, no centro do largo, encontra-se o que já terá sido um monumento evocativo da presença portuguesa. Alguém o terá usado para acerto de contas com essa mesma presença, e só com dificuldade se conseguem ver o que sobrou das quinas lusas. Dentro do grupo houve quem lamentasse tal vandalismo, embora eu ache que o tratamento dado àquele monumento tem também um significado histórico. Quando defendemos ser necessário aceitar a história, no que ela terá de grandioso tal como no que tem de miserável, temos de aceitar que todos os envolvidos se possam manifestar.

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Monumento no centro do largo do porto do Cacheu
Foto Paulo Sousa

A história da presença portuguesa na Guiné não se esgotou no período colonial, nem a sua independência se traduziu na sua auto-suficiência e muito menos no seu isolamento. A história recente da Guiné-Bissau tem acumulado episódios que colocam este país, membro da CPLP, no fim das listas dos diversos indicadores de desenvolvimento humano. A vida das pessoas está ali sujeita a muitas mais ameaças do que aquilo a que estamos habituados. Apesar disso, o povo é de uma amabilidade incrível. As crianças, que correm aos magotes atrás dos carros, são segundo os nossos padrões pobres e dificilmente poderão ambicionar uma vida mais próspera do que aquela em que estão a crescer, mas são pródigos em sorrisos e simpatia. Dar uma bola de futebol, não tem nada a ver com dar um peixe e muito menos com ensinar a pescar, mas dar uma bola de futebol a quem não tem nenhuma, é dar-lhe alegria. Além dos materiais escolares, dos livros e dos carros, transportamos também umas dezenas de bolas de futebol e que graças a elas, não duvido, deixamos atrás de nós um rasto de miúdos ainda mais alegres e sorridentes. No regresso do Cacheu tivemos até oportunidade de fazer uma peladinha, onde além de uma boa transpiradela e de um joelho esfolado, deixamos mais umas quantas bolas.

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Peladinha à beira da estrada
Foto Paulo Sousa

Visitamos ainda as missões que a Fundação nos indicou como necessitadas dos nossos carros. A cada uma, entregamos simbolicamente as chaves dos veículos que só chegariam mais tarde, depois do desenrolar da embrulhada administrativa a que tínhamos sido sujeitos. Em cada uma delas estivemos na conversa e em todas elas encontramos pessoas que se as descrevêssemos como generosas estaríamos a ser curtos na classificação. É tocante conhecer assim alguém que dedica totalmente a sua vida em função dos outros, capaz de abdicar de uma rotina confortável na Europa e que decide consumir os seus anos de vida tentando minimizar a miséria dos outros. Recordarei as palavras com que agradeceram a nossa ajuda, e nos explicaram como os veículos lhes seriam úteis, mas havendo ali generosidade, era toda da parte delas.

E assim termino esta sequência de postais sobre uma viagem à Guiné-Bissau. As saudades já as tínhamos antes do nosso regresso. Não converti para texto todas as minhas memórias, mas apenas aquelas que consegui e que achei que poderiam ser interessantes à leitura. Não é possível descrever o vento que se sente na cara enquanto olhamos para a imensidão do deserto ou para o mar de Gil Eanes, nem o sabor da comida na praça Djamena El Fna em Marraquexe, nem mesmo a voz do muezine que nos acorda de madrugada para a oração ou sequer os sons, e a intensidade do calor, da natureza guineense. E nas fotos das crianças e sorrir, nunca se ouvem os seus risos nem o seu alegre respirar.

Viajar desta forma, observando um horizonte após outro, sentindo as mudanças do terreno e da paisagem, pode até ser fisicamente desconfortável, mas a intensidade e a vivência que permite, não tem comparação.

Quando nos dispomos a sair de casa, somos levados a observar a partir de fora o lugar que ocupamos. A conclusão a que chegamos difere do ponto de observação, mas a partir da Guiné, e de muitos outros sítios onde a vida é mais difícil que por cá, o que vemos ajuda-nos a relativizar os nossos problemas.

Início da viagem

Viagem a Bissau - 7

Paulo Sousa, 15.07.21

Memórias da Guerra Colonial

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Cozinha do antigo quartel de Teixeira Pinto
Foto Paulo Sousa

Ainda não falei do Sr. João, um dos membros da caravana. O Sr. João serviu na Guiné, no quartel de Teixeira Pinto, actual Cachungo. Por isso, por ele e pelas suas memórias, esse teria de ser um dos pontos da viagem. E assim foi.
Após a independência o antigo quartel foi transformado na escola primária do Cachungo, o que até seria uma metáfora feliz, não fora o atraso de um ano no pagamento dos salários dos professores ter levado ao encerramento da mesma.

