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Delito de Opinião

Reflexões europeístas (5)

Pedro Correia, 29.05.24

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Ignoro se haverá ainda algum debate extra entre os candidatos dos diversos partidos à eleição do próximo dia 9. Mas se houver deixo aqui dez sugestões de temas europeus que justificam discussão.

 

1. A Turquia deve entrar na União Europeia? Antes ou depois de solucionada a questão de Chipre? Quanto custará a adesão turca a cada contribuinte português?

 

2. A Ucrânia deve tornar-se membro da União Europeia na próxima década? Em que moldes? Até que ponto as regras actuais de apoio comunitário ao sector agrícola podem alterar-se com a entrada na UE da maior potência cerialífera do continente?

 

3. O Pacto de Estabilidade e Crescimento deve ser revogado? Este pacto potenciou os efeitos da crise nos países da União Europeia?

 

4. Deve ser aprovada uma nova Agenda de Lisboa, que privilegie as políticas sociais e a criação de emprego?

 

5. Que política de imigração deve adoptar a União Europeia? Faz sentido reequacionar os critérios que levaram à adopção do Espaço Schengen?

 

6. Deve ser renovada a Aliança Transatlântica, pilar das relações entre a UE e os Estados Unidos? Faz sentido acelerar a criação de um exército europeu em prejuízo da cooperação militar com Washington?

 

7. A UE deve continuar a reger-se pelo princípio da intergovernabilidade ou privilegiar o reforço dos poderes efectivos do Parlamento Europeu?

 

8. Se parcelas dos actuais Estados membros declararem a independência -- na sequência de um referendo, como já ocorreu na Escócia, ou de modo unilateral, cenário que persiste na Catalunha -- esses novos países receberão luz verde para se tornarem num curto prazo membros da UE? Que limites devem ser estabelecidos ao tradicional princípio da inviolabilidade das fronteiras?

 

9. António Costa pode vir a ser um bom presidente da Comissão Europeia? 

 

10. A União Europeia deve ampliar-se para lá do perímetro do continente europeu? E até onde?

 

Gostava de ver estes temas debatidos pelos cabeças-de-lista. Até para perceber se cada um deles tem um pensamento minimamente estruturado a propósito destas questões.

Em vários casos, apostaria que não. Mas admito estar enganado.

O drama esquecido dos arménios

João Pedro Pimenta, 21.10.23

O Pensamento da semana passada relembrou, por uns momentos, o que se passa no Nagorno-Karabakh. Com os dramáticos acontecimentos em Israel, mesmo o conflito entre a Ucrânia e a Rússia passou para segundo plano, quanto mais o dos cumes das montanhas do Cáucaso.

E precisamente, o Cáucaso é das regiões a que mais limpezas étnicas tem assistido no último século. Se os Balcãs são de tal maneira divididos e confusos que até emprestaram o seu nome a uma expressão geopolítica, então aquela região montanhosa encravada entre os velhos impérios e actuais potências da Rússia, Turquia e Irão e entre os mares Cáspio e Negro é-o ainda mais. Sob o domínio dos russos coexistem inúmeros povos e línguas, como os chechenos, os circassianos (estes dois, sobretudo o segundo, foram alvo de violentos crimes e até mesmo de tentativa de genocídio por parte dos russos), os tártaros, os ossetas, os calmuques - que vivem na única região de maioria budista na Europa - e tantos outros. Abaixo, as nações independentes: Geórgia (com a Abecásia), Arménia e Azerbaijão).

O que se passou no Nagorno-Karabakh recordou-me este post que aqui escrevi há ano e meio e que relata outra limpeza étnica naquela região que pouca comoção trouxe ao Mundo. Na altura, os georgianos foram mortos ou expulsos da território da Abecásia, onde em certas partes constituíam a maioria. Agora, talvez com menos violência e menos vítimas, os arménios são forçados a deixar aquela região que a tantos combates ferozes tem assistido nas últimas décadas e a extinguir com efeitos a partir de Janeiro a não reconhecida República de Artsakh.

