Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Falamos Mas Infelizmente*

José Meireles Graça, 18.08.21

No tempo da troika pus uma surdina em considerações demasiado ácidas sobre os então responsáveis: o país estava sob tutela, tinha a autonomia que os credores consentiam e inimigos do Governo não faltavam.

Os comunistas gostariam de escaqueirar tudo e renegociar a dívida, por a União Europeia não ser uma versão do Comintern, caso em que o seu deles alegado patriotismo passaria a internacionalismo; o Bloco, com mais acne do que hoje (confessam-se agora social-democratas – o bem que fazem uns lugares no aparelho de Estado e a participação na governação), afinava pelo mesmo diapasão, ou recomendava mesmo o calote; e a comunicação social explicava com empenho, convencendo muitos, que a falência do país não foi engendrada pelo PS mas pela crise, e que não foi este indispensável partido, mas a execranda Oposição, a negociar o Memorando de Entendimento.

Passos desenrascou-se bem e ganhou um crédito que muitos (e eu com eles) acham que, para bem do país, permanece intocado, à espera de investimento.

Apesar dos jornais e das televisões, a PàF ganhou em Outubro de 2015, ficando a 9 deputados da maioria absoluta. Na campanha não fora apresentada a coligação vermelha, mas com ela o menino de oiro da comunicação social, e do Portugal de Abril (isto é, deste que ao fim de quatro décadas se bate para não ser ultrapassado pela Letónia, Eslováquia e Roménia, além dos outros que já nos deixaram para trás, porque pela Polónia e Hungria é já praticamente trigo limpo), o estadista Costa, tirou da cartola a maioria de esquerda e lá está, e dura, e rebrilha na sua satisfação nédia de farsante.

Pensava à época que o que sobrava a Passos Coelho em tranquila determinação faltava em calculismo; e que os cortes na despesa pública, que foram por demais tímidos, bem escusavam de ter sido transversais aos funcionários, assim como a classe dos pensionistas e reformados poderia talvez ter sido deixada em paz. Mais valia ter encerrado serviços inúteis, por grande que fosse o berreiro, porque o eleitor médio, que não é exactamente uma águia, pode entender, se lhe explicarem, que o serviço tal não serve para nada, mas jamais aceitará que a ele lhe cortem um xis do magro rendimento enquanto há ricos que se repoltreiam no consumo do supérfluo. Uma triste realidade que a esquerda explora e que prestigiados economistas, com a típica incapacidade da classe para entender os mecanismos da criação de riqueza, alimentam com a interminável treta dos progressos na igualdade.

Vítor Gaspar, o do brutal aumento dos impostos (que o demagogo Centeno viria a diminuir de paleio e engordar na realidade), nem nisso acertou: deixou a taxa máxima do IVA em paz quando o consumidor, na realidade, estava maduro, à época, para, à boleia da troika, engolir sem pestanejar a punção que, por incidir no consumo e não no rendimento, é menos visível.

Um erro de casting, esse Vítor, e o verdadeiro responsável pela vitória coxa nas eleições. Nunca apreciei a peça, embora achasse imensamente gratificante a forma serena como rebatia com suficiência as objurgatórias da canzoada oposicionista, e recordo-me de me perguntar quanto daquilo era escolha própria e quanto exigência dos alvazis que a troika para cá despachou.

Enfim, o que lá vai lá vai. Ou não vai: porque a luminária, em vez de gozar o sossego burocrático das altas funções internacionais onde se encaixou, vem dizer coisas. As coisas são um estendal de asneiras convencionais, tão ostensivas que fui conferir, não fosse o jornalista, como é típico da classe, ter treslido.

É um post em que se defende, a propósito da Covid, uma “acção colectiva” para fomentar o acesso a vacinas, garantir financiamento crítico e acelerar a transição para um mundo mais verde, digital e inclusivo. Este palavreado, só por si, é o mantra das agências internacionais, que traduzido costuma querer dizer mais poder, mais estudos, mais burocratas para debitar inanidades, mais malbaratamento de fundos públicos, mais corrupção e o costumeiro abismo entre as intenções proclamadas e as realizações. O bom do Guterres, especialista neste paleio de chacha, assinaria com gosto, logo que lhe secassem as calças encharcadas por uma das inundações que as alterações climáticas provocam e que não teriam lugar se alguém prestasse atenção aos seus lancinantes apelos.

