Companheiro Vasco
A Associação Conquistas da Revolução (sim, existe uma organização com este nome) resolveu encomendar ao arquitecto Siza Vieira um monumento de homenagem ao “Companheiro Vasco”.
Fui ver a respectiva página e não reconheço aquela prodigiosa quantidade de nomes. Deve tratar-se de comunistas e compagnons de route, a hidra do PCP desdobra-se em associações de todo o tipo para a defesa dos interesses do povo trabalhador, no jargão da seita.
O palavreado tem um lado saudoso para quem já era adulto à época do Verão de 1975, porque não há abominações que resistam ao optimismo dos vinte anos. O outro lado é bolorento – aquela conversa é a mesma há quase 50 anos.
O homenageado fez carreira no Exército (era coronel à data do 25 de Abril) e dentro do MFA pertencia a uma das correntes mais à esquerda. Tentou ser um Jaruzelski à portuguesa mas falhou, como aliás o projecto do mastermind da sovietização do país, Cunhal, que seria o herdeiro natural destes revolucionários de farda. Falhou por muitas razões, das quais as principais eram que Portugal não tinha fronteiras com países comunistas, a Igreja Católica ainda tinha muita força e, sobretudo no Norte do país, a maior parte da população detestava comunistas. Mário Soares e o PS, por não se quererem suicidar, e com discreto apoio americano e alemão, encabeçaram a resistência eficazmente.
Tivesse ganho e Portugal seria uma Cuba na Europa, as prisões estariam ainda hoje cheias de oposicionistas sortidos, em vez de emigrantes haveria no estrangeiro fugidos e refugiados, e talvez nem os comunistas celebrassem o companheiro Vasco porque as revoluções comunistas têm o hábito de devorar os seus filhos quando são um estorvo. Cunhal é que era Lenine, não este pobre diabo.
De modo que esta homenagem não é muito diferente de levantar um monumento a Manuel Buíça – Vasco Gonçalves não hesitaria em mandar fuzilar opositores se, o seu poder firme, achasse que isso era necessário para a afirmação de uma sociedade sem classes (outra vez o jargão, peço desculpa).
Siza presta-se a este papel – é lá com ele. Mas a escultura (se lhe posso chamar assim) vai ficar num local público – é cá connosco.
Escultura, grosso modo, é a arte de transformar matéria bruta (pedra, metal, madeira etc.) em formas espaciais com significado – é o que diz o dicionário.
Sucede que o significado desta construção é nulo. Representa qualquer coisa, mas Vasco Gonçalves é que não é de certeza. Nas palavras de Vera Maria Gouveia Barros, numa rede social:
Esta é a estátua de Vasco Gonçalves concebida por Siza Vieira. É um génio, de facto. Da Arquitectura e das finanças públicas, porque esta estátua serve para todas homenagens que se queira fazer. É o Vasco Gonçalves, mas pode ser o Carlos Lopes. Querem uma estátua do Lobo Antunes? Já está feita, é esta. Para a Rita Blanco? Esta serve. Só não dá para pessoas sem dois braços e duas pernas. Bravo!
E então, justifica-se um levantamento para protestar? A meu ver não, por duas razões:
O país está pejado de bonecos e instalações representando nada (ou pior, representando) e a coisa passa por apoio à Arte e por mobiliário urbano. Pode ser que com verdete e degradação os mastronços se fundam na paisagem, e que entretanto o prestígio de Siza Vieira faça os passantes verem o que lá não está.
E quem, como eu, é contra o apeamento de representações de personagens históricas porque o tempo novo lhes vê com maus olhos o desempenho, também não leva excessivamente a mal a glorificação de Vasco, mesmo que extemporânea: é um comunista, coisa lá deles. Sempre é uma antiguidade, mesmo que feita agora.