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Delito de Opinião

São Petersburgo e Moscovo, metades diferentes da mesma laranja

Ana CB, 30.08.22

 

Foi apenas há três anos que estive de férias na Rússia, mas parece que foi há muito mais – sucedeu tanta coisa entretanto que ao invés de encolher, como é costume, o tempo esticou para o dobro. Não houve nenhum apocalipse, mas dou por mim com a sensação de viver num (mau) filme de ficção científica, entre avanços tecnológicos brutais e alterações climáticas com consequências impiedosas, entre regressões sociais e agressões políticas, e com a sensação cada vez maior de que em vez de evoluir, o ser humano está em franco retrocesso.

 

São Petersburgo era um daqueles destinos que estava há muito tempo na minha lista de desejos, e quando uma amiga me desafiou a ir com ela numa viagem de uma semana às duas maiores cidades russas, nem hesitei. Não sou grande adepta de viagens organizadas por agência (esta era), sobretudo porque o habitual é cingirem-se a levar-nos aos sítios aonde toda a gente vai e ocuparem-nos os dias inteiros com visitas pré-programadas. Mas neste caso o roteiro até nos deixava alguns períodos livres e o programa era interessante q.b.

São Petersburgo - Catedral de Nossa Senhora de Cazã.jpegCatedral de Nossa Senhora de Cazã, São Petersburgo

 

A ordem da visita às cidades era à nossa escolha, por isso optámos por começar por São Petersburgo. A desvantagem foi termos de fazer escala em Moscovo antes de seguirmos para a cidade imperial, por azar em dia de greve do pessoal de handling do aeroporto de Sheremetievo. Como consequência, as nossas malas não foram despachadas no voo para São Petersburgo em que seguimos, e depois demorámos mais de duas horas no aeroporto de Pulkovo para fazermos a reclamação – porque havia umas boas dezenas de pessoas com o mesmo problema que nós. Com tanta demora, o senhor do transfer para o hotel praticamente deitava fumo pelas orelhas quando finalmente saímos ao seu encontro; mas o ambiente no carro desanuviou quando, logo após deixarmos as imediações do aeroporto, teve de parar para deixar passar… uma pata que atravessava, em passada decidida e seguida pelos seus vários filhotes em obediente fila indiana, a estrada tipo via rápida que percorríamos. Depois de doze horas de viagem e da preocupação com as malas, esta visão tão inesperada quanto incomum e ternurenta foi um anticlímax bem vindo. Viajar são surpresas atrás de surpresas.

 

Três ou quatro dias em metrópoles tão grandes e cheias de história como São Petersburgo e Moscovo são claramente insuficientes, mas ainda assim serviram para que eu aprendesse mais alguma coisa sobre a Rússia, e principalmente que há grandes, enormes diferenças entre as duas maiores cidades do país. E que, por extrapolação, grandes diferenças existirão também em relação a outras cidades e regiões. Para mim, tentar entender a complexidade de um país tão vasto e variado (onde coabitam perto 200 grupos étnicos diferentes) é tarefa inglória e destinada ao fracasso, e não é por aqui que quero ir. Sou uma mera observadora.

 

A arquitectura destas cidades é o primeiro e mais visível indício da dicotomia que as marca. São Petersburgo é imperial, Moscovo é soviética. Onde São Petersburgo é água, Moscovo é betão (o rio é um mero acessório sem importância). São Petersburgo espraia-se ao longo dos recortes do rio Neva e do golfo da Finlândia, com edifícios de poucos pisos e recorte clássico, ou mais altos e simples nos bairros periféricos recentes; Moscovo é um círculo que mimetiza o sol, com o Kremlin como núcleo e as vias principais os seus raios, propagando-se em todas as direcções (a comparação com um polvo e os seus tentáculos também me parece adequada), e com edifícios que se projectam em altura, ambicionando conquistar os céus.

São Petersburgo - Neva.jpegO Rio Neva em São Petersburgo

Moscovo vista da Colina dos Pardais.jpegMoscovo vista da Colina dos Pardais

 

São Petersburgo nasceu no século XVIII da vontade de Pedro I, o Grande, primeiro imperador da Rússia. Conquistado em 1703 o forte sueco de Nyenskans, nas margens do Neva, durante a Guerra do Norte, decidiu ali fundar uma grande cidade, que servisse sobretudo de porto marítimo utilizável durante todo o ano. Construída sobre terrenos pantanosos à custa da vida de camponeses arrebanhados de toda a Rússia e de prisioneiros de guerra, Pedro projectou São Petersburgo à imagem das grandes capitais europeias da época, e essa é uma das razões pelas quais a arquitectura da cidade é tão homogénea.

São Petersburgo - Praça do Palácio.jpegPraça do Palácio, São Petersburgo

 

Esta aproximação à imagem da Europa faz parte da dualidade histórica constante da Rússia, que pisca um olho ao ocidente e outro à Ásia, enquanto baralha e dá as cartas ao seu jeito. Não admira por isso que Putin tenha invocado este imperador para justificar a invasão da Ucrânia, argumentando que Pedro I entrou em guerra com a Suécia não para conquistar, mas sim para recuperar território que pertencia à Rússia por direito – e que a guerra na Ucrânia tem os mesmos fins.

 

Em 1712, Pedro I elevou São Petersburgo a capital do império, estatuto que manteve até 1918 (com apenas dois breves intervalos, em que o posto foi ocupado por Moscovo). Duzentos anos de protagonismo enriqueceram a cidade, e esta riqueza ostentada – e ainda presente depois de tantos anos de modelo soviético – foi um dos aspectos que mais me surpreendeu durante toda a minha visita. Para onde quer que me virasse, via cúpulas e torres douradas. O Hermitage, de que só vi uma parte e em passo meio corrido, é um deslumbramento, tanto na decoração das suas salas como no valor das obras de arte que exibe. A fantástica agulha da torre sineira da Catedral de Pedro e Paulo, que faz dela o segundo edifício mais alto da cidade, brilha como um farol, sob o sol de Verão. No interior, onde estão expostos os túmulos de quase todos os governantes da casa Romanov, o ouro é tanto que ofusca. E a iconóstase desta catedral é deslumbrante: em vez de uma parede plana com ícones e pinturas, como é habitual na maioria das igrejas ortodoxas, aqui ela eleva-se ao centro para formar uma torre, estando primorosamente trabalhada e completamente recoberta a ouro.

Catedral de Santo Isaac, São Petersburgo.jpegCatedral de Santo Isaac, São Petersburgo

Loggias de Raffaello, Hermitage, São Petersburgo.JPGLoggias de Raffaello, Hermitage, São Petersburgo

Hall do Pavilhão do Pequeno Hermitage, São Petersburgo.JPGHall do Pavilhão do Pequeno Hermitage, São Petersburgo

Torre da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo.JPGTorre da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo

Iconóstase da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo.JPGIconóstase da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo

 

O romantismo melancólico da cidade é sublinhado pela água: do Neva, tão largo que parece mais mar do que rio, e dos seus vários canais e tributários, que totalizam 300 km de vias fluviais. Onde há rios há pontes, e são mais de 300, todas diferentes. Em São Petersburgo nunca estamos muito tempo longe da água, o que dá à cidade um ambiente leve e arejado.

