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Delito de Opinião

Ler (33)

Quando o jornalismo se torna literatura

Pedro Correia, 05.05.24

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Kim Kardashian: «lábios de embuste»

 

Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).

Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.

O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.

Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.

Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos. 

Ver mais longe

Pedro Correia, 19.08.22

«Com alguma pompa e circunstância e a presença de Dulce Pontes, nasceu a Comunidade dos Países de Língua (oficial) Portuguesa. Fernando Henrique Cardoso esportulou 600 mil contos e Portugal 60 mil. Suponho que o dinheiro servirá para a colectiva congeminação de um acordo ortográfico verdadeiramente devastador. Não vejo que possa servir para mais nada, porque nada existe de comum entre os países da comunidade de língua (oficial) portuguesa. Nem sequer, em rigor, a língua.»

 

Vasco Pulido Valente, n' O Independente (19 de Julho de 1996)

Como Vasco via Putin em 2007

Pedro Correia, 26.07.22

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«Com o colapso da URSS ("a maior catástrofe política" do século, segundo Putin) e o súbito sumiço do "socialismo real", a Rússia acabou por puro acaso (ou muito azar) na "democracia": um regime que notoriamente a prejudica. Sempre oscilante entre a inveja do Ocidente e a glorificação do particularismo eslavo, a Rússia voltou agora ao particularismo eslavo. Putin quer criar uma ideologia "patriótica e nacional". Em Agosto, um artigo do Herald Tribune (de Nina Khrushcheva) descrevia essa campanha para reviver a "grandeza" da Rússia. Uma campanha que mete a televisão, a rádio e a imprensa, evidentemente. Mas também banda desenhada, cartazes pelas ruas, poemas no metropolitano e até, como de costume, a literatura oficial. Os militares readquiriram o seu antigo prestígio, os "Pioneiros" foram substituídos pelos "Nashis" e o KGB pela FSB. A tradição resistiu à crise e a Rússia (à custa do petróleo e do gás) renasceu na sua autêntica qualidade de império.

Era inevitável que a Rússia não se resignasse à derrota de 1989-1991; e era inevitável que, uma vez refeita, não ficasse muito diferente do que tinha sido. Ninguém de senso esperava que um Império, com dezenas de religiões, de línguas, de etnias, se tornasse num perfeito exemplo de uma democracia liberal e de um Estado de direito. A questão não é a de saber se a Rússia se vai ou não "ocidentalizar", é a de saber como e quando passará à "reconquista" das "províncias perdidas".»

 

A diferença entre um observador político digno de atenção e um bitaiteiro como tantos que enxameiam as televisões avalia-se neste longo excerto de um texto analítico de Vasco Pulido Valente intitulado "Uma nova Rússia?", impresso no jornal Público a 2 de Setembro de 2007.

Quinze anos antes da actual agressão de Putin à Ucrânia estava já tudo previsto nesta linhas por quem sabia analisar os factos com lucidez, cultura, sagacidade e uma acutilância que nos deixam saudades.

Infelizmente, desde logo, porque restam poucos com o nível dele.

Ele bem sabia

Pedro Correia, 27.05.22

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«Putin pretende (e a Alemanha aceitou) construir um gasoduto directo entre a Rússia e a Alemanha, sem passar pela Polónia. O que evidentemente permite à Rússia fazer chantagem com a Polónia (como já fez, por exemplo, com a Ucrânia). O primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, protestou. Angela Merkel tenta tratar o caso - um caso eminentemente político - como se fosse uma questão económica. Por outras palavras, solidariedade europeia ou não, a Alemanha prefere negociar com a Rússia à custa da Polónia. Pior ainda: planeia um monumento aos "deslocados" do Leste, garantindo que ele não "relativiza" a guerra do III Reich. Faz, de facto, muito mais do que isso: põe em causa a legitimidade da Polónia tal como ela hoje existe. Por enquanto, estas querelas não são graves. Mas servem para lembrar de onde vem o grande perigo para a "Europa". E não vem da América.»

Vasco Pulido Valente (Público, 16 de Dezembro de 2007)

O criador da Geringonça

Pedro Correia, 24.11.21

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É usualmente reconhecido que foi Vasco Pulido Valente o criador do termo Geringonça, num texto que escreveu, para designar a aliança de forças derrotadas que em 2015 formaram governo em cenário pós-eleitoral. Paulo Portas, com a rapidez de raciocínio que sempre o caracterizou, apropriou-se rapidamente do vocábulo, mal o viu impresso, e contribuiu para a sua divulgação. A tal ponto que até alguns dos visados o adoptaram também.

Pulido Valente, como sabemos, tinha um talento inato para cunhar expressões que logo se integraram no vocabulário comum. Recordo duas, sem qualquer esforço de memória: "picareta falante" e "o mundo está perigoso".

