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Delito de Opinião

A burocracia europeia vs a política e o milagre europeu

Paulo Sousa, 26.02.25

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O funcionamento e as lógicas internas dos órgãos europeus estão envoltos numa muito significativa complexidade. A necessidade de serem criados cursos superiores sobre Estudos Europeus prova isso mesmo. Já desde há muito que os cidadãos comuns sentem dificuldade em opinar sobre o projecto europeu sem correr o risco de cometer uma ou muitas incorrecções. À distância ou de perto, é fácil de ver que aquilo é burocracia elevada ao nível de ciência espacial.

Uma das consequências deste nível de burocracia é o efectivo distanciamento entre os cidadãos e as instituições europeias. Uma outra consequência é a fauna que se desenvolveu nos corredores do poder, com os seus hábitos e inevitáveis vícios.

Pelo que vejo, este nível de burocracia obedece a uma lógica de travões e contra-poderes, ou seja, a burocracia europeia é uma forma de limitar e até impedir que o projecto europeu fique nas mãos de políticos voluntariosos. Menos burocracia levaria a que todos ficássemos expostos a fricções muito mais acentuadas entre os 27. Acredito que menos burocracia daria mais margem aos políticos e isso aproximar-nos-ia do federalismo, que entusiasma alguns e assusta muitos mais.

A Europa avançou sempre de crise em crise. A questão da paz na Ucrânia irá exigir que a UE se reinvente mais uma vez. Fora da agitação que uma ameaça existencial deste dimensão pode provocar, as rotinas europeias anestesiam os políticos e os europeus, e o marasmo instala-se. Nos momentos mais críticos, a burocracia europeia verga-se à política. Isso aconteceu na crise das dívidas soberanas, no Brexit, durante a crise migratória e na pandemia. A invasão da Ucrânia e a crise energética daí decorrente está a ser mais um desses momentos definidores.

Aqueles que, por incapacidade pessoal em tomar decisões, preferem ser governados por líderes fortes, irritam-se muito com a burocracia europeia, mas irritam-se muito mais com os políticos europeus que não decidem de acordo com as suas preferências. Entre os apreciadores de líderes fortes, ser contra a União Europeia é a mais pura das sinalizações de virtude. Veja-se a frase de Orbán aqui trazida em boa hora pelo Pedro Correia. Tudo o que não corre de acordo com as preferências dessas forças mais próximas do autoritarismo, sejam elas de esquerda ou sejam de direita, a União Europeia é sempre a culpada. Ora porque permite, ora porque proíbe. Ora porque há imigrantes a mais, ora porque há bebés a menos, ora por causa da inflação, ora por causa das taxas de juro altas, ora porque não tem forças armadas, ora porque se as tivesse não podia decidir o que fazer com elas.

Os outros grandes blocos económicos irritam-se igualmente com a União Europeia. Ora porque nunca sabem bem a quem se dirigir para negociar, ora porque são afectados pela regulação europeia, ora porque invejam um mercado da sua dimensão, ora porque não conseguem fazer o mesmo com os seus vizinhos, ora porque vivem bem pior do que os europeus. Como é que 20 países conseguem confiar uns nos outros o suficiente para partilhar uma moeda? Como é que 27 países que falam 24 línguas diferentes se conseguem entender? Basta ver que no continente americano existem 11 países com cerca de 460 milhões de habitantes que partilham o castelhano e o melhor que conseguem é andar sempre à cabeçada uns com os outros. Do Norte de África até ao Médio Oriente, 19 países contíguos, com cerca de 360 milhões de habitantes, partilham a língua árabe. Sobre o entendimento entre eles, nem é preciso falar. O projecto europeu é realmente muito irritante.

Não tenho a menor dúvida que a União Europeia irá mudar, até porque perante os desafios com que teve de lidar, nunca deixou de o fazer. E como em tudo na vida, talvez um dia acabe, mas se isso acontecer todos ficaremos a perder.

A União Europeia é um objecto político altamente improvável, cheio de defeitos, com tantos que só me faz lembrar os defeitos da própria democracia, e tal como com ela todas as alternativas são piores.

 

Adenda:

Parece que foi combinado.

Hoje no The Telegraph: 

"Trump: EU was formed to screw USA – and they’ve done a good job of it".

Sobre o expansionismo russo e a defesa europeia: a importância de saber pensar

Recordando uma excelente reflexão de José Cutileiro em Julho de 2007

Pedro Correia, 19.02.25

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Há artigos que, relidos à distância, nos confirmam a enorme capacidade dos seus autores de verem para além da espuma dos dias, antecipando tendências e captando sabiamente os sinais dos tempos.

É o caso deste que trago hoje, publicado na edição de 21 de Julho de 2007 do Expresso pelo embaixador José Cutileiro. Sobre a atribulada relação entre a União Europeia e a Rússia pós-soviética que tem o seu símbolo máximo em Vladimir Putin.

Exceptuando mudanças mínimas, poderia ter sido escrito hoje.

Acabo de recuperá-lo dos meus arquivos: parece-me tão luminoso e revelador que não resisto a partilhá-lo convosco. Sublinhando que esta excelente reflexão surgiu antes da anexação de partes da Geórgia por ordem do Kremlin e muito antes do assalto russo à Crimeia e ao Donbass - e cerca de década e meia antes da trágica invasão em larga escala do território ucraniano pelos blindados de Moscovo.

«Uma vela a São Putin». Transcrevo-o nos parágrafos seguintes com merecida vénia à memória de José Cutileiro (1934-2020). Quando ele partiu, deixou-nos mais pobres. Bem precisávamos da sua lucidez e da sua esclarecida opinião agora.

 

Nenhum país da União Europeia é uma grande potência. Quando os europeus eram fortes não se juntavam uns aos outros, guerreavam-se uns aos outros - e metiam-se a conquistar impérios e dominar o mundo. Hoje já não há impérios e é a União que faz a força. Força de fracos que têm se se juntar? Talvez, mas é a que há - e é preciso reforçá-la, pese aos patriotas à antiga.