Ponte Bank, São Petersburgo.jpegPonte Bank, São Petersburgo

Castelo Mikhailovsky, São Petersburgo.jpegCastelo Mikhailovsky, São Petersburgo

 

A viagem para Moscovo foi em comboio nocturno. No nosso compartimento ia também um casal espanhol, mas a hora avançada da partida, quando já estávamos todos cheios de sono, não nos deu vontade de grandes conversas. Apesar de algum conforto (até tivemos direito a chinelos e artigos de higiene), a falta de escuridão total, o ressonar do nosso companheiro valenciano e uma azia provocada pela digestão difícil de um jantar tardio fizeram com que eu não conseguisse dormir bem. O Verão é o período das noites brancas, com apenas duas ou três horas de escuridão. A má disposição empurrou-me para o corredor, onde fui brindada por uma paisagem quase contínua de floresta e pelo nascer-do-sol mais fascinante a que já assisti, com uma cortina de névoa a desprender-se do solo, pairando entre as árvores que passavam em corrida desenfreada do outro lado da janela. Foi um dos episódios mais marcantes de toda a viagem, pelo deslumbramento que senti. Estive mais de uma hora naquele corredor e só voltei ao compartimento, com alguma relutância, porque outros viajantes começavam a despertar e a movimentar-se pelo comboio, quebrando a minha paz.

 

Ao contrário de São Petersburgo, Moscovo tem uma história bem mais antiga, documentada desde o século XII, crescendo progressivamente em torno do seu Kremlin a partir do século XIV. Talvez porque o grande incêndio de 1812 – que se suspeita ter sido ateado pelos próprios russos, depois de terem evacuado a cidade na altura da invasão pelas tropas de Bonaparte – destruiu três quartos dos seus edifícios, ou talvez porque foi escolhida para capital da União Soviética logo após a revolução bolchevique, Moscovo não mostra nada que a ligue ao seu passado remoto. É prática, pragmática e megalómana a todos os níveis, cheia de monumentos e empreendimentos gigantescos (ao bom estilo soviético), e os edifícios só não parecem tão grandes porque geralmente estão separados uns dos outros por avenidas larguíssimas, ou porque dentro do nosso ângulo de visão há sempre outros ainda maiores.

Moscovo - Praça Vermelha no séc. XVIII.jpegA Praça Vermelha de Moscovo no séc. XVIII

Kremlin, Moscovo.jpegO Kremlin de Moscovo

 

São Petersburgo foi concebida para mostrar a grandeza de Pedro I e, mais tarde, de Catarina II. Moscovo foi recriada para ostentar a grandeza do poder soviético e, agora, de Putin. Estaline mandou construir os altíssimos edifícios conhecidos como as Sete Irmãs (ou também, mais popularmente, como “os caprichos de Estaline”), os mais emblemáticos e fotografados arranha-céus da cidade. Vistos de longe – e conseguem ser avistados de bem longe… – parecem todos iguais, mas na realidade existem diferenças entre eles tanto em altura como na própria configuração. Embora nitidamente inspirados nos arranha-céus norte-americanos, são eles os melhores exemplares do estilo a que se convencionou chamar classicismo soviético ou monumental.

Edifício Kotelnicheskaya, Moscovo.jpegEdifício Kotelnicheskaya, Moscovo

Universidade Estatal de Moscovo.jpegUniversidade Estatal de Moscovo

 

Estaline teve os seus caprichos, mas Putin não parece querer ficar atrás. Na linha do horizonte de Moscovo destaca-se hoje nitidamente o bairro que tem o nome oficial de Centro Internacional de Negócios de Moscovo ou, na sua forma mais curta, a City de Moscovo. Para este projecto, que começou a ser concebido nos anos 90, foi destinada a área de uma antiga pedreira junto a uma das curvas do rio Moscovo. É aqui que se encontram actualmente alguns dos maiores arranha-céus da Rússia, todos de cariz futurista e onde se incluem, com alturas superiores a 300 metros, sete dos dez maiores da Europa – isto por enquanto, uma vez que as possibilidades de construção futura ainda não estão esgotadas.

City de Moscovo (2).JPG

City de Moscovo (1).JPGA City de Moscovo vista do Parque Pobedy

 

Outro edifício moscovita que ilustra a tendência da Rússia actual (e a volubilidade da sua História) é a Catedral de Cristo Salvador. É tecnicamente a catedral mais importante de Moscovo, e também um exemplo de fénix renascida das cinzas. Mandada erguer por Alexandre I depois da retirada das tropas napoleónicas, foi igualmente uma obra megalómana (103 metros de altura e capacidade para 10 mil pessoas) e só ficou concluída em 1883. Associada ao czarismo e em consonância com o desprezo pela religião advogado pelo regime soviético, foi destruída em 1931 para dar lugar a um futuro palácio monumental, que nunca chegou a ser construído, por falta de fundos. O espaço acabou por ser ocupado por uma piscina pública. Depois da desagregação da União Soviética, o governo autorizou o Patriarcado de Moscovo a reconstruir a catedral, que foi reinaugurada no ano 2000 e é praticamente igual à primeira. Com a liberdade religiosa decretada entretanto, a percentagem da população que se assume como cristã ortodoxa subiu de 31% para 72%, e a propagandeada (aparente) convergência de ideias político-espirituais entre o Patriarca Kirill e Vladimir Putin não parece ser mera coincidência.

Catedral de Cristo Salvador, Moscovo.jpegCatedral de Cristo Salvador, Moscovo

 

Viagem organizada por agência significa guias, e guias significam, além de muita informação sobre os locais que visitamos e (com um bocadinho de sorte e diplomacia) alguma informação também sobre outros assuntos mais sensíveis – sendo que, num país como a Rússia, sensível é tudo o que disser respeito à política e à sociedade. E até neste aspecto notei a diferença entre as duas cidades. A guia de São Petersburgo falou-nos de artes e letras, de História e arquitectura, de questões sociais. Mostrou-nos a figurinha do cão parecido com Putin que está numa vitrina do Hermitage, explicou que a maior parte das pessoas (mesmo os jovens) não têm grande interesse em falar outra língua que não o russo, e revelou que na generalidade os papéis sociais dos homens e mulheres ainda são vistos de forma tradicionalista, as mulheres sendo consideradas como responsáveis pelo bem-estar da família e pelo trabalho doméstico – apesar de quase todas terem os seus empregos. Quanto às guias de Moscovo, realçaram a importância da cidade, a resistência e bravura dos seus residentes, a magnificência do metropolitano ou a monumentalidade dos edifícios, e o facto de grande parte das mulheres russas admirarem Putin por este ter implementado medidas que apoiam a natalidade e – supostamente – o género feminino.

 

Correndo o risco de ser simplista neste paralelismo, São Petersburgo e Moscovo parecem-me simbolizar duas das correntes de pensamento político que grassam actualmente na Rússia: uma de aproximação aos valores europeus, pelos quais são definidas as regras de harmonização social e actuação política; outra de que a Rússia é superior na sua essência, e portanto tem o direito de ser ela a ditar as regras pelas quais a Europa deveria reger-se. A rejeição europeia é, em termos práticos, a adoptada pela actual linha política russa, e não parece provável que Putin se desvie dela enquanto continuar no poder. No entanto, com a capacidade de torcer a verdade que tem mostrado, quem sabe se um dia…? Num país de tantos contrastes, tudo é possível.

