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Delito de Opinião

A guerra da Rússia contra a Ucrânia

Pedro Correia, 24.03.23

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Escombros de Irpin após ataque russo (2022)

 

George Orwell ensinou-nos o valor das palavras. Perverter o seu significado é, muitas vezes, ceder terreno aos inimigos da liberdade. É fundamental, por isso, estarmos sempre atentos à importância de cada rótulo, de cada etiqueta, de cada frase feita em suposta representação da realidade.

A brutal ditadura de Putin, consciente deste facto, decretou penas de prisão a todos quantos chamassem guerra à guerra. Os russos só podem entoar a eufemística lengalenga putinesca, que chama «operação militar especial» à criminosa invasão do território ucraniano pela maior potência atómica do planeta.

Cada quadrante com os seus eufemismos. Os amigos do Kremlin em Portugal chamam simplesmente «guerra» àquilo - diluindo-se todo o horror concreto dos massacres cometidos pelos russos em Butcha, Borodianka, Irpin, Kramatorsk e Mariúpol num vocábulo abstracto.

Até o jornalismo que persiste em ser rigoroso e sério pode recorrer a expressões equívocas. Acontece quando alude à «Guerra da Ucrânia», como se houvesse simetria exacta entre agressor e agredido.

Mas não há.

O que ali ocorre é a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Iniciada faz hoje 13 meses e ainda sem fim à vista. Saibamos dar-lhe o nome certo. Sem enganos, sem eufemismos, sem ambiguidades.

O Almirante

jpt, 19.03.23

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(Gouveia e Melo, fotografado por Miguel Valle de Figueiredo)

O país estava exausto pelos efeitos do Covid-19, atrapalhado pelos normais constrangimentos e hesitações governamentais face àquele enorme desafio, tudo incrementado por alguns ziguezagues desnecessários. Após um ano de pressão pandémica o alívio da esperada vacinação começou embrulhado em confusão executiva e manchado por alguns casos de nepotismo, na apropriação de vacinas por membros da elite socialista, algo exasperante e incrementando dúvidas sobre a capacidade de uma competente vacinação universal. Neste caso não é necessário fazer o rescaldo das práticas então seguidas pelo Ministério da Saúde, e restante governo, pois nisso logo se dividem as opiniões devido a critérios advindos do viés partidário. Mas é pacífico constatar que após Gouveia e Melo ter sido colocado no topo da sua estrutura organizacional  - e de ter lhe reforçado a participação militar  - o processo nacional de vacinação foi um sucesso, até inesperado. Para tal contribuiu a credibilização dos serviços: explicitando a confiança nacional nos ditâmes dos agentes da Saúde (remetendo os "negacionistas" das vacinas a um minoria histriónica). Mas também na racionalidade e na rectidão dos processos, pois logo minguaram as atrapalhações executivas e, mais, desapareceram as notícias sobre autarcas e deputados a reservarem alguns lotes de vacinas para si, familiares, amigos e vizinhos. E contribuiu também, não o esquecer, a constante e ponderada disponibilidade comunicacional do coordenador-geral Gouveia e Melo, sossegando e mobilizando as hostes nacionais.

 

 

Guernica ontem, Ucrânia hoje

Descrição da Guerra em Guernica, de Carlos de Oliveira (dois trechos)

Pedro Correia, 09.03.23

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Irpin em ruínas (Ucrânia, 2022)

 

IX

Casas desidratadas

no alto forno; e olhando-as,

momentos antes de ruírem,

o anjo desolado

pensa: entre detritos

sem nenhum cerne ou água,

como anunciar

outra vez o milagre das salas;

dos quartos; crescendo cisco

a cisco, filho a filho?

as máquinas estranhas,

os motores com sede, nem sequer

o espírito das minhas casas;

evaporaram-no apenas.

 

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Butcha em escombros (Ucrânia, 2022)

 

X

O incêndio desce;

do canto superior direito;

sobre os sótãos,

os degraus das escadas

a oscilar;

hélices, vibrações, percutem os alicerces;

e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona

toda a arquitectura;

as paredes áridas desabam

mas o seu desenho

sobrevive no ar; sustém-no

a terceira mulher; a última; com os braços

erguidos; com o suor da estrela

tatuada na testa.

De pé

Pedro Correia, 28.02.23

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A humilhante retirada dos americanos de Cabul em 2021 - imitando a que ocorrera em Saigão em 1975 - encorajou o ditador russo a ordenar aos seus generais, tal como Hitler em 1939, para ocuparem toda a Ucrânia em Fevereiro de 2022. A Ucrânia oriental já estava anexada desde 2014.

Havia precedentes mais próximos na geografia, sempre encorajados pela frouxidão do chamado "Ocidente", com uma União Europeia quase desmilitarizada e os Estados Unidos vocacionados para os amenos negócios do Pacífico.

Foi assim na Geórgia em 2008 e na Crimeia em 2014: Putin passou impune. Como passara na Tchetchénia logo após assumir o poder, em 2000: afogou a revolta popular em sangue, reduzindo tudo a escombros. Como sucedera na Síria a partir de 2015, com a tropa russa praticando vergonhosos crimes de guerra em socorro da tirania de Assad, com meio milhão de cadáveres no cadastro.

Felizmente Joe Biden, após o fiasco do Afeganistão e alguma hesitação inicial face à Ucrânia, soube reagir como as circunstâncias impunham. Mas quem fez a diferença, enquanto verdadeiro líder do mundo livre, foi Volodimir Zelenski: não aceitou boleias para o exílio, mas exigiu armas para combater o invasor.

 

Lá se mantém ele, de pé, dando um exemplo de resistência ao seus compatriotas. E aos seus contemporâneos de todos os quadrantes. 

Neste mundo onde tantos têm estado de cócoras. Basta lembrar a atitude de alemães e franceses durante anos, totalmente indiferentes à fúria predadora do carniceiro russo que queria instalar em Kiev um fantoche semelhante ao grotesco Mussolini bielorrusso, seu fiel vassalo. 

Zelenski bradou: «Não passarão.» E não passaram.