Atribuir "razão" territorial e política a qualquer um dos povos é tarefa complicada. Talvez se tenda, nos países ocidentais, a simpatizar-se mais com os arménios. De facto, a constituição daquele enclave parece ser mais um dos artifícios típicos na URSS para se dividirem povos e territórios e impedir assim a invocação das suas consciências nacionais e que tantos problemas tem causado desde a sua implosão, de que são exemplo as sucessivas guerras no Cáucaso russo e georgiano.

Seja como for, e mesmo não reconhecendo a soberania daquele território, há que reconhecer a limpeza étnica levada a cabo pelo Azerbaijão. Se a Arménia tinha saído vitoriosa nos anos noventa, em 2020 os azeris atacaram de surpresa, bem apetrechados com material do seu vizinho e mentor, a Turquia, sobretudo com drones que foram de grande utilidade e que serviriam de treino para a posterior guerra na Ucrânia, e obtiveram uma vitória rápida e retumbante, que lhes permitiu cercar totalmente o território de Artsakh, a começar pelo corredor de Lachin, que ligava este à Arménia, que ficou a cargo de uma força de paz russa.

Sabe-se o que aconteceu depois: as forças do Azerbaijão lançaram em Setembro deste ano uma ofensiva que rapidamente ocupou aquele território e desarmou as de Artsakh, isoladas e sem a possibilidade de reforços da Arménia. Esta, sem auxílio e sem poder, por sua vez, ajudar os arménios de Artsakh, teve de aceitar um cessar-fogo e as suas consequências. Pelo meio, ainda houve um ataque a uma viatura militar russa, que resultou na morte dos seus ocupantes. A Rússia, principal membro da OSTC, uma organização militar a que também pertence a Arménia, reagiu com apatia e escusou-se a defender a sua correligionária, em grande contraste com o apoio da Turquia ao Azerbaijão.

Nagorno-Karabakh - The Latest News from the UK and Around the World | Sky  News

Desde então, a grande maioria da população arménia do Nagorno-Karabakh/Artsakh abandonou o território, temerosa do novo ocupante. A caravana de cerca de uma centena de milhar de pessoas que fugiu rumo à Arménia recordou as grandes levas de trocas de povos do pós-II Guerra. O Azerbaijão conquistou aquele território e olha agora para o que o separa do seu enclave de Naquichevan, na fronteira com o Irão (e a única parcela de território que confina com a aliada Turquia), com mal disfarçada ambição, o que pode significar novo conflito no horizonte.

Map of the recent developments in the Armenia - Azerbaijan conflict :  r/MapPorn

A Arménia, com pouco apoio no Ocidente, salvo o da França, onde existe uma importante comunidade de arménios, e sobretudo sem o suporte da Rússia, que seria o seu protector mas que não quer entrar em conflito com a Turquia, vê-se assim ameaçada de novo e começa a olhar de soslaio para a UE. E a Turquia de Erdogan marca pontos estratégicos e consegue fazer a Rússia acobardar-se. Esta provou que não só não é de confiança para com os que deveriam ser os seus aliados (um aviso para África?), já que nem os membros da própria organização de defesa podem contar com o seu auxílio, como mostra as suas limitações bélicas. Tão empenhada está na Ucrânia que não se pode estender a outras paragens, a não ser com mercenários.

E assim, no espaço de um mês, voltamos a ver os dois povos que sofreram os piores genocídios do século XX a serem butalmente atacados ou sujeitos a limpeza étnica por expulsão: os judeus e os arménios. Os ciclos da História repetem-se com arrepiante dramatismo.