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Refeitório do quartel de Teixeira Pinto, actual escola primária do Cachungo
Foto Paulo Sousa

Visitamos o local, e ouvimos as estórias do Sr. João. Levou-nos a ver um tubo metálico enferrujado espetado no chão. Era o furo de água, cuja análise era da sua responsabilidade, e a partir do qual era abastecido o quartel. Mostrou-nos a padaria, os dormitórios, a messe, o bar, e todos os recantos.
Metro após metro, passo após passo, e lá saia disparada mais uma recordação e o relato de mais um episódio. Olhando em toda a volta, para aquele abandono e falta de manutenção, entendemos claramente que, de tudo o que ali se tinha passado, o que se encontra em melhor estado são as memórias que ele dali guarda, dos seus camaradas, das cervejas frescas, das gargalhadas e da sua juventude.
Meteu-se com uns rapazes que por ali andavam e contou-lhes que tinha vivido e sido soldado naquele quartel. Eles encolheram os ombros, riram-se todos e despediram-se com um aperto de mão.

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Foto Paulo Sousa

O poilão que fazia sombra ao lado do quartel, e que já era enorme durante a Guerra Colonial, está agora bem maior e igualmente indiferente ao que por ali se passa. É uma árvore notável, um colosso mesmo entre outros colossos que por lá vimos.

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O poilão notável
Foto Nuno Rebocho

 

Outra das paragens que prevíamos fazer era ao cemitério militar de Bissau. A Guiné foi o cenário mais difícil da Guerra do Ultramar e, independentemente das mudanças que ocorreram desde então, cá e lá, havia uma vontade em homenagear os portugueses que ali serviram e cumpriram o que lhes foi exigido. Assim, agendamos com a Embaixada Portuguesa uma visita ao seu talhão militar. E lá fomos, acompanhados pelo o adido militar da embaixada. O que encontramos não foi o que esperávamos, pois as sepulturas daquele talhão são de soldados de campanhas do Sec. XIX e início do Sec. XX e não da Guerra Colonial.

Existe igualmente uma capela da Liga dos Combatentes, mas pelo que entendi ali estarão apenas uma pequena fracção dos militares que não regressaram a casa. Perguntamos se havia algum levantamento sobre os corpos de soldados que tenham sido deixados no campo de batalha e cujos restos mortais não tenham sido recuperados. A resposta não foi muito conclusiva e pela falta de objectividade, entendi a confirmação daquilo sobre o qual já tinha lido. De facto de alguns dos corpos nossos compatriotas não puderam ser recuperados e foram deixados no mato, onde tombaram. Alguns terão sido enterrados à pressa, sem qualquer cerimónia, sem direito a lápide a nada que identifique os restos do que foram. Outros nem isso. Abandonados à sua sorte foram também os milhares de soldados portugueses de origem guineense.
Mais uma vez o Estado Português fez jus às palavras de Padre António Vieira.

Se servistes à pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma.”

Continua

Início da viagem

Viagem a Bissau - 6

Paulo Sousa, 14.07.21

A Fundação João XXIII - II

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Centro Social de Ondame - Fundação João XXIII
Foto Nuno Rebocho 

Soubemos  também da história de uma mulher de um velho régulo local (chefe de tabanca). Ele não entendia português e por isso enviou-a ela para assistir a uma palestra organizada pela Diocese de Bissau com a colaboração da Fundação João XXIII. A palestra destinava-se a sensibilizar os régulos de diversas tabancas (aldeias) para que adoptassem e promovessem alguns hábitos de higiene e de saúde pública, e que comparecessem nas sessões de vacinação.
Ela assistiu à primeira sessão da palestra e voltou para a sua tabanca. Na sessão seguinte regressou novamente para assistir, mas no final pediu para falar com o padre e pediu-lhe ajuda. Explicou-lhe que era a mulher mais nova do régulo e tinha dois filhos dele. O régulo tinha uns setenta anos e tinha uma mulher da idade dele, outra dez anos mais nova e por aí a fora. De dez em dez anos acrescentava mais uma jovem esposa à família. A hierarquia entre elas, cinco ou seis no total, era estabelecida por idade. Por ser a mais nova tinha de trabalhar para todas as outras, que a exploravam e desprezavam. A ajuda que pedia era que a ajudassem a sair daquela vida infernal.
O padre e o responsável da Fundação foram assim postos perante o dilema de aceder ao pedido dela, desafiando nesse caso a autoridade do régulo. O padre ainda lhe disse: “Então queres fugir do teu marido, e vens pedir ajudar a um padre?” O representante da Fundação teve de ser rir pela pergunta do padre, mas não foi preciso ponderarem muito até combinaram a sua saída, e dos seus filhos, daquela tabanca.
Assim, chegado o dia, levaram-na para Bissau, arranjaram-lhe onde ficar e ajudaram-na a comprar o primeiro cabaz de peixe, que passou a vender pelas ruas. Às vezes, dão-lhe também algumas roupas usadas para vender, roupas essas oriundas dos donativos que recolhem em Portugal.
Um ou dois dias depois de ouvirmos esta história, acabamos por encontrar a senhora junto ao porto de Bissau. Ia com um alguidar de fruta à cabeça e quando viu o nosso cicerone, desviou-se do seu trajecto, e a sorrir, veio cumprimenta-lo.
Compramos-lhe quatro bananas, todas as que tinha, e demo-las a um miúdo que por ali passava. Ele, arregalou os olhos, e chamou outro para lhe dar duas. E nessa altura lembramo-nos dos miúdos de Saint Louis no Senegal, e de como já nos tinham dito, na Guiné partilha-se.