A força da falta de carácter

Paulo Sousa, 27.02.23

No passado dia 21 de Maio, António Costa deslocou-se a Kyiv numa visita diplomática em que pretendeu mostrar o apoio de Portugal à dificil situação que se vive na Ucrânia.

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Foto Jornal de Negócios

Bem sabemos como é fácil uma pessoa se entusiasmar com o calor do momento. E bem sabemos também, quão farto está António Costa das tricas da política tuga, dos seus casos e casinhos, de aturar jornalistas avençados e mais farto ainda de aturar os que não aceitam avenças. Não será necessário um grande esforço para imaginarmos como lhe deve ser agradável mudar de ares de vez em quando. Do ponto de vista profissional, olhando para o que já fez na vida, ele anseia é por aquilo, por viajar, cumprimentar, sorrir, prometer, dizer banalidade redondas e logo depois seguir viagem. Aturar jotinhas radicais disfarçados de gente séria? Fonix. Quem quiser que os ature.

Ter estado ali, ao lado de Zelenski, é mesmo por aquilo que ele anseia. Acelerar a fundo contra a realidade é a estratégia que já delineou. O mandato de Charles Michel termina a 30 de Novembro de 2024, o relógio não pára e até lá tem de se livrar dos parolos.

Em Kyiv, no calor do momento, Costa não foi curto nas promessas e toca de garantir uma ajuda portuguesa de 250 milhões de euros. A foto ao lado do presidente ucraniano já ninguém lha tira e já estará, certamente, na sua galeria pessoal, entre uma foto dele com o Cristiano Ronaldo e outra com José Sócrates.

Entretanto, já regressado ao que Eça classificou como choldra, alguém lhe terá dito que tinha estado a fazer contas e tal, e como as coisas estão sempre mudar, também ele teria de ajustar a promessa. Costa podia contrapor com aquela conversa da palavra dada, mas Zelenski nem sequer vota cá, que se lixe.

Com o savoir faire reservado aos habilidosos, António Costa não quis assim deixar de assinalar o aniversário da invasão russa e por isso ajustou a promessa feita para 55 milhões. É poucochinho, mas é de boa vontade.

Contra Putin, em defesa da Ucrânia

Pedro Correia, 25.02.23

Este foi um dos melhores discursos que tenho ouvido em muitos anos na Assembleia da República. Proferido ontem pelo deputado socialista Sérgio Sousa Pinto. Criticando, com uma sagaz lição de História, a inaceitável invasão da Ucrânia há um ano pela tropa armada do ditador russo. 

«Aprendemos e temos o dever de não esquecer: uma potência revisionista, confiante na sua força, não pode ser apaziguada. Só pode ser dissuadida pela força e, se necessário, enfrentada pelas armas.»

«As pombas da paz, que um ano volvido sobre a invasão da Ucrânia gemem pelo compromisso a todo o custo, escolheram ignorar a História. Fazem-no por ingenuidade, ódio persistente ao Ocidente ou revanchismo contra as democracias liberais, os regimes que saíram triunfantes da desordem do século XX.»

«Se a coragem e o sacrifício do povo ucraniano bem como o apoio do Ocidente fraquejarem, e a actual situação no terreno congelar de facto ainda que não de direito, a Ucrânia como nação livre perecerá como a Checoslováquia pereceu [em 1938]. Uma Rússia que se estenda das portas de Odessa aos confins do Donbass guardará as chaves de uma Ucrânia indefesa e praticamente inviável. Uma paz cujos termos sejam ditados pela Rússia de Putin será sempre uma paz provisória, uma paz que não valerá o papel em que for assinada, uma paz que apenas adiará o fatal desaparecimento da Ucrânia como Estado soberano.»

Slava Ukraini! Слава Україні!

jpt, 25.02.23

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Na semana em que se cumpre um ano sobre a invasão russa da Ucrânia e na qual Putin discursa, ilegitimando este país e responsabilizando o "Ocidente" pela guerra em curso, dado  que "Tentaram arrancar as terras históricas da Rússia, o que é agora chamada de Ucrânia", enquanto brande a ameaça de utilizar armamento atómico, uma amiga - conhecida em Maputo - prefere enviar-me a ligação a uma "carta aberta ao presidente da República" emitida pela cidadã Sófia Smirnov (pelo nome presumo ser de ascendência russa ou de dupla nacionalidade). Na qual - tal como o PCP também faz - se insurge contra a condecoração atribuída ao presidente ucraniano, que vitupera como governante corrupto, agente de inúmeros crimes de guerra, cúmplice de militantes nazis, cabecilha de um Estado ditatorial e promotor de actividades criminosas.

Smirnov avança também contra os "ataques" sofridos pelo PCP (que define como "Partido Democrata", assim mesmo com maiúsculas exaltantes) movidos por cidadãos estrangeiros (ucranianos), denunciando "a quem foi permitido tudo". Mais avança que a democracia portuguesa tem sido violada desde há três anos, em particular neste último - deixando presumir que estabelece uma ligação entre as políticas sanitárias face ao Covid-19 e o apoio estatal (e societal) ao esforço de guerra ucraniano. Também augura (ameaça?) a disrupção do sistema democrático nacional caso continue esse apoio. E sublinha essa falha democrática por os portugueses não terem sido "consultados" sobre esta política nacional e estarem a ser alvo de uma constante manipulação. E explicita ainda a sua visão da situação, concedendo que igualmente o presidente Putin não será condecorável - nisso promovendo uma igualdade política entre os dois presidentes e regimes - e que se preocupa com as crianças "russas, ucranianas, sírias e palestinas", forma de sublinhar a sua crítica à preocupação face a esta invasão mas não com outras acontecidas mundo afora. 

Ou seja, esta "carta aberta" é uma breve súmula dos argumentos anti-ucranianos que alguma opinião portuguesa tem promovido, por vezes mascarados pelo estipular de uma igualdade entre as posições russas e ucranianas, outras vezes mais francas, ao explicitar de uma particular malevolência sita em Kiev e a Oeste - duas vias bem demonstradas neste 24 de Fevereiro pelas posições dos três partidos comunistas portugueses com representação parlamentar, o BE e o LIVRE agora (um ano de guerra já passado) no minuete da imparcialidade, o PCP ainda "resiliente" no vira da culpabilização da NATO e dos EUA.