No caso da Geringonça, porém, parece-me que ele se revelou apenas um excelente leitor de José Rodrigues Miguéis. Leio na página 285 d'O Milagre Segundo Salomé, a obra-prima deste grande escritor: «O problema é essencialmente económico, mas tudo depende da fórmula política. Se não for dentro da geringonça parlamentar, há que ir buscá-la fora dela.»

Rodrigues Miguéis era um visionário. Publicou o romance em 1975 - quarenta anos antes da verdadeira "geringonça parlamentar" conhecer a luz do dia. Os grandes escritores são mesmo assim, capazes de vislumbrarem além do seu tempo.

Vasco Pulido Valente e a Covid

José Meireles Graça, 23.02.21

Passou-me isto. Tenho desculpa, que agora que as neves nas minhas fontes se acumulam, como ao conselheiro Acácio, o tempo passa muito depressa.

Se perguntado, diria que foi aí há uns quatro ou cinco meses que VPV morreu. Mas não. E se houve época, desde há muitos anos, em que faz falta a sua maneira única de ver o mundo e nós nele, é esta – morreu pouco antes de um vento de loucura começar a soprar, no ano que passou.

A loucura consiste nisto:

Há uma pandemia benigna, excepto para os muito velhos, originada segundo tudo leva a crer na China. Os internamentos levam semanas e podem exigir tratamento em unidades especializadas, com o risco de entrarem em ruptura. O contágio pode dar-se, parece, também por infectados que não sabem que o estão por não terem sintomas.

Mas: O vírus requer condições para se transmitir, e um bom texto sobre que condições são essas, com base nos conhecimentos actuais, e as políticas públicas a seguir para manter a doença dentro de limites aceitáveis (isto é, sem que ninguém morra por falta de assistência), poupando os danos demenciais que têm sido infligidos à economia, é por exemplo este.

Não faltam cientistas com as mais diversas formações (a maior parte das quais, aliás, irrelevantes para abarcar na sua totalidade o fenómeno na sua dimensão patogénica), a ignorar quase sempre as consequências, inclusive de saúde pública, da sua fixação mórbida na Covid, soprando portanto insensatamente as brasas do pânico; e muitos outros com a mesma categoria académica e prática a tentar parar o estouro da boiada. Mas os primeiros ocupam a quase totalidade do espaço mediático, aqui e em toda a parte. E isto levou a que o poder político fizesse, e continue a fazer, tudo e o seu contrário para sossegar o eleitorado, confiante em que isso lhe reforça a popularidade; e que, quando a pesada factura do desemprego, da pobreza, da miséria, das falências, das mortes por outras patologias não tratadas (que vão de metade a mais do que as mortes por Covid, dependendo de quem faz os cálculos), até mesmo dos suicídios e danos na formação de crianças e jovens, chegar, a desculpa da necessidade das medidas para combater um mal maior fará esquecer a irresponsabilidade de quem tomou uma litania de decisões nefastas.

Entre nós, há quem sustente há muito uma guerra sem quartel à maluqueira instalada, e com bons argumentos. Mas como o medo se generalizou, e vários mandarins da opinião o cavalgam com larga audiência; como os danos ao tecido económico ainda não afectam a maior parte da população, que vive à sombra do Estado ou de empresas que este ajuda quando põem os trabalhadores em casa, como se toda a dívida daí resultante não fosse para pagar; como os vencidos são para já os mais mal pagos, por estarem em sectores mais duramente atingidos: as medidas, por irracionais que sejam, têm apoio maioritário.

Chega de Covid, excepto para lembrar o seguinte: Anteontem, a notícia era que os EUA tinham ultrapassado os 500.000 mortos, credo. Pois tinham: 0,154% da população, menos que a Bélgica, o recordista (0,188%), o Reino Unido (0,177%), a Itália (0,159%) e… Portugal (0,157%). Mas 500.000 é um número redondo, bom para atirar para a fogueira das descontextualizações, antes do anúncio dos detergentes.

Voltando ao princípio: Que diria Vasco Pulido Valente de tudo isto? Não era pessoa para emprenhar pelos ouvidos, mas era dono de uma memória prodigiosa e um leitor voraz – ao ponto de, anos a fio, ler aí umas 5 ou 6 horas por dia. Clássicos da literatura e da história, além de ensaios, revistas e jornais, tanto portugueses como ingleses, autores contemporâneos, pesquisa… Disto me pude aperceber nos anos, infelizmente poucos, em que pude conhecê-lo e ao seu feitio condescendente e bem-educado à moda antiga, sem  vestígio do sarcasmo corrosivo com que toda a vida cobriu os podres e insuficiências do país e dos seus contemporâneos de relevo e que, no trato, reservava apenas para idiotas.

A viúva, minha amiga desde 2011, que me perdoe este exercício, em boa parte abusivo, de querer associar a minha insignificância ao merecido prestígio de quem já cá não está, pondo-lhe na cabeça ideias que talvez não viesse a ter.