Vem isto a propósito da Rússia de Putin. Passado o primeiro bafo de liberdade, o fim da União Soviética foi sentido em Moscovo como a derrocada de um império. Exacerbou a insegurança histórica do nacionalismo russo, que imagina sempre à sua volta perigos e ofensas que não existem e só sabe defender-se atacando. A nostalgia de Estaline foi crescendo: com mudança de letra - feita pelo autor dos versos originais - Putin mandou repor o hino nacional do tempo da ditadura. Entretanto, em meia dúzia de anos, o preço do petróleo subiu de $17 para $75 o barril. A Rússia vem logo atrás da Arábia Saudita na quantidade de petróleo extraído e tem no seu subsolo as maiores reservas de gás do mundo. Empoleirados nesta riqueza, Putin e a sua gente afirmam-se por maus modos contra um Ocidente que, acham eles, lhes quer mal e os humilhou ou ignorou nos anos de Gorbachev e Ieltsin.

Moscovo provoca, ameaça e tenta dividir. Ele é a carne polaca, o monumento aos soldados russos da Estónia, o projecto de defesa antimíssil que associa Estados Unidos, Polónia e República Checa, a independência do Kosovo, a recusa de extraditar o suspeito de assassinato por terrorismo nuclear de um dissidente em Londres. Ele é o esforço permanente de desunir os ocidentais em negócios de energia - importante porque a Europa vai buscar à Rússia um quarto do gás de que precisa. Ele é o orçamento militar, com o nuclear à frente, que cresceu seis vezes desde 2001. A mortalidade e a morbilidade russas, piores do que as de qualquer outro país não-africano, aumentam o alarme por denunciarem a fragilidade subjacente ao novo estado policial que se instala. 

O lado bom de tudo isto é que, perante a Rússia de Putin, a solidariedade europeia, ainda titubeante, começou a afirmar-se. O incómodo político-militar que se perfila a Leste junta-se ao fundamentalismo islâmico e à concorrência económica dos novos mundos para assustar saudavelmente os europeus.

Paul-Henri Spaak, combatente das lutas heróicas contra o nazismo e o comunismo, escreveu em 1969: «Nos últimos vinte anos vários homens de Estado europeus foram chamados pais da Europa ou pais da Aliança Atlântica. Nenhum deles merece o título. Este pertence a Estaline. Sem Estaline, sem a sua política agressiva, sem a ameaça que fez pairar sobre o mundo livre, a Aliança Atlântica nunca teria nascido e o movimento por uma Europa unida, englobando a Alemanha, jamais teria conhecido o seu espantoso sucesso.»

A Rússia não é evidentemente a União Soviética mas tal, como ela, poderá levar ao reforço da construção europeia.

Ironias deste mundo

João Sousa, 18.06.24

"Foi um desfecho imprevisível já que, até ao final da tarde de ontem, Ursula von der Leyen, António Costa, Roberta Metsola e Kaja Kallas eram dados como (quase) certos para liderar a Comissão Europeia (CE), o Conselho Europeu (EUCO), o Parlamento Europeu e representar a política externa da UE ao mais alto nível, respetivamente. A surpresa chegou momentos antes do arranque do encontro informal entre os líderes, em Bruxelas, quando os sociais-democratas pediram a rotação da presidência do EUCO entre os socialistas e o PPE, dois anos e meio para cada um. Uma proposta que não terá agradado aos socialistas dentro da sala, que esperavam que o primeiro, e um eventual segundo mandato (que tipicamente é garantido), ficasse para António Costa." - Eco, 18-06-2024.

 

Tão giro, ver os socialistas europeus abespinhados por lhes estar a ser imposto um "compromisso" semelhante ao que os socialistas portugueses impuseram para a presidência da Assembleia da República.

Qual o futuro?

jpt, 26.02.22

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O futuro ao Acaso pertence, como sabem os idólatras. E como tal qualquer um - mesmo sem estar arvorado com "podcast" ou graduado em comentadeiro - pode aventar o que aí virá, e neste caso quais os objectivos da Rússia putinesca e os efeitos, em catadupa, que promoverão. Em sendo assim atrevo-me a perorar.

A resistência ucraniana à invasão russa - a "operação militar da Rússia na Ucrânia", no adoçado linguajar do partido dos tão simpáticos, e infelizmente não reeleitos, deputados João Oliveira e António Filipe, e do tão bem apessoado João Ferreira, mais da mulher até jovem que agora aparece na Assembleia - poderá ser mais ou menos longa mas não será suficiente. Talvez o país venha a ser amputado de algumas áreas ou fique com o mesmo desenho. Mas tornar-se-á noutra Bielorússia, um protectorado russo. 

A oposição "ocidental" compôs-se de alarido e sanções económicas. Estas são relativamente irrelevantes para a economia russa, dado que nem sequer terão um conteúdo maximalista, vedado devido à profunda imbricação das economias europeias com a economia russa, em particular as de alguns países muito industrializados (Alemanha, Grã-Bretanha, França, Itália), os quais se opõem a uma radicalização das medidas. Este processo de coalizão económica evidencia algo bem contrastante com a propaganda russófila, mostrando que o "motor da história" não é o "complexo da indústria de armamento" norte-americano - ainda que seja sabida a extrema influência que este tem na política americana, até visível se atentamente interpretado o rescaldo bem crítico que o presidente Bush fez do desempenho do presidente W. Bush. Pois, de facto, o que tem movido as relações do Ocidente europeu com a vizinha Rússia é uma crescente - e tendencialmente pacificadora - coligação económica, inscrita no "espectro da globalização".

Este titubear, de cariz economicista, dos países europeus terá um efeito interno interno: as políticas económicas que vêm sendo seguidas vêm agora destapada a sua imprudência estratégica, até incompetente. E assim é muito provável que se reforcem em diversos países movimentos políticos soberanistas, por mais mítico que possa ser o nacionalismo económico na actualidade. E também terá um outro efeito: os países do Leste europeu - entretanto agregados à União Europeia - decerto que sentem este evidente expansionismo russo com maior angústia, e por isso maior desilusão terão com a fragilidade da UE. Isso, para além dos crescentes nacionalismos (de mística autárcica, porventura), imprimirá maiores dissensões na União, e a sua crescente fragilização.

Isso leva-me ao verdadeiro - pois articulado - objectivo russo. É evidente - e anunciado (como na declaração de ontem "proibindo" os países escandinavos de integrarem a NATO) - que a Rússia quer manter uma "zona tampão" ocidental face aos militares norte-americanos. E parece explícito que quer recuperar o velho mapa, imperial, da URSS, nessa flutuação constante que a história dos Estados da Europa Central e Oriental. Seja em termos absolutos, seja em termos de disseminação de protectorados - e, agora ainda mais, do Báltico ao Cáspio não se deve pensar noutra coisa.