Surpreendeu-me ter recebido aquela mensagem. Talvez a minha amiga não conheça as minhas perspectivas sobre a guerra ucraniana. Resumo-as: não andam longe do que consideraram - num país onde a liberdade de expressão sofre enormes pressões e a oposição à guerra foi desde logo considerado crime, passível de pesadas punições - a Associação de Antrópologos russos e a Associação de Arquitectos e Urbanistas russos que desde logo condenaram a invasão através de documentos subscritos por inúmeros e corajosos membros dessas associações profissionais. E acolhi com simpatia um texto de 79 intelectuais "não-ocidentais" sobre esta guerra, apelando a um discernir ponderado, e nada "russófilo", da situação - ainda mais relevante para quem vive ou viveu em países africanos, dada a nacionalidade e proeminência continental de vários desses subscritores. Textos que ecoei neste blog e que convoco para balizar o que penso sobre quem surge agora a frisar que o relevante é criticar Volodymyr Zelensky, e as suas malfeitorias - e que julgo poderem ser significantes para a minha amiga, dado o seu perfil pessoal e carreira profissional.

Outra dimensão é o que a russófila Smirnov refere sobre Portugal. O nosso regime é uma democracia representativa, no qual há 48 anos que o eleitorado português vota sucessivamente, e por largas maiorias, em partidos que defendem uma participação activa na NATO e uma inserção na União Europeia, e nisso também na sua política externa. A democracia representativa não se esgota no voto - daí a sua arquitectura institucional, aqueles "pesos e contrapesos" sempre ditos checks and balances, e os efeitos (às vezes tectónicos) dos pulsares das opiniões públicas livremente expressos. Mas implica que delegamos nos nossos representantes a condução da política, neste caso a externa. Ou seja, não só fomos "consultados" como estamos - todos os dias - a ser "consultados", e o argumento da russófila Smirnov é uma falácia propositada, efeito da sua evidente aversão à democracia. Pelo que não há qualquer ilegitimidade (e muito menos ilegalidade) quando a Assembleia da República se recobre das cores nacionais ucranianas em homenagem à espantosa resistência daquele país diante da invasão imperialista russa. Mesmo havendo podres na sociedade ucraniana...

Mais, contrariamente ao que ela afirma, o PCP (o tal "Partido Democrata" maiusculizado) não foi "atacado" - foi "criticado", com veemência, com virulência, mas isso não implicou quaisquer restrições ou sanções sobre o seu exercício político. Aos manifestantes a que Smirnov aludiu não foi "permitido tudo" mas sim o exercício do direito à manifestação pacífica. E a propalada crescente falta de democraticidade no país não casa bem com o facto da demagoga publicista ter publicado o seu texto na... página oficial da Presidência da República e ver o seu texto reproduzido por vários canais. Sem que o texto seja "censurado" (retirado) nem que ela seja objecto de quaisquer sanções, jurídicas ou morais, tal como não acontece com qualquer dos seus apoiantes e divulgadores - como a minha simpática amiga. Aliás, e para sublinhar essa liberdade de opinião, o seu texto é-me entregue através da sua divulgação num blog onde se acotovelam reproduções de artigos de imprensa e a publicação de opiniões russófilas - entre as quais as de um general português, evidentemente avesso à NATO, aparentemente comunista (ou, vá lá, compagnon de route), cujas características ideológicas não só não o impediram de ascender nas forças armadas nacionais como não o impedem de ser presença constante na imprensa escrita e televisiva, na defesa do regime de Putin. Enfim, este choradinho da falta de democraticidade em Portugal, sobre os ataques que os putinescos reclamam sofrer, não tem cabimento. Ou seja, o rosário smirnoviano é um cadinho de falácias demagógicas.

Um último ponto, o constante argumento de que há (e houve) na História outras invasões sobre as quais "nós" não nos interessamos, convocadas no paleio da autora compungida pelas "crianças sírias e a palestinas", sendo que outros locutores lhes juntam alguns outros casos, sempre ideológica e cirurgicamente laminados. É essa retórica também falaciosa, que quer ilegitimar uma mundividência europeia e seus interesses privilegiados. E quero juntar-lhe isto: neste invectivar da atenção reforçada sobre um ataque ao espaço político europeu nenhum dos locutores comunistas (porque é disso que se tratam) se lembra da invasão do Tibete, por exemplo. Ou um outro caso ainda mais recente - e talvez mais significante para mim e para a minha amiga, que ainda maior experiência africana tem do que eu: no recente mundial de futebol um jogador marroquino, após uma celebrada vitória, ostentou uma bandeira palestiniana, algo que foi muito saudado pela mole de bem-pensantes, em particular anti-ocidentais. E ninguém perguntou, que eu tenha visto, que desfaçatez era aquela do futebolista marroquino, pois o sacaninha poderia ter desfraldado a bandeira do Saara Ocidental. Mas não o fez... Nem isso clamaram os seus "pós-"marxistas europeus apoiantes...

A latere: eu nunca lera Smirnov até esta infausta mensagem da minha boa amiga. É muito interessante, como exemplo (tétrico) de uma mundividência que vai subsistindo. Pois deparo-me com um texto dessa publicista sobre "José Milhazes - o Ingrato". Não conheço o homem, nada sei sobre suas qualidades e defeitos, méritos e deméritos, apenas retenho o seu sotaque carregado (saudável pois tão raro na monocórdica televisão nacional) e o celebrizado "caralho!" que clamou em tempos. Mas ao ler este ataque pessoal que Smirnov lhe endereçou recuei décadas, até ao pós-25 de Abril. Nessa época, e tal como agora aconteceu com Milhazes, alguns antigos militantes comunistas, que se haviam exilado na URSS, tinham regressado ao país, saído do PCP e publicitavam a sua visão profundamente negativa do "socialismo real". Lembro dois nomes, Francisco Ferreira (dito Chico da CUF) e Cândida Ventura. Eram alvos dos maiores insultos, denegridos até ao tutano pelos locutores comunistas. É exactamente o mesmo que esta Smirnov (e vários outros, pululando pelas redes sociais) fazem agora a José Milhazes. É uma mentalidade abjecta, disfarçada de "opinião" política - e cujo miserável estatuto a História bem comprovou. E demonstra bem a "democraticidade" de quem assim perora.