Aqui, porém, no fim, listam-se medidas que têm a ver com a difusão de vacinas no que dantes se chamava o terceiro mundo (é o que já está há umas décadas para se desenvolver e que entretanto se dividiu em países em vias disto e em vias daquilo) e nada vejo, pelo contrário, de criticável, mesmo que uma parte seja praticamente ininteligível para quem, como eu e quase toda a gente, não domina o jargão burocrático que esta gente desenvolveu para não ser compreendida.

Podia Gaspar e a chefe que co-assina, uma tal Gita Gopinath, manter a análise sumária dos níveis de endividamento por grupos de países, relatar o que o FMI tem feito para ajudar durante a crise Covid (que é atribuída em exclusivo à doença e não às decisões governamentais para lidar com ela) e passar às medidas, que aliás ganhavam com maior detalhe. Mas não: a este funcionalismo apátrida a inimputabilidade sobe à cabeça e, invariavelmente, julga-se autorizado a ministrar conselhos que excedem em muito os propósitos do organismo em que presta serviço.

O jornalista do Jornal Económico traduziu bem e sigo-lhe o resumo: “Os governos mundiais devem procurar melhorar a eficiência, simplificar os códigos fiscais, reduzir a evasão fiscal e aumentar a progressividade.”

Ó pobres diabos, donde vos vem a autoridade para informar os governos do que “devem” fazer? Melhorar a eficiência sem dúvida, ainda que ela não aumente pelo facto de uma dupla de funcionários dizer que isso é necessário; simplificar os códigos, bem, é uma óptima ideia, se bem que os legisladores que os fizeram complicados talvez não apreciem que lhes puxem as orelhas; e reduzir a evasão fiscal nem se discute, apenas se estranha que à força de a reduzir ela ainda não tenha acabado. Mas aumentar a progressividade?! Tenho novidades para vocês, ó duo revolucionário: a progressividade e o seu grau são ideias políticas muitíssimo discutíveis, objecto portanto de escolhas que os eleitores devem sufragar, em democracia, e os ditadores fazerem, em ditadura. Convém informar portanto os eleitores, no primeiro caso, e os ditadores, no segundo, que Vítor e Gita já decidiram a matéria, numa reunião depois do almoço em Washington, consultando os seus apontamentos.

“Aumentar a capacidade do Estado de recolher impostos e alavancar o papel do sector privado também será chave, defendem os economistas, advertindo que, enquanto a pandemia persistir, a política orçamental deve permanecer ágil e pronta às circunstâncias em constante evolução.”

Alavancar o papel do sector privado é uma chave clássica para o progresso nas sociedades modernas, não há que negar. Mas como isso quer com frequência dizer que a capacidade do Estado para extorquir recursos deve diminuir, e não aumentar, Vitó e Gitinha devem ter achado que o post estava com parágrafos a menos, pelo que lhe incluíram este, enigmático.

“… os países terão de ver como podem mobilizar recursos domésticos e aumentar a qualidade dos gastos, podendo, por exemplo, fortalecer os sistemas de impostos para aumentar receita.”

Aumentar a qualidade dos gastos pelo expediente de cobrar mais impostos é uma ideia digna de figurar no átrio de todos os Paços do Concelho do nosso país, para habilitar as edilidades a, com a consciência em paz, aumentar o IMI e reforçar o seu plano de construção de ciclovias e pavilhões multiusos, dois importantes factores no progresso das comunidades locais. Já no país, desde a famosa paixão pela educação com que Guterres se distinguiu, e que nos habilitou a exportar arquitectos para o Dubai, enfermeiros para o Reino Unido, engenheiros para a Alemanha e restantes licenciados para call centers, o Estado não tem cessado de dar exemplos de qualidade nos gastos. Tudo leva a crer que tivesse o PRR uma maior componente de fundos perdidos e construir-se-ia um novo Convento de Mafra, desta vez sob a designação Palácio dos Congressos Fortemente Progressistas, devidamente descarbonizado.