Mas parece-me notório que o desígnio de evitar a expansão da NATO a Leste é siamês de um outro, o de retroverter a expansão da União Europeia, tanto nas suas características de integração económica como, e até mais, de comunhão político-ideológica. Esta demonstração da (esperada) incúria e tibieza que vem impedindo o estabelecimento de uma verdadeira autonomia estratégica promoverá maiores dissensões e a concomitante fragilização da UE. O que alimenta o desígnio russo, o estabelecimento de um novo COMECON a oeste. Uma crescente área de influência política, económica e  militar. E que será um extraordinário reforço para enfrentar não a máquina bélica norte-americana mas sim a vigorosa extroversão chinesa, cuja tenaz na "Rússia" asiática aparece agora imparável. 

Se Putin, com o seu nacionalismo radical e até messiânico, sobreviver politicamente e se viver ainda mais um punhado de anos - e se legar o poder a sucessores competentes - será isso que nos espera.

No limbo

jpt, 02.12.21

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Interrompo-me, bebo um chá escaldante enquanto enrolo o Amber Leaf e o fumo. Ligara a tv a ver como segue o mundo. A Deutsche Welle repete uma entrevista de ontem do antigo Primeiro-Ministro belga e actual deputado europeu Guy Verhofstadt - que alguns dos meus "amigos-FB"/leitores de blog rugirão como um "tipo da direita" e outros clamarão como um pérfido "eurocrata federalista". Fala ele, de modo que eu direi veemente e evidente, sobre impasses e necessidades da União Europeia, sobre possíveis reformulações na prática e na arquitectura institucional e nas políticas (de migração, de defesa, de reforço dos "Estados de Direito", etc.). Fala com uma acutilância e pertinência que nunca ouvimos em qualquer político português, eurodeputado ou outro... Deixo a ligação (25 minutos riquíssimos) para quem tenha interesse bem para além dos obscurantistas epítetos em que os doutores lusos são useiros e vezeiros.
 
Termina esse programa "Conflict Zone" e segue-se o noticiário das 9 horas. Abre com a notícia de que na Alemanha o governo determina fortes restrições devido ao Covid-19 enquanto centenas de cientistas pedem o confinamento total. Apago o segundo Amber Leaf (já chega, a esta hora) e - sarcasmo mudo - vou ver o que se passa naquela "nova" estação televisiva portuguesa, onde pululam "vozes livres e independentes". Ali o noticiário também abre com o Covid-19... pois o capitão Coates acusou positivo e há que dissecar os efeitos disso no Benfica-Sporting de amanhã.
 
Sorrio, nem entristecido. Pois são já décadas de constatação deste mediocridade. E sigo até ao 107 (Stingray Classic) e está "How to get out of the Cage - a year with John Cage", algo que exige atenção exclusiva. Gravo, para quando voltar aqui. Sigo ao 112 (um dos Mezzo) e deixo estar.
 
E venho aqui apenas para botar: o ataque ao pluralismo opinativo necessário à democracia liberal - que não é aquilo que os neo-comunistas identitaristas e os democratas clientelistas querem - não está nas redes sociais (ou no Algoritmo do FB, como o próprio Verhofstadt clama). Está na estuporização estuporizadora da imprensa, nesse Algoritmo que são as direcções de informação e seus mandantes. E nos políticos que nesse limbo elegemos.

Vacinas e livre escolha.

Luís Menezes Leitão, 07.04.21

Todas estas confusões em torno da vacina da AstraZeneca demonstram bem as insuficiências de um sistema de direcção central de administração de vacinas, como aquele em que assenta a União Europeia. Na verdade esta conversa de que os benefícios da vacina suplantam os riscos faria todo o sentido se só houvesse uma vacina disponível no mercado. Havendo várias vacinas, deveria naturalmente permitir-se a escolha aos consumidores, que podem legitimamente perguntar-se porque não haverão de ter o direito de receber uma vacina que produza os mesmos benefícios com menos riscos.

Já se percebeu perfeitamente que esta aquisição em massa pela União Europeia da vacina da AstraZeneca resulta especialmente do seu baixo preço. A vacina da AstraZeneca custa apenas 3 euros, sendo cinco vezes mais barata do que a vacina da Pfizer, que custa 15 euros e sete vezes mais barata do que a vacina da Moderna, que custa 21 euros. Mas, se se perguntar aos consumidores, perante os riscos de trombose anunciados, mesmo que sejam ínfimos, da vacina da AstraZeneca, se preferem gastar mais 30 ou 40 euros em duas doses de outra vacina, em vez de receberem as duas doses da AstraZeneca, qual seria a opção deles? Aposto que a esmagadora maioria preferiria pagar mais, o que levaria a que no mercado essa vacina não fosse a preferida.

Já o Estado e a União Europeia raciocinam de outra maneira. Se a vacina mais barata resolve o problema, venha ela, uma vez que os riscos são reduzidos, e a poupança em termos financeiros é colossal. Só que esse é o tipo de raciocínio que desconsidera os direitos dos consumidores, ainda mais quando o Estado os priva da liberdade de escolha entre medicamentos com a mesma eficácia, mas com níveis de segurança diferentes.

António Costa diz que a decisão sobre a vacina não pode ser tomada por um Primeiro-Ministro que não percebe nada de vacinas. Eu também não percebo nada de vacinas, mas gostaria de ter a opção de escolher, com base na informação disponível sobre as vacinas, aquela que me parece mais adequada. Esta opção a nível central sobre a vacina que os cidadãos devem receber, quando as mesmas são diferentes em níveis de segurança, é tudo menos típica de um país democrático.

Plausible deniability

João Sousa, 06.01.21


"A polémica da escolha de José Guerra para procurador europeu não foi discutida entre Charles Michel e António Costa, nem vai afetar a presidência da União Europeia. A garantia foi deixada pelo primeiro-ministro português e pelo presidente do Conselho Europeu que estiveram esta tarde reunidos num encontro que marca o início oficial da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia durante os primeiros seis meses do ano."
(Excerto de uma notícia publicada ontem no portal da RTP:)


É por isto que a fotografia publicada hoje na primeira página do Público me parece tão apropriada

lavar as mãos como pilatos

por parecer estarem ambos a lavar as mãos - como dois Pilatos.

Conselheiro de Estado

jpt, 30.03.20

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1. Num dia indignamo-nos com as declarações de um ministro holandês sobre as finanças do Estado espanhol, em plena crise desta temível pandemia.