Enfim, faz-me o favor, minha querida e respeitada amiga: não me mandes lixo deste. Pois, seja lá como for, Slava Ukraini! Слава Україні! E viva a Ordem da Liberdade para Zelenski!

 

 

Um ano depois

O que se escreveu no DELITO em 24 e 25 de Fevereiro de 2022

Pedro Correia, 25.02.23

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NÓS...

 

Beatriz Alcobia: «Escolho as maçãs uma a uma e só trago as que gosto e me interessam. Deixo lá as outras que não me interessam. Assim também o faz Putin. Vai à História e tira um a um os acontecimentos que lhe interessam e ignora os outros.»

 

João Campos: «Sou insuspeito de nutrir alguma simpatia pelo actual Governo e pelos seus vários elementos - Augusto Santos Silva incluído - mas não posso deixar de aplaudir a sua resposta ontem, no Parlamento, à vergonhosa intervenção do deputado comunista João Oliveira. Ponderada, eloquente, sem meias-palavras e sem as insuportáveis adversativas que tanta gente usa para tentar "justificar" ou "compreender" a agressão de Putin à Ucrânia.»

 

João Pedro Pimenta: «Não faltam "quintas colunas" no Ocidente a favor de Putin. Em Portugal não serão assim tantas, mas temos à cabeça o inevitável PCP, sempre ao lado dos russos (ou melhor dizendo, contra o Ocidente), para quem a culpa é... da Ucrânia. Certamente pensaram o mesmo da Polónia na invasão alemã de 1939, de tal forma que a URSS entrou pelo outro lado. Mas mesmo fora do PCP encontramos outros idiotas úteis.»

 

JPT: «Vem constando que António Costa, reforçado pela maioria absoluta parlamentar, levará Fernando Medina para o seu próximo governo. Entregando-lhe, segundo os mesmos rumores, a importante tutela das Finanças. É uma boa notícia para o país, pois será garantia de uma boa relação com o regime russo

 

Luís Menezes Leitão: «A fraqueza da actual liderança dos EUA e a falta de preparação do Ocidente para suster a ameaça russa conduziu assim a Europa uma guerra que se pode revelar absolutamente dramática. E esperamos que isto não sirva de exemplo para outras potências procurarem também resolver pela força os conflitos que têm há muito congelados. Recorde-se a China em relação a Taiwan.»

 

Paulo Sousa: «Estamos quase incrédulos por, após tantos anos de estabilidade na Europa, existir um país que insiste em regressar ao mundo de antigamente, ao mundo do equilíbrio de forças, ao mundo onde importa contar o número de soldados, tanques, aviões e fragatas, sempre a olhar para os números dos seus vizinhos. A Rússia, liderada pelo filho da senhora Putina, não gosta do multilateralismo e comporta-se no palco internacional como um bully no recreio da escola. No mundo que ele tenta promover e em que gosta de se movimentar, os mais fracos têm motivos efectivos para temer os mais fortes.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Não se queira estabelecer qualquer comparação com a crise dos mísseis em Cuba. Nem a Ucrânia é um fantoche totalmente dependente e na órbita do Ocidente, como era o regime de Castro em relação à extinta URSS, como também não é menos verdade que não há, nem nunca houve, mísseis instalados à socapa e pela calada da noite que estivessem apontados a Moscovo, ou incursões desestabilizadoras no território russo, violando as fronteiras do estado vizinho e que tivessem sido estimuladas e pagas por exércitos de mercenários para conduzir acções de intimidação e de natureza secessionista em países independentes, por capricho próprio e para satisfação de egos doentios.»

 

Eu: «Putin ataca em larga escala a vizinha Ucrânia, despejando-lhe incontáveis mísseis de médio alcance, convicto da impunidade. Na certeza de possuir o maior arsenal atómico do planeta - exemplo supremo da razão da força, indiferente a qualquer força da razão. E tem a vantagem, relativamente ao genocida alemão, de estar sentado no chamado "Conselho de Segurança" da ONU, com direito de veto a qualquer decisão que possa lá tomar-se. Numa manifestação suprema de cinismo, aliás, invocou o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas para ordenar a tomada da Ucrânia pelas armas. Imagine-se Hitler com idêntico poder formal de paralisar qualquer acção contra si próprio no inútil palácio de vidro em Nova Iorque...»

 

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... E OS LEITORES

 

Alexandre Soares: «Não passarão.»

 

Balio: «Os EUA andaram desde 1990 a gastar o seu exército em guerrinhas no Iraque, Afeganistão e outros países de menor interesse. Agora têm o exército gasto, rombo. Se tentassem intervir militarmente contra os russos na Europa (em guerra não nuclear), seriam pulverizados. Os exércitos europeus sofreriam o mesmo destino.»

 

Francisco Almeida: «Em 2008 face a uma narrativa de ameaças da NATO, até hoje por concretizar, [a Rússia] entra no Cáucaso de onde nunca mais saiu. Em 2014, face a idêntica narrativa, anexa a Crimeia. Logo em 2015 envia tropas especiais para o Donbass mas mantém-nas em stand-by, não progredindo mas impedindo de facto que o exército ucraniano acabe com as secessões. Agora, em 2022 foi o que [se] viu. E, para os mais distraídos, lembro que uma operação desta envergadura necessita de semanas, se não meses, de planeamento.»