“No âmbito fiscal, ambos saudaram o histórico acordo internacional sobre a taxação de empresas, apoiado por mais de 130 países, considerando que vai parar a corrida para baixo na diminuição de taxas utilizadas como fator de concorrência entre países.”

No acordo referido não está previsto que as receitas geradas pelos aumentos de IRC sirvam para aliviar outros impostos, nem que as empresas que, por serem multinacionais, pagam taxas muito baixas, deixem de repercutir os aumentos nos seus clientes, o que tudo significa o mesmo, isto é, mais Estado e menos indivíduo. Mas como a exequibilidade desta governança além-países é mais do que duvidosa, pode o resultado prático ser apenas a desejada machadada na competição fiscal, ao menos dentro da União. A qual competição, se nunca tivesse existido, teria dificultado que um país como a Irlanda nos tivesse ultrapassado a cem à hora e outros mais devagar. Vítor Gaspar dá aqui provas não se sabe bem do quê – talvez seja patriotismo.

Há mais, mas é sempre o mesmo discurso asneirático, não vale a pena comentar. Disse acima que nunca apreciei Vítor Gaspar, mas dei-lhe o desconto do estado de necessidade: não havia tempo para pensar, era preciso agir.

Erro meu: nele, pensar é excessivamente parecido com não o fazer.

 

* Publicado no Observador

Nasceu um novo oráculo

Pedro Correia, 19.02.14

 

Os "analistas políticos" portugueses detestam ministros das Finanças e adoram ex-ministros das Finanças.

No dia em que se demite ou é exonerado do Governo, um ministro das Finanças deixa de ser a pessoa mais incompetente deste país para se tornar um oráculo dos tempos que virão e um poço de sapiência não só a nível financeiro mas também político.

Ganha imediato lugar cativo na televisão e todos procuram beber os seus conselhos.

 

É raro o dia em que não desfilam nas pantalhas ex-ministros das Finanças deste rincão: Silva Lopes, Medina Carreira, João Salgueiro, Miguel Cadilhe, Miguel Beleza, Braga de Macedo, Eduardo Catroga, Pina Moura, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Campos e Cunha - e agora até o extraordinário Teixeira dos Santos. Um deles, Cavaco Silva, é Presidente da República. Outro, Guilherme d' Oliveira Martins, preside ao Tribunal de Contas. Outro ainda, Vítor Constâncio, é vice-presidente do Banco Central Europeu.

Este país, como nenhum outro, aprecia "magos das finanças". Desde que já não estejam, na ala nascente do Terreiro do Paço, ao serviço da coisa pública.

 

Num impulso tão fatal como o regresso das andorinhas na Primavera, há já por aí, a pretexto de um livro, um movimento destinado a "regenerar" Vítor Gaspar aos olhos da opinião pública. E a carta de resignação do antecessor de Maria Luís Albuquerque não cessa de ser apresentada como peça de excelência até por alguns que foram seus encarniçados adversários políticos.

 

Lamento, mas não dou para este peditório. Se alguma coisa a carta de Gaspar revela é a sua inaptidão para estar ao leme das finanças em tempos de excepcionais dificuldades e de irrepetíveis exigências aos principais titulares de funções públicas. Governar com estados de alma, sem a noção de que a política em democracia não funciona por diktakt mas exige negociação permanente, e abandonar o barco quando os ventos adversos sopram mais fortes: eis o que Gaspar revelou, a 1 de Julho de 2013, com o seu teatral gesto de renúncia.

Aparentemente, não soube sequer interpretar os sinais de que não estávamos à beira de um segundo resgate nem mergulhados numa "espiral recessiva", como insistiam os seus mais obstinados opositores. Nem soube antecipar o novo estatuto de "herói surpresa da zona euro" que o exigente Financial Times já atribui a Portugal: por ironia, os primeiros sinais de optimismo nas finanças públicas aconteceram já depois da sua saída.