2. No dia seguinte, o Professor Francisco Louçã, conselheiro de Estado e vulto-mor da esquerda "urbana" diz-nos, sobre a referida temível pandemia, que "A Alemanha gosta desta situação", pois "beneficia com estas crises". A tal "esquerda urbana" que o subscreve, e tantos deles seus colegas, anuiu pelo silêncio e - imagino, pois sigo confinado - num "o Louçã tem razão, sim senhor ...".

3. No dia seguinte suicida-se Thomas Schafer, ministro das finanças de Hesse, um dos estados da Alemanha Federal, e seu provável futuro ministro-presidente. Pois, e para além de outros hipotéticos problemas pessoais, se encontrava avassalado com os efeitos económico-financeiros desta ... temível pandemia.

Conselheiro de quê? ..

Bettel e Boris

jpt, 18.09.19

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Luxemburgo tem a fama (e terá o proveito) de ser um paraíso fiscal. Ontem o seu primeiro-ministro teve uma atitude inadmissível para o PM britânico, Boris Johnson. Estúpida, pois só reforça as posições brexitianas na GB, contrariamente ao pretendido por Bettel (é o nome do menino). Anti-democrática, apesar da retórica, pois totalmente avessa àquilo do voto, o britânico. Com um enorme desplante organizou uma conferência de imprensa a 10 metros de manifestantes anti-Boris/Brexit. E como aquele recusou participar na conferência de imprensa naquelas condições, falou sozinho e gozou com o PM britânico. De modo estúpido e arrogante. Imbecil.

Acredito que muita gente concordará com ele. Principalmente à esquerda, subitamente toda europeísta. Portanto organizem-se lá: quando o morcão cá vier vão lá a S. Bento, ou ao CCB. E peçam ao Costa para abancarem a 10 metros dele. E gritem-lhe os impropérios devidos a um tipo que governa um recanto corrupto de evasão fiscal. Ou é a este tipo de escroques que apreciam? Ainda para mais porque mui romântico, com o seu primeiro-damo, meneio que o imunizará às críticas mais que merecidas?

Mas a candidatura de Lisboa era assim tão espectacular?

João Pedro Pimenta, 23.11.17

Com o risco de ser interpretado como "defensor dos valores tripeiros" ou coisa parecida, tenho de discordar dos meus confrades do Delito na matéria "se Lisboa fosse candidata a receber a EMA teria muito mais hipóteses de ganhar do que o Porto". 

 

Sim, o Porto perdeu, ficou em sétimo e em boa verdade só por muita fé é que se pensaria que podia ganhar. A candidatura tinha alguns aspectos vagos e dificilmente podia ombrear com outros concorrentes. Mas pensar que Lisboa tinha mais hipóteses é outra quimera. Até agora, vi escrito vezes sem conta que Lisboa era uma das preferidas, que tinha muito mais possibilidades de ganhar, etc. Pois bem, não vi um único argumento que me demonstrasse essas tais hipóteses. 

 

 

O Luís refere por exemplo que a Agência só podia ir para uma capital. Ora a cidade que chegou ao fim com mais pontuação foi Milão, só preterida em sorteio posterior a favor de Amsterdão. O Porto ficou a par de Atenas e à frente de capitais como Viena, Helsínquia, Sófia, Bucareste ou Varsóvia. Se ser capital nacional era mesmo um requisito (e isso não aparecia em parte nenhuma, senão não concorreriam cidades que não o são), ou houve distracção por parte das entidades responsáveis ou então era apenas uma condição simbólica. O que só mostra que a candidatura do Porto era melhor do que o que se pensava.

 

O Embaixador Seixas da Costa, também aludido pelo Luís, acha que "Lisboa era a única cidade portuguesa com condições potenciais para albergar" a agência. Mais uma vez não nos são apresentados critérios, excepto o da "visibilidade excepcional que a cidade está a ter por toda a Europa". Se a razão é essa, recordo que a também o Porto tem neste momento uma visibilidade internacional que provavelmente nunca antes tinha conhecido. Não por acaso, foi eleito, por três vezes em seis anos, "melhor destino europeu". Vale o que vale, mas a votação que lhe permitiu o tri-galardão teve sobretudo votos estrangeiros a favor. Não sendo um argumento de enorme peso, demonstra que também a visibilidade portuense está em alta. E não esquecer, evidentemente, a repercussão que a eleição de Rui Moreira teve, com honras de reportagem e entrevista por parte de jornais como o Le Monde e o New York Times.

 

O Diogo recorda-nos que os funcionários da EMA preferiam ir para Lisboa. Podia ser um argumento com algum peso. Simplesmente, diz-nos a notícia, tratou-se de um inquérito interno revelado apenas pelo presidente da Apifarma, e sem que os resultados fossem "publicados ou comunicados aos estados-membros". Ou seja, temos apenas a "revelação" do sr presidente da Apifarma, sem qualquer confirmação. Aliás, ouvimos muitos falsos alarmes ao longo deste processo. Ou não se lembram do favoritismo ser atribuído a Bratislava?

 

De resto, não ouvi quaisquer outros argumentos que atestassem as enormes hipóteses de a candidatura Lisboa ser tão melhor que a do Porto. Pelo contrário, ouvi os habituais desabafos de que "era a capital", a maior cidade", "essas coisas devem ficar onde têm mais representatividade (Sic)", etc. Excepto talvez um: o de que Lisboa teria mais linhas aéreas. É um facto. Mas para além do aeroporto de Pedras Rubras apresentar melhores condições, é bom lembrar que a supressão de várias e importantes linhas aéreas do Porto partiu daquela empresa que não sabemos se é pública ou privada chamada TAP, com explicações frouxas e atabalhoadas.

 

Por outro lado, há um argumento que se não é exclusivo, joga pelo menos com bastante força contra a candidatura de Lisboa: o facto de já lá haver duas agências europeias. Só uma cidade tem mais do que duas: Bruxelas. Tirando a "capital da UE", e na possibilidade remotíssima de ganhar, Lisboa tornar-se-ia a única cidade com três agências, o que seria uma caricatura chapada do centralismo à portuguesa.

 

Assim sendo, explica-se melhor a atitude do governo, que depois de escolher Lisboa, mudou subitamente para a candidatura do Porto: sabia-se que nem uma nem outra teriam quaisquer hipóteses. E tentou-se assim dar uma aura de descentralização de fachada. Mais penoso ainda: viram-se deputados, como Catarina Martins, a retorquir que o facto de outras cidades, como o Porto, Braga e Coimbra não serem também candidatas era um ultraje, depois de eles mesmo terem votado em Lisboa.