 

JF: «É lamentável ver que toda esta situação e intervenções militares que a Federação da Rússia se vê obrigada a concretizar, tenha sido despoletada pela Inglaterra, União Europeia, e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que efectuaram em 2014 um golpe de Estado liberal levando ao poder em Kiev forças/partidos políticos nacional-socialistas, em conjunto com a recusa do regime liderado pelo Sr. Zelenskyy em cumprir os Acordos de Minsk.»

 

Lucklucky: «A Europa tem mais culpas, afinal estamos no continente europeu onde está a ocorrer tal situação... Como a cultura do Ágora no Ocidente relativa à area militar é miserável devido à cultura pop de jornalistas e tutti quanti... a ignorância é "sistémica".»

 

Manuel Guerreiro: «Putin sabe perfeitamente que os dirigentes ocidentais são tão corruptos quanto ele, daí ele fazer o que está a fazer.»

 

Marques Aarão: «Cabe perguntar se ninguém previu que Putin, tal como o descrevem, não poderia sentir-se ameaçado e encurralado perante o concluir de um cordão com a adesão da Ucrânia à NATO. Seria assim tão difícil deixar para já em banho-maria essa possibilidade explicando que essa acção nas circunstâncias em presença poderia despoletar uma guerra de consequências mundiais imprevisíveis com um número de vitimas mortais avassalador?»

 

Vagueando: «Putin tem a Europa na mão e a Europa como projecto de paz em que acreditou piamente desfez-se e, infelizmente caminha para um futuro preocupante face ao crescimento dos seus próprios extremismos internos.»

 

Vento: «A Ucrânia, tendo um povo valente, jamais aguentará um ataque quer do fogo de artilharia de longo alcance russo, quer dos foguetes com uma capacidade absolutamente infernal que também têm, quer dos mísseis cruzeiro e balísticos, quer ainda da capacidade russa para deixá-los através de meios electrónicos sem capacidade para comunicar.»

 

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Reflexão do dia

Pedro Correia, 24.02.23

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«É com vergonha que vejo, depois de um ano de guerra, que ainda há muitos europeus que se precipitam para oferecer à Rússia territórios que não são deles. Nem deles, precipitados, nem deles, russos. Porque são territórios ucranianos. 

Estes precipitados falam da paz como o vizinho que quer dormir e não quer saber da violência doméstica no andar de cima. Como não quer barulho, quer é que marido e mulher se entendam, para baixar os decibéis lá do prédio.

(...) À Rússia basta-lhe retroceder e desistir. Mas parece que nem isso sabe fazer. Não descansará enquanto não se invadir e destroçar a si própria.»

Miguel Esteves Cardoso, no Público

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 24.02.23

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Há precisamente um ano, a 24 de Fevereiro de 2022, o mundo parava para assistir em directo ao devaneio de um miserável ditador: a invasão criminosa de um país soberano. Lembro-me de dizer ao meu marido que não acreditava, que era só basófia e que era coisa para americano ver. Passado um ano ainda não acredito como é que as vitímas se contam aos centos de milhar e ele, o todo-poderoso, continua a afirmar que a guerra está ganha e a ordenar que continuem a matança. Pior ainda, ninguém o contradiz, ninguém o castiga, ninguem lhe apaga o escarninho sorriso nojento do rosto. Assim, a Ucrânia e os ucranianos  continuam na senda de uma guerra de morte e destruição, que um ano depois do dia primeiro, já se tornou banal e desinteressante, quando surgem notícias nos jornais ou na TV.

Um ano. Mesmo que a vilania perca a guerra, a indiferença já a venceu. Viva o povo ucraniano!

 

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Hoje é O Dia do Peixe Frito

«O Dia do Peixe Frito é comemorado na primeira sexta-feira da Quaresma de cada ano. É um dia comemorado principalmente para esta época, que recomenda o consumo mínimo ou nulo de carne. 

O consumo de peixe no início da Quaresma teve origem nos tempos bíblicos, quando Jesus Cristo começou a jejuar e abster-se de consumir animais de sangue quente. Jesus só comeu peixe antes da crucificação. 

A tradição foi iniciada por  católicos alemães no século XIX. Na época, a Igreja era rígida e só permitia que os católicos consumissem peixe – não apenas na Quaresma, mas todas as sextas-feiras do ano. Isso foi rapidamente adoptado por outros povos, que começaram a encontrar maneiras cada vez mais criativas de servir peixe.»

 

Gosto muito de peixe frito com arroz de tomate e salada. Adoro jaquinzinhos, petinga, pescadinha de rabo na boca, linguadinhos com açorda, quaisquer filetes bem temperados e principalmente chaputa. É uma delícia de peixe frito.

 

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Hoje é O Dia dos Odiadores de Coentros

«O Dia Internacional Eu Odeio o Coentro é comemorado a 24 de Fevereiro de cada ano. Há gente que não suporta este condimento.

O coentro é utilizado na culinária pelo menos há cerca de cinco mil anos. 

Os romanos enterravam os nmortos com sementes de coentro para ajudar a disfarçar o cheiro de podridão.»

 

Diz-se que coentros e rabanetes não vão à mesa do rei... pior para o rei que, por armar ao fino, não sabe o que perde. Muitos, tantos pratos da cozinha tradicional portuguesa e da boa cozinha mundial, não atingem o ponto se não tiverem coentros. Desde a antiga e tradicional açorda aos diversos pestos e cremes de barrar, peso que o rei deverá pensar melhor.

(Imagens Google)

De luto pela Ucrânia

Pedro Correia, 24.02.23

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Foto: Maksim Levin / Reuters

 

O número de militares ucranianos que perderam a vida ao longo deste ano de invasão da Rússia pode ascender a 100 mil.

Pelo menos oito mil civis foram mortos. Outros números apontam para quase 30 mil.

Cerca de 13.300 civis feridos - números mínimos.

Pelo menos 487 crianças assassinadas.

Outras 954 feridas com gravidade.

«Nem o mais simples aspecto das vidas infantis foi poupado neste conflito», salienta a UNICEF, acrescentando que para elas este foi «um ano de terror». 

A percentagem de crianças a viver na pobreza na Ucrânia quase duplicou ao longo deste ano, passando de 43% para 82%. 