É que duvido que lhe escapasse a imensidão de testemunhos e opiniões cépticas sobre o bem-fundado da maré confinamentista e do seu corolário de medidas avulsas, mais irracionais umas do que outras. E imagino que com a sua intuição, de que não deixou herdeiros, fundada numa vasta cultura histórica, não deixaria de encontrar paralelismos e contrastes com outras epidemias, outras loucuras colectivas e outros desenlaces dramáticos.

Disse eu, no dia em que morreu, que não iríamos pensar melhor. Pois não, mas temos de tentar. E se não podemos ter a mesma cultura, e ainda menos a mesma lucidez, ao menos alguns de nós não hesitam em afastar-se do cortejo maria-vai-com-as-outras. Ele nunca hesitou.

Pulido Valente "in memoriam" (2)

Pedro Correia, 06.03.20

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«Nada há de original no republicanismo português, que não passa de uma adaptação - particularmente pobre - de ideias velhas na Europa.»

 

«Apesar de esforços desesperados, o Partido [Republicano Português] nunca conseguiu implantar-se solidamente em mais de 30 dos 262 concelhos existentes. Até à sua amarga e desiludida morte, o republicanismo e a República permaneceram coisa privada de Lisboa.»

 

«Palla e Sá Cardoso desertaram; Cândido dos Reis matou-se. Tudo somado, apenas cinco oficiais ficaram no seu posto do princípio ao fim [entre 3 de 5 de Outubro de 1910]: o comissário naval Machado dos Santos, os segundos-tenentes da Armada Tito de Morais, Mendes Cabeçadas e José Carlos da Maia e o primeiro-tenente da Armada Ladislau Parreira.»

 

«Apenas dois [jornais], o agora "reaccionário" Liberal (ex-progressista) e o ultramontano Portugal, desafiaram os tempos e persistiram no seu caminho. A 10 de Outubro [de 1910] foram ambos assaltados, saqueados e destruídos e os respectivos directores devidamente presos. O seu destino inaugurou uma época em que a "rua" controlava a imprensa com uma eficácia desconhecida nos costumes políticos portugueses.»

 

«Não apenas uma pequena parte da nação, os republicanos de Lisboa, conquistaram um poder político sem proporção com o seu poder social, económico e ideológico, mas uma pequena parte dessa pequena parte acabou por se apossar do Estado sozinha.»

 

«Os homens que haviam sido promovidos a Governo Provisório da República, uma inacreditável colecção de mediocridades glorificadas, representavam várias tendências dentro do PRP, tinham opiniões diferentes sobre o que devia ser o novo regime e nem sequer especialmente se estimavam

 

«O presidente, o filósofo, historiador, crítico e sociólogo Teófilo Braga, não passava de uma nulidade política, ali posta com propósitos puramente decorativos. (...) Quando abria a boca, os homens sérios tremiam: ou porque anunciava o advento da República "positivista", ou porque exaltava desvergonhadamente as virtudes da raça de elite lusitana, ou porque incitava os espanhóis à "revolução social".»

 

«Os carbonários não se atreveram a empregar força física contra jornais republicanos, mas não hesitaram em usar a chantagem e a intimidação. A sua primeira e mais célebre vítima foi Sampaio Bruno, escritor, jornalista, filósofo, veterano do 31 de Janeiro e uma das mais genuínas glórias do republicanismo. (...) Haveria de morrer em 1915, no Porto, depois de três anos de completa solidão, e nem sequer se atrevia a ir ao café com medo de que o insultassem

 

«Basílio Telles, o mais notável economista, historiador e pensador político do seu tempo, (...) foi espancado e apedrejado nas ruas do Porto, aos 55 anos, por se ter atrevido a criticar a obra da "ditadura revolucionária".»

 

«Os deputados à Assembleia Constituinte acabaram por ser escolhidos, não pelo eleitorado ou pelos militantes "históricos" do PRP, mas à porta fechada por pequenos grupos de dirigentes. Consequentemente, a escolha, em lugar de reflectir a vontade da nação ou do Partido, reflectiu apenas a balança de poder nos altos círculos republicanos.»

 

«De Agosto de 1911 a Julho de 1912, pelo menos 2383 pessoas entraram nas cadeias da República. (...) Por uma razão ou por outra, ou por razão nenhuma, foram presos trabalhadores e aristocratas, dirigentes sindicais e contra-revolucionários monárquicos.»

 

«As cadeias estavam cheias de presos políticos. Na Relação do Porto, no Forte do Duque, no Limoeiro, no Castelo de São Jorge, em Caxias, em Sacavém, na Trafaria, por toda a província, amontoavam-se centenas de homens em condições deploráveis. A grande maioria nunca tinha sido pronunciada ou sequer ouvida.»

 

«Depois de dez anos de uma dura, amarga e, às vezes, desesperada luta, os jacobinos urbanos eram, enfim, os incontestados senhores de Portugal. Um por um, os seus numerosos inimigos tinham sido vencidos: o Rotativismo, Franco e D. Carlos, a Monarquia e, agora, a última barreira, os próprios moderados da República. O reino de justiça ia começar. Durou pouco mais de um ano.»

