Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Bilhete-postal do fim do mundo: Ushuaia

Ana CB, 31.12.24

Foi com um sorriso aberto e um “Hola chicas!” que Ada nos abriu a porta do Los Calafates B&B, que gere com o filho Hernán. A quase 12 mil quilómetros de distância de Portugal e depois de várias horas de viagem desde Buenos Aires – autocarro, avião, táxi – esta recepção calorosa e familiar fez-me sentir como se chegasse a casa. O frio patagónico ficava lá fora e o fim do mundo já não me parecia assim tão distante do nosso rectângulo do outro lado do Atlântico. Intuindo que estaríamos cansadas, Ada não nos maçou com grandes pormenores e deixou para mais tarde os protocolos burocráticos habituais: deu algumas informações básicas e levou-nos de imediato ao nosso quarto. Uma amostra da informalidade e simpatia que iria ser o mote quase generalizado dos dias que passámos em Ushuaia.

Ushuaia 1.jpeg

 

Conquistada pelo estômago e pela simpatia

Na Primavera austral o céu mantém-se claro até tarde, o que ajudou a ajustar o nosso relógio interno para as 4 horas de diferença daquelas longitudes. Se estivéssemos por cá, jantar quase à uma da manhã seria inconcebível para nós. Só que em Ushuaia ainda não eram 10 da noite, e o almoço já era uma vaga recordação. A pizaria Dieguito – uma sugestão da nossa anfitriã – estava à cunha, mas assim que entrámos o dono saudou-nos com uma alegria tal que parecia que nos conhecia há anos. De imediato arranjou uma mesa para as “chicas”, e enquanto nos acomodou bombardeou-nos com as habituais perguntas de quem percebe que está a receber forasteiros de terras longínquas – o que, de resto, em Ushuaia não é difícil, atendendo a que a cidade está distante de tudo, mesmo se só pensarmos na Argentina. Suspeito também que o nosso espanhol mal-amanhado e com sotaque europeu tenha contribuído para essa conclusão…

 

A atmosfera estava tão abafada que tivemos de ficar só de t-shirt – tal como toda a gente, de resto. Tirando o calor quase excessivo, o ambiente podia ser o de uma cervejaria portuguesa sem pretensões. Mesas e cadeiras simples, de madeira escura envernizada; caixas de cerveja local (com a marca “Beagle”, como o canal que banha a cidade) empilhadas a um canto; paredes e tecto com fotografias várias, cartazes e t-shirts de clubes de futebol, a condizer com o jogo que passava no ecrã de televisão, e uns quantos troféus expostos sobre uma estante. No meio da aparente agitação, a comida foi servida rapidamente, estava saborosa, e o serviço esbanjou simpatia.

Gostámos tanto que no dia seguinte voltámos lá ao almoço, desta vez para provar aquele que é um dos petiscos gastronómicos mais populares em toda a Argentina: as empanadas. Receita herdada da colonização espanhola, no século XVI, foram adaptadas aos ingredientes locais, e cada província da Argentina desenvolveu sua própria fórmula, criando uma variedade infindável de recheios e formas de preparação. A empanada tornou-se especialmente popular entre os trabalhadores rurais, pois era fácil de transportar e consumir em qualquer lugar. Embora parentes das empadas ibéricas, as argentinas são maiores e de formato semicircular ou oval. Têm geralmente uma massa mais fina e flexível, e mais recheio, o que as torna menos pesadas e muito ao meu gosto. Em Ushuaia, as do Dieguito são assadas no forno de barro onde cozinham as pizas e entraram directamente para a lista das minhas delícias favoritas no mundo, seguidas de perto pelas de marisco do quase vizinho restaurante Doña Lupita.

 

Entre a montanha e o mar

Na língua do povo yámane (ou yagán), que habitou a parte sul da Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos, Ushuaia significa “baía ao fundo”. Para mim, o nome soava-me a vastidão do mar, vento agreste e solidão, mas não podia estar mais enganada. Quando a vi de longe, Ushuaia pareceu-me uma pequena cidade alpina, encaixada entre as montanhas pintadas de branco e a água parada do Canal Beagle. Mais perto, apercebi-me da cacofonia arquitectónica generalizada, como se tivessem decidido fazer dela um mostruário de todos os tipos de edifícios que é possível construir, em todos os estilos e com todos os materiais. Há de tudo, desde o modernismo geométrico com betão e vidro ao utilitário nórdico de chapa ondulada, passando pelos chalés em madeira e os prédios “pintados” de pedra ou tijolo, iguais a tantos outros que vemos por aí.