O número de refugiados ucranianos noutros países europeus ultrapassa já os oito milhões - o que corresponde a cerca de 20% da população do país, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados.

Há neste momento cerca de 5,9 milhões de desalojados internos no país.

Milhão e meio de crianças ucranianas sofre de ansiedade, depressão, stress pós-traumático e outras doenças do foro psicológico.

Milhares de equipamentos civis foram arrasados na Ucrânia - incluindo escolas, infantários, creches, hospitais, enfermarias, maternidades, igrejas, conventos, teatros, museus, salas de concerto, oficinas, lojas e habitações.

O PIB da Ucrânia caiu 30,4% em 2022.

O défice orçamental do país pode registar uma acréscimo de 38 mil milhões de dólares em 2023.

Os prejuízos materiais causados pela agressão russa à Ucrânia ascendem já a mais de 750 mil milhões de dólares.

Os danos ambientais deste conflito ultrapassam 48 mil milhões de dólares.

O Podcast Mudo (4): o Bisneto de Marx

jpt, 08.02.23

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Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.

Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.

Mas ainda mais me atormentei com os dislates por cá, inúmeros. Entre esses tantos recordo, quais marcos topográficos, o da "estrela mediática" e deputada bloquista Mortágua defendendo - ela sim - a argumentação nazi na sua legitimação do "espaço vital" russo, o do coordenador da biblioteca Ephemera e renomado militante do PSD Pacheco Pereira, arvorado em relativista no amornar do imperialismo russo e apoucando a nossa adesão simpática ao povo agredido, pois também ele entoando o trinado do nosso racismo omnipresente. E os quotidianos dos nossos generais, feitos comentadores televisivos, afinal tão avessos à NATO que furiosos russófilos. Entretanto o nosso PCP desdobrou-se em dichotes, culminados com a publicitação da "notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas", inacreditável e inaceitável declaração em pleno XXI mas afinal recebida não com a ira devida mas já como se apenas despiciendo murmúrio moribundo. Mas talvez o mais sonante foi o da junção de 20 personalidades que, ancoradas nos seus prestígios biográficos e intelectuais - e após terem exarado incessantes diagnósticos culpabilizadores dos EUA e das restantes exploratórias democracias ocidentais -, vieram anunciar-se como perseguidos e até criminalizáveis devido ao seu pensamento livre, muito mais capaz pois complexificador e avesso às campanhas propagandísticas do "pensamento oficial", único e totalitário, que disseram vigente. A altivez intelectual, tricotada ao anti-americanismo mais básico - próprio dos vários tipos de crença comunista congregados (da mais ortodoxa até à do "brigadismo" do terrorismo urbano, passando pelo dito "pós-marxismo" "abissal") - nessa última "carta aberta" foi então um "must" das tais "opiniões" que "atormentam os homens". 

Logo então a reclamação da tal "complexidade" do pensamento próprio, enfrentando as "campanhas propagandísticas" do "pensamento único" capitalista, feita por gente que presume serem as suas biografias comprovativos da sua justeza intelectual, lembrou-me este livrinho, que herdei das estantes paternas: "No Coração da Europa... "Primavera" ou "Outono" de Praga?", editado pela Agência de Imprensa Órbis em 1979, e que terá a curiosidade de ter sido traduzido por José Saramago - não posso saber se por iniciativa própria se por encomenda editorial e/ou partidária... O seu autor é Robert-Jean Longuet (1901-1987), um bisneto de Marx, jurista e jornalista. O qual teve um rumo ideológico algo heterodoxo, de tendência socialista, passando por patriotismo gaulista durante a II Guerra Mundial e jornalismo em periódicos comunistas, para além de uma rica biografia, da qual destaco o seu pioneirismo anticolonialista, com denúncias ao racismo subjacente nas colónias francesas, tendo sido fundador da relevante revista Maghreb e autor de um punhado de livros. Deixo estes detalhes para realçar não aparentar ele ter sido um "ortodoxo" comunista nem um "funcionário partidário" ou mero fiel "intelectual orgânico" ao longo de toda a sua vida. E de ser credor de respeito intelectual - para os mais distraídos: nos anos 1920s não abundavam europeus activos anticolonialistas...!

Dito isto, este seu "No Coração da Europa..." é uma obra exemplar, de tão demonstrativa é de um olhar "militante" e dito "analítico". Resulta de uma longa reportagem que Longuet fez na Checoslováquia em 1972, quatro anos após a invasão soviética que tanto brado deu. E que o autor apenas decidiu publicar em 1979 - recordo que já depois dos Acordos de Helsínquia (1975) e, mais significativamente ainda, já acontecida a Carta 77, recomeço simbólico do movimento democratizador checoslovaco, pontificado por Vaclav Havel.  Longuet fizera antes a tal reportagem, com uma profusão de entrevistas a membros do aparelho de Estado, do partido comunista e "operários e camponeses". Disso resultou este livro, totalmente laudatório do regime comunista de Praga, anunciando os seus sucessos, sublinhando as suas virtudes, antevendo a sua ainda maior ascensão futura. E a tudo associando um veemente vitupério ao boicote e intrusão dos países ocidentais, comandados pelos americanos, que teriam causado os problemas de 1968, o tal para ele "Outono de Praga". E Longuet justificou a publicação - 7 anos após a conclusão do texto, 11 anos após a invasão de Praga - devido à necessidade de dar a conhecer a sua "análise serena, objectiva e mais profunda das causas" para "restabelecer os factos e dar informações objectivas" sobre os "progressos constantes desde 1970, na Checoslováquia, em todos os domínios" (11), tudo isso permitido pelo seu pensamento , dito livre, complexificador, ultrapassando a verdadeira censura hostil à Checoslováquia, dominante no "mundo imperialista", tarefa essa tão elogiada no prefácio de Jeannette Thorez-Vermeersch, viúva do antigo secretário-geral do PC francês, esta tão ciente seguia do desagregrado estado desse mundo e do florir socialista, tão bem capturado pela análise do autor.