 

Citações extraídas do livro O Poder e o Povo (Gradiva, 1999)

Pulido Valente "in memoriam"

Pedro Correia, 28.02.20

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«Encontrei muitos políticos desde 25 de Abril, não encontrei nenhum que não ficasse reprovado num exame elementar de História de Portugal. (...) Fora Marx e Lenine, não abriram os clássicos. Dos grandes sistemas políticos acumularam penosamente meia dúzia de noções triviais, destinadas ao jornal e ao comício.»

 

«Só por milagre o dr. Sampaio, o dr. Soares e o dr. Amaral, seus amigos, afilhados e sequazes, não acabariam colectiva e patrioticamente sentados à mesa do orçamento, esperando pela auspiciosa chegada do dr. Sousa Franco que não tardará. (...) Todos gostam das mesmas situações ambíguas e esfumadas, todos se distinguem na mesma arte subtil de conciliar o inconciliável e justificar o injustificável, e todos padecem da mesma gravidade cordata, parlapatona e pomposa, que em Portugal revela fatalmente o estadista. Não são inimigos, nem sequer adversários: são compadres. E esta é a sua República. Sua - muito deles.»

 

«Entre quadros partidários profissionais, militares, políticos e os fala-baratos do costume, o 25 de Abril não revelou ou produziu ainda um dirigente genuinamente operário ou popular de estatura. Quem se espantará?»

 

«Em Portugal o doutoramento continua a ser um tremendo privilégio. Habilita os seus venturosos possuidores ao adereço distinto de "sr. professor", confere-lhes um pequeno feudo vitalício na Universidade, promove-os a lugares de direcção académica, e quase sempre indica-os aos órgãos de soberania como desejáveis pastoreadores da nação.»

 

«Houve um tempo em que os Governos e as Universidades consideravam um sociólogo o lamentável cruzamento de um socialista e de um astrólogo. (...) Estudar uma sociedade parecia aos Governos implicar o perigoso propósito de a mudar - temeridade que geralmente não acontecia aos sociólogos. Por outro lado, a Universidade pensava sobre a sociologia o mesmo que sobre os horóscopos: à força de generalizações e trivialidades, era realmente impossível não se acertar algumas vezes.»

 

«Tendo muito pouco, o povo quer logicamente alguma coisa e, quando é livre de decidir, recusa sempre a aventura revolucionária, porque vive num curto espaço antes da privação, do desemprego ou da miséria. Os "sonhos" que o intelectual em causa confessa alimentar de "privilégio" sem limites e de "grandeza que não há" não são sonhos do povo, são sonhos do pequeno-burguês socialmente frustrado. A ideologia da revolução não passa de uma ideologia pequeno-burguesa.»

 

«Se os Governos caíssem por causa do descontentamento, o salazarismo tinha caído trinta vezes depois de 1945. Se a agitação fizesse cair Governos, o liberalismo não tinha passado de 1834 e a República de 1911. Se os Governos precisassem para sobreviver de uma sólida base social de apoio, Portugal não era governado desde o fim do século XVIII.»

 

Citações extraídas do livro O País das Maravilhas (Intervenção, 1979)

Vasco Pulido Valente bloguista

jpt, 26.02.20

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Após a sua morte, e como é normal, muito se escreveu sobre Vasco Pulido Valente. E muito se partilhou, textos antigos, entrevistas antigas, etc. Mas que eu tenha visto - e que o google mostre - ninguém recordou o breve blog que criou em parceria com Constança Cunha e Sá, em plena era blogal (2006). Julgo, se a memória não me atraiçoa, que o encerraram no dia seguinte a terem passado a liderar as audiências blogais nacionais de então, medidas e muito seguidas na lista elaborada pelo contador sitemeter. Ultrapassando o muito lido Abrupto, de José Pacheco Pereira, que desde sempre encabeçara essa lista. Vivia eu em Maputo e ao ver aquilo ocorreu-me um enfastiado "ai, aquela Lisboa ...".

Enfim, não seja por esses meneios, que o tempo tudo apaga. E talvez até tivesse sido coincidência ... De facto, apenas vim lembrar o bloguista VPV. E, já agora, o blog ainda está disponível para quem o queira ver. É O Espectro

Contra a preguiça intelectual

Pedro Correia, 24.02.20

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Vasco Pulido Valente foi meu professor na Faculdade. Leccionava Ciência Política e era uma das celebridades daquele curso. 

Julgo que quase todos o líamos religiosamente na última página do Expresso, numa coluna intitulada "O País das Maravilhas". Eu começava precisamente por ali, sábado após sábado. Por aquele rectângulo destacado na linha gráfica do jornal com uma prosa que parecia saída do bisturi dum cirurgião. Prosa limpa, sem "poréns", sem "entretantos", sem "outrossins". Sem reticências nem pontos de exclamação. Sem atalhos para chegar onde queria. À inglesa, libertando-nos da retórica afrancesada que ainda marcava tantos dos seus parceiros de geração. 