Ushuaia 7.JPG

Ushuaia 9.JPG

Na zona mais plana e movimentada da cidade, as ruas formam um quadriculado perfeito, que se vai deformando à medida que a área urbanizada se afasta do mar e trepa pela encosta. A amálgama de estilos contagiou o comércio e abundam os letreiros com letras garrafais e os anúncios garridos, entre o folclórico e o kitsch, aqui e ali uma loja mais sóbria ou um café com uma decoração mais clean. É a Europa nórdica desconjuntada pelo “jogo de cintura” sul-americano e apimentada pelo sangue quente da herança espanhola. Ushuaia pode estar no fim do mundo, mas a verdade é que vivem ali quase 80 mil almas, número que engrossa substancialmente durante os meses da época alta do turismo.

A avenida que acompanha a curvatura da baía ao longo da cidade é rota de passeio agradável, mesmo sob um céu a ameaçar chuva. Não é que haja muito para ver… Deixando para trás as casinhas dos operadores turísticos e os nada atraentes barracões e contentores armazenados no porto, sobra a vista sobre o Onashaga (o nome do Canal Beagle na língua nativa), imperturbável como um lago, mimetizando a cor cinza da atmosfera. Há veleiros de recreio espalhados pela baía, entre outras embarcações coloridas, e um navio de cruzeiro mais ao fundo. Encostado a uma espécie de dique de cascalho, meio adernado, o rebocador Saint Christopher já viu melhores dias, e parece recordar com nostalgia a sua época de glória, quando se chamava HMS Justice e participou no Dia “D” da Segunda Grande Guerra, desembarcando tropas aliadas na Normandia. Abandonado há quase 70 anos após uma avaria, já faz parte da paisagem, e em todo este tempo a cidade decerto mudou muito mais do que ele.

Ushuaia 17.jpeg

Para lá da água, estendem-se até ao infinito montanhas negras marcadas por dedos de neve, cumes brancos entrelaçados num manto de nuvens baixas. São uma bela moldura e por isso, turismo oblige, a palavra Ushuaia em letras garrafais não podia faltar, completando o enquadramento ideal para as fotos da praxe.

Ushuaia 18.jpg

Uma via pedestre de cimento pintado com formas coloridas encaminha-nos para o local a que chamam Paseo de los Antiguos Pobladores. Estão ali algumas das construções mais antigas da cidade, agora convertidas em espaços culturais e institucionais. A Casa Pena, pintada de amarelo e verde, é hoje o Museu da Cidade, onde uma exposição etnográfica conta a história de Ushuaia desde a sua origem. Na Casa Torres foi instalado o museu “Pensar Malvinas”, que expõe informação sobre a guerra que, em 1982, agitou a opinião pública em todo o mundo e terminou com o Reino Unido a manter a soberania (detida desde 1833) sobre o arquipélago do Atlântico Sul, situado perto da costa argentina, a que os britânicos chamam Falklands. A Câmara de Turismo da Terra do Fogo funciona na discreta e bonita Casa de Lisardo García, revestida de chapa ondulada cinzenta embelezada com madeiras pintadas de branco. Mas o edifício que mais chama a atenção, pela sua arquitectura extravagante, é a antiga Casa Bebán, que agora é centro cultural e de exposições. Num arroubo de excentricidade, o primeiro dono, Tomás Bebán, mandou vir da Suécia toda a estrutura da sua futura casa de família, cuja montagem ficou terminada em 1913.

Ushuaia 23.JPG

Depois há que ir ao melhor miradouro da cidade, o Paseo del Centenario. Uma escadaria moderna, com formato irregular e vários pontos de paragem, coroada por um monumento que homenageia as várias correntes migratórias que deram origem a Ushuaia. Renovado em 2021, e apesar do pedido de cuidado feito pelo Intendente Walter Vuoto aquando da reinauguração, já apresenta infelizmente alguns sinais do vandalismo que desfigura, cada vez mais, as zonas urbanas: tags (a que incorrectamente é hábito chamar grafitis) pulverizadas sobre as “espigas” de cimento que fazem parte da estrutura da escadaria. Nem as terras do fim do mundo escapam à falta de civismo e de respeito, e só mesmo a vastidão e serenidade da paisagem que se nos oferece a partir do miradouro conseguiu apaziguar o meu espírito.

Ushuaia 26.JPG