(A espada "de D. Afonso Henriques", imagem não gerada por Inteligência Artificial)
São-nos constantes as mistificações sobre passado e presente - cônscias ou involuntárias, cândidas ou interesseiras (parelhas cujos pólos não têm quaisquer correlações). Como deverá ser evidente, para a sua criação, sua reprodução e sua cremação é fundamental a liberdade de expressão. Em particular a liberdade de publicação, de imprensa e não só. As sociedades democráticas têm maiores quinhões dessa liberdade. E as digitalizadas exponenciaram-na.
Ela é manipulável, nisso sendo moldadas as percepções do real, sendo até agente do antes dito "obscurantismo". Os exemplos são imensos e continuados. Cada um reconhecerá alguns mas de tantos outros nem dará conta, e assim desses sendo fruto. É um molde muito constituído pelas práticas da comunicação social, tanta dela pertencente a grupos económicos, nacionais ou globais, mais ou menos pessoalizados, e deles instrumentos mais lineares (veja-se o simbólico "Citizen Kane", já com 80 anos...) ou mais matizados. Na sua adesão a interesses privados específicos (como a junção siamesa de décadas entre o popular "A Bola" e a empresa Sport Lisboa e Benfica). Na militância seguidora do "a verdade a que temos direito" dos orgãos partidários, oficiais ou oficiosos (que não se restringem aos explícitos "Avante", "Portugal Socialista" ou quejandos). No controlo estatal, directo e indirecto, da imprensa pública e privada (quais os casos da prima e do filho do futuro presidente do Conselho Europeu, para além das pressões avulsas, mas constantes, das plêiades de "administradores não executivos"). E reforça-se pelo conúbio, assalariado ou avençado, dos profissionais da palavra pública (olhai o episódio da animadora do serviço público televisivo, Cautela, literalmente esfregando-se no deputado socialista Magalhães, em horário nobre apregoando-lhe a lei tão censória que teve de ser emendada; ou o caso dos prostitutos socratistas dos blogs "Jugular" e "Câmara Corporativa", alguns dos quais ainda "por aí andam" nos círculos do poder). E um imenso etc. de configurações.
Mas é também neste feixe de imprensa - ainda que esta muito menos rizomática do que possa parecer - típico das sociedades democráticas que grassa a contraposição, a possibilidade de nos depurarmos de muita da tralha que é disseminada. Esclarecendo um pouco, no mitigar do tal "obscurantismo", da velha "alienação" a la Marx. Ora, se (já) não sendo monopólio do "ocidente", estas liberdades predominam no tal "mundo ocidental", as democracias liberais de tipo "europeu".
É agora interessante assistir a serem os avessos a este tipo de sistemas políticos, os efectivos - mesmo que não explícitos - adeptos de regimes autoritários e/ou ditatoriais, que surgem em constantes "denúncias" do iminente apocalipse da liberdade. Anunciando como sintoma desse "fim de ciclo" o facto de as suas opiniões não serem maioritárias e queridas.
A nossa agenda noticiosa - e, de facto, também a política - está dominada por duas guerras, já desgraçadamente rotineiras. A de Israel, sobre a qual já disse estar cansado, pois há mais de 50 anos que aparece na tv. Resmunguei apenas ser a reacção israelita completamente destemperada, e gigantescos serão os seus custos, para aquele país e seus aliados. E parece-me óbvio - mesmo sem ser grande adepto de teorias conspiratórias - que aquele extemporâneo ataque do fascismo islâmico foi uma magistral jogada geoestratégica.
Pois liga-se (qual bater de asas de borboleta) à outra guerra afamada, a ucraniana. Sobre esta não tive ilusões, a Ucrânia seria vencida. Mas, e sem detalhar aquela alvorada bélica, lembro alguns episódios, pois significativos para hoje: a perspectiva russa de uma rápida vitória, assente na ideia da inexistência ucraniana - com as suas tropas de imediato "às portas" de Kiev, Putin apelava à adesão dos "ucranianos" (e uso aspas porque toda a manobra, militar e discursiva, sinalizava a crença na artificialidade, ilegitimadora ,daquele país) à investida russa, como se esta "libertadora". E o seu apodar do poder de Kiev como conjunto de "nazis" e "drogados" (e, por vezes, "judeus"), "golpista", acinte apontando à sua ilegitimidade.