 

Mas não me surpreende minimamente que o vejamos muito em breve como comentador permanente num canal de notícias. Acaba de nascer um novo oráculo. Que merecerá o mesmo interesse que reservamos aos outros ex-ministros das Finanças. E também ao vetusto Frei Tomás: faz sempre o que ele diz, nunca faças o que ele faz.

 Foto Daniel Rocha/Público

O Santo.

Luís Menezes Leitão, 13.02.14

 

Se há uma coisa que caracteriza este país é a tendência para endeusar os Ministros das Finanças, mas apenas depois de eles terem deixado o cargo, altura em que o povo se esquece dos disparates que fizeram enquanto lá estiveram. É assim que hoje Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix aparecem a comentar frequentemente os resultados orçamentais sem que ninguém lhes pergunte como foi possível terem equilibrado os défices à custa de receitas extraordinárias como a titularização dos créditos fiscais ao Citygroup ou com a integração de fundos de pensões da banca. Da mesma forma, ninguém questiona Teixeira dos Santos como foi possível deixar a situação chegar ao ponto de nas vésperas da bancarrota ainda se estar a assinar contratos para construir o TGV.

 

Faltava por isso Vítor Gaspar ensaiar o seu processo de beatificação através de uma entrevista a Maria João Avillez, entrevista essa que revela tantos milagres praticados pelo benemérito que estamos seguros que o alçarão brevemente à santidade. Ficámos a saber em primeiro lugar que Eduardo Catroga, que estava a negociar o programa do ajustamento, afinal nada percebia de negociações internacionais, o que levou Vítor Gaspar a intervir para a salvação do PSD e da pátria. Apesar de o pérfido Eduardo Catroga não se ter convertido, a imensa sabedoria de Gaspar causou uma profunda admiração no inner circle de Passos Coelho, os quais imediatamente viram que Vítor Gaspar era afinal o profeta que os poderia conduzir no caminho para a terra santa onde a troika forneceria leite e mel. António Borges é assim o enviado que chama Gaspar a assumir a pasta das Finanças, com a absoluta confiança do Primeiro-Ministro, que lhe delega todos os poderes.

 

A seguir Vítor Gaspar, à semelhança de São Paulo na estrada de Damasco, tem durante uma viagem de avião para Bruxelas a visão da TSU que tornaria felizes todos os trabalhadores, forçados a abdicar de 7% do seu salário a benefício dos empresários. Infelizmente, no entanto, o povo ainda vive nas trevas e apareceu nas ruas a contestar a medida. E, vá lá saber-se porquê, o ministro Paulo Portas também não se deixou converter à mesma. Gaspar ignora naturalmente os processos mentais desse pérfido ministro, mas sabe bem que o mesmo pretendia uma alteração do rumo, o que o obrigou à saída. Na verdade, Gaspar sempre se assumiu como o responsável político do Governo, tanto assim que acertou a sua saída com o Primeiro-Ministro, quando viu que o objectivo político não foi atingido. Mas para que o Primeiro-Ministro não ficasse desamparado, Gaspar combinou com ele que lhe deixaria uma carta, com as suas instruções para a continuação da política. Maria Luís Albuquerque iria ser assim o Josué que iria atingir a terra santa, que Gaspar, como Moisés, só poderia vislumbrar de longe, mas foi ele a fazer todo o caminho. Infelizmente, no entanto, mais uma vez o pérfido ministro Paulo Portas ameaçou com uma demissão mal preparada, ao contrário da do próprio Gaspar, enfurecendo os demónios dos mercados.

 

Está assim demonstrado que Vítor Gaspar é um santo que foi incompreendido pelos homens de pouca fé. Estes até serão capazes de o acusar do pecado mortal da soberba.

Facto nacional de 2013

Pedro Correia, 09.01.14

CRISE POLÍTICA DE JULHO

O Governo não chegou a cair, mas abanou muito. E não voltou a ser o mesmo. Aconteceu em Julho: a crise alastrou da esfera económica para a área governativa e abalou as bolsas europeias. Com dois protagonistas: Vítor Gaspar e Paulo Portas. O primeiro partiu, o segundo ameaçou fazer o mesmo mas acabou por ficar. Numa posição aparentemente reforçada.