Viagem à Guiné - 8

Paulo Sousa, 16.07.21

8 – O almoço no Cacheu, as crianças da Guiné e a despedida

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A fortaleza do Cacheu
Foto Paulo Sousa

Na véspera do regresso fizemos ainda uma visita ao Cacheu. Esta pequena cidade foi, por mais que uma vez, a capital da Guiné Portuguesa. A sua pequena fortaleza ainda lá está, recheada com estátuas de figuras históricas, nem todas em boas condições de conservação. Modesta e humilde seriam os adjectivos a que poderíamos recorrer para descrever esta construção, mas apesar disso não deixa de estar cheia de significado. O primor do seu estado de conservação rima com o fraco apego que temos à nossa história, assim como com a indiferença que os guineenses lhe dedicam.

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A fortaleza do Cacheu
Foto Paulo Sousa

No Cacheu almoçamos sob o telheiro do restaurante que ali está, virado para a praia. Alguém foi apanhar umas galinhas e depois foi só esperar que as cozinhassem. O molho de chabéu está para a culinária guineense como o azeite está para a nossa, e graças a ele tudo fica com aquela cor alanjadada.
Durante a espera, que ainda foi alguma, contemplamos aquela praia onde Diogo Gomes terá aportado a primeira embarcação portuguesa no sec. XV. Quanta história, e quantas estórias, terão passado por aquele porto?

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Restaurante junto ao largo do Cacheu
Foto Paulo Sousa

Em 2016, já depois desta nossa viagem, foi inaugurado ali ao lado o Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro do Cacheu. Quando falamos da escravatura dos povos africanos pelas potências coloniais, não falamos de toda a escravatura ocorrida na história da humanidade. Segundo a ONU, esta prática ainda persiste em diversos pontos do globo, nomeadamente em África. No livro do nobelizado V.S. Naipaul, A curva do rio, é referido como ponto de discórdia histórica entre as diferentes etnias da região onde se desenrola a acção, o facto de algumas delas se ter dedicado à captura de gente das tribos vizinhas, para venda, primeiro aos árabes e mais tarde aos europeus. Nada disto pode reduz ou minimiza o sofrimento por tamanha crueldade, mas este tema tem sido tratado de forma demasiado direccionada, e de forma a fazer por ignorar que a abolição da escravatura resultou das questões éticas e de consciência levantadas dentro das sociedades esclavagistas. É um assunto complexo e doloroso, e que dispensa abordagens maniqueístas, e não serei eu que o irá aqui debater e muito menos resolver.

Frente ao porto do Cacheu, no centro do largo, encontra-se o que já terá sido um monumento evocativo da presença portuguesa. Alguém o terá usado para acerto de contas com essa mesma presença, e só com dificuldade se conseguem ver o que sobrou das quinas lusas. Dentro do grupo houve quem lamentasse tal vandalismo, embora eu ache que o tratamento dado àquele monumento tem também um significado histórico. Quando defendemos ser necessário aceitar a história, no que ela terá de grandioso tal como no que tem de miserável, temos de aceitar que todos os envolvidos se possam manifestar.

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Monumento no centro do largo do porto do Cacheu
Foto Paulo Sousa

A história da presença portuguesa na Guiné não se esgotou no período colonial, nem a sua independência se traduziu na sua auto-suficiência e muito menos no seu isolamento. A história recente da Guiné-Bissau tem acumulado episódios que colocam este país, membro da CPLP, no fim das listas dos diversos indicadores de desenvolvimento humano. A vida das pessoas está ali sujeita a muitas mais ameaças do que aquilo a que estamos habituados. Apesar disso, o povo é de uma amabilidade incrível. As crianças, que correm aos magotes atrás dos carros, são segundo os nossos padrões pobres e dificilmente poderão ambicionar uma vida mais próspera do que aquela em que estão a crescer, mas são pródigos em sorrisos e simpatia. Dar uma bola de futebol, não tem nada a ver com dar um peixe e muito menos com ensinar a pescar, mas dar uma bola de futebol a quem não tem nenhuma, é dar-lhe alegria. Além dos materiais escolares, dos livros e dos carros, transportamos também umas dezenas de bolas de futebol e que graças a elas, não duvido, deixamos atrás de nós um rasto de miúdos ainda mais alegres e sorridentes. No regresso do Cacheu tivemos até oportunidade de fazer uma peladinha, onde além de uma boa transpiradela e de um joelho esfolado, deixamos mais umas quantas bolas.

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Peladinha à beira da estrada
Foto Paulo Sousa

Visitamos ainda as missões que a Fundação nos indicou como necessitadas dos nossos carros. A cada uma, entregamos simbolicamente as chaves dos veículos que só chegariam mais tarde, depois do desenrolar da embrulhada administrativa a que tínhamos sido sujeitos. Em cada uma delas estivemos na conversa e em todas elas encontramos pessoas que se as descrevêssemos como generosas estaríamos a ser curtos na classificação. É tocante conhecer assim alguém que dedica totalmente a sua vida em função dos outros, capaz de abdicar de uma rotina confortável na Europa e que decide consumir os seus anos de vida tentando minimizar a miséria dos outros. Recordarei as palavras com que agradeceram a nossa ajuda, e nos explicaram como os veículos lhes seriam úteis, mas havendo ali generosidade, era toda da parte delas.

E assim termino esta sequência de postais sobre uma viagem à Guiné-Bissau. As saudades já as tínhamos antes do nosso regresso. Não converti para texto todas as minhas memórias, mas apenas aquelas que consegui e que achei que poderiam ser interessantes à leitura. Não é possível descrever o vento que se sente na cara enquanto olhamos para a imensidão do deserto ou para o mar de Gil Eanes, nem o sabor da comida na praça Djamena El Fna em Marraquexe, nem mesmo a voz do muezine que nos acorda de madrugada para a oração ou sequer os sons, e a intensidade do calor, da natureza guineense. E nas fotos das crianças e sorrir, nunca se ouvem os seus risos nem o seu alegre respirar.

Viajar desta forma, observando um horizonte após outro, sentindo as mudanças do terreno e da paisagem, pode até ser fisicamente desconfortável, mas a intensidade e a vivência que permite, não tem comparação.

Quando nos dispomos a sair de casa, somos levados a observar a partir de fora o lugar que ocupamos. A conclusão a que chegamos difere do ponto de observação, mas a partir da Guiné, e de muitos outros sítios onde a vida é mais difícil que por cá, o que vemos ajuda-nos a relativizar os nossos problemas.

Início da viagem

Viagem a Bissau - 7

Paulo Sousa, 15.07.21

Memórias da Guerra Colonial

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Cozinha do antigo quartel de Teixeira Pinto
Foto Paulo Sousa

Ainda não falei do Sr. João, um dos membros da caravana. O Sr. João serviu na Guiné, no quartel de Teixeira Pinto, actual Cachungo. Por isso, por ele e pelas suas memórias, esse teria de ser um dos pontos da viagem. E assim foi.
Após a independência o antigo quartel foi transformado na escola primária do Cachungo, o que até seria uma metáfora feliz, não fora o atraso de um ano no pagamento dos salários dos professores ter levado ao encerramento da mesma.