Travar os turcos

João Pedro Pimenta, 31.10.20
A avaliar por algumas leituras rápidas, o culpado destes casos de terrorismo que ocorreram em França nos últimos dias é Emmanuel Macron devido às suas declarações. Só que Macron não incitou ninguém à violência; limitou se a dizer o que devia ser dito: que aquele país tem regras, que não podem ceder à violência de fanáticos e que quem não gostar de viver naquela sociedade tem de se sujeitar às leis vigentes, dentro do sistema democrático e da liberdade de expressão que este concede.
 
Se alguém deve ser condenado é em primeiro lugar Recep Erdogan, um dos maiores incendiários do nosso tempo. Só este ano já enviou tropas para a Líbia para proteger a sua facção, reconverteu Santa Sofia, outrora a maior igreja da cristandade e nas últimas décadas um museu, em mesquita, apoiou o Azerbaijão na guerra contra a Arménia na questão do Nagorno-Karabakh invectivando os arménios de forma inaceitável (um chefe de estado turco a dizer coisas semelhantes aos arménios equivale à chanceler alemã a insultar judeus) e agora diz que Macron tem "problemas mentais" e apela ao boicote à França; ou seja, a França é atacada no seu território por extremistas gritando "Alá Akhbar"e ainda recebe ameaças deste fulano.
Relembre-se que Erdogan já tinha um extenso currículo com a repressão aos curdos, a participação na guerra da Síria (onde atacou mais os curdos que o Daesh, por vezes até favorecendo este nos ataques que realizava às YPG) e a reacção à tentativa de golpe de estado de 2016 com a prisão de milhares de pessoas. Tentou fazer comícios às populações emigrantes turcófonas em países europeus a quem, perante a evidente recusa, acusou de serem "nazis", etc, etc.
Por importantes que sejam as relações comerciais da União Europeia com a Turquia, já é tempo de pôr esta sinistra criatura no seu lugar e de chamar os bois pelos nomes. Se assim não for, o sultão de opereta vai continuar a insultar e a incendiar impunemente, aproveitando-se de qualquer fraqueza para estender a sua influência neo-otomana. Agora talvez se perceba porque é que a Grécia tem uma fatia tão grande do PIB reservada à defesa.
 

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O fim da Turquia secular.

Luís Menezes Leitão, 13.07.20

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Por muito que os livros nos revelem a situação de um país, a melhor forma de o conhecer é visitando-o. As minhas impressões sobre a Turquia resultavam do livro de Samuel Huntington, O choque das civilizações, que curiosamente a qualificava como um Estado dilacerado em termos civilizacionais, uma vez que tinha destruído todo o conhecimento que possuía, quando Ataturk determinou o uso do alfabeto latino em vez do árabe, impedindo as novas gerações de ter acesso à cultura turca antiga. O autor referia que o grande movimento histórico do final do séc. XX era o ressurgimento islâmico, mas deixava a Turquia de fora, devido à sua laicidade.

Visitei a Turquia em 2014 e o meu conhecimento sobre o país alterou-se completamente. Explicam-me que a alteração do alfabeto era irrelevante, uma vez que no início do séc. XX quase toda a população era analfabeta e o alfabeto latino adequa-se muito melhor à língua turca, pelo que facilitou a alfabetização. E explicam-me também que Ataturk sabia perfeitamente que a população turca era maioritariamente islâmica, pelo que deixou três instituições para salvar a laicidade do Estado: as Universidades, os Tribunais e o Exército. Seriam essas instituições que, após a sua morte, manteriam a Turquia laica.

Quando se entra em Santa Sofia em Istambul, fica-se maravilhado com a cúpula e com a recuperação dos frescos bizantinos, escondidos durante tanto tempo. Aprendemos, aliás, que o Império Bizantino, sobre o qual nos falavam no liceu, nunca tinha existido, pois foi sempre designado por Império Romano até ao seu derrube por Mehmet II em 1453, um drama tão grande para o Ocidente que a data ficou a marcar o fim da Idade Média. Mas Santa Sofia sobreviveu, tendo sido convertida em Mesquita, até que Ataturk a laicizou, convertendo-a num museu.