Foi a semana mais turbulenta do ano político, que o DELITO DE OPINIÃO elegeu em votação interna - por estreita margem - o facto de 2013 em Portugal.

Inesperadamente, Passos Coelho perdeu aquele que considerava o seu número dois: o ministro de Estado e das Finanças. Vítor Gaspar bateu com a porta, tornando pública a carta de demissão.

"O nível de desemprego e desemprego jovem são muito graves [sic]. Requerem uma resposta efectiva e urgente a nível europeu e nacional. (...) Esta evolução exige credibilidade e confiança. Contributos que, infelizmente, não me encontro em condições de assegurar. O sucesso do programa de ajustamento exige que cada um assuma as suas responsabilidades. Não tenho, pois, alternativa senão assumir plenamente as responsabilidades que me cabem", escreveu o ministro demissionário nesta carta, datada de 1 de Julho.

O primeiro-ministro não tardou a designar Maria Luís Albuquerque para o lugar de Vítor Gaspar. Mas, subitamente, Paulo Portas demitiu-se. Com carácter "irrevogável", como acentuou a 2 de Julho. Seguiram-se dias de forte tensão na coligação governativa e o espectro das eleições antecipadas chegou a pairar em São Bento. Até que Portas recuou. E Passos elevou-o a vice-primeiro-ministro, no âmbito de uma remodelação governamental.

 

Num segundo lugar muito próximo, entre os factos nacionais de 2013, situou-se a enorme corrente migratória: cerca de 120 mil portugueses emigraram no ano que terminou. As vitórias eleitorais de independentes nas autárquicas de Setembro e a manifestação de polícias nas escadarias de São Bento, em Novembro, também foram votadas, havendo ainda um voto na frustrada tentativa de cantar a Grândola feita pelo ex-ministro Miguel Relvas.

Em 2010 elegemos como facto nacional do ano a crise financeira e em 2011 a chegada da troika a Portugal.

Foto Daniel Rocha/Público

Pausa à mesa do póquer

Pedro Correia, 16.07.13

 

Imaginem uma mesa onde se joga póquer. À volta da mesa, quatro cadeiras. Nessas cadeiras estão sentados quatro homens: Aníbal, António, Paulo e Pedro. Cada qual fazendo bluff, temendo as cartas que os restantes possam lançar.

A política portuguesa, por estes dias, transformou-se nisto. Há um país inseguro, que sustém a respiração, suspenso destas cartadas. Um país sob intervenção externa, que há mais de dois anos perdeu a soberania financeira, aguarda que naquela mesa termine o jogo. Sem a mais remota esperança que daqui resulte uma solução mais sólida e mais estável.

 

Passaram apenas duas semanas desde que foi tornada pública a demissão de Vítor Gaspar, acompanhada de uma carta que constitui um notável contributo para a antologia do humor negro na política portuguesa. "Os riscos e desafios do próximo tempo são enormes. Exigem a coesão do Governo. É minha firme convicção que a minha saída contribuirá para reforçar a sua liderança e a coesão da equipa governativa", dizia o ex-titular das finanças nessa missiva supostamente dirigida ao primeiro-ministro mas tendo afinal por destinatários dez milhões de portugueses, inaugurando o estilo "carta aberta" no exercício da governação.

Quinze dias depois, tudo parece ter regressado aos penosos dias do pântano - num teste quase desesperado à liderança e à coesão, palavras habitualmente invocadas na razão inversa da sua existência, como Gaspar bem sabia quando as colocou na sua carta que abriu oficialmente a saison de crises políticas.

Não admira, por isso, que um dos quatro opte por uma pausa no mais remoto e desabitado recanto do território português. Perfeita antítese da atribulada política portuguesa por estes dias, o plácido arquipélago das Selvagens. Com apenas quatro habitantes e banhado pelas águas mais limpas do mundo, como as classificou o oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau.