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Biblioteca do Centro Social
Foto Nuno Rebocho

Na página da Fundação estão disponíveis os diversos projectos que lançaram e ali mantém. Além do Centro Social, dentro do qual funciona a Maternidade Bom Samaritano, a Rádio Comunitária Voz do Biombo e a Biblioteca (há fotos do seu interior na página), existem outros projectos que dependem da Fundação.
Aquando desta nossa viagem, um dos projectos que estava a ganhar forma era a construção de uma embarcação que pudesse servir a ilha de Pecixe. Esta ilha tem cerca de 6 mil habitantes da etnia Manjaco e o seu isolamento era então apenas interrompido por pirogas e embarcações tradicionais, insuficientes para marés adversas. Assim, a Fundação lançou-se na construção de uma embarcação a motor em Portugal e depois de pronta enviou-a num contentor para a Guiné. Até que tudo se concretizasse foi necessário ultrapassar várias barreiras e isso demorou vários anos, mas finalmente o barco-ambulância já está operacional e ao serviço da população de Pecixe.

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Foto Fundação João XXIII

Outro do projectos apoiados pela Fundação é a Cooperativa Escolar São José. Esta obra que foi lançada pelo Prof. Raúl Daniel em 1987, e durante vários anos as suas salas de aula tinham paredes de palha. Só em 1991, e desde logo com o apoio da Fundação, é que foi construído o primeiro pavilhão. A relação de cooperação entre esta instituição de ensino tem permitido que esta estrutura tenha conseguido oferecer boas condições de ensino e de forma regular num país em que o ensino público tem bastantes deficiências. Basta lembrar que após o golpe de estado de 2012, e até à nossa viagem em 2013, as aulas na escola pública foram interrompidas no país por falta de pagamento dos salários dos professores, para entender a importância desta Cooperativa de Ensino na Guiné-Bissau.

A Fundação encaminha os donativos de materiais didáticos, mas também de construção, que recebe em Portugal para a Cooperativa e assim ajuda-a manter o seu funcionamento e crescimento.

Alegro-me em saber que a fiel e robusta Nissan Vannete, em que, juntamente com outros amigos, fiz esta viagem, foi oferecida à Cooperativa e foi destinada ao transporte de alunos com limitações motoras.

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A nossa Nissan Vannete durante a viagem
Foto Nuno Rebocho

 

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A "nossa" Nissan Vannete ao serviço da Cooperativa de Ensino São José
Foto Nuno Rebocho

Continua
Início da viagem

Viagem até Bissau - 5

Paulo Sousa, 13.07.21

A Fundação João XXIII - I

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foto Paulo Sousa

Um dos locais que visitamos foi a casa materno-infantil de Ondame, que é gerida pela Fundação João XXIII desde que as suas fundadoras, Miss Lilly e Miss Brenda, duas missionárias inglesas, regressaram muito idosas à sua pátria. Estavam ali desde 1966, ano em que foi construído este Centro Hospitalar. Além desta obra física, tinham-se igualmente proposto a traduzir a bíblia para a língua da etnia papel.

Após a saída destas duas religiosas em 2004, a Fundação tomou conta deste espaço que tem uma maternidade, uma rádio local, uma biblioteca e, um luxo que nem o hospital de Bissau se pode gabar, electricidade permanente. As histórias à volta deste espaço são incríveis.

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Radio Comunitária - A Voz do Biombo
Foto Paulo Sousa

A energia eléctrica é fornecida por um operador de telemóveis que tem uma torre GSM dentro da propriedade. Como alternativa a uma renda mensal, a Fundação pediu apenas para ter acesso à electricidade que alimenta a torre. Como sem electricidade as comunicações não funcionam e não há onde carregar os telemóveis, a empresa aceitou a proposta e todos saíram a ganhar com o negócio.

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A torre GSM dentro da propriedade do Centro Social da Fundação em Ondame
Foto Paulo Sousa

Os medicamentos que ali chegam são oferecidos por empresas e particulares portugueses que que conhecem o trabalho da Fundação. Pouco tempo antes da nossa viagem, a maternidade tinha sido totalmente ladrilhada e forrada de azulejo.

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A maternidade
Foto Paulo Sousa

A história mais marcante que ouvi em toda a viagem passou-se nesta maternidade e foi-nos ali contada na primeira pessoa.

Numa das suas visitas anuais à Guiné e à maternidade de Ondame, numa ronda pelos recém-nascidos e suas mães, um amigo da Fundação deparou-se com uma senhora prostrada quase inconsciente. Perguntou à enfermeira guineense o que é que se passava com aquela doente e ela respondeu-lhe que aquela senhora estava ali para morrer. Continuou a explicar que ela não conseguia fazer a dilatação e por isso não devia engravidar. Já tinha sido avisada e já tinha tido perdido um bebé numa gravidez anterior. A única hipótese que tinha de sobreviver dependia de ir ao hospital central de Bissau, mas ela não tinha dinheiro para os materiais da cirurgia, e o hospital fornecia apenas o serviço. Não os materiais. Ele então perguntou qual era o valor em causa. Depois de converter os CFA em euros, quase não podia acreditar. Estavam a falar num montante aproximado a 20 euros, para salvar uma vida humana. Desatou logo a dar ordens e a mandar chamar a ambulância, pois ele pagaria do seu bolso a cirurgia. Aquela mulher tinha de ser acudida e salva, e foi.
Contou-nos este episódio com uma frieza que só se desfez, quando acrescentou que, no seu último serão antes de regressar a Portugal, no seu jantar de despedida, alguém se aproximou no escuro, por fora do grupo que se tinha formado debaixo do telheiro na casa grande do Centro. Tocou-lhe timidamente no ombro, disse-lhe obrigado e ofereceu-lhe três mangas. Era só o que tinha.