 

Mas talvez estas discussões e estas candidaturas tenham trazido algo de bom: tal como aconteceu com o Festival da Eurovisão (que ficou, e muito bem, no Parque das Nações), discutiu-se para que cidade portuguesa determinado organismo/evento internacional viria, embora só depois de se emendar a mão à simples escolha de Lisboa, apenas porque sim, sem mais. É uma atitude saudável que doravante terá de fazer parte das escolhas dos decisores políticos. O resultado final pode perfeitamente ser Lisboa, mas que haja uma avaliação e um debate prévio sobre a matéria em questão. Senão arriscamo-nos a ficar sempre tão centralizados como a Hungria ou a Grécia. Ou talvez nem isso: é que a Grécia conta com três agência europeias e nenhuma delas sequer fica em Atenas. Afinal é bem verdade que Portugal não é a Grécia.

 

Já agora, se me permitem, ficou-se a saber que a desconcentração de serviços é uma tarefa hercúlea. Não sei se a mudança da administração e de parte dos trabalhadores da Apifarma de Lisboa para o Porto se justifica e a que títulos. Também não acho, nem nunca achei, que desconcentrar fosse tirar de Lisboa e colocar no Porto, como se a grande falha não fosse litoral/interior. Mas ao ver os queixumes e as reclamações com o "triste destino" dos trabalhadores, que, horror, podem até ter que ir trabalhar para o Porto, não posso deixar de pensar nos milhares e milhares que ao longo de gerações tiveram que abandonar as suas raízes e as suas famílias e migrar para a capital e para os seus subúrbios crescentemente lotados, sem que nunca ninguém tivesse elevado a voz para os defender nem para contestar a sua migração quase forçada. Talvez agora se comece a pensar nisso.

Bem prega Frei Tomás.

Luís Menezes Leitão, 29.10.17

Se há coisa que mostra bem o estado em que vive a União Europeia é precisamente o facto de ter como presidente da Comissão o inenarrável Jean-Claude Juncker que, por razões que nem o próprio compreende, acaba de ser convidado por Marcelo Rebelo de Sousa a ir ao Conselho de Estado. Há muito tempo que a demonstração cabal do défice democrático na União Europeia reside em termos uma Comissão que não foi eleita por ninguém e que, em vez de defender os tratados, como é a sua função, limita-se a defender os interesses dos grandes Estados europeus. Não admira por isso que Juncker manifeste todo o seu apoio a Espanha na questão catalã, dizendo que já é difícil gerir a Europa com ou 28 (ou 27) países e que a mesma seria ingerível com 95 países.  É espantoso que isto seja dito por alguém que vem de um país minúsculo, o Luxemburgo, com apenas 2586 km2, e pouco mais de 500.000 habitantes e que só por um acaso histórico se tornou independente da Holanda em 1890, uma vez que a Coroa da Holanda passou para a rainha Guilhermina, enquanto que a Lei Sálica, que vigorava no Grão-Ducado, só permitia que o título de Grão-Duque fosse atribuído a homens. Antes disso, nunca tinha sido independente, tendo pertencido sucessivamente ao Sacro Império e à França. É assim o anterior Primeiro-Ministro deste país, hoje à frente da Comissão Europeia, que se propõe impedir a independência de uma região com 32.108 km2 e 7,523 milhões de habitantes. Mas sendo assim, cabe perguntar por que razão não defende que o seu Luxemburgo seja anexado pela Holanda, pela França ou pela Alemanha, sendo o primeiro a dar o exemplo da redução dos Estados-Membros na União Europeia.

 

Outro aspecto divertidíssimo desta entrevista é o facto de Juncker se proclamar agora contra os paraísos fiscais, depois do escândalo Luxleaks, que demonstrou as práticas fiscais desleais a que o país de que é originário se dedicava enquanto era Primeiro-Ministro. De facto, bem prega Frei Tomás. A questão é que em qualquer federação a sério, em que houvesse um verdadeiro controlo democrático sobre os governos, nunca alguém com este currículo permaneceria como presidente da Comissão. Com uma União Europeia com um parlamento de faz de conta, já se sabe que vai ser sempre assim.

A União Europeia em questão.

Luís Menezes Leitão, 23.04.17

Se há coisa que demonstra que a União Europeia não passa de um gigante com pés de barro é precisamente o facto de tremer como varas verdes de cada vez que há uma eleição num dos seus estados mais fortes. A verdade é que a União Europeia é composta presentemente por 28 países (até à saída do Reino Unido), pelo que poderia perfeitamente perder um ou dois países sem consequências de maior. Só não sucede assim porque a construção europeia é artificial, sendo apenas uma estrutura de domínio dos Estados pequenos pelos grandes. Para inglês ver, lá puseram um parlamento europeu sem iniciativa legislativa onde os deputados falam sozinhos e uma comissão, que deveria ser independente, mas faz tudo o que os Estados grandes mandam. A Europa foi preparada para ser gerida por quatro grandes Estados: Alemanha, França, Reino Unido e Espanha. Por isso, se algum deles sair, como aconteceu com o Reino Unido, e poderia acontecer com a França, a estrutura cai como um castelo de cartas.

 

Vale por isso a pena perguntar se se justifica manter este castelo de cartas. Da minha parte, sempre preferi viver num país livre do que aprisionado numa mentira. Actualmente vivemos com uma moeda que não podemos pagar, beneficiando de compras de dívida feitas pelo Banco Central Europeu, já que, sem isso, os nossos juros disparariam. Corremos permanentemente o risco de que em qualquer eleição ou referendo num dos grandes Estados alguém diga que já basta de financiar os povos do Sul. E perante este risco, dizem apenas que a União Europeia garante a paz na Europa. Bem, Portugal não tem uma guerra no seu território europeu há quase duzentos anos, sendo que só tivemos que participar numa guerra na Europa em 1917 porque a República assim o decidiu e a mesma consistiu apenas numa expedição à Flandres. Mas que hoje a Europa está em guerra, isso ninguém tem dúvidas, como o atentado de Paris demonstra. E que tem feito a União Europeia para resolver esse assunto? Absolutamente nada.

 

Por muito que continue o discurso de fé na construção europeia, a verdade é que a mesma está a ser questionada em todo o lado. Ou a União Europeia sofre uma reforma profunda ou acaba. Só não vê quem não quer.