(Re)Leio este "pensamento livre", "complexificador", indagador das verdadeiras "causas dos fenómenos", avesso ao "discurso único", "dominante" no "mundo capitalista" (esse que agora se diz "ocidental"), invectivando as democracias por todos os males e mentiras e prenunciando um "óbvio" rumo histórico.  E como sei da história desde 1979 não deixo de sorrir diante de tamanha basófia intelectual, tanta que já nem atormenta. Tal e qual, sem tirar nem pôr, a destes tipos de agora. Enfim, que belo legado me foi este livrinho, a desartormentar-me diante da vacuidade alheia, a destes Longuets lusos. E esse é bom passo, ainda que paradoxal, no rumo do estoicismo.

O Patriotismo

jpt, 04.02.23

"...patriotism - a somewhat discredited sentiment, because the delicacy of our humanitarians regards it as a relic of barbarism ... It requires a certain greatness of soul to interpret patriotism worthily - or else a sincerity of feeling denied to the vulgar refinement of modern thought which cannot understand the august simplicity of a sentiment proceeding from the very nature of things and men". 

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, p. 206).

 

 

Neste Fevereiro cumpre-se um ano de guerra na Europa. A qual vem implicando um enorme esforço assente no "patriotismo", o ucraniano. E é interessante ver como na Europa, e por cá, a extrema-direita "soberanista" logo se tombou por simpatias pela força imperial agressora contra o que sempre diz defender, as tais nações, nisso confluindo com a esquerda comunista, esta que sempre se reclama de avessa aos "impérios". Sendo os democratas, mais ou menos confederativos, os grandes apoiantes desse esforço patriótico. De como a realidade bem mostra a falácia das demagogias.

O Benfica e a Ucrânia

jpt, 31.01.23

Bandeira ucraniana acenada em meio à destruição provocada pela guerra

Acaba agora o Janeiro - incrível como isto voa... E se assim acaba o Janeiro seguir-se-á, dirão que teria dito o Senhor de La Palice, o Fevereiro. Por isso há hoje dois marcos: para quem se interessa pelo assunto encerra hoje o mercado de transferências futebolísticas; e neste próximo mês cumprir-se-á um ano da guerra russo-ucraniana (sim, como disse acima, o tempo voa...). Por isso volto atrás, a esse início de 22 e à que Moscovo julgou uma "guerra relâmpago", na crença putinista da adesão ucraniana aos libertadores russos - "contra o poder nazi e drogado" - e da emergência do silêncio fariseu europeu e da atrapalhação bidenesca, esta antes demonstrada em torno de Cabul.
 
Lembro esse início por cá, os russos saudados, implícita e explicitamente, pelos do "compromisso histórico", aquele entre os comunistas brejnevistas (os do "simpático" António Filipe, que se desdobrou em dislates russófilos) e dos enverhoxistas, maoístas, trotskistas, polpotistas e quejandos, em tempos agregados sob os velhos Louçã/Rosas/Fazenda e agora ditos "sociais-democratas" sob as "meninas" do Rosas. Todos esses neste putinismo agregados aos fascistas, ditos "soberanistas", esses do tipo Tanger, o dirigente do CHEGA em tempos tão peculiar nosso cônsul em Goa - "once a fascist always a fascist" poder-se-ia clamar se não tivéssemos dado o nome de um hitleriano ao aeroporto da capital...
 
Enfim, devaneio, a embrulhar o que foi óbvio: no início da guerra ucraniana fascistas e comunistas ergueram-se a defender a legitimidade do "espaço vital" russo - o argumento nazi então adoptado pela futura professora do ISCTE Mortágua, a "inteligente" do BE. E a maioria da sociedade ergueu-se, irada ou incomodada, em defesa da agredida Ucrânia, tal como aconteceu nas congéneres democracias. Desde então seguiu o apoio possível (apesar das trapalhadas ministeriais - vão os tanques diz o MNE, não vão os tanques diz a ministra da Defesa, enfim, quem conheça os ministros que lhes pergunte o que andam para ali a fazer...). O país aderiu, Milhazes mandou os russos para o "caralho" e virou ícone, cerrámos fileiras com as democracias ocidentais contra o imperialismo russo e nisso até aturámos os generais comunistas e os académicos "alterglobalistas" e "abissais" a defender Putin nas tvs e jornais "de referência". "Comme il faut" na democracia, dar a voz pública aos trastes...
 
Isso implicou as possíveis sanções económicas (dada a dependência energética) - mas ainda assim imensamente maiores do que o então foi alvitrado. Cesuras político-diplomáticas. Enorme apoio militar a Kiev, e económico. E ruptura de relações desportivas, pois estas entendidas como vector de propaganda nacionalista. E tudo isso implicando, por cá e alhures, inflação, empobrecimento, convulsão política e aquecimento intelectual. No início também uma, compreensível mas logo combatida, xenofobia: alguns factos de "cancelamento" ou censura a vultos russos. Logo revertidos, no entendimento que as objecções a ter não são contra os cidadãos russos (muitos em êxodo após as mobilizações generalizadas). Mas sim contra o Estado de Putin, os seus grandes apoiantes (ditos "oligarcas") e as empresas russas. Tudo isso são os custos da luta (guerra) pela democracia, por defeituosa que esta seja e surja aqui e ali.
 
Mas entretanto, hoje, 31 de Janeiro, quando avançamos para um ano de guerra inaceitável, o Sport Lisboa e Benfica, instituição de utilidade pública e sempre sequiosa do apoio estatal, anuncia o segundo acordo com clubes moscovitas para transferência de jogadores de futebol. Não há um ruído na imprensa, não há um desconforto governamental, um remoque partidário. Nem um protesto dos "democratas" benfiquistas. A direcção do popular clube vira as costas ao Estado, à sociedade, no afã de uns milhõezinhos de euros naquela economia paralela do jogo. Ou seja, a escumalha da bola faz o que quer no país de opereta... E os nossos líderes nada mais anseiam do que o convite para os camarotes, enquanto os "colunistas" nada mais querem do que o fakeorgasm do Marquês...
 