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Refeitório do quartel de Teixeira Pinto, actual escola primária do Cachungo
Foto Paulo Sousa

Visitamos o local, e ouvimos as estórias do Sr. João. Levou-nos a ver um tubo metálico enferrujado espetado no chão. Era o furo de água, cuja análise era da sua responsabilidade, e a partir do qual era abastecido o quartel. Mostrou-nos a padaria, os dormitórios, a messe, o bar, e todos os recantos.
Metro após metro, passo após passo, e lá saia disparada mais uma recordação e o relato de mais um episódio. Olhando em toda a volta, para aquele abandono e falta de manutenção, entendemos claramente que, de tudo o que ali se tinha passado, o que se encontra em melhor estado são as memórias que ele dali guarda, dos seus camaradas, das cervejas frescas, das gargalhadas e da sua juventude.
Meteu-se com uns rapazes que por ali andavam e contou-lhes que tinha vivido e sido soldado naquele quartel. Eles encolheram os ombros, riram-se todos e despediram-se com um aperto de mão.

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Foto Paulo Sousa

O poilão que fazia sombra ao lado do quartel, e que já era enorme durante a Guerra Colonial, está agora bem maior e igualmente indiferente ao que por ali se passa. É uma árvore notável, um colosso mesmo entre outros colossos que por lá vimos.

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O poilão notável
Foto Nuno Rebocho

 

Outra das paragens que prevíamos fazer era ao cemitério militar de Bissau. A Guiné foi o cenário mais difícil da Guerra do Ultramar e, independentemente das mudanças que ocorreram desde então, cá e lá, havia uma vontade em homenagear os portugueses que ali serviram e cumpriram o que lhes foi exigido. Assim, agendamos com a Embaixada Portuguesa uma visita ao seu talhão militar. E lá fomos, acompanhados pelo o adido militar da embaixada. O que encontramos não foi o que esperávamos, pois as sepulturas daquele talhão são de soldados de campanhas do Sec. XIX e início do Sec. XX e não da Guerra Colonial.

Existe igualmente uma capela da Liga dos Combatentes, mas pelo que entendi ali estarão apenas uma pequena fracção dos militares que não regressaram a casa. Perguntamos se havia algum levantamento sobre os corpos de soldados que tenham sido deixados no campo de batalha e cujos restos mortais não tenham sido recuperados. A resposta não foi muito conclusiva e pela falta de objectividade, entendi a confirmação daquilo sobre o qual já tinha lido. De facto de alguns dos corpos nossos compatriotas não puderam ser recuperados e foram deixados no mato, onde tombaram. Alguns terão sido enterrados à pressa, sem qualquer cerimónia, sem direito a lápide a nada que identifique os restos do que foram. Outros nem isso. Abandonados à sua sorte foram também os milhares de soldados portugueses de origem guineense.
Mais uma vez o Estado Português fez jus às palavras de Padre António Vieira.

Se servistes à pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma.”

Continua

Início da viagem

Viagem a Bissau - 6

Paulo Sousa, 14.07.21

A Fundação João XXIII - II

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Centro Social de Ondame - Fundação João XXIII
Foto Nuno Rebocho 

Soubemos  também da história de uma mulher de um velho régulo local (chefe de tabanca). Ele não entendia português e por isso enviou-a ela para assistir a uma palestra organizada pela Diocese de Bissau com a colaboração da Fundação João XXIII. A palestra destinava-se a sensibilizar os régulos de diversas tabancas (aldeias) para que adoptassem e promovessem alguns hábitos de higiene e de saúde pública, e que comparecessem nas sessões de vacinação.
Ela assistiu à primeira sessão da palestra e voltou para a sua tabanca. Na sessão seguinte regressou novamente para assistir, mas no final pediu para falar com o padre e pediu-lhe ajuda. Explicou-lhe que era a mulher mais nova do régulo e tinha dois filhos dele. O régulo tinha uns setenta anos e tinha uma mulher da idade dele, outra dez anos mais nova e por aí a fora. De dez em dez anos acrescentava mais uma jovem esposa à família. A hierarquia entre elas, cinco ou seis no total, era estabelecida por idade. Por ser a mais nova tinha de trabalhar para todas as outras, que a exploravam e desprezavam. A ajuda que pedia era que a ajudassem a sair daquela vida infernal.
O padre e o responsável da Fundação foram assim postos perante o dilema de aceder ao pedido dela, desafiando nesse caso a autoridade do régulo. O padre ainda lhe disse: “Então queres fugir do teu marido, e vens pedir ajudar a um padre?” O representante da Fundação teve de ser rir pela pergunta do padre, mas não foi preciso ponderarem muito até combinaram a sua saída, e dos seus filhos, daquela tabanca.
Assim, chegado o dia, levaram-na para Bissau, arranjaram-lhe onde ficar e ajudaram-na a comprar o primeiro cabaz de peixe, que passou a vender pelas ruas. Às vezes, dão-lhe também algumas roupas usadas para vender, roupas essas oriundas dos donativos que recolhem em Portugal.
Um ou dois dias depois de ouvirmos esta história, acabamos por encontrar a senhora junto ao porto de Bissau. Ia com um alguidar de fruta à cabeça e quando viu o nosso cicerone, desviou-se do seu trajecto, e a sorrir, veio cumprimenta-lo.
Compramos-lhe quatro bananas, todas as que tinha, e demo-las a um miúdo que por ali passava. Ele, arregalou os olhos, e chamou outro para lhe dar duas. E nessa altura lembramo-nos dos miúdos de Saint Louis no Senegal, e de como já nos tinham dito, na Guiné partilha-se.

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Biblioteca do Centro Social
Foto Nuno Rebocho

Na página da Fundação estão disponíveis os diversos projectos que lançaram e ali mantém. Além do Centro Social, dentro do qual funciona a Maternidade Bom Samaritano, a Rádio Comunitária Voz do Biombo e a Biblioteca (há fotos do seu interior na página), existem outros projectos que dependem da Fundação.
Aquando desta nossa viagem, um dos projectos que estava a ganhar forma era a construção de uma embarcação que pudesse servir a ilha de Pecixe. Esta ilha tem cerca de 6 mil habitantes da etnia Manjaco e o seu isolamento era então apenas interrompido por pirogas e embarcações tradicionais, insuficientes para marés adversas. Assim, a Fundação lançou-se na construção de uma embarcação a motor em Portugal e depois de pronta enviou-a num contentor para a Guiné. Até que tudo se concretizasse foi necessário ultrapassar várias barreiras e isso demorou vários anos, mas finalmente o barco-ambulância já está operacional e ao serviço da população de Pecixe.

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Foto Fundação João XXIII

Outro do projectos apoiados pela Fundação é a Cooperativa Escolar São José. Esta obra que foi lançada pelo Prof. Raúl Daniel em 1987, e durante vários anos as suas salas de aula tinham paredes de palha. Só em 1991, e desde logo com o apoio da Fundação, é que foi construído o primeiro pavilhão. A relação de cooperação entre esta instituição de ensino tem permitido que esta estrutura tenha conseguido oferecer boas condições de ensino e de forma regular num país em que o ensino público tem bastantes deficiências. Basta lembrar que após o golpe de estado de 2012, e até à nossa viagem em 2013, as aulas na escola pública foram interrompidas no país por falta de pagamento dos salários dos professores, para entender a importância desta Cooperativa de Ensino na Guiné-Bissau.