Brexit: negociar a negociação

Diogo Noivo, 07.04.17

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Em regra, negociar é difícil. Negociar na arena política é especialmente difícil, sobretudo no plano internacional. No entanto, o Brexit está a levar a dificuldade de negociar a um novo patamar: não só é uma negociação difícil per se, como as partes não estão de acordo quanto à forma de negociar. Primeiro terão, portanto, que negociar a negociação. O Reino Unido defende que se trate da saída da União ao mesmo tempo que se negoceiam os termos de uma relação futura. Já Bruxelas não quer conversas paralelas e prefere uma abordagem sequencial. Se “Brexit means Brexit”, defende Bruxelas, então saiam e depois logo veremos em que termos colaboramos.

O artigo 50º do Tratado de Lisboa não ajuda a dirimir o conflito. Lê-se neste artigo que a desvinculação de um Estado-Membro passa por “um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União”. Ou seja, e mesmo sem especiais dotes de retórica, é possível defender que o artigo 50º autoriza as duas abordagens.

 

A União Europeia quer deixar claro que está a negociar a desvinculação do Reino Unido, e não os termos de uma futura relação. O discurso oficial argumenta que a negociação paralela contaminará os dois processos. Mas, na verdade, esta posição política pretende demonstrar que a Europa não está refém do Reino Unido. Como afirmou Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, “teremos saudades. Obrigado por tudo e adeus”. Curto e seco.

Mais do que pundonor, para a União trata-se de uma estratégia negocial assente em dois objetivos: (i) definir condições de desvinculação que dissuadam outros Estados-Membros de pretensões de ruptura; (ii) reduzir a margem negocial de Londres – se os dois dossiers, saída e relação futura, forem negociados em simultâneo, o Reino Unido pode obrigar Bruxelas a fazer “horse trading”, o que evidentemente colide com o primeiro destes dois objectivos.

 

Theresa May não está impressionada. A Chefe do Executivo britânico afiançou que não chegar a acordo é melhor do que chegar a um mau acordo. O Governo britânico, além de desejar a margem negocial que Bruxelas lhe quer tirar, considera que uma negociação a dois tempos prolongará o clima de incerteza económica, em parte porque atrasará eventuais acordos bilaterais a estabelecer entre Londres e outras capitais. Para o Reino Unido, o Brexit é um processo make it or break it.

O drama é que esta postura parece ser para levar a sério. Simon Tilford, investigador no Centre for European Reform e um dos mais notáveis analistas de política europeia, considera provável que o Brexit acabe sem acordo e, dessa forma, com uma saída desenquadrada. Olhando para as projecções do FMI sobre as economias europeias, e em particular para as referentes ao Reino Unido, escreve Tilford que “[t]he forecast for the UK assumes that the British government succeeds in negotiating far-reaching access to the EU’s single market, which is unlikely. Indeed, there is probably a greater likelihood of negotiations between Britain and the EU breaking down, resulting in the UK leaving without any agreement in place. Under this scenario, the outlook for UK growth would be far worse than forecast by the IMF."

Extremar posições na fase inicial de uma negociação é normal e expectável. Mas continuar a extremá-las desta forma levará ambos os lados a um ermo do qual não poderão sair sem perder a face. O tempo passa, mas não saímos do Brexit à bruta.

O que é que a União Europeia já fez por nós?

João Campos, 28.03.17

(a propósito deste post do Pedro)

 

JERÓNIMO: Sugou-nos até ao tutano, a União Europeia. Tirou-nos tudo, e não só a nós, mas também aos nossos pais, e aos pais dos nossos pais.

CATARINA: E aos pais dos pais dos nossos pais.

JERÓNIMO: Sim.

CATARINA: E aos pais dos pais dos pais dos nossos pais.

JERÓNIMO: Pois, sim, certo, Catarina. Já percebemos. E o que é que a União Europeia nos deu em troca?

ANTÓNIO: O mercado comum?

JERÓNIMO: Hã?

ANTÓNIO: O mercado comum.

JERÓNIMO: Ah, sim, isso. Sim, deram-nos isso. É bem verdade, sim.

MILITANTE #3: E a livre circulação.

CATARINA: Pois é, a livre circulação. Lembras-te da maçada que era viajar para fora do país antes?

JERÓNIMO: Pronto, está bem, admito que o mercado comum e a livre circulação foram duas coisas que a União Europeia nos deu.

JOÃO: E o Euro.

JERÓNIMO: Bom, sim, o Euro é óbvio. Quer dizer, nem é preciso falar nisso, não é? Mas tirando o mercado comum, a livre circulação, e o Euro...

MILITANTE #1: Mais turistas.

ANTÓNIO: Mais investimento.

MILITANTES: Sem dúvida, sem dúvida.

MILITANTE #2: O Programa Erasmus.

MILITANTES: Ah...

JERÓNIMO: Está bem, está bem, já percebi.

MILITANTE #1: E os fundos europeus.

MILITANTES: Ah, pois, os fundos...

JOÃO: Ora aí está uma coisa de que iríamos mesmo sentir falta se a União Europeia acabasse, Reg. Os fundos.

MILITANTE #1: Acesso à justiça comunitária.

CATARINA: E desde que estamos na União Europeia temos mais disciplina nas contas públicas, Reg.

JOÃO: Eles bem tentam que sejamos mais disciplinados nas finanças. Convenhamos que num país destes se não fosse por eles lá em Bruxelas também não nos iríamos maçar muito com isso.

MILITANTES: Eh eh eh eh eh.

JERÓNIMO: Muito bem, mas para além do mercado comum, da livre circulação, do Euro, dos turistas, do investimento, do Programa Erasmus, dos fundos europeus, do acesso à justiça comunitária e do rigor orçamental, o que é que a União Europeia alguma vez fez por nós?

ANTÓNIO: Trouxe paz para a Europa?

JERÓNIMO: Paz para a Europa? Bardamerda para isso!