Porque ele não nos ensinava só a pensar. Também nos ensinava a escrever. Este foi um dos seus maiores méritos: mudar a forma como se escrevia nos jornais, traçando linhas de fronteira. Antes dele proliferavam os gongóricos, cultores imoderados do adjectivo e e do advérbio. Depois dele, a nossa escrita ficou mais limpa.

 

Estou a revê-lo no alto do estrado, na Universidade Católica. Era o primeiro dia de aulas e nós, caloiros, tínhamos pela frente aquele professor ainda jovem mas já famoso pela tal coluna onde zurzia nos políticos. 

De blazer e gravata de malha, ele olhou-nos de cima para baixo e rompeu enfim o silêncio com uma lâmina em forma de pergunta: «Algum dos senhores leu Os Fidalgos da Casa Mourisca

Sentiu-se um embaraço colectivo na sala enquanto olhávamos uns para os outros: ninguém havia lido aquele livro. 

«Era o que eu pensava», disparou em tom cáustico, cruzando os braços enquanto continuava a olhar-nos fixamente. O Vasco colunista confundia-se com o Vasco professor: agora éramos nós os zurzidos. 

«Os senhores nunca saberão o que foi a história do século XIX em Portugal sem lerem esse romance», prosseguiu, sem a menor preocupação em cativar-nos pela simpatia. Não era para isso que ali estava, mas para rasgar-nos horizontes. E a primeira lição fora dada: não há limites estanques no domínio do saber. Um romance pode ser a primeira janela aberta para a política. 

 

Meses depois, O País das Maravilhas saiu em livro. Andei com ele literalmente debaixo do braço. Lido e relido, sublinhado, transcrito. Já com as virtudes e até alguns dos defeitos que obras posteriores confirmaram - no campo da crónica, da biografia, do ensaísmo histórico. Obras como Às AvessasPortugal -- Ensaios de História e de Política, Retratos e Auto-Retratos, Os DevoristasEsta Ditosa PátriaMarcello Caetano: as Desventuras da RazãoUm Herói PortuguêsIr Prò ManetaGlória. Até à última, não por acaso intitulada O Fundo da Gaveta, sobre a qual escrevi aqui.

Uma escrita elegante, cáustica, direita ao osso, sem vias sinuosas. A palavra certa estava sempre lá. Mas também uma visão de Portugal marcada por um inabalável pessimismo, ancorado na ancestral geração de 70 e nas torrenciais páginas desse romance excessivo em tudo, até no campo das ideias, que Eça de Queiroz nos deixou em legado: Os Maias. A visão por vezes desfocada de um país asfixiado pela mediocridade irrevogável das suas elites. 

 

Lembrarei sempre Vasco Pulido Valente, acima de tudo, como meu professor. Um dos mais estimulantes que tive - e, felizmente, foram vários. Capaz de nos fornecer pistas de análise, de nos sacudir da tentação da apatia, de nos alistar no combate à preguiça intelectual. Até para discordarmos dele.

Anoto isto e reparo agora que, tantos anos depois, continuo sem ter lido Os Fidalgos da Casa Mourisca. Algum dos senhores o leu?

Vai fazer-nos muita falta

Pedro Correia, 22.02.20

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Vasco Pulido Valente era o melhor. Em quase tudo. Também na capacidade de inspirar epígonos que ia influenciando por geração espontânea e foram irrompendo como cogumelos - todos com menos talento que ele.
 
Era bom a pensar, a escrever, a polemizar.
Nunca lhe faltou a coragem para dar expressão pública ao pensamento. Nem vocação para escolher sempre as palavras mais adequadas à elegância formal que jamais cessou de procurar.
Sem atender a conivências nem a conveniências, criticou quase tudo e quase todos. Por vezes com um desassombro que alguns confundiam com arrogância ou cinismo. Por vezes com incoerências, naturais num percurso tão vasto, que se espraiou por seis décadas: era o comentador político português que exercia o ofício há mais tempo em permanência.
Vinha do pioneiro Almanaque, remontava ao antigo O Tempo e o Modo - publicações que hoje já quase ninguém sabe o que significaram na estreita sociedade portuguesa daquele tempo em que a censura estava inscrita no quotidiano mental das elites bem-pensantes.
Nem sempre fez os juízos certos sobre todas as figuras públicas que foi visando com a sua pena cáustica, pontualmente repassada de sarcasmo. Mas acertou na maior parte das vezes - em quase tudo quanto era essencial no catálogo de ideias que professava e foi sedimentando desde que estudou em Oxford, na primeira metade dos anos 70. A necessidade imperiosa de aproximar Portugal dos padrões de civilidade europeia, por exemplo.