A Fundação encaminha os donativos de materiais didáticos, mas também de construção, que recebe em Portugal para a Cooperativa e assim ajuda-a manter o seu funcionamento e crescimento.

Alegro-me em saber que a fiel e robusta Nissan Vannete, em que, juntamente com outros amigos, fiz esta viagem, foi oferecida à Cooperativa e foi destinada ao transporte de alunos com limitações motoras.

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A nossa Nissan Vannete durante a viagem
Foto Nuno Rebocho

 

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A "nossa" Nissan Vannete ao serviço da Cooperativa de Ensino São José
Foto Nuno Rebocho

Continua
Início da viagem

Viagem até Bissau - 5

Paulo Sousa, 13.07.21

A Fundação João XXIII - I

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foto Paulo Sousa

Um dos locais que visitamos foi a casa materno-infantil de Ondame, que é gerida pela Fundação João XXIII desde que as suas fundadoras, Miss Lilly e Miss Brenda, duas missionárias inglesas, regressaram muito idosas à sua pátria. Estavam ali desde 1966, ano em que foi construído este Centro Hospitalar. Além desta obra física, tinham-se igualmente proposto a traduzir a bíblia para a língua da etnia papel.

Após a saída destas duas religiosas em 2004, a Fundação tomou conta deste espaço que tem uma maternidade, uma rádio local, uma biblioteca e, um luxo que nem o hospital de Bissau se pode gabar, electricidade permanente. As histórias à volta deste espaço são incríveis.

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Radio Comunitária - A Voz do Biombo
Foto Paulo Sousa

A energia eléctrica é fornecida por um operador de telemóveis que tem uma torre GSM dentro da propriedade. Como alternativa a uma renda mensal, a Fundação pediu apenas para ter acesso à electricidade que alimenta a torre. Como sem electricidade as comunicações não funcionam e não há onde carregar os telemóveis, a empresa aceitou a proposta e todos saíram a ganhar com o negócio.

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A torre GSM dentro da propriedade do Centro Social da Fundação em Ondame
Foto Paulo Sousa

Os medicamentos que ali chegam são oferecidos por empresas e particulares portugueses que que conhecem o trabalho da Fundação. Pouco tempo antes da nossa viagem, a maternidade tinha sido totalmente ladrilhada e forrada de azulejo.

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A maternidade
Foto Paulo Sousa

A história mais marcante que ouvi em toda a viagem passou-se nesta maternidade e foi-nos ali contada na primeira pessoa.

Numa das suas visitas anuais à Guiné e à maternidade de Ondame, numa ronda pelos recém-nascidos e suas mães, um amigo da Fundação deparou-se com uma senhora prostrada quase inconsciente. Perguntou à enfermeira guineense o que é que se passava com aquela doente e ela respondeu-lhe que aquela senhora estava ali para morrer. Continuou a explicar que ela não conseguia fazer a dilatação e por isso não devia engravidar. Já tinha sido avisada e já tinha tido perdido um bebé numa gravidez anterior. A única hipótese que tinha de sobreviver dependia de ir ao hospital central de Bissau, mas ela não tinha dinheiro para os materiais da cirurgia, e o hospital fornecia apenas o serviço. Não os materiais. Ele então perguntou qual era o valor em causa. Depois de converter os CFA em euros, quase não podia acreditar. Estavam a falar num montante aproximado a 20 euros, para salvar uma vida humana. Desatou logo a dar ordens e a mandar chamar a ambulância, pois ele pagaria do seu bolso a cirurgia. Aquela mulher tinha de ser acudida e salva, e foi.
Contou-nos este episódio com uma frieza que só se desfez, quando acrescentou que, no seu último serão antes de regressar a Portugal, no seu jantar de despedida, alguém se aproximou no escuro, por fora do grupo que se tinha formado debaixo do telheiro na casa grande do Centro. Tocou-lhe timidamente no ombro, disse-lhe obrigado e ofereceu-lhe três mangas. Era só o que tinha.

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A maternidade
Foto Nuno Rebocho

Continua
Início da viagem

Viagem até Bissau - 4

Paulo Sousa, 12.07.21

A entrada na Guiné e a chegada a Bissau

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Estrada após a fronteira de Pirada, Guiné Bissau
Foto Paulo Sousa

Após as fotos da praxe, dirigimo-nos ao posto fronteiriço, onde começou mais uma aventura. Os guardas, que nem fardados estavam, começaram por dizer que desde o último golpe de estado, em Abril do ano anterior, não recebiam salários e por isso pediram-nos que os ajudássemos. Distribuímos alguns dos kits que ainda tínhamos, mas depois pediram também dinheiro. Tudo normal e sem surpresas. TIA. No entanto, e isso só viríamos a saber mais tarde, a entrada dos carros não teve o tratamento administrativo que se impunha.

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Zona que fica alagada durante a época das chuvas
Foto Paulo Sousa

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Habitação tradicional
Foto Paulo Sousa

Dali até Bissau são pouco mais de duas centenas de quilómetros. No posto policial seguinte, convidaram o condutor de cada carro a entrar dentro do gabinete do chefe de posto. Ali, repetiu-se a explicação de que os salários não estavam a ser pagos há um ano e, por isso, pediram-nos 600 CFA (cerca de 0,90€) para poder seguir. Pagamos e seguimos. Umas dezenas de quilómetros depois, a situação repetiu-se. A “taxa” era igualmente de 600 CFA, mas agora... por cada carro.

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Estrada na Guiné Bissau. Época seca.
Foto Nuno Rebocho

Sem saber que nos estávamos a despedir dos nossos veículos, fomos parando quase em cada uma das povoações por que passávamos. A interacção com os guineenses foi sempre muito calorosa. O criolo guineense e os idiomas locais são dominantes, mas apesar disso a barreira linguística não impediu que trocássemos sorrisos e maçãs de Alcobaça por cajus. Desconhecia que o caju, que encontramos na secção dos frutos secos dos supermercados, é apenas o miolo da semente de um fruto muito sumarento, saboroso e facilmente perecível. Pelo que nos explicaram, os cajueiros são agora muito mais abundantes que nos tempos coloniais e que este fruto depois de seco é a maior exportação do país, sendo a Índia o seu principal destino. Alguns dos intermediários indianos trocam directamente arroz por caju, o que, segundo a Fundação, é prejudicial para os guineenses pois antes cultivavam arroz nas zonas alagadas, e com o dinheiro que recebiam da venda do caju compravam outros bens. Esta mudança levou a que houvesse um menor estímulo do cultivo do arroz e uma menor criação de riqueza.

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Caju fresco
Foto Paulo Sousa

Outro detalhe que nos explicaram prende-se com a falta de cuidado na apanha do caju, que leva a que este se deteriore com humidade e perca valor comercial. Noutras paragens, com outra capacidade empresarial, não duvido que a parte perecível do fruto fosse aproveitada para compotas, sumos e outros fins. Esta parte mais sumarenta do caju, quando madura, quase que se desfaz ao ser apertada. É menos consistente que um pêssego maduro e quando se acumulam vários dentro de um recipiente, em pouco tempo o fundo do mesmo fica preenchido com o sumo. Esse sumo fermenta rapidamente e transformado-se assim numa bebida alcoólica. A época da colheita do caju, esta mesma em que lá estivemos, é a época do “vinho” de caju e de bebedeiras abundantes. Mais tarde, esse detalhe foi também usado para explicar o estado alterado da polícia de fronteira e da não emissão dos documentos dos nossos carros aquando da entrada no país.