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A maternidade
Foto Nuno Rebocho

Continua
Início da viagem

Viagem até Bissau - 4

Paulo Sousa, 12.07.21

A entrada na Guiné e a chegada a Bissau

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Estrada após a fronteira de Pirada, Guiné Bissau
Foto Paulo Sousa

Após as fotos da praxe, dirigimo-nos ao posto fronteiriço, onde começou mais uma aventura. Os guardas, que nem fardados estavam, começaram por dizer que desde o último golpe de estado, em Abril do ano anterior, não recebiam salários e por isso pediram-nos que os ajudássemos. Distribuímos alguns dos kits que ainda tínhamos, mas depois pediram também dinheiro. Tudo normal e sem surpresas. TIA. No entanto, e isso só viríamos a saber mais tarde, a entrada dos carros não teve o tratamento administrativo que se impunha.

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Zona que fica alagada durante a época das chuvas
Foto Paulo Sousa

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Habitação tradicional
Foto Paulo Sousa

Dali até Bissau são pouco mais de duas centenas de quilómetros. No posto policial seguinte, convidaram o condutor de cada carro a entrar dentro do gabinete do chefe de posto. Ali, repetiu-se a explicação de que os salários não estavam a ser pagos há um ano e, por isso, pediram-nos 600 CFA (cerca de 0,90€) para poder seguir. Pagamos e seguimos. Umas dezenas de quilómetros depois, a situação repetiu-se. A “taxa” era igualmente de 600 CFA, mas agora... por cada carro.

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Estrada na Guiné Bissau. Época seca.
Foto Nuno Rebocho

Sem saber que nos estávamos a despedir dos nossos veículos, fomos parando quase em cada uma das povoações por que passávamos. A interacção com os guineenses foi sempre muito calorosa. O criolo guineense e os idiomas locais são dominantes, mas apesar disso a barreira linguística não impediu que trocássemos sorrisos e maçãs de Alcobaça por cajus. Desconhecia que o caju, que encontramos na secção dos frutos secos dos supermercados, é apenas o miolo da semente de um fruto muito sumarento, saboroso e facilmente perecível. Pelo que nos explicaram, os cajueiros são agora muito mais abundantes que nos tempos coloniais e que este fruto depois de seco é a maior exportação do país, sendo a Índia o seu principal destino. Alguns dos intermediários indianos trocam directamente arroz por caju, o que, segundo a Fundação, é prejudicial para os guineenses pois antes cultivavam arroz nas zonas alagadas, e com o dinheiro que recebiam da venda do caju compravam outros bens. Esta mudança levou a que houvesse um menor estímulo do cultivo do arroz e uma menor criação de riqueza.

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Caju fresco
Foto Paulo Sousa

Outro detalhe que nos explicaram prende-se com a falta de cuidado na apanha do caju, que leva a que este se deteriore com humidade e perca valor comercial. Noutras paragens, com outra capacidade empresarial, não duvido que a parte perecível do fruto fosse aproveitada para compotas, sumos e outros fins. Esta parte mais sumarenta do caju, quando madura, quase que se desfaz ao ser apertada. É menos consistente que um pêssego maduro e quando se acumulam vários dentro de um recipiente, em pouco tempo o fundo do mesmo fica preenchido com o sumo. Esse sumo fermenta rapidamente e transformado-se assim numa bebida alcoólica. A época da colheita do caju, esta mesma em que lá estivemos, é a época do “vinho” de caju e de bebedeiras abundantes. Mais tarde, esse detalhe foi também usado para explicar o estado alterado da polícia de fronteira e da não emissão dos documentos dos nossos carros aquando da entrada no país.

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A caminho de Bissau
Foto Nuno Rebocho

Quando finalmente chegámos a Bissau, a poucos metros da rotunda do aeroporto, fomos mandados parar pela polícia ali de serviço. Pediram-nos os documentos, entregámos uma daquelas fichas que tínhamos preparado, carimbada pelo posto de fronteira de Pirada, e foi então que começámos a entender que alguma coisa não estava bem. Após mais de uma hora de espera, durante a qual o responsável pelo posto comunicou várias vezes com o Comando Geral da Guarda Nacional, vimos chegar um jornalista da Televisão Pública que sabia da nossa chegada. Ao ver chegar uma câmara, o chefe do posto dirigiu-se rapidamente para ele e apreendeu-lhe o aparelho. Entretanto, o tempo foi passando e após uma demorada negociação a câmara lá regressou às mãos do seu dono. Assim, ainda na dúvida sobre o que ia acontecer aos nossos carros, fomos entrevistados para o Telejornal. A mensagem foi sempre a mesma, estávamos ali para colaborar com quem ajudava os guineenses e por isso contávamos com um tratamento menos hostil. Após diversas diligências, que incluiu a ida de alguns de nós ao Comando Geral da Polícia, acabou por ficar decidido que os carros seriam apreendidos até que se esclarecesse a situação.