Faltou-lhe escrever um romance. Ensaiou essa peça de ficção durante décadas, em versões diversas, mas era tão exigente com ele próprio que acabou por nunca publicar nenhuma.
Tentou uma aproximação ao género, com Glória, mas saiu-lhe afinal um ensaio histórico, aliás não destituído de brilhantismo. Com duas características essenciais: devolveu aos leitores o prazer do reencontro com a escrita narrativa, reaproximando a História da Literatura, e recuperou a biografia como peça fundamental da investigação histórica numa altura em que os cânones académicos menosprezavam o género.
No campo da historiografia, o título imbatível do seu legado foi o primeiro: O Poder e o Povo, que derrubou para sempre vários mitos beatíficos sobre a I República. Pena também esta investigação ter ficado incompleta, pois só abarca um período circunscrito deste ciclo histórico que antes dele era descrito com inúmeras omissões factuais.
 
Sentiu-se por duas vezes atraído pela política activa, nas décadas de 70 e 90, mas depressa concluiu que não era aquele o seu mundo e soube retirar-se muito a tempo. Também a comunicação radiofónica e televisiva estava longe de constituir o seu domínio de eleição, que era o da escrita.
 
Tinha este dom - e soube exercê-lo. Graças a ele, ensinou muitos de nós a reflectir, a ponderar, a argumentar, a desafiar os bonzos da opinião, a questionar os dogmas soprados no vento, a ripostar sem medo.
Por vezes à custa de si próprio, pois consumiu-se sem remissão na contingente espuma dos dias, que lhe roubava tempo e paciência para outros projectos, mais adequados ao seu engenho.
Eis o fardo insustentável de um comentador - mesmo o melhor de todos, como VPV. Não vejo hoje ninguém que possa equiparar-se a ele. Vai fazer-nos muita falta.

Vasco Pulido Valente

José Meireles Graça, 21.02.20

Uma das coisas mais estúpidas que se dizem é aquela “os cemitérios estão cheios de gente insubstituível”.

São muito raros esses, os insubstituíveis, mas existem.

Vasco Pulido Valente era um deles e, podendo haver em cada geração mais do que um, não me lembro de mais ninguém.

Não mais quem diga muito com pouco; não mais quem veja no nevoeiro e na confusão do presente os ecos do passado que tornam inteligíveis os nossos dias e nos lembram a nossa condição inelutável de portugueses; não mais quem, para falar dos casos da semana, do mês, da década ou do regime, utilize uma forma superior de português de lei; e não mais quem, amado por uns e odiado por outros, fazia ver o óbvio, que só o era depois de ele o mostrar.

Não usava, para falar de pessoas importantes, a maior parte das quais conhecia pessoalmente, o dorso da colher; e era implacável com os tiques, as mazelas, as vaidades irritadas e irritantes do mundo oficial.

Adeus, Vasco. Nós, os que para descobrirmos a nossa opinião precisávamos de conhecer a tua porque, concordando ou discordando, o edifício lógico se erigia como por mágica diante dos nossos olhos, vamos ter de pensar sozinhos.

Não vamos pensar melhor.

Venezuela: quase tudo dito aqui

Pedro Correia, 12.02.19

«Venezuela. O PC e o Bloco tomaram uma posição política e moralmente abjecta. A extrema-esquerda continua a fazer a política externa da Rússia, por puro ódio à América, agora reforçada pelo ódio a Trump. (...) Ainda por cima esta gente não percebe que a Rússia é hoje uma potência de segunda ordem; o "Gabão com mísseis" de Helmut Schmidt. Há cinco estados dos Estados Unidos com um PIB maior que o da Federação Russa; e sobram 45. Os americanos salvaram a Europa dos nazis e dos comunistas, mas não tencionam salvá-la de Putin.

(...) É para isto que o PC e o Bloco aplicadamente trabalham. Maduro abriu as portas da Venezuela aos russos e aos chineses. Os russos venderam-lhe armamento (15 mil milhões de euros) e os chineses emprestaram-lhe dinheiro (3 mil e quinhentos milhões de euros). Consola saber que os nossos revolucionários defendem estes negócios contra a ambição imperialista da Europa e da América de ajudar as 370 mil pessoas que estão em risco de morrer.»

(...) Toda a gente diz que o Exército decidirá tudo. Mas toda a gente sabe que esse Exército é um Exército patrioticamente sul-americano, sem a mais vaga tradição de combate e com 2 mil e tantos generais (os Estados Unidos, a primeira potência militar do mundo, têm 900) que se dedicam a roubar o Estado e ao tráfego de droga e divisas. Quando Guaidó apela à "honra" dessa camarilha burocrática e suja, não fico muito convencido.»