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A caminho de Bissau
Foto Nuno Rebocho

Quando finalmente chegámos a Bissau, a poucos metros da rotunda do aeroporto, fomos mandados parar pela polícia ali de serviço. Pediram-nos os documentos, entregámos uma daquelas fichas que tínhamos preparado, carimbada pelo posto de fronteira de Pirada, e foi então que começámos a entender que alguma coisa não estava bem. Após mais de uma hora de espera, durante a qual o responsável pelo posto comunicou várias vezes com o Comando Geral da Guarda Nacional, vimos chegar um jornalista da Televisão Pública que sabia da nossa chegada. Ao ver chegar uma câmara, o chefe do posto dirigiu-se rapidamente para ele e apreendeu-lhe o aparelho. Entretanto, o tempo foi passando e após uma demorada negociação a câmara lá regressou às mãos do seu dono. Assim, ainda na dúvida sobre o que ia acontecer aos nossos carros, fomos entrevistados para o Telejornal. A mensagem foi sempre a mesma, estávamos ali para colaborar com quem ajudava os guineenses e por isso contávamos com um tratamento menos hostil. Após diversas diligências, que incluiu a ida de alguns de nós ao Comando Geral da Polícia, acabou por ficar decidido que os carros seriam apreendidos até que se esclarecesse a situação.

O representante permanente da Fundação João XXIII na Guiné, o Sr. Celestino, tinha já providenciado duas viaturas para nos deslocar. Assim, depois de ir depositar os veículos numa missão de freiras ali próxima, transportámos as nossas bagagens para a residência da Fundação, onde ficámos instalados até ao final da viagem. De ali em diante passámos a circular dentro da caixa de uma pick-up.

 

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 3

Paulo Sousa, 09.07.21

No Senegal, a contornar a Gâmbia

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Margem norte do Rio Senegal - Mauritânia
Foto Paulo Sousa

A principal fronteira entre a Mauritânia e o Senegal é a de Rosso. Mas além de ter fama de ser uma das fronteiras mais caóticas e corruptas deste lado de África, inclui uma demorada e igualmente caótica travessia de ferry do rio Senegal. Por isso, escolhemos a fronteira alternativa, pela barragem de Diama. Antes de lá chegar, o troço inflete em direcção ao Atlântico e ao longo da margem norte do rio, num piso de terra ladeado por vegetação que anuncia o fim do deserto.

Chegados à fronteira deparamo-nos com uma inovação na arte de sacar dinheiro aos estrangeiros. De forma a evitar que europeus venham vender carros velhos ao Senegal, algo que pelo que nos explicaram era frequente há pouco tempo atrás, cada carro estrangeiro (europeu?) que entre no país e que tenha mais de não sei quanto anos (poucos), terá de ser escoltado a expensas do seu proprietário, claro. Assim, com sete carros a escoltar, o valor ascendeu a uma pequena fortuna. Mais uma vez, o facilitador de serviço quis tratar de todo o processo e ficou claro que toda a narrativa é acertada entre ele, os guardas mauritanos e os senegaleses. A única forma de evitar este pagamento passa por tratar com antecedência de um documento qualquer junto da embaixada senegalesa. A negociação demorou algumas horas, mas acabamos por não conseguir contornar o suposto custo da escolta. Depois de resolvida essa parte, só faltava o seguro dos carros, pois a carta verde já tinha perdido a validade há muitos quilómetros atrás. Remeteram-nos para um espaço onde um ancião vendia umas vinhetas a que chamavam “o seguro”. O espaço era uma divisão de uma casa em ruínas, sem telhado. O ancião estava sentado no chão e tinha umas folhas A4 coloridas dentro de um saco plástico. Cada uma dessas folhas era constituída por rectângulos coloridos destacáveis, como se fossem selos. O senhor era muito magro e não falava nenhuma língua que entendêssemos. Um miúdo traduziu-o dizendo que ele estava doente do estômago e pediu-nos qualquer coisa para o ajudar. Sem nenhum diagnóstico, nem nenhum médico na caravana, oferecemos-lhe alguns analgésicos. Compramos-lhe depois os ditos selos e lá seguimos atrás do nosso guardião que nos iria escoltar até deixarmos o país. Estranhamente, ou não, menos de um quilómetro depois, à entrada da primeira rotunda, o dito acompanhante parou na berma, abriu o vidro e apontou para uma das saídas da rotunda e disse: “Para a Guiné, é por ali. Boa viagem.” E seguiu sorridente com um rolhão de euros dentro do bolso. TIA.

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

E assim chegamos a Saint-Louis, onde pernoitamos. A caminho do local onde dormimos, atravessamos a ponte de construção colonial e mais tarde um estaleiro das longas embarcações de madeira. A pesca tem uma grande importância para esta cidade.

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Saint Louis - Senegal
Foto Nuno Rebocho

As crianças enxamearam-se à volta dos carros a pedir uma prenda qualquer. Já sabíamos disso por isso levávamos umas caixas com esferográficas, algo que nos tinham dito ser bastante apreciado pelos mais novos. Por comparação com o que encontramos mais tarde na Guiné, reparamos num detalhe que constitui uma diferença de comportamento das crianças: na Guiné partilha-se natural e automaticamente, enquanto que no Senegal o que vimos foi o oposto. Dei três canetas a um miúdo que se encostou à minha janela com uma mão estendida enquanto a outra apontava para a caixa das BIC cristal. Ao lado dele tinha dois colegas e apesar de lhe ter dito que era uma para cada um, ele que entendeu o que lhe disse, agarrou-as sorridente e, perante o desapontamento dos outros, desatou a correr dali para fora.

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

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Transporte público - Senegal
Foto Paulo Sousa

Na madrugada seguinte regressamos à estrada. Se a travessia de ferry pelo rio Gambia, que dá o nome ao mais pequeno país de africado, não exigisse os procedimentos de mais uma fronteira essa teria sido a nossa opção. Assim, e com a má memória da “escolta” senegalesa, preferimos contornar esta antiga colónia inglesa, e rumamos para o interior até Tambacounda. Dali a Pirada, a fronteira da Guiné, já não faltavam muitos quilómetros. Mas como a estrada foi piorando até se tornar numa picada de pó alaranjado, pernoitamos em Kounkané, que passamos a tratar por “Cum caneco”. À noite, demos um passeio pelas ruas da povoação e deparámo-nos com a transmissão de uma meia final da Champions. O televisor estava dentro de uma tabanca virado para o exterior. Desde o nível térreo, quase junto ao chão, até a bastantes metros de distância, a curtos palmos de distância, tinha-se formado um anfiteatro de cabeças que absorviam o jogo em silêncio. Sabíamos que o futebol é um fenómeno global, mas esta foi uma perspectiva diferente e interessante disso mesmo.

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Embondeiro
Foto Paulo Sousa

Na manhã seguinte, depois de, no último cruzamento em direcção ao nosso destino, nos termos despedido do alcatrão, chegamos finalmente à Guiné. Não fosse o GPS e facilmente atravessaríamos a fronteira sem dar por isso. Ali ao lado, a poucos metros da picada, ainda são visíveis os marcos de fronteira com um RP e um RF, dando assim a entender que são do tempo colonial.