 

Brexit à bruta

Diogo Noivo, 14.03.17

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O Parlamento Britânico autorizou ontem o Governo a accionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, a norma que contempla a saída de um Estado-Membro da União Europeia. Theresa May fica então com o caminho livre para avançar de imediato para o processo de desvinculação da União Europeia, muito embora a imprensa britânica afirme que a Chefe do Executivo esperará pelo final do mês para dar esse passo. Associada a esta proposta estava uma garantia de direitos aos cidadãos europeus a residir no Reino Unido. Votada a proposta, esta garantia de direitos foi chumbada graças a Conservadores e Trabalhistas - os Liberais foram os únicos a opor-se a este hard stance
São duas as razões que explicam a recusa de uma garantia de direitos. Por um lado, em ambos os lados do Parlamento há quem tema que oferecer esta garantia crie um efeito-chamada, isto é, que de repente entre no Reino Unido uma vaga de cidadãos europeus em busca de residência antes da oficialização do Brexit. Por outro lado, o Reino Unido quer usar este assunto como bargaining chip: antes de oferecer garantias a cidadãos oriundos dos Estados-Membros da União, Londres quer ver que garantias serão oferecidas aos cidadãos britânicos a residir em solo comunitário. Em suma, os direitos dos cidadãos ficam em carteira como moeda de troca para as conversas sobre a operacionalização do Brexit.
Porém, e como quase sempre sucede, existe ainda a matemática de mercearia, típica da política partidária. Theresa May, Chefe do Governo e membro do Partido Conservador, não quer ser ultrapassada pela direita dentro do seu partido. Como escreveu John McTernan no Telegraph em Julho do ano passado, é o mundo ao contrário. Enquanto políticos profundamente conservadores como Andrea Leadsom não hesitam em oferecer garantias aos europeus a residir no Reino Unido (estão de tal forma à direita que oferecer estas garantias não constitui um capitis diminutio político junto do eleitorado Conservador), Theresa May, supostamente mais ao centro, opta pela abordagem dura. 
Entretanto, o Governo Britânico continua sem uma estratégia para o Brexit que aparente um mínimo de consistência (pelo menos em público), a libra sofre uma desvalorização acentuada, e os estrangeiros residentes no Reino Unido vão de incerteza em incerteza até uma muito provável angina de peito final. Do lado da União a abordagem não é mais meiga, sob pena de abrir um precedente que incentive outros a abandonar o projecto comunitário. Se a tendência de extremar posições se mantém chegará o momento em que será impossível recuar sem perder a face.

O veto da Valónia e o negócio de armas

Alexandre Guerra, 26.10.16

A mais recente crise espoletada pela região francófona da Valónia, que se recusa a aceitar o acordo económico e de comércio entre a União Europeia e o Canadá, e que está a deixar os responsáveis europeus em Bruxelas à beira de um ataque de nervos, é paradoxal e tem uma dose considerável de hipocrisia à mistura. E porquê? Primeiro, porque o CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement) -- cuja sua assinatura está prevista para amanhã em Bruxelas, onde se espera a presença do primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, que ainda acredita numa solução de última hora -- é um acordo que poucas implicações terá numa região que representa apenas 10 por cento das trocas comerciais da Bélgica com o Canadá. Ou seja, os restantes 90 por cento dessas trocas são feitas através da Flandres. Segundo, porque, embora o primeiro-ministro da Valónia, Paul Magnette, longe de ser um eurocéptico, se apresente como uma espécie de herói ao resistir à pressão da União Europeia, naquilo que ele considera ser a defesa dos standards europeus em matéria de direitos sociais, dos trabalhadores e do ambiente, a verdade é que muitos vêem nisto uma mera manobra interesseira de hipocrisia. E lembram, como aliás o próprio site Politico europeu sublinha, que a Valónia parece não ter qualquer problema de princípio ou de consciência em vender armas para o Médio Oriente, nomeadamente, para a Arábia Saudita, mas as campainhas de alarme já soam quando está em causa um acordo que, diga-se, poderá beneficiar a União Europeia e prejudicar muito pouco, ou quase nada, a Valónia.

De notar que o estado regional da Valónia é detentor a 100 por cento da FN Hersta, uma empresa de armamento que é acusada de pouca transparência na sua actividade. Por exemplo, em 2009, a FN Hersta causou muita polémica, ao vender armas para o falecido líder líbio, Muammar Khadafi.  Além disso, no ano passado, a FN Herstal e outras empresas da Valónia obtiveram licenças para venderam armas no valor de quase mil milhões de euros, o dobro do valor em relação a 2004. E de realçar que 60 por cento dessas vendas foram para a Arábia Saudita. Mas um dos casos mais exemplares da hipocrisia de Paul Magnette, um socialista moderado e especialista em assuntos europeus, tem a ver com aquilo que aconteceu em 2014, quando o parlamento valão aprovou um negócio de armas de 3,2 mil milhões de euros com o Canadá, para a montagem de viaturas militares cujo destino final era a Arábia Saudita.

Perante isto, não são de estranhar as críticas que o primeiro-ministro da Flandres fez a Magnette, ao acusá-lo de preferir vender armas aos sauditas do que fazer um acordo de comércio com o Canadá. E embora o Governo belga, liderado pelo francófono Charles Michel, apoie o CETA, a questão é que este é um acordo misto, o que implica que o mesmo, além de ser aprovado pelo Conselho e Parlamento europeu, terá também de ser ratificado pelos Estados-membros. O problema é que a Constituição da Bélgica obriga a que esta ratificação passe pelos parlamentos regionais.

Magnette tem explorado ao máximo o sentimento de descontentametno dos valões, que vêem na sua região uma grande crise industrial, o que tem contribuído para a subida do Partido do Trabalho da Bélgica (marxista), sendo que ainda recentemente a Caterpillar anunciou o encerramento da sua fábrica na Valónia, levando ao despedimento de 2200 trabalhadores. Tudo isto está a permitir a Magnette bloquear o CETA, o problema é que, ao que tudo indica, está a fazê-lo pelas razões erradas.

Um problema de carácter

Sérgio de Almeida Correia, 07.10.16

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Com todas as manobras de bastidores que foram conduzidas a partir do seu gabinete, com o seu alto patrocínio e o da chanceler Merkel, para evitar a eleição de António Guterres, teria sido mais aconselhável que agora tivesse saudado a escolha do novo secretário-geral em termos mais discretos. Em vez disso, fez questão de reafirmar que em Bruxelas o "cherne" que há é todo de águas paradas. A hipocrisia está-lhes nos genes.