Ataturk fez o mesmo a outras Santas Sofias na Turquia, designadamente em Trabzon, que tentei visitar. Totalmente impossível, uma vez que tinha voltado a ser convertida em Mesquita. Apenas podemos espreitar à porta, estando as paredes interiores completamente cobertas por panos brancos que não nos deixam ver as pinturas. Apenas de uma porta lateral é possível ter um vislumbre dos magníficos frescos que os panos brancos tapam. O guia compreende a nossa desilusão, mas diz-nos para nos prepararmos pois, cedo ou tarde, o mesmo iria acontecer à Santa Sofia de Istambul: "A população islâmica não permite que um edifício consagrado como mesquita deixe de ser uma mesquita. Foi assim em Trabzon e vai ser assim em Istambul. Vai ser muito mau para o nosso turismo, mas é um movimento imparável". Na altura pensei que não fazia sentido essa previsão, até porque em Istambul existe ao lado de Santa Sofia a magnífica Mesquita Azul, mas pelos vistos enganei-me.

Em qualquer caso, isto significa que Erdogan acabou por destruir a herança de Ataturk. Depois de dominar todas as instituições que este tinha deixado para conservar a laicidade do Estado, destrói agora o principal símbolo internacional dessa laicidade. Santa Sofia pode continuar a ter o aspecto imponente de fora, mas o deslumbre que tínhamos ao entrar nela está definitivamente perdido.

Ser turcófilo passou de moda

Pedro Correia, 13.06.19

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1

Ao contrário do que por vezes se imagina, a passagem do tempo costuma ser clemente para os políticos. Se assim não fosse, estaríamos em 2019 a escrutinar todos aqueles que durante anos andaram por cá a defender com fervor a integração da Turquia na União Europeia. 

Não precisamos de recuar muito. Na campanha para as eleições europeias de 2009, este tema esteve em debate. Com os cabeças de lista do PS e do PSD, Vital Moreira e Paulo Rangel, convergindo no apoio à adesão turca.

«A União Europeia só teria a ganhar com a integração de um país muçulmano e laico», declarou Vital Moreira durante essa campanha. Enquanto Paulo Rangel deixou claro: «Devemos apoiar os esforços de negociação entre a Turquia e a UE.»

 

2

Ainda mais longe neste entusiasmo andou o ex-Presidente da República Cavaco Silva. Que aproveitou precisamente uma visita de Estado realizada há dez anos à Turquia para garantir o «apoio integral de Portugal» no processo de adesão, possibilitando que a maior potência da Ásia Menor se tornasse «membro pleno» da UE.

Indiferente ao facto de se tratar de um país com mais de 70 milhões de habitantes, aliás na esmagadora maioria residentes fora do continente europeu (em termos geográficos, o centro-sul/sudeste da Trácia é a única parcela de território turco que faz parte da Europa).

Indiferente também à inevitável pressão demográfica desta adesão, que conduziria à quebra de salários e rendimentos dos trabalhadores assalariados no espaço comunitário.

 

3

Havia já suficientes sinais de alerta para que tais entusiasmos fossem travados. Desde logo, a ocupação ilegal de parte da ilha de Chipre por forças turcas, à revelia do direito internacional. Depois, o contínuo desrespeito da minoria curda residente em solo turco. Sem esquecer a preocupante aproximação do partido do primeiro-ministro (agora Presidente da República) Recep Erdogan ao integrismo islâmico.

Sabemos o que aconteceu desde então: a Turquia tornou-se um Estado autoritário, onde se multiplicam as violações dos direitos fundamentais dos seus cidadãos - incluindo severas restrições às liberdades de expressão, de reunião, de manifestação e de imprensa, acentuadas desde a alegada tentativa de golpe ocorrida em 2016, que serviu de pretexto a Erdogan para uma gigantesca purga no aparelho de Estado, além do silenciamento de incontáveis vozes incómodas no jornalismo turco. Enquanto se vai diluindo o regime laico implantado em 1923 por Ataturk. 