O representante permanente da Fundação João XXIII na Guiné, o Sr. Celestino, tinha já providenciado duas viaturas para nos deslocar. Assim, depois de ir depositar os veículos numa missão de freiras ali próxima, transportámos as nossas bagagens para a residência da Fundação, onde ficámos instalados até ao final da viagem. De ali em diante passámos a circular dentro da caixa de uma pick-up.

 

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 3

Paulo Sousa, 09.07.21

No Senegal, a contornar a Gâmbia

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Margem norte do Rio Senegal - Mauritânia
Foto Paulo Sousa

A principal fronteira entre a Mauritânia e o Senegal é a de Rosso. Mas além de ter fama de ser uma das fronteiras mais caóticas e corruptas deste lado de África, inclui uma demorada e igualmente caótica travessia de ferry do rio Senegal. Por isso, escolhemos a fronteira alternativa, pela barragem de Diama. Antes de lá chegar, o troço inflete em direcção ao Atlântico e ao longo da margem norte do rio, num piso de terra ladeado por vegetação que anuncia o fim do deserto.

Chegados à fronteira deparamo-nos com uma inovação na arte de sacar dinheiro aos estrangeiros. De forma a evitar que europeus venham vender carros velhos ao Senegal, algo que pelo que nos explicaram era frequente há pouco tempo atrás, cada carro estrangeiro (europeu?) que entre no país e que tenha mais de não sei quanto anos (poucos), terá de ser escoltado a expensas do seu proprietário, claro. Assim, com sete carros a escoltar, o valor ascendeu a uma pequena fortuna. Mais uma vez, o facilitador de serviço quis tratar de todo o processo e ficou claro que toda a narrativa é acertada entre ele, os guardas mauritanos e os senegaleses. A única forma de evitar este pagamento passa por tratar com antecedência de um documento qualquer junto da embaixada senegalesa. A negociação demorou algumas horas, mas acabamos por não conseguir contornar o suposto custo da escolta. Depois de resolvida essa parte, só faltava o seguro dos carros, pois a carta verde já tinha perdido a validade há muitos quilómetros atrás. Remeteram-nos para um espaço onde um ancião vendia umas vinhetas a que chamavam “o seguro”. O espaço era uma divisão de uma casa em ruínas, sem telhado. O ancião estava sentado no chão e tinha umas folhas A4 coloridas dentro de um saco plástico. Cada uma dessas folhas era constituída por rectângulos coloridos destacáveis, como se fossem selos. O senhor era muito magro e não falava nenhuma língua que entendêssemos. Um miúdo traduziu-o dizendo que ele estava doente do estômago e pediu-nos qualquer coisa para o ajudar. Sem nenhum diagnóstico, nem nenhum médico na caravana, oferecemos-lhe alguns analgésicos. Compramos-lhe depois os ditos selos e lá seguimos atrás do nosso guardião que nos iria escoltar até deixarmos o país. Estranhamente, ou não, menos de um quilómetro depois, à entrada da primeira rotunda, o dito acompanhante parou na berma, abriu o vidro e apontou para uma das saídas da rotunda e disse: “Para a Guiné, é por ali. Boa viagem.” E seguiu sorridente com um rolhão de euros dentro do bolso. TIA.

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

E assim chegamos a Saint-Louis, onde pernoitamos. A caminho do local onde dormimos, atravessamos a ponte de construção colonial e mais tarde um estaleiro das longas embarcações de madeira. A pesca tem uma grande importância para esta cidade.

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Saint Louis - Senegal
Foto Nuno Rebocho

As crianças enxamearam-se à volta dos carros a pedir uma prenda qualquer. Já sabíamos disso por isso levávamos umas caixas com esferográficas, algo que nos tinham dito ser bastante apreciado pelos mais novos. Por comparação com o que encontramos mais tarde na Guiné, reparamos num detalhe que constitui uma diferença de comportamento das crianças: na Guiné partilha-se natural e automaticamente, enquanto que no Senegal o que vimos foi o oposto. Dei três canetas a um miúdo que se encostou à minha janela com uma mão estendida enquanto a outra apontava para a caixa das BIC cristal. Ao lado dele tinha dois colegas e apesar de lhe ter dito que era uma para cada um, ele que entendeu o que lhe disse, agarrou-as sorridente e, perante o desapontamento dos outros, desatou a correr dali para fora.

