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Em 29 de Maio pp., ao cair da tarde, o 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau proferiu a sentença relativa ao chamado "caso Sulu Sou", no âmbito do processo criminal em que este deputado e Scott Chiang, um dirigente e activista da Associação do Novo Macau, foram julgados.
Depois do que aconteceu na Assembleia Legislativa de Macau, em Dezembro de 2017, com sucessivos atropelos à lei e aos direitos fundamentais do deputado para que fosse possível proceder à sua suspensão e ao levantamento da sua imunidade parlamentar, Sulu Sou e Scott Chiang acabariam por ser julgados e condenados pela prática de um crime de reunião e manifestação ilegal, por desrespeito ao art.º 14.º, n.º 1, do disposto na Lei n.º 2/93/M, na pena de 120 dias de multa, sendo que no caso de Sulu Sou a multa foi fixada à taxa diária de MOP$340,00 (trezentas e quarenta patacas), perfazendo MOP$40.800,00, e no caso de Scott Chiang de MOP$230,00 (duzentas e trinta patacas), no total de MOP$27.600,00.
A pena em que o deputado foi condenado não o inibe de retomar, por agora e a manter-se, visto que ainda está a decorrer o prazo de recurso e há mais inquéritos em curso contra ele, o seu lugar de deputado na AL. Só a condenação do deputado numa pena de prisão igual ou superior a 30 dias é que poderia, ainda que dependente de uma deliberação do Plenário, ter a virtualidade de afastá-lo definitivamente do hemiciclo. Talvez por causa disso tenha havido quem se tivesse manifestado sastisfeito pela pena aplicada.
No entanto, a primeira questão que desde logo se colocou e aos olhos de todos saltou à vista, por comparação com situações onde estava em causa idêntico tipo criminal, foi a severidade das punições aplicadas pelo Tribunal, depois do Secretário para a Segurança também ter admitido anteriormente que a polícia tem tratamentos diferenciados.
Há não muito tempo, no processo do caso "Sin Fong Garden", em que os manifestantes ocuparam a via pública, "davam sinais de instabilidade e violência", ocuparam a faixa de rodagem, causando um engarrafamento completo do trânsito, tentando forçar a entrada num parque de estacionamento, e tendo a PSP inclusivamente "advertido os manifestantes de que estavam a participar numa reunião ilegal, aconselhando-os a sair da rua", sob pena de incorrerem na prática de um crime de desobediência qualificada, "avisos que a Polícia diz terem sido ignorados", os arguidos foram condenados a penas de multa de MOP$9.000,00 (nove mil patacas).
Num outro caso (Polytech), "que terminou com um polícia agredido e ataques à viatura das autoridades", o agressor não foi sequer acusado.
E numa terceira situação (caso Hoi Vong Chong), já este ano, em que o Tribunal considerou o arguido culpado de um crime de desobediência qualificada e de um crime de difamação agravada com publicidade, a pena foi uma multa de MOP$6.000,00 (seis mil patacas) e uma indemnização de MOP$2.000,00 (duas mil patacas).
A disparidade de posições assumidas pelo Ministério Público (que terminou as alegações pedindo a prisão efectiva do deputado e do activista por acreditar que a multa não teria efeito dissuasor) e a severidade da sentença, num caso onde não se provou ter havido qualquer desobediência a ordens legítimas da autoridade policial, não houve qualquer violência ou distúrbio e a ordem policial de dispersar foi cumprida em segundos (na audiência de julgamento foram visionados os vídeos da manifestação), não podia deixar ninguém indiferente, tanto mais que a 4 de Junho passava mais um aniversário sobre os acontecimentos de Tianmen, em 1989, e tanto Sulu Sou como Scott Chiang não deixariam de marcar posição na vigília que anualmente ocorre no Largo do Senado em memória das vítimas e para exigir mais liberdade e democracia.
O julgamento de Sulu Sou e Scott Chiang seria ainda sublinhado pelo insólito do Ministério Público ter ressuscitado factos arquivados no inquérito criminal e em relação aos quais nenhum dos arguidos havia sido acusado. O Tribunal mandou ainda extrair certidões para serem abertos novos inquéritos por "haver indícios de que outros indivíduos praticaram o mesmo crime que o cometido pelos dois arguidos".
Mas aquelas que parecem ser as situações mais problemáticas da decisão proferida prendem-se com (i) a imputação aos arguidos de um crime que tem sido entendido como não tendo autonomia (em termos simples, só haveria crime de reunião e manifestação ilegal pelo art.º 14.º se houvesse manifestação que nos termos do art.º 11.º tivesse sido não autorizada, que se afastasse da sua finalidade ou que não tendo sido objecto de aviso prévio infringisse o art.º 2.º, ou se tivesse havido lugar à prática de actos contrários à lei que perturbassem gravemente a segurança pública ou o livre exercício dos direitos das pessoas") e (ii) a alteração da qualificação jurídica dos factos sem que tivesse sido dada previamente aos arguidos a possibilidade de se defenderem.
Esta última situação é de facto extraordinariamente absurda e já foi anteriormente julgada como sendo conducente à nulidade da decisão, sendo de estranhar como foi possível chegar-se até aqui.