 

4

Tudo isto já é suficientemente grave com a Turquia fora da UE. Agora imaginemos se as teses turcófilas dos generosos políticos portugueses tivessem prevalecido dez anos atrás, escancarando as portas a Ancara: haveria hoje uma séria deriva ditatorial no segundo país mais populoso do espaço comunitário (logo após a Alemanha).

Felizmente os desígnios de Erdogan foram travados pela sábia Angela Merkel e pelo arguto Nicolas Sarkozy, que vetaram a adesão. Felizmente também para alguns políticos cá do burgo, a nossa memória colectiva é muito curta: cada vez somos menos com memória suficiente para pedir-lhes contas do que disseram e fizeram.

Duas eleições no Domingo

Alexandre Guerra, 28.03.19

Duas eleições vão realizar-se este Domingo e, por razões diferentes, são de enorme importância para a Europa. Na Turquia, pela primeira vez após os acontecimentos dramáticos de Julho de 2016, que originaram uma autêntica purga por parte do regime de Recep Tayyip Edorgan, vão decorrer eleições locais, numa altura em que aquele país atravessa uma recessão económica e em que a contestação ao sistema político é mais intensa do que nunca. Ao ponto do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan, em coligação com os nacionalistas do MHP, poder perder Ancara e Istambul para a Aliança Nacional, um bloco composto pelo principal partido da oposição, o Partido Republicano Popular (CHP), e pelo Good (IYI), uma formação partidária de direita.

Perante este cenário, a estratégia do AKP tem passado pela acusação à Aliança Nacional de estar a cooperar com o Partido Democrático Popular Curdo (HDP) que, para as autoridades turcas, não é mais do que uma ala política do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), tida como uma organização terrorista. O AKP tem tentado ainda ligar a Aliança Nacional ao movimento Fethullan Gulen que, supostamente, diz o Governo, terá estado por detrás da tentativa do golpe de Estado de há quase três anos.

Embora tenha vencido as presidenciais do ano passado com poderes reforçados, Erdogan precisa de um resultado politicamente robusto – que passará sempre por manter Ancara e Istambul –, para preservar a sua aura de invencibilidade, de modo a evitar as tão populares revoltas da “rua” ou tentações de assalto ao poder, como aquela que houve em 2016 (dizem as teorias da conspiração que o golpe terá sido provocado pelo próprio Erdogan para legitimar uma “limpeza” a vários níveis do Estado).

Não havendo sondagens disponíveis, tem-se falado bastante na possibilidade de Ancara e Istambul passarem para as mãos dos partidos da oposição, uma dinâmica que tem sido aproveitada pelo líder do CHP, Kemal Kılıçdaroğlu, que já fala em “landslide victory”. Para já, está-se apenas no campo da especulação e, apesar de serem eleições locais, no Domingo logo se verá se o povo turco dará um sinal de alarme ao Presidente Erdogan ou se, por outro lado, legitimará a sua política de governação.

Nesse mesmo dia, mais de 35 milhões de ucranianos elegíveis para votar estarão a escolher um novo Presidente, entre cerca de 40 candidatos. Serão as primeiras eleições a nível nacional desde as presidenciais e parlamentares de 2014. Pelo meio, a Ucrânia e a Rússia mergulharam numa profunda crise diplomática e militar, com consequências territoriais e políticas bem evidentes. Num país que viu perder parte do seu território para a Rússia e que se envolveu num conflito em que morreram 13 mil pessoas, um dos principais temas destas eleições tem a ver precisamente com o relacionamento com Moscovo. Entre os principais candidatos, incluindo o actual Presidente Petro Poroshenko, a posição é clara: aproximação à NATO e à UE. É também essa a intenção da antiga primeira