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

Na madrugada seguinte regressamos à estrada. Se a travessia de ferry pelo rio Gambia, que dá o nome ao mais pequeno país de africado, não exigisse os procedimentos de mais uma fronteira essa teria sido a nossa opção. Assim, e com a má memória da “escolta” senegalesa, preferimos contornar esta antiga colónia inglesa, e rumamos para o interior até Tambacounda. Dali a Pirada, a fronteira da Guiné, já não faltavam muitos quilómetros. Mas como a estrada foi piorando até se tornar numa picada de pó alaranjado, pernoitamos em Kounkané, que passamos a tratar por “Cum caneco”. À noite, demos um passeio pelas ruas da povoação e deparámo-nos com a transmissão de uma meia final da Champions. O televisor estava dentro de uma tabanca virado para o exterior. Desde o nível térreo, quase junto ao chão, até a bastantes metros de distância, a curtos palmos de distância, tinha-se formado um anfiteatro de cabeças que absorviam o jogo em silêncio. Sabíamos que o futebol é um fenómeno global, mas esta foi uma perspectiva diferente e interessante disso mesmo.

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Embondeiro
Foto Paulo Sousa

Na manhã seguinte, depois de, no último cruzamento em direcção ao nosso destino, nos termos despedido do alcatrão, chegamos finalmente à Guiné. Não fosse o GPS e facilmente atravessaríamos a fronteira sem dar por isso. Ali ao lado, a poucos metros da picada, ainda são visíveis os marcos de fronteira com um RP e um RF, dando assim a entender que são do tempo colonial.

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Marco de fronteira - visível a sigla RP - Républica Portuguesa.
No verso tem um RF - Républica Francesa

Foto Paulo Sousa

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 2

Paulo Sousa, 08.07.21

O deserto, o Bojador e a terra de ninguém

Na noite seguinte dormimos em Laayoune, a capital do Saara Ocidental. Os detalhes geopolíticos deste território ocupado por Marrocos são públicos e conhecidos e não interessam para este texto. Como já sabíamos desde a saída de casa, o troço que começa no sul de Marrocos e que vai até ao sul da Mauritânia, corresponde a mais de 2100 quilómetros e facilmente acaba por se tornar monótono. A paisagem muda pouco e muito lentamente. As paragens são as exigidas pelas necessidades logísticas dos veículos e fisiológicas dos passageiros. O tempo passa-se a conversar, dentro de cada carro e com os demais via CB. Come-se, bebe-se, dorme quem pode ou consegue.

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A caminho do sul
Foto Paulo Sousa

O cabo Bojador tem um lugar especial no imaginário lusitano. Lá chegados, mesmo sem qualquer construção ou referência que assinale a importância que lhe atribuímos, demos voz ao poema de Fernando Pessoa. Assim, entre duas minis, uma cigarrada e com a bandeira enrolada ao pescoço, foi dito o Mar Português.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

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Cabo Bojador
Foto Paulo Sousa

Após a guerra do Saara Ocidental, cujo cessar fogo foi assinado no início dos anos 90, e que envolveu Marrocos, a Mauritânia e os saaruis que reclamavam a independência, a travessia deste território só era permitida pelas autoridades marroquinas se fosse efectuada em caravana protegida por veículos militares. Por isso tornava-se necessário esperar pelos dias de saída das tropas.

Mais a sul, desde a fronteira da Mauritânia até à sua capital Nouakchott, a travessia só era possível pela areia junto ao mar, e por isso era necessário conversar com os pescadores locais para conhecer o horário das marés. Posteriormente, pelo que nos disseram, o governo mauritano fez um acordo com a China, segundo o qual trocaram a construção de uma estrada neste troço de cerca de 500 quilómetros, pelos direitos de pesca da sua extensa costa durante várias décadas. Assim, sem ter de esperar pela caravana militar e com a nova estrada mauritana já construída, a nossa viagem foi muito mais rápida do que seria uns anos antes. E foi assim, numa tarde de calor, que entramos nos trópicos.

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Trópico de Câncer
Foto Nuno Rebocho

Em resultado das posições tomadas pelos beligerantes na referida guerra, o último posto fronteiriço marroquino dista cerca de 5 quilómetros do posto mauritano, pelo que esta travessia constitui uma efectiva terra de ninguém. Apesar dessa designação, há gente que ali ganha a vida. As carcaças de carros desmontados, pneus, restos de televisores e frigoríficos desmantelados, indiciam que ali se faz um comércio bem variado. Mesmo estando numa terra de ninguém e no meio do deserto, surgiu logo alguém a oferecer ajuda como guia e assim evitar as minas anticarro abandonadas durante a guerra. O troço de GPS que trazíamos de casa dispensou tais serviços.

Para limitar este tão variado comércio na terra de ninguém, os guardas marroquinos só deixam passar quem tenha um visto de entrada na Mauritânia. Questionamo-nos sobre o que aconteceria se um crime de sangue ali ocorresse. Qual seria a autoridade a tomar conta da ocorrência? Podia ser um bom mote para um romance policial. Fica a ideia.

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Terra de ninguém, entre o último posto marroquino e a Mauritânia
Foto Paulo Sousa

Os procedimentos administrativos na entrada da Mauritânia, como em tantas outras fronteiras, são tratados por facilitadores informais. Eles recolhem os dados, cravam uns cigarros, preenchem formulários, distribuem cartões de visita para viagens futuras e assim fazem pela vida. O que nos calhou falava um português bastante fluente. Contou-nos que aprendeu a nossa língua a bordo de navios de pesca de Aveiro, que ali contratam ajudantes para as lides da pesca que realizam ao largo da costa.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Ao longo dos mais de 1500 quilómetros entre Laayoune e a entrada do Senegal, o controlo policial é regular. Em cada um deles tem de se registar os dados pessoais e das viaturas que por ali passam. Uma das recomendações que tínhamos recebido da Fundação João XXIII era que devíamos preparar 60 cópias de uma ficha onde constasse a identificação de todos os viajantes, assim como os dados de todos os veículos. Essa informação poupou-nos muito tempo, pois em cada checkpoint gastávamos apenas um ou dois minutos e seria fácil imaginar que sem estas fichas tudo seria muito mais demorado. Esta quantidade era superior ao necessário, mas acabamos por também as usar no Senegal e na Guiné.