 

Vasco Pulido Valente, no Público (9 de Fevereiro)

Metáfora do destino português

Pedro Correia, 01.08.18

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Os crónicos problemas de Portugal relacionam-se com a profunda impreparação e a manifesta venalidade das nossas elites. Este pensamento, que percorre grande parte da obra de Vasco Pulido Valente como historiador e ensaísta, ressurge num livro agora editado pelo autor de O Poder e o Povo, justamente intitulado O Fundo da Gaveta.

Um título com sentido duplo: não apenas alude ao facto de incluir dois ensaios, escritos desde 1989 e até hoje inéditos, mas funciona também como metáfora de um certo destino português.

São «dois fragmentos de uma hipotética História do Portugal moderno», concebida quando Pulido Valente era investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS). O projecto abrangia aspectos económicos, sociais, militares e diplomáticos, como o autor explica num breve prefácio. «Isto não caiu bem na sopa turva do esquerdismo metafísico e simplório, de que a universidade e as suas ramificações têm vivido», acrescenta.

Ao fim de três anos, o empreendimento abortou. Sobraram os ensaios aqui reunidos, inicialmente apresentados num seminário do ICS. Embora visem diferentes décadas do século XIX, têm em comum a peculiar resistência dos portugueses à mudança: entre nós foi sempre mais fácil fazer revoluções do que concretizar reformas.

 

Do absolutismo à "fusão"

 

"A Contra-Revolução (1823-1824)" aborda o turbulento ano decorrido entre a Vilafrancada, movimento restauracionista promovido pelo infante D. Miguel, e a Abrilada, nova tentativa de golpe de mão dos absolutistas - desta vez contra a "terceira via" ensaiada pelo Rei D. João VI para pôr fim à guerra civil larvar que já grassava no País e dilacerava a própria Família Real, com irreparáveis consequências na década seguinte. É um retrato sumário, mas expressivo, da debilidade das nossas instituições, postas à mercê de sucessivos estados de alma dos dirigentes, num momento de comoção colectiva provocada pela recentíssima perda do Brasil, que os integristas domésticos ainda procuravam reunir à coroa portuguesa. 

"Ressurreição e Morte do Radicalismo" (1867-1870) debruça-se em estados gerais sobre os chamados governos de "fusão" naquela época iniciados - correspondentes àquilo que hoje chamaríamos "bloco central". Era uma amálgama de liberais, progressistas, conservadores e até antigos legitimistas convertidos ao desígnio comum de «pastorear a nação», com a bênção do palácio real e do voto censitário num país que permanecia em larguíssima medida analfabeto. Os gabinetes ministeriais sucediam-se num frenético jogo de cadeiras enquanto as finanças públicas entravam em derrocada.

 

Editoriais e motins

 

Produziam-se reformas contestadas em motins de rua e nos inflamados editoriais da imprensa: a reforma do mapa administrativo, a reforma da justiça, a reforma fiscal. Quase todas condenadas ao fracasso mal soltavam os primeiros vagidos. Desse período sobrou o monumental Código Civil (com a introdução do casamento laico) que viria a perdurar um século e a abolição total da pena de morte em território português - marcos civilizacionais submergidos na algazarra política da época, em que os apóstolos da "revolução socialista" alternavam com arautos da "integração ibérica" e a incipiente oposição republicana conspirava já pela abolição da Monarquia.

«Sempre me queixei nos jornais da falta de memória dos portugueses. Mas os portugueses não se podem lembrar de uma história que ninguém lhes contou», observa o autor no prefácio. Justificando estas suas acutilantes incursões num século ainda tão mal conhecido entre nós - e que ganhariam, em reedições da obra, se vissem adicionado um verdadeiro dicionário onomástico nas páginas finais, além de notas de rodapé que permitam situar os acontecimentos, aqui por vezes relatados com excessiva brevidade.

 

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O Fundo da Gaveta, de Vasco Pulido Valente (D. Quixote, 2018). 231 páginas.
Classificação: ****
 
Publicado originalmente no jornal Dia 15

Tomar as dores da Maria pela Maria das Dores.

Luís M. Jorge, 23.09.11

Vasco Pulido Valente, unindo a sua voz à voz sempre serena de Medina Carreira, ergueu hoje bem alto a corneta do apocalipse e anunciou-nos o Declínio do Ocidente. Alarmado, fui logo ver como estavam os relatórios da competitividade global em 2011. Estão assim:

1. Switzerland
2. Singapore
3. Sweden
4. Finland
5. United States
6. Germany
7. Netherlands
8. Denmark
9. Japan
10. United Kingdom

Apesar das dívidas, e apesar das dificuldades institucionais que só um doido pode ignorar, talvez seja um pouco cedo para sugerirmos que os males da pátria se confundem com os males da Europa e da civilização.

A esquerda fez outras contas? Então apresente-as.

Luís M. Jorge, 02.05.10

Vasco Pulido Valente propõe hoje uma dúzia de decisões para reagir à catástrofe que se aproxima. Algumas parecem-me justas, outras obrigatórias, outras são um insulto dirigido à classe média de um país que precisa de a fortalecer. Analisemos por partes.