 

A Bolse treme, levando Lisboa ao terceiro pior desempenho do mundo? Os juros disparam? Há novos pedidos de demissão na equipa das finanças? Chovem acusações de que se pretende "institucionalizar o caos"? Nada que o som das cagarras não dissipe enquanto se contempla o vasto Atlântico que inspirou os navegadores das naus de Quinhentos.

Talvez elas nos tragam notícias do eclipsado Gaspar, o ex-ministro em quem o chefe do Governo costumava "confiar plenamente" em dias que parecem já muito distantes. Talvez elas contribuam para atenuar o choque das contínuas surpresas em que se transformou a montanha russa da política nacional. Talvez elas ajudem a revigorar o supremo árbitro do sistema, mais eloquente nos longos períodos de silêncio do que no esporádico uso da palavra.

Ou talvez não.

 

Para memória futura

Pedro Correia, 03.07.13

A carta de demissão de Vítor Gaspar:

«Senhor Primeiro-Ministro, Liderança é, por vezes, definida como sabedoria e coragem combinadas com desinteresse próprio. A liderança assim exercida combina os superiores interesses nacionais que perduram de geração em geração. Fácil de dizer, difícil de assegurar, em particular quando as condições são de profunda crise: orçamental, financeira, económica, social e política. Sendo certo que contará sempre com a inteligência, coragem e determinação dos portugueses, cabe-lhe o fardo da liderança. Assegurar as condições internas de concretização do ajustamento são uma parte deste fardo. Garantir a continuidade da credibilidade externa do país também. Os riscos e desafios dos próximos tempos são enormes. Exigem a coesão do Governo. É minha firme convicção que a minha saída contribuirá para reforçar a sua liderança e a coesão da equipa governativa.»

 

A carta de demissão de Paulo Portas:

«O Primeiro-Ministro entendeu seguir o caminho da mera continuidade no Ministério das Finanças. Respeito mas discordo.

Expressei, atempadamente, este ponto de vista ao Primeiro-Ministro que, ainda assim, confirmou a sua escolha. Em consequência, e tendo em atenção a importância decisiva do Ministério das Finanças, ficar no Governo seria um acto de dissimulação. Não é politicamente sustentável, nem é pessoalmente exigível.

Ao longo destes dois anos protegi até ao limite das minhas forças o valor da estabilidade. Porém, a forma como, reiteradamente, as decisões são tomadas no Governo torna, efectivamente, dispensável o meu contributo.»

Coincidências

João André, 02.07.13

Há duas semanas, a Economist publicou um trabalho especial sobre a Alemanha. Num dos artigos falava da falta de mão de obra, especialmente qualificada, que grassa no país. Também referido foi o facto de as empresas alemãs, com mais do que uma mãozinha do(s) governo(s), estarem a importar cada vez mais essa mão de obra dos países do sul da Europa. Que coincidência isto suceder em pleno período de crise (especialmente) do sul da Europa.

 

Como não tenho jeito para a subtileza, adiciono aquilo que me foi confidenciado por uma pessoa amiga que trabalha no Parlamento Europeu há já bastante tempo: um dos objectivos para a austeridade brutal era mesmo o de levar os jovens qualificados a abandonar o seu país e a seguirem para os países que estão na mesma situação da Alemanha. É que os imigrantes da Turquia, Marrocos, África, Ásia ou semelhantes são excessivamente diferentes culturalmente, têm religiões diferentes e não vêm sempre muito qualificados. É mais simples importar os outros que já são europeus.

 

Teoria da conspiração? Talvez. Vindo de quem veio, dou mais credibilidade à ideia do que noutras situações. Tem buracos, como é óbvio, mas quanto mais penso nisso, mais me parece ter lógica. Aliás, pensando bem, estou para ver se o próximo quadro qualificado a aterrar na Alemanha não será um antigo ministro das finanças para inaugurar o seu novo gabinete na  Willy-Brandt-Platz em Frankfurt am Main.