Com efeito, no Acórdão n.º 269/2016 do Tribunal de Segunda Instância de Macau, proferido em 05/05/2016, e tirado por unanimidade concluiu-se que incorre na na "nulidade do art.º 360.º, n.º 1, alínea b) do C.P.P.M. [Código de Processo Penal de Macau], se no Acórdão proferido a final da audiência de julgamento se proceder a uma "alteração da qualificação jurídica" constante da acusação, condenando-se o arguido por outro "tipo de crime", sem qe lhe tenha sido (previamente) dada a oportunidade para sobre tal alteração se defender ou requerer prazo para o fazer". Independentemente das considerações que o ocorreu propicie, inegável é que nesse processo, perante uma questão desta gravidade, o Ministério Público se pronunciou no sentido do provimento do recurso então interposto pelo recorrente, afirmando textualmente que "é exacto, conforme vem alegado, que a recorrente acabou por ser punida – bem ou mal não interessa – por um crime diverso daquele que lhe vinha imputado. E, posto que a moldura legal do crime para que se operou a convolação seja inferior à do crime imputado na acusação, afigura-se que a diversidade dos tipos, dos bens protegidos e dos respectivos elementos constitutivos, impunham a observância do contraditório, mediante prévia advertência do arguido para essa hipótese de alteração, por forma a possibilitar-lhe a restruturação ou reorganização da sua defesa", acrescentando que "é este o entendimento doutrinário e jurisprudencial que se vem sedimentando em Macau, apesar da inexistência de norma expressa sobre o assunto, conforme se pode constatar, v.g., em "Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau", de Leal-Henriques, fls. 709 e seguintes do volume II, e nos acórdãos do Tribunal de Última Instância tirados nos processo 8/2001 e 6/2003".
Agora, tudo isto foi olimpicamente ignorado, no que não pode deixar de ser visto como mais um retrocesso do chamado Segundo Sistema num processo que é, por tudo o que tem acontecido, uma espécie de affaire Dreyfus à macaense, atentos os seus indiscutíveis contornos políticos e os atropelos sucessivos à lei (sublinhados pelos juristas que ainda falam).
A acrescer a tudo isto as considerações tecidas aquando da leitura da sentença aos arguidos e o facto desta, composta por mais de sessenta páginas, ter sido disponibilizada aos mandatários pro bono, Jorge Menezes e Pedro Leal, exclusivamente em língua chinesa, não obstante ter sido feito um requerimento para a sua tradução e entrega em língua portuguesa aos advogados.
Particularmente significativo é também o facto da não disponibilização de decisões judiciais traduzidas para português ser um dado recorrente, mais grave estando em causa um processo desta natureza e sobre matéria de direitos fundamentais protegidos pela Lei Básica de Macau.
O facto dos arguidos serem falantes de chinês não pode ser argumento para a não tradução da decisão para português, tanto mais que se aqueles escolheram mandatários portugueses foi por entenderem que estariam melhor defendidos. Além de que sendo aqueles leigos na matéria, são os seus defensores quem tem de apreciar as minudências técnicas e jurídicas da decisão para o recurso, o que só pode se feito numa língua que estes dominem e sendo para tal insuficiente um mero comunicado do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância com um resumo do decidido.
Ao evitar-se a disponibilização de traduções em língua portuguesa (visto que em causa não está, nunca esteve, o direito dos magistrados escolherem qualquer uma das línguas oficiais na emissão das suas decisões), e ao arrepio do direito também consagrado no Código de Procedimento Administrativo e na lei que define o estatuto de igualdade das línguas e o direito dos interessados e mandatários serem notificados na língua da sua escolha, está-se a tornar mais onerosa a defesa dos arguidos (os prazos continuam a correr) e, objectivamente, "a correr-se" de Macau com os advogados portugueses que não leiam e escrevam em chinês, deitando por terra todas as garantias da Declaração Conjunta Luso-Chinesa e da Lei Básica.
A situação que hoje se vive em Macau não pode deixar de levantar outras questões, sendo que a menor delas todas ainda será a de saber qual o papel hoje reservado aos magistrados portugueses, judiciais e do MP, que por cá continuam nas três instâncias.
Recorde-se que aqui ao lado, em Hong Kong, foi confirmada há dias a nomeação de duas reputadíssimas juízas estrangeiras, o que levou a uma manifestação de júbilo do insuspeito South China Morning Post que escreveu em editorial ser a sua indicação de grande benefício para o mais alto tribunal de Hong Kong. O que do outro lado se valoriza desvaloriza-se em Macau, ademais patente com a vontade de afastar juízes estrangeiros, leia-se portugueses, do julgamento de algumas causas.
Tudo isto deverá, seguramente, levar o ainda recentemente nomeado Embaixador de Portugal na RPC a repensar as inacreditáveis declarações que fez numa entrevista à TDM, sinal de que no MNE se continua a ter uma imagem muito desfasada da realidade que quotidianamente aqui se vive e das prioridades em que Portugal apostou, o que, verdade seja dita, começou no tempo em que Carlos Melancia se predispôs a "queimar etapas" no processo de transição, no que foi seguido por Rocha Vieira. O que era preciso era fazer esquecer a descolonização africana, evitar pontes aéreas e varrer o lixo para debaixo do tapete. O resultado a que se chegou pode ser lido (em chinês, naturalmente) pelo Senhor Presidente da República Portuguesa, pelo Senhor Primeiro-Ministro António Costa e pelos senhores deputados à Assembleia da República na sentença do "caso Sulu Sou".
No momento em que se preparam as celebrações de mais um Dez de Junho, talvez seja este o momento oportuno para se começar a reflectir sobre o legado do direito português por estas paragens, no futuro das gentes de Macau (já que anteriormente se estiveram a marimbar para isso) e, em especial, sobre os valores que lhe são próprios no quadro das futuras relações com a RPC.
As lentilhas e as medalhas podem encher a barriga e o peito mas não alimentam a alma e o espírito de gente honrada. De gente respeitadora, cumpridora e pacífica, de gente que preza os seus direitos e a sua liberdade no segundo sistema. E que ainda confia nos seus dirigentes, qualquer que seja a língua em que se exprimam.
P.S. Este texto devia ter saído no início da semana, mas afazeres vários impediram-no. Sai hoje, seguro de que ainda irá a tempo do Dez de Junho. Que não vos faltem os foguetes.