Argumentos e epítetos que colheram apoio entre os adversários das democracias - desse rol lembro o escritor Agualusa clamando na imprensa brasileira "estou na Ilha de Moçambique" (fica sempre bem dizer isso) "contra os nazis que alguns dizem defenderem a democracia" (+/- sic). A forma barrasca como o execrável António Filipe do PCP referiu Zelensky quando este visitou verbalmente São Bento. Ou a comunista Mortágua, acusando os americanos pela crise, e defendendo o direito da Rússia defender o seu "espaço vital" - um argumento, esse sim, nazi. Logo recompensada pelo seu partido com a promoção à sua chefia, sintoma do estado degenerado daquela amálgama esquerdista. Entre os antidemocratas europeus "à direita" grassou o mesmo repúdio ucraniófobo, ainda que por cá entre as figuras mais públicas, para além de um ou outro patusco Tânger, tenha reinado o silêncio.
É também de lembrar a heterogénea reacção "ocidental" (da NATO e seus aliados), então tão dita como sintomática de "fragilidade" e "decadência". Nada li agora de especial sobre o assunto, as relações internacionais não são o meu ofício, mas até a esta vista desarmada, e memória distraída, foram notórias algumas diferenças: o prolongado esforço diplomático de Macron junto a Putin, as delongas alemãs no apoio militar, o peculiar rumo turco, o susto báltico e escandinavo, a bem posterior investida papal, etc.
São distinções relevantes pois os antidemocratas - à "esquerda" e à "direita" -, insistem ser a culpa desta guerra do "ocidente", das sociedades democráticas. Sempre tomadas como um todo, homogéneo e agressivo. O que é denotativo: os adversários da democracia são, por associação, antieuropeístas. E sempre apontam à "Europa" a fragilidade da sua multilateralidade, da sua complexa arquitectura política-administrativa. Disso ilustração foi o caso do arrogante sofá de Erdogan. Mais ainda o desprezo de Trump diante de uma "Europa" que segue sem um presidente. Sobrancerias próprias dos ideários autocráticos, sempre apreciadores de poderes armados de único (e enorme) falo. Ou - pois nesta era de igualdade de género - de também único (se ávido de voluptuoso) clitóris. Mas estes "inimigos internos" depois surgem como se cegos à diversidade entre as dezenas de democracias, reduzindo-as a uma unicidade. O que não lhes é contradição analítica, mas apenas efeito das retóricas por cardápio, embrulhadas como se augúrios fossem. Pois a escatologia tem sempre algum apelo.
Um dos tópicos deste pensamento mágico antidemocrático, de índole comunista ou de índole fascista, é a tal proclamação do estertor das "liberdades". A este propósito aqui mesmo Luís Naves proclama o fim - no tal "ocidente" das democracias, presume-se, pois é o único contexto aludido - da liberdade de imprensa e o baixar da liberdade de expressão aos cuidados paliativos. Tudo por culpa, e nisso vem insistindo, da perfídia europeia/democrática - e da "emasculação" (passe o termo) dos títeres seus dirigentes, ilegitimados eleitoralmente e assim fragilizados face a oponentes, esses sim verdadeiros líderes pois untados de legitimidades, históricas presume-se.
Ao ler isto lembrei-me de um caso semelhante. Há dois anos e meio 20 intelectuais portugueses, oriundos, grosso modo, do "espectro do comunismo", disseram o mesmo sobre o fim da liberdade. Queixaram-se de serem silenciados, perseguidos e até criminalizados, devido ao seu efectivo apoio (vá lá, pelo menos afectiva complacência) aos inimigos da NATO. Eu sobre isso escrevi o "A Empáfia Hipócrita", irado com o desplante daquele grupo. Conviria, passados estes dois anos e meio, indagar sobre quais e quantos desses intelectuais portugueses foram, de facto, efectivamente silenciados, perseguidos. E criminalizados. Devido à sua sanha antiamericana e antieuropeísta. À sua militância antidemocrática. E quando se encontram agora os veementes clamores sobre o estertor da democracia, cá e alhures, será de comparar com este caso.
Ou então, e de modo muito mais abrangente, questionarmo-nos sobre nós próprios. Cada um, com os respectivos defeitos, incompreensões, vieses, paixões, limites, "desinformação" em suma, está com a Orbe? Ou com Orban? É uma pergunta relevante, pois - e independentemente dessa mediocridade de cada um de nós -, nesses pontos de (tomada) de vista defendem-se coisas diferentes. Amam-se coisas diferentes. Mais do que tudo, pensam-se futuros diferentes. E, mais importante, é nesses limites, apenas sob eles, que é possível pensar.