1.º Reduzir o número de feriados. Quatro chegam: o Natal, o Ano Novo, o Dia de Portugal e a Sexta-feira Santa. [...]

Concordo. Um mês de férias é mais que suficiente para uma pessoa honesta.

2.º Fechar empresas públicas: as que são inteiramente substituíveis (por exemplo, a EPUL e a RTP) e as que perdem dinheiro sem qualquer resultado relevante ou benéfico (a lista é infinita).

Concordo em parte. A EPUL perdeu a sua função social, se alguma vez a teve, e foi até há pouco dirigida por uma quadrilha de malfeitores. A RTP é um sorvedouro e continua a acumular prejuizos. O único serviço público que nos presta é o de levar ao colo as potestades do governo que lhe paga. Quem já trabalhou, como eu, com altos funcionários da casa reconhecerá sem esforço a sua criminosa incompetência. No entanto, discordo da anunciada privatização dos CTT, uma empresa lucrativa que presta um serviço público relevante.

3.º Fechar as fundações e pseudofundações que o Governo sustenta, quer directamente (ou seja, do centro), quer através das câmaras.

Concordo em princípio. As fundações devem ser criadas e sustentadas por privados. Seria útil que não se confundissem com agremiações de boys.

4.ºVender as propriedades do Estado que não servem um interesse nacional evidente (quartéis, prédios, matas, florestas, por aí fora).

Concordo com reservas. No caso das matas e florestas, por exemplo, há que assegurar a sua limpeza e manutenção em condições eficientes. Defendo uma avaliação casuística.

5.º Vender os submarinos e outro armamento inútil ou excessivo.

Concordo, a menos que me demonstrem a necessidade desta tralha aparatosa.

6.ºDemolir e vender o autódromo do Estoril, o autódromo do Algarve e meia dúzia de estádios deficitários, sem indemnização a particulares.

Concordo. O autódromo ainda não foi vendido? Devia. Quanto aos estádios, só falta implodi-los e seviciar quem os ergueu.

Isto ajuda, mas não chega. É preciso continuar. Com o seguinte: 1.ºSuspender imediatamente os grandes projectos (o novo aeroporto, oTGV, a TTT).

Concordo, por partes: nos últimos 3 anos houve uma redução do tráfego aéreo em Portugal que contrariou as previsões do Governo. Os defensores do novo aeroporto devem um esclarecimento ao país. Quanto ao TGV, não gosto deste argumentário — ainda não chegámos à República Dominicana. E no que respeita à terceira travessia sobre o Tejo, espero que o primeiro-ministro consiga oferecer-nos o esboço de um motivo para a defender. Já basta o que basta.

2.º Não construir um único quilómetro de auto-estrada.

Concordo. Portugal é dos países europeus com mais auto-estradas por habitante e densidade geográfica. O dr. Jorge Coelho que me perdoe, mas se calhar já chegam.

3.º Proibir a contratação de mais funcionários públicos.

Discordo. Estas boutades pomposas só ocorrem a quem ignora o que é a gestão de recursos humanos.

4.º Eliminar serviços sem objecto ou mesmo nocivos (por exemplo, o Instituto do Livro).

Concordo em parte. É uma afirmação excessivamente genérica, e desconheço o exemplo.

5.º Congelar as promoções no funcionalismo, pelo menos, durante 5 anos.

Discordo. É imbecil e inexequível. Provocaria uma revolta sem benefícios. 700 mil portugueses não são uma manada de vacas.

6.º Acabar com o chamado “subsídio de férias” (para subsídio, já bastam as férias pagas).

Discordo. O subsídio de férias é o que separa muitos dos nossos compatriotas da mais abjecta miséria.

7.º Pôr um limite legal à despesa do Estado.

Discordo. Os limites legais são um substituto cego do bom senso. Prefiro mecanismos como os que obrigam todas as propostas de aumento da despesa do Estado à menção das suas fontes de financiamento.

8.º Aumentar o IVA dois por cento.

Discordo. Porquê 2 por cento? Já agora 5. Isto é treta: qualquer decisão semelhante tem que ser justificada a partir das suas consequências económicas.

9.º Regular a banca estrita e rigorosamente.

Mais conversa de chacha. Estrita e rigorosamente não quer dizer coisa alguma. O VPV propõe o fim do sigilo bancário? A limitação dos vencimentos e prémios? A tributação do envio de fundos para off-shores à semelhança do que se faz em Espanha? Ou, como parece, deseja uma declaração de intenções sem qualquer efeito prático?

 

Concluo: a crise financeira tem o mérito de nos fazer reflectir no que é essencial e acessório no governo do Estado. A direita, manifestamente, já começou. Se a esquerda fez outras contas, deve apresentá-las. O país não tem tempo nem pachorra para mais generalidades ideológicas.

 

Nota: li o artigo, mas por pura preguiça roubei estas citações ao Eduardo Pitta.