Nos relatos das frequentes viagens que a Fundação João XXIII faz até à Guiné, explicaram-nos que recebem muitas ofertas de materiais para a Missão na Guiné e que as transportam recorrendo a veículos bem maiores que os nossos, por esta mesma rota. Além disso, enviam também contentores para Bissau. Para eles, além das fichas que identificam os participantes e os veículos, têm também um manifesto com todo o recheio. Perante tal variedade de bens, alguns agentes da autoridade, de uma forma mais ou menos formal, pedem também algum apoio para si e para os seus. Assim, e de forma a agilizar as passagens (TIA – This is Africa), os experientes transportadores ao serviço da Fundação levam sempre vários sacos plásticos com uma ou duas peças de roupa e um ou dois brinquedos, a que chamam de kits, e que têm sempre à mão.

Contaram-nos que numa dessas viagens, numa verificação aduaneira à entrada da Mauritânia, foram questionados sobre duas caixas com garrafas de vinho tinto, destinadas a serem servidas num casamento em Bissau. Perante tal achado e devido à proibição islâmica do consumo de álcool, os guardas ficaram muito “incomodados” e apreenderam as duas caixas. O fiel depositário das mesmas, triste pela perda e sem saber como explicar o extravio do dote para a boda, só sossegou depois de lhe garantirem que poderia recuperar as doze botelhas no regresso para norte. Aquando do seu retorno, o oficial de serviço arrasou-o explicando-lhe que todos os materiais impuros eram queimados e por isso não podiam devolver as garrafas. TIA. Sobre os danos que tal confisco teve no dia do casamento, não fomos informados.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Nouakchott, que carinhosamente sempre designamos por “No caixote”, é uma cidade que nos transmitiu a sensação de se tratar de um abastecimento permanente dos nómadas que circulam pelo país. Quase misturados com os automóveis, circulam rebanhos de ovelhas, cabras e camelos. O deserto começa onde acaba a cidade e isso faz com que as ruas tenham sempre um ar empoeirado. Segundo alguns relatos, no tempo do império colonial francês, os funcionários caídos em desgraça eram enviados para aqui. Se compararmos Nouakchott com as cidades costeiras do Senegal, do Saara Ocidental e de Marrocos, este é de facto o sítio menos privilegiado. A cidade terá a sua dinâmica, mas para quem passa com os dias e os quilómetros contados não parece ser muito apelativa. Quando lá chegamos ainda tínhamos duas horas de luz e por isso decidimos seguir viagem para pernoitar mais a sul, mais perto do Senegal.

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Nouakchott
Foto Paulo Sousa

A noite caiu e pensamos que conseguiríamos pernoitar junto à fronteira para poupar tempo no dia seguinte, mas após algumas dezenas de quilómetros, num dos checkpoints o oficial disse-nos que era perigoso conduzir de noite e que podíamos pernoitar ali mesmo. Aceitamos o convite, montamos as tendas nas traseiras do posto, e ali dormimos. Ao jantar, e sem a poluição luminosa que normalmente nos impede a observação noturna do céu, fomos brindados pelo Cruzeiro do Sul, que a contar com esta, foi a primeira vez que o pude contemplar.

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Acampamento no sul da Mauritânia
Foto Nuno Rebocho

Nesta parte importa registar que todo o contacto que tivemos com os mauritanos foi de uma extrema cordialidade. Talvez por osmose com o deserto que os rodeia e que convida à contemplação, todos eles mostraram uma enorme calma e serenidade. O convite que recebemos para ali pernoitar foi dentro deste registo. Toda a experiência com os marroquinos foi também sempre muito positiva, mas não pude deixar de me recordar de uma ocasião em que um marroquino me disse que se alguma vez fosse para a Mauritânia, ou para a Argélia, devia ir bem armado. As coisas que se dizem para alimentar inimizades com países vizinhos…

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Comida halal a caminho
Foto Nuno Rebocho

Pela manhã, enquanto desmontávamos o acampamento, assistimos ainda ao abate de uma vaca. Enquanto o animal seguia calmamente acompanhado pelos seus dois carrascos, o chefe do posto foi-nos explicando que o processo decorreria de acordo com as práticas islâmicas, de forma a ser considerado halal. Assim, quando derrubado, o bicho deveria ser orientado numa direcção específica, provavelmente tendo Meca por referência, o executante tem de ser um adulto reconhecido como pessoa capaz e tem de se dizer uma oração durante a execução. Assim, ali perto de nós, todo o procedimento se seguiu com a calma mauritana e de acordo com o roteiro planeado. Agradecendo a hospitalidade, despedimo-nos do nosso anfitrião e seguimos até à fronteira do Senegal.