É quase tudo uma questão de inspiração

Alexandre Guerra, 15.09.16

Um dos passatempos preferidos dos actuais governantes do Velho Continente é criticar o projecto europeu e reduzi-lo a um monte de burocracia, que está em decadência e que pouco ou nada faz pelos seus povos. Com mais ou menos intensidade, esta é a tónica dominante da retórica de praticamente todos os líderes dos vinte e oito Estados-membros. Seja por convicção, seja para agradar ao seu eleitorado interno, seja até por razões válidas (porque há muitos erros que devem ser corrigidos), são diárias as críticas e os ataques feitos ao projecto de construção europeia. No meio de tudo o que se vai ouvindo, é recorrente o lamento sobre a falta de liderança política na Europa. Ao nível dos Estados-membros, não existem figuras carismáticas que possam assumir esse designio comum e inspirador de levar isto por diante e, no âmbito das instituições comunitárias, percebe-se que as figuras que têm sido escolhidas para assumir tais cargos nos últimos anos não têm gerado o efeito de mobilização e de alavancagem que se precisava. De certa maneira, hoje em dia, fica-se com a sensação de que a construção do edifício europeu entrou em piloto automático a partir do início dos anos 90, acrescentando-se andares sobre andares em cima de "pilares" frágeis, mas sem qualquer farol que apontasse um porto seguro.

 

Não se estranha, por isso, que uma certa ideia romântica de Europa unida e solidária se tenha perdido lá atrás, com a saída de cena de homens como Delors, Kohl, Miterrand, Soares ou González, apenas para dar alguns exemplos. No entanto, se é verdade que Jacques Delors é e será sempre uma figura de referência na construção europeia, tal evidência não deve distorcer a análise comparativa entre os seus dois mandatos na Comissão e os que se lhes seguiram. Porque, de certa maneira, no final dos anos 80 e no início dos anos 90 viveu-se uma euforia europeia, com alguns dos principais líderes europeus da altura, com destaque para Helmut Kohl e Francois Miterrand, a “acelerarem” o projecto europeu para um nível de integração absolutamente inédito. Maastricht é precisamente o resultado, mas também o símbolo, dessa vontade política. Na prática, e até pela realidade ainda bem presente dos traumas de uma Europa dividida, todos eles estavam a lutar pelo mesmo. E isto veio facilitar (e de que maneira) o trabalho de quem estava nas instâncias comunitárias e, ao mesmo tempo, criar uma onda de entusiasmo junto dos cidadãos europeus.

 
Hoje, a euforia deu lugar ao descontentamento e cepticismo no seio dos Vinte e Oito. Os europeus não parecem ver na Europa um projecto aliciante, mas sim uma entidade burocrática, dominada por tecnocratas que se limita a emitir directivas. A juntar-se a esta ideia, muitos dos intervenientes políticos nos vários Estados-membros tecem duras críticas e enveredam por discussões bizantinas sobre questões que, com alguma arte política e inspiração, podiam ser ultrapassadas, tendo sempre presente que este mesmo projecto europeu já ultrapassou períodos bem mais complicados da sua história. A diferença é que nessas alturas lá estavam os líderes carismáticos, a meterem de lado as suas diferenças e egoísmos e a pensarem no bem comum, e, desta forma, a inspirarem os seus povos. 

Da dependência como estratégia política

José António Abreu, 07.09.16

O governo e a sua maioria parlamentar todos os dias maldizem a UE, mas dependem totalmente da Comissão Europeia e do BCE, e nada fazem para diminuir essa dependência. É este o mecanismo da dependência em Portugal: quanto maior a dependência da população em relação ao Estado, maior a dependência do Estado em relação às instituições europeias.

(...)

Não é possível imaginar a liberdade política sem cidadãos independentes e uma sociedade civil forte. Mas o açambarcamento de recursos pelo Estado reduziu a independência da classe média a um ideal sem futuro. Só os juros e o petróleo baratos compensam, por enquanto, o assalto fiscal. Se acrescentarmos a isso o enfraquecimento das grandes instituições tradicionalmente autónomas (Forças Armadas, Universidade, Igreja), ou a descapitalização das empresas, a conclusão é óbvia: o único freio e contrapeso dos governos em Portugal já não está dentro do país, mas fora. Só a Comissão Europeia e o BCE, na medida em que condicionam o financiamento do Estado, limitam neste momento o poder governamental sobre uma sociedade cada vez mais envelhecida, empobrecida e dependente. E é por isso que tudo isto, tanto como um problema económico, é um problema político.

Rui Ramos, no Observador.

 

É por isto que o PCP acaba por ser o membro mais honesto da «geringonça»: não esconde a aversão à União Europeia e ao euro. Os comunistas sabem que a utilização da dependência como estratégia política funciona durante pouco tempo num sistema em que não se controla a impressão de dinheiro e no qual as crises de financiamento obrigam a cortes de rendimento que a inflação não disfarça, bem como à venda de empresas públicas a grupos privados (para mais, quase sempre estrangeiros, dado os nacionais irem ficando sem capacidade financeira). A União Europeia é pois um travão ao caminho para a sociedade integralmente subjugada aos interesses do Estado que os comunistas desejam, ignorando estoicamente nunca ter sido possível implementá-la em grande escala e com sucesso em lugar algum, e também que todas as tentativas realizadas levaram à pobreza e à opressão (mas os pobres são menos exigentes e mais fáceis de controlar por qualquer Estado).

Já o PS e a facção que controla o BE pretendem algo ligeiramente diferente: uma sociedade de dependentes, sim, mas com ilusões de cosmopolitismo que exigem um nível de vida razoável. (No PS muita gente sabe que o modelo do PCP é uma aberração e no Bloco, paradigma da esquerda 'intelectual' e caviar, predomina a retórica - e, sendo caridoso, o voluntarismo - sobre qualquer modelo real.) Para conseguir - ou, mais precisamente, para manter - esta sociedade de dependentes do Estado apenas moderadamente infelizes, socialistas e bloquistas dispõem-se a suportar actos de subserviência regulares perante os parceiros da União Europeia, aceitando reprimendas e jurando intenções de mudança que nunca concretizam na totalidade. (O BE tem aqui uma vantagem competitiva: estando - ao contrário do Syriza - fora do governo, até pode manter o discurso enquanto engole pequenos sapos.) Claro que ciclicamente a situação fica insustentável - o dinheiro acaba e é necessário tomar medidas duras em troca de mais. Mas é nestes momentos que os partidos de centro-direita (cuja existência o PCP tolera mal) revelam a sua utilidade. Num país de dependentes do Estado, serão sempre - e apenas - a brigada de limpeza. PS e BE sabem-no. Quanto ao PCP, neste tema muito menos hipócrita, espera a sua grande oportunidade - a saída de Portugal da União Europeia.