Mostrar trabalho

João André, 02.07.13

No Forte Apache, Alexandre Poço agradece a Vítor Gaspar ter cortado 13 mil milhões de euros da "despesa pública". A minha posição em relação a este governo penso que será perfeitamente conhecida, pelo que não preciso de a explicar. Ainda assim, tentando colocar-me do lado de quem entenda que o estado precisa de emagrecer brutalmente, não consigo ver como se pode dizer que Gaspar cortou 13 mil milhões à despesa pública. Gaspar cortou benefícios sociais que eram fundamentais para uma vida condigna (leia-se, para além da simples subsistência) de milhões de portugueses. Aumentou impostos de forma inadjectivável. Despediu (ou fez despedir) uma enormidade de pessoas que eram úteis e produtivas (aqueles que são "indespedíveis" é que costumam ser não produtivos). Fez tudo quanto pôde para expulsar jovens. Vendeu os anéis do estado ao preço da uva mijona e com jeitinho aos amigos enquanto que manteve todos os poços sem fundo (como certos bancos cujo nome por pudor não refiro). Tudo isto sem sequer fazer uma reforma estrutural de jeito que se visse e sem realmente tocar nas PPPs.

 

Agradecer a Gaspar? Os países do norte da Europa podem agradecer o jeitinho (mais tarde falo disto). Já qualquer português que não seja uma caixa de ressonância deste governo só pode queixar-se dele. Se quer agradecer, agradeça aos portugueses que empobreceram brutalmente para "poupar" os tais 13 mil milhões. A Gaspar, Alexandre Poço poderá provavelmente agradecer outras coisas. O percurso já foi mais que certificado por Sócrates e Passos Coelho. Talvez por ele chegue um dia a PM.

Uma semana alucinante.

Luís Menezes Leitão, 02.07.13

 

Vítor Gaspar tinha acabado de se demitir do Governo numa carta que quem melhor interpretou foi curiosamente a Imprensa Falsa. Perante este rombo no executivo, Passos Coelho não arranjou melhor do que promover a sua antiga professora da Faculdade a Ministra das Finanças, apesar de a mesma estar debaixo de fogo no caso dos swaps. Incapaz de tomar qualquer atitude que seja, a não ser instaurar absurdos processos a comentadores, Cavaco nomeia de cruz a nova Ministra, imagine-se, porque recebeu garantias do Primeiro-Ministro que sobre ela não pesava nada de menos correcto. Paulo Portas, pelos vistos, não recebeu as mesmas garantias pelo que não hesitou em demitir-se, desagradado com a escolha. Temos uma semana alucinante e ainda só vamos na terça-feira.

 

Cenas dos próximos capítulos, até ao fim-de semana: 1) Demissão da Professora de Passos Coelho, desagradada com a reacção de Portas; 2) Demissão de Passos Coelho, pelo mesmo motivo; 3) Demissão de Cavaco Silva, zangado pelo facto de a Procuradoria não ter processado Sousa Tavares nem os milhões de pessoas que o continuam a criticar. Porque na verdade, este Governo e este Presidente têm sido exemplares na gestão da crise e não merecem qualquer crítica. Afinal de contas de que vale a pena criticar quem comanda o Titanic?

 

P.S. Eu continuo a aguardar os prometidos briefings de Miguel Poiares Maduro e Pedro Lomba onde estes assuntos precisam de ser muito bem explicados.

Tudo correrá bem

José António Abreu, 02.07.13

Depois de andar a fazer voz grossa durante um par de semanas, Nuno Crato cede aos professores e mostra que nem sob intervenção externa o Estado português é reformável. A Troika percebe-o e, porque se não vai pelo anafado sector público, tem que ir pelo esganado sector privado, avança as propostas de diminuir o salário mínimo e cortar ainda mais nas indemnizações por despedimento. O Ministro das Finanças também o percebe e demite-se. Que a sua substituta esteja debaixo de fogo por causa dos contratos swap e não tenha peso no universo político interno nem no universo financeiro externo é, numa visão global das coisas, quase irrelevante.

Obviamente demita-se.