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 1

A partida

Paulo Sousa, 07.07.21

Comecei a escrever este texto, sobre uma viagem que fiz com um grupo de amigos entre Abril e Maio de 2013 à Guiné Bissau, para meu arquivo pessoal e memória futura. Só mais tarde decidi dividi-lo em vários postais, que aqui passo a publicar.

É habitual dizer-se que a preparação de uma viagem é uma viagem em si mesmo. Realizá-la é já a sua segunda versão e notei agora que escrever sobre ela é como acrescentar-lhe uma terceira camada. Gostei de o fazer.

A coisa vestiu-se, desde o início, de missão humanitária. Acondicionados dentro dessa embalagem, conseguimos combinar a descoberta da Guiné-Bissau – um país a que estamos e estaremos sempre ligados – com a vontade de partilhar, contribuindo na ajuda que ali é prestada por voluntários, apenas motivados pelo que de melhor o ser humano pode ter, e que é a generosidade para com desconhecidos.

Alguém do grupo conhecia alguém, que por sua vez conhecia outra pessoa ligada à Casa do Oeste - Fundação João XXIII sediada em Ribamar e que se dedica, entre outras coisas, a ajudar guineenses e que mantém uma presença contínua no país. Seguindo essa cadeia de dominó, acabámos por contactar a Fundação, onde fomos recebidos de braços abertos. Além de nos disponibilizarmos para transportar livros e alguns materiais escolares, contribuiríamos na forma da oferta dos nossos veículos a quem a Fundação entendesse serem úteis. Depois de uma ou duas reuniões e algumas horas de conversa, durante as quais recebemos uma enxurrada de detalhes operacionais para a viagem, começámos a preparar os carros e marcámos uma data.

Quase sem darmos por isso à volta de uma ideia surgida numa mesa de café, entre uma bica e uma imperial, tinha-se reunido um grupo de dezasseis pessoas que se distribuíram por sete viaturas. Os carros já tinham alguns anos e foram escolhidos pela sua fiabilidade, usando o critério de “quanto mais analógico melhor”. O material escolar que reunimos foi doado pelos alunos da creche e da escola primária da nossa freguesia. No dia da partida, as aulas foram interrompidas para que todos pudessem tirar uma foto com a expedição que partia e que ia levar cadernos, lápis e livros em língua portuguesa para tão longe. Foi uma festa. O primeiro momento mágico de muitos que se seguiriam.

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Foto Nuno Rebocho

Uma road trip só se torna real depois da partida. Antes do último preparativo, da última verificação da lista que foi crescendo durante semanas, até que se feche a porta de casa, e depois a do carro, tudo não passa de um projecto, de uma ideia. Mas de repente, após todos esses momentos, só importa o que irá acontecer ao longo daquela faixa, mais ou menos escura, mais ou menos recta, mais ou menos regular. Uma road trip numa caravana de sete carros exige a cada condutor uma atenção especial. As normas dentro do colectivo obedecem a uma lógica que visa manter o grupo coeso e em segurança. Ninguém pode ficar para trás e por isso o andamento de cada carro nunca pode levar a que se perca o contacto visual com o carro anterior. Se cada condutor apenas se preocupar em não perder de vista o que vai à sua frente, à menor contrariedade o grupo dispersa-se e isso equivale, no mínimo, a um desperdício de tempo. Por isso, a regra principal é muito simples, nunca perder o carro de trás de vista.

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Foto Nuno Rebocho

Uma parte significativa das dezasseis pessoas da caravana não eram mais do que recém-conhecidos, tendo estado juntos apenas num piquenique uma semana antes do grande dia, a que chamamos “a falsa partida”. O espírito de equipa formou-se rápida e naturalmente. Dia após dia, quilómetro após quilómetro, fronteira após fronteira, todos nos sentimos cada vez mais próximos.

Este não é um tipo de viagem que se possa descrever como férias, pois exige uma entrega permanente, em que não se podem regatear energias nem atenção. A cada instante é necessário avaliar o que nos rodeia, sem nunca esquecer que temos de saborear e viver cada momento. Tudo pode mudar de repente. Um buraco, um parafuso, uma fronteira, ou apenas a picadela de um mosquito. Qualquer uma destas coisas juntas ou mesmo isoladamente pode mudar radicalmente o rumo da viagem. Essa possibilidade é o que de mais metafórico com a vida, uma road trip deste tipo pode ter.

Na primeira noite dormimos num parque de campismo em Tarifa, de onde saímos quando ainda estava escuro, para apanhar o primeiro ferry para Tânger. A noite seguinte já foi passada em Marraquexe, que exige sempre uma passagem nocturna pela única e inigualável praça dos mortos, Djamena el Fna. Quem conhece este rectângulo sabe bem do que falo.

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Foto Nuno Rebocho

Marrocos é todo um programa, que alguns de nós já conheciam. As paisagens, especialmente as que ficam longe do alcatrão, são de encher as medidas, e por isso foi com pena que vimos o Atlas a ficar para trás sem que lhe prestássemos a devida atenção.

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Foto Paulo Sousa

Continua.