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Marco de fronteira - visível a sigla RP - Républica Portuguesa.
No verso tem um RF - Républica Francesa

Foto Paulo Sousa

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 2

Paulo Sousa, 08.07.21

O deserto, o Bojador e a terra de ninguém

Na noite seguinte dormimos em Laayoune, a capital do Saara Ocidental. Os detalhes geopolíticos deste território ocupado por Marrocos são públicos e conhecidos e não interessam para este texto. Como já sabíamos desde a saída de casa, o troço que começa no sul de Marrocos e que vai até ao sul da Mauritânia, corresponde a mais de 2100 quilómetros e facilmente acaba por se tornar monótono. A paisagem muda pouco e muito lentamente. As paragens são as exigidas pelas necessidades logísticas dos veículos e fisiológicas dos passageiros. O tempo passa-se a conversar, dentro de cada carro e com os demais via CB. Come-se, bebe-se, dorme quem pode ou consegue.

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A caminho do sul
Foto Paulo Sousa

O cabo Bojador tem um lugar especial no imaginário lusitano. Lá chegados, mesmo sem qualquer construção ou referência que assinale a importância que lhe atribuímos, demos voz ao poema de Fernando Pessoa. Assim, entre duas minis, uma cigarrada e com a bandeira enrolada ao pescoço, foi dito o Mar Português.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

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Cabo Bojador
Foto Paulo Sousa

Após a guerra do Saara Ocidental, cujo cessar fogo foi assinado no início dos anos 90, e que envolveu Marrocos, a Mauritânia e os saaruis que reclamavam a independência, a travessia deste território só era permitida pelas autoridades marroquinas se fosse efectuada em caravana protegida por veículos militares. Por isso tornava-se necessário esperar pelos dias de saída das tropas.

Mais a sul, desde a fronteira da Mauritânia até à sua capital Nouakchott, a travessia só era possível pela areia junto ao mar, e por isso era necessário conversar com os pescadores locais para conhecer o horário das marés. Posteriormente, pelo que nos disseram, o governo mauritano fez um acordo com a China, segundo o qual trocaram a construção de uma estrada neste troço de cerca de 500 quilómetros, pelos direitos de pesca da sua extensa costa durante várias décadas. Assim, sem ter de esperar pela caravana militar e com a nova estrada mauritana já construída, a nossa viagem foi muito mais rápida do que seria uns anos antes. E foi assim, numa tarde de calor, que entramos nos trópicos.

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Trópico de Câncer
Foto Nuno Rebocho

Em resultado das posições tomadas pelos beligerantes na referida guerra, o último posto fronteiriço marroquino dista cerca de 5 quilómetros do posto mauritano, pelo que esta travessia constitui uma efectiva terra de ninguém. Apesar dessa designação, há gente que ali ganha a vida. As carcaças de carros desmontados, pneus, restos de televisores e frigoríficos desmantelados, indiciam que ali se faz um comércio bem variado. Mesmo estando numa terra de ninguém e no meio do deserto, surgiu logo alguém a oferecer ajuda como guia e assim evitar as minas anticarro abandonadas durante a guerra. O troço de GPS que trazíamos de casa dispensou tais serviços.

Para limitar este tão variado comércio na terra de ninguém, os guardas marroquinos só deixam passar quem tenha um visto de entrada na Mauritânia. Questionamo-nos sobre o que aconteceria se um crime de sangue ali ocorresse. Qual seria a autoridade a tomar conta da ocorrência? Podia ser um bom mote para um romance policial. Fica a ideia.

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Terra de ninguém, entre o último posto marroquino e a Mauritânia
Foto Paulo Sousa

Os procedimentos administrativos na entrada da Mauritânia, como em tantas outras fronteiras, são tratados por facilitadores informais. Eles recolhem os dados, cravam uns cigarros, preenchem formulários, distribuem cartões de visita para viagens futuras e assim fazem pela vida. O que nos calhou falava um português bastante fluente. Contou-nos que aprendeu a nossa língua a bordo de navios de pesca de Aveiro, que ali contratam ajudantes para as lides da pesca que realizam ao largo da costa.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Ao longo dos mais de 1500 quilómetros entre Laayoune e a entrada do Senegal, o controlo policial é regular. Em cada um deles tem de se registar os dados pessoais e das viaturas que por ali passam. Uma das recomendações que tínhamos recebido da Fundação João XXIII era que devíamos preparar 60 cópias de uma ficha onde constasse a identificação de todos os viajantes, assim como os dados de todos os veículos. Essa informação poupou-nos muito tempo, pois em cada checkpoint gastávamos apenas um ou dois minutos e seria fácil imaginar que sem estas fichas tudo seria muito mais demorado. Esta quantidade era superior ao necessário, mas acabamos por também as usar no Senegal e na Guiné.

Nos relatos das frequentes viagens que a Fundação João XXIII faz até à Guiné, explicaram-nos que recebem muitas ofertas de materiais para a Missão na Guiné e que as transportam recorrendo a veículos bem maiores que os nossos, por esta mesma rota. Além disso, enviam também contentores para Bissau. Para eles, além das fichas que identificam os participantes e os veículos, têm também um manifesto com todo o recheio. Perante tal variedade de bens, alguns agentes da autoridade, de uma forma mais ou menos formal, pedem também algum apoio para si e para os seus. Assim, e de forma a agilizar as passagens (TIA – This is Africa), os experientes transportadores ao serviço da Fundação levam sempre vários sacos plásticos com uma ou duas peças de roupa e um ou dois brinquedos, a que chamam de kits, e que têm sempre à mão.

Contaram-nos que numa dessas viagens, numa verificação aduaneira à entrada da Mauritânia, foram questionados sobre duas caixas com garrafas de vinho tinto, destinadas a serem servidas num casamento em Bissau. Perante tal achado e devido à proibição islâmica do consumo de álcool, os guardas ficaram muito “incomodados” e apreenderam as duas caixas. O fiel depositário das mesmas, triste pela perda e sem saber como explicar o extravio do dote para a boda, só sossegou depois de lhe garantirem que poderia recuperar as doze botelhas no regresso para norte. Aquando do seu retorno, o oficial de serviço arrasou-o explicando-lhe que todos os materiais impuros eram queimados e por isso não podiam devolver as garrafas. TIA. Sobre os danos que tal confisco teve no dia do casamento, não fomos informados.

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Rumo a Nouakchott
Foto Paulo Sousa

Nouakchott, que carinhosamente sempre designamos por “No caixote”, é uma cidade que nos transmitiu a sensação de se tratar de um abastecimento permanente dos nómadas que circulam pelo país. Quase misturados com os automóveis, circulam rebanhos de ovelhas, cabras e camelos. O deserto começa onde acaba a cidade e isso faz com que as ruas tenham sempre um ar empoeirado. Segundo alguns relatos, no tempo do império colonial francês, os funcionários caídos em desgraça eram enviados para aqui. Se compararmos Nouakchott com as cidades costeiras do Senegal, do Saara Ocidental e de Marrocos, este é de facto o sítio menos privilegiado. A cidade terá a sua dinâmica, mas para quem passa com os dias e os quilómetros contados não parece ser muito apelativa. Quando lá chegamos ainda tínhamos duas horas de luz e por isso decidimos seguir viagem para pernoitar mais a sul, mais perto do Senegal.