E se isto não é um sinal da derrota democrática então não sei do que precisais. Eu reencho-me de Queen Margot e ouço o velho "Safe European Home". Porque o punk não são os putinistas identitários...
 

London Calling_Safe European Home/The Clash in Japan1

Como Hitler, Mussolini ou Ceausescu

Pedro Correia, 24.01.23

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A Ucrânia é um Estado soberano, livre e independente. Sujeito há oito anos à agressão russa, que começou em 2014 com a invasão e anexação da Crimeia em flagrante violação do direito internacional.

O agressor-mor, entrincheirado no Kremlin, criou quatro "bantustões" na Ucrânia, violando grosseiramente a Carta da ONU e rasgando o compromisso assumido por Moscovo no Memorando de Budapeste em que reconhecia a integralidade das fronteiras do país vizinho e até se comprometia a defendê-las.

Estes bantustões colocam o regime do carniceiro de Moscovo ao nível do repugnante regime racista que vigorou durante 30 anos na África do Sul.

 

Faz hoje onze meses, o carniceiro ordenou à soldadesca russa que invadisse e ocupasse no mais curto prazo possível Kiev, destituísse os dirigentes ucranianos e liquidasse Volodimir Zelensi.

Provocou uma carnificina: mais de cem mil mortos militares e pelo menos 20 mil civis - incluindo os 45 assassinados há dias, quando um míssil russo destruiu um prédio de apartamentos em Dnipro. Fora os feridos de longa duração e os incapacitados permanentes, do ponto de vista físico e psicológico.

O PIB da Ucrânia caiu 35%.

Mesmo com o país devastado, eles resistem. Defendem com denodo a sua terra alvo da cobiça e da rapina. Recusam ser escravos de Moscovo.

 

Enquanto a besta sanguinária que orquestrou o morticínio, ao fim destes onze meses, nunca se aproximou da frente mais de 80 km. Foi só uma vez e voltou de imediato a Moscovo, tipo toca-e-foge.

"Herói" da treta, idolatrado em Portugal por comunistas e fascistas. Vai acabar como Hitler, Mussolini ou Ceausescu.

Dez meses depois

Pedro Correia, 24.12.22

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Faz hoje dez meses. Nesse dia da infâmia - parafraseando o que Roosevelt chamou ao cobarde ataque nipónico à esquadra norte-americana em Pearl Harbor - o carniceiro russo, digno herdeiro de Estaline, mandou avançar os seus peões, armados até aos queixos, para invadir, anexar e retalhar a Ucrânia. Arrogando-se um direito de pernada próprio de um senhor feudal.

Queria amputar o país vizinho, derrubar as instituições eleitas pelos ucranianos, assassinar o Presidente sufragado pelo voto, ocupar Kiev num par de semanas, transformar o país invadido num Estado-fantoche, idêntico à Bielorrússia. Falhou todos estes objectivos. E fez agigantar Volodimir Zelenski, transformando-o num herói à escala planetária, justamente destacado como figura do ano que agora acaba pela revista Time. O homem que não desertou, não se poupou ao sofrimento em solo ucraniano, não abandonou os compatriotas à sua sorte. 

Enfurecido, o carniceiro mandou matar, mutilar, massacrar. Cidades como Mariúpol e Butcha, arrasadas sem um vestígio de compaixão, ficam como símbolos desta devastadora agressão que viola todas as regras do direito internacional, começando pela Carta da ONU, que teve a Rússia como uma das signatárias originais. Balanço trágico: mais de cem mil mortos e cerca de 15 milhões de desalojados na Ucrânia, além de danos patrimoniais incalculáveis.

Dez meses depois, mantém-se a fúria homicida da besta formada nos sinistros serviços secretos da extinta União Soviética. Com ogivas, mísseis e drones agora dirigidos sempre a alvos civis, na quebra das redes de abastecimento de água, energia e mantimentos. Para condenar o povo ucraniano à morte pela fome, pela sede, pelo frio.

O carniceiro continua a menosprezar o espírito de resistência do povo vizinho, que não se verga ao invasor. Ucranianos de todas as idades e condições sociais, mobilizados pela voz de comando de Zelenski, enfrentam os canhões com exemplar coragem física e moral. Mostrando ao mundo que até podem morrer de pé, mas jamais viverão de joelhos.

A besta não passará.

Pequenos fantasmas nos nossos tempos

João Pedro Pimenta, 29.11.22

As semanas mais recentes trouxeram-me um ligeiro travo aos anos trinta e quarenta.

As imagens da libertação de Kherson, das ruidosas manifestações de alegria dos seus habitantes e da visita de Zelensky trouxeram-me de imediato à memória as da libertação da França, em 1944, e da chegada de De Gaulle a Paris, recriada na tela e com alguns testemunhos fotográficos. O presidente da Ucrânia tem sido comparado a Chrchill, mas naqueles momentos transfigurava-se mais como a voz da liberdade e da libertação dos ucranianos, aquele que parecia perdido na início da invasão mas cujas palavras soam a esperança diante do temível Inverno que está a chegar. E tal como a libertação de Paris não significou o fim da guerra, a de Kherson está longe do termo do conflito.

 

Entretanto decorre o criticado Mundial do Qatar (embora seja exagero chamar-lhe "o Mundial mais controverso de sempre", se recordarmos o que decorreu na Argentina em 1978, sob o infame regime militar que despejava corpos para o mar a partir de aviões, e que até levou à história, apesar de falsa, de que Cruyff não comparecera em sinal de protesto). Os estádios no meio do deserto tiveram a autoria, entre outros, como Zara Hadid, de Albert Speer. Sim, o filho com o mesmo nome do célebre arquitecto de Hitler e co-autor do estádio Olímpico de Berlim. O descendente não seguiu definitivamente as preferência políticas do pai, apesar de algumas controvérsias, explanadas neste artigo da New Yorker. Mas não deixa de causar algum frisson que um evento tão criticado pelo tratamento local dos Direitos Humanos tenha tido o dedo do filho, com o mesmíssimo nome, de um dos autores dos Jogos Olímpicos de Berlim e do projecto da demencial Germania.