A Prima Rosalina era uma doce avozinha de Botero, com os seus olhos azuis e cabelos claros. Vivia em Cascais com o primo Manuel e com a Lena, uma menina ainda mais linda do que os pais. Ir a casa da Prima Rosalina era prenúncio de um bom domingo. A conversa durante a viagem era invariavelmente doce e salgada. Falávamos de mousse, de pudim e arroz doce, mas sobretudo de “batatas de pacote" que a Prima Rosalina fazia como ninguém. Às rodelas fininhas, secas e salgadas, as batatas da nossa prima faziam crescer água na boca de qualquer miúdo guloso. Enquanto os crescidos salivavam perante uma travessa enorme de mão de vaca com grão, os putos enchiam-se de batatas e doces, porque eram assim os domingos em Cascais em casa da Prima Rosalina. O Primo Manuel, com os óculos na ponta do nariz risonho e paciente, ensinou-nos a tocar os primeiros acordes no piano lá de casa e tinha um conhecimento enciclopédico sobre todas as coisas.
A casa de Alfeizerão fazia parte do espólio de magia da Prima Rosalina. Situada nos Casais do Norte, a vivenda Cruz era uma casa térrea com água furtada, quase paredes meias com uma enorme herdade de criação de bois de cobrição. A casa era alegre, com muitos quartos e anexos, decorada eclecticamente, uma cozinha enorme com muita loiça de barro e grandes vasos com tampa e torneira para a agua que provinha de um poço no exterior com uma bomba de alavanca, no melhor estilo Vovó Donalda e que fazia parte do nosso exercício matinal.
Tinha recantos fascinantes e imensos retratos da Amália, que chegou a fazer parte da família durante os anos em que foi casada com o Primo Chico, que sempre tive como uma simpatia de pessoa, mas cuja única nota alta no filme de 2008 foi ter sido interpretado pelo José Fidalgo.
A casa de Alfeizerão tinha a grande vantagem de ficar a 10 minutos de carro de S. Martinho do Porto, freguesia do concelho de Alcobaça que tem apenas a mais linda baía valviforme da Costa de Prata e uma praia fabulosa.
Cedinho, depois de grandes fatias de pão escuro torradas com manteiga caseira das vaquinhas da mãe da Celeste na quinta ao lado, ia-se ao mercado a S. Martinho, que fervilhava de agricultores, fregueses e aromas campestres, e de imediato se caía de chapão nas águas frescas da praia que proporcionava aos nadadores de banheira muitos metros sem perder o pé.
Depois de um peixinho fresco directo do grelhador do quintal com a manteiga, e com limões e salsa acabados de colher, as tardes eram invariavelmente de preguiça. Numa espécie de tabacaria minúscula entre o talho e a padaria, encontrei os primeiros três volumes das Aventuras de Tarzan de Edgar Rice Burroughs, excelente leitura de férias para os meus 14 anos. Nas tardes menos quentes, íamos até à herdade ver os bois, enormes e pesados, que se estivessem em acção não poderiam ser “incomodados" pela presença de crianças, ou, liderados pelo Mano, mobilizávamo-nos pelos campos adentro para a apanha do caracol, que trazíamos em sacos de pano e ficavam no alguidar grande coberto com uma rede fina, para limpar durante uns dias.
Claro está que o Menino divertia-se a tirar a rede e a ver a caracolada “fugir” pela casa fora. Exceptuando uns gatitos, uma data de aranhas e os animais da quinta da mãe da Celeste, o pobre Menino não tinha muito para traquinar.
Outras vezes passeava-se pela costa ou dava-se um pulinho a Alcobaça, que tinha mais comércio. Quantas vezes não esperei com os meus livros na frescura do mosteiro...
O ponto alto das noites eram os pirilampos e as estrelas no céu. Num qualquer recanto campestre mais escuro, garanto que era difícil perceber onde terminavam uns e começavam as outras. Só agora consigo entender bem o significado daqueles suspiros profundos de satisfação que aqueciam e reconfortavam o coração.
Tempos de férias fabulosos, estes, antes do pai se apaixonar por Lagos e Pedras d'El Rei. Só voltei a Alfeizerão e S. Martinho há pouco tempo. Creio que existem os Casais do Norte, a casa, não garanto. Um prédio por outro aviva a memória mas nada, nada mesmo, faz lembrar sequer a casa do Pão de Ló que comíamos à boca cheia.