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Nouakchott
Foto Paulo Sousa

A noite caiu e pensamos que conseguiríamos pernoitar junto à fronteira para poupar tempo no dia seguinte, mas após algumas dezenas de quilómetros, num dos checkpoints o oficial disse-nos que era perigoso conduzir de noite e que podíamos pernoitar ali mesmo. Aceitamos o convite, montamos as tendas nas traseiras do posto, e ali dormimos. Ao jantar, e sem a poluição luminosa que normalmente nos impede a observação noturna do céu, fomos brindados pelo Cruzeiro do Sul, que a contar com esta, foi a primeira vez que o pude contemplar.

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Acampamento no sul da Mauritânia
Foto Nuno Rebocho

Nesta parte importa registar que todo o contacto que tivemos com os mauritanos foi de uma extrema cordialidade. Talvez por osmose com o deserto que os rodeia e que convida à contemplação, todos eles mostraram uma enorme calma e serenidade. O convite que recebemos para ali pernoitar foi dentro deste registo. Toda a experiência com os marroquinos foi também sempre muito positiva, mas não pude deixar de me recordar de uma ocasião em que um marroquino me disse que se alguma vez fosse para a Mauritânia, ou para a Argélia, devia ir bem armado. As coisas que se dizem para alimentar inimizades com países vizinhos…

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Comida halal a caminho
Foto Nuno Rebocho

Pela manhã, enquanto desmontávamos o acampamento, assistimos ainda ao abate de uma vaca. Enquanto o animal seguia calmamente acompanhado pelos seus dois carrascos, o chefe do posto foi-nos explicando que o processo decorreria de acordo com as práticas islâmicas, de forma a ser considerado halal. Assim, quando derrubado, o bicho deveria ser orientado numa direcção específica, provavelmente tendo Meca por referência, o executante tem de ser um adulto reconhecido como pessoa capaz e tem de se dizer uma oração durante a execução. Assim, ali perto de nós, todo o procedimento se seguiu com a calma mauritana e de acordo com o roteiro planeado. Agradecendo a hospitalidade, despedimo-nos do nosso anfitrião e seguimos até à fronteira do Senegal.

Continua

Início da viagem

Viagem até Bissau - 1

A partida

Paulo Sousa, 07.07.21

Comecei a escrever este texto, sobre uma viagem que fiz com um grupo de amigos entre Abril e Maio de 2013 à Guiné Bissau, para meu arquivo pessoal e memória futura. Só mais tarde decidi dividi-lo em vários postais, que aqui passo a publicar.

É habitual dizer-se que a preparação de uma viagem é uma viagem em si mesmo. Realizá-la é já a sua segunda versão e notei agora que escrever sobre ela é como acrescentar-lhe uma terceira camada. Gostei de o fazer.

A coisa vestiu-se, desde o início, de missão humanitária. Acondicionados dentro dessa embalagem, conseguimos combinar a descoberta da Guiné-Bissau – um país a que estamos e estaremos sempre ligados – com a vontade de partilhar, contribuindo na ajuda que ali é prestada por voluntários, apenas motivados pelo que de melhor o ser humano pode ter, e que é a generosidade para com desconhecidos.

Alguém do grupo conhecia alguém, que por sua vez conhecia outra pessoa ligada à Casa do Oeste - Fundação João XXIII sediada em Ribamar e que se dedica, entre outras coisas, a ajudar guineenses e que mantém uma presença contínua no país. Seguindo essa cadeia de dominó, acabámos por contactar a Fundação, onde fomos recebidos de braços abertos. Além de nos disponibilizarmos para transportar livros e alguns materiais escolares, contribuiríamos na forma da oferta dos nossos veículos a quem a Fundação entendesse serem úteis. Depois de uma ou duas reuniões e algumas horas de conversa, durante as quais recebemos uma enxurrada de detalhes operacionais para a viagem, começámos a preparar os carros e marcámos uma data.

Quase sem darmos por isso à volta de uma ideia surgida numa mesa de café, entre uma bica e uma imperial, tinha-se reunido um grupo de dezasseis pessoas que se distribuíram por sete viaturas. Os carros já tinham alguns anos e foram escolhidos pela sua fiabilidade, usando o critério de “quanto mais analógico melhor”. O material escolar que reunimos foi doado pelos alunos da creche e da escola primária da nossa freguesia. No dia da partida, as aulas foram interrompidas para que todos pudessem tirar uma foto com a expedição que partia e que ia levar cadernos, lápis e livros em língua portuguesa para tão longe. Foi uma festa. O primeiro momento mágico de muitos que se seguiriam.

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Foto Nuno Rebocho

Uma road trip só se torna real depois da partida. Antes do último preparativo, da última verificação da lista que foi crescendo durante semanas, até que se feche a porta de casa, e depois a do carro, tudo não passa de um projecto, de uma ideia. Mas de repente, após todos esses momentos, só importa o que irá acontecer ao longo daquela faixa, mais ou menos escura, mais ou menos recta, mais ou menos regular. Uma road trip numa caravana de sete carros exige a cada condutor uma atenção especial. As normas dentro do colectivo obedecem a uma lógica que visa manter o grupo coeso e em segurança. Ninguém pode ficar para trás e por isso o andamento de cada carro nunca pode levar a que se perca o contacto visual com o carro anterior. Se cada condutor apenas se preocupar em não perder de vista o que vai à sua frente, à menor contrariedade o grupo dispersa-se e isso equivale, no mínimo, a um desperdício de tempo. Por isso, a regra principal é muito simples, nunca perder o carro de trás de vista.

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Foto Nuno Rebocho

Uma parte significativa das dezasseis pessoas da caravana não eram mais do que recém-conhecidos, tendo estado juntos apenas num piquenique uma semana antes do grande dia, a que chamamos “a falsa partida”. O espírito de equipa formou-se rápida e naturalmente. Dia após dia, quilómetro após quilómetro, fronteira após fronteira, todos nos sentimos cada vez mais próximos.

Este não é um tipo de viagem que se possa descrever como férias, pois exige uma entrega permanente, em que não se podem regatear energias nem atenção. A cada instante é necessário avaliar o que nos rodeia, sem nunca esquecer que temos de saborear e viver cada momento. Tudo pode mudar de repente. Um buraco, um parafuso, uma fronteira, ou apenas a picadela de um mosquito. Qualquer uma destas coisas juntas ou mesmo isoladamente pode mudar radicalmente o rumo da viagem. Essa possibilidade é o que de mais metafórico com a vida, uma road trip deste tipo pode ter.

Na primeira noite dormimos num parque de campismo em Tarifa, de onde saímos quando ainda estava escuro, para apanhar o primeiro ferry para Tânger. A noite seguinte já foi passada em Marraquexe, que exige sempre uma passagem nocturna pela única e inigualável praça dos mortos, Djamena el Fna. Quem conhece este rectângulo sabe bem do que falo.

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Foto Nuno Rebocho

Marrocos é todo um programa, que alguns de nós já conheciam. As paisagens, especialmente as que ficam longe do alcatrão, são de encher as medidas, e por isso foi com pena que vimos o Atlas a ficar para trás sem que lhe prestássemos a devida atenção.

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Foto Paulo Sousa

Continua.