Luís Menezes Leitão, 01.07.13

 

Não sinto qualquer pena pela saída de Vítor Gaspar. A meu ver, já vai tarde. Esta carta de demissão é, no entanto, a demonstração cabal do absoluto défice de coordenação política do Governo. Passos Coelho sustentou até ao limite do sustentável um Ministro das Finanças que não acertava uma, para vê-lo fugir precisamente na altura em que a troika vai começar mais uma avaliação. E não arranja mais ninguém para o substituir do que a Secretária de Estado que tem estado debaixo de fogo por causa dos swaps. Pareceria uma brincadeira de mau gosto se o assunto não fosse sério de mais. Vítor Gaspar era o verdadeiro Primeiro-Ministro deste Governo. Agora que se foi embora, é mais que altura de Passos Coelho o seguir. Porque já toda a gente percebeu que com estes protagonistas não vamos a lado nenhum.

A saída de Gaspar estava prevista no Borda d´Água

Rui Rocha, 01.07.13

Depois de há uns tempos termos ficado a saber que o estado do tempo influencia o investimento, não é sem espanto que constatamos agora que a saída de Vítor Gaspar do governo, hoje consumada, tinha sido já anunciada pelo Borda d´Água. Na verdade, na edição deste ano, pode ler-se que 1 de Julho de 2013 é o Dia do Salvamento:

 

Pagamento do subsídio de férias: instruções aos directores de serviços

Rui Rocha, 13.06.13

 1 - Utilize a dotação orçamental do mês de Junho para adquirir três copos completamente opacos e berlindes.

 

2 - Converta o valor líquido do subsídio de cada um dos funcionários do serviço em moedas de 2€. 

 

3 - Chame o funcionário ao seu gabinete e peça-lhe para colocar a primeira moeda do respectivo subsídio debaixo de um dos copos.

 

4 - Utilize as mãos para fazer com que os três copos mudem de posição com muita rapidez. Para assegurar a eficácia da operação, esta é uma tarefa que não pode ser objecto de delegação de competências.

 

5 - Quando o funcionário estiver completamente baralhado, peça-lhe para indicar o copo debaixo do qual ele pensa que está a moeda.

 

6 - Se o funcionário acertar (coisa que é muito improvável que aconteça) entregue-lhe a moeda. Caso contrário, remeta de imediato a moeda para o ministério das finanças.

 

7 - Repita a operação para o mesmo funcionário tantas vezes quantas as necessárias até ter utilizado todas as moedas do respectivo subsídio.

 

Nota adicional: se tiver oportunidade e para assegurar uma maior eficácia na concretização desta instrução, substitua, sem que o funcionário dê por isso, a moeda por um berlinde. Se o funcionário escolher o copo debaixo do qual está o berlinde (coisa que é muito improvável que aconteça), dê-lhe o berlinde. Caso contrário, remeta de imediato o berlinde para o ministério das finanças.

 

Cumpra-se.

 

O ministro das finanças, Vítor Louçã Rabaça Gaspar, em 13 de Junho de 2013

Que a insubmissão inconstitucional gere insubmissões legítimas

André Couto, 12.06.13

Há muito sinto que o Governo vai além do mandato que lhe foi conferido, das competências que tem e da Constituição da República que regula a sua acção. Como muitos fui lutando em manifestações, em textos e acções enquanto cidadão. Ontem deparei-me com uma situação diferente, uma "ordem do Governo", que nos dias que correm é assim que designam as coisas, que obrigava a que os subsídios de férias dos funcionários não fossem pagos, contrariando um recente Acórdão do Tribunal Constitucional.

Acho que um Governo que é insubmisso perante as regras que regulam a sua acção, legitima que contra si se ergam insubmissões que só não são semelhantes, porque vão de encontro à Constituição que nos rege, não estando feridas na sua democraticidade. Foi por isso que decidi, ainda ontem, que os trabalhadores da Autarquia que dirijo, facto que não tem nada a ver com o lugar que ocupo neste espaço, receberão, em devido tempo, o subsídio de férias que remunera o seu trabalho, e que foi sua legítima expectativa até há algumas horas.
Como tive oportunidade de escrever, venha o Gaspar à Junta de Freguesia de Campolide, em Lisboa, ordenar que não posso, que eu explico-lhe o que é um Estado de Direito e a Constituição da República que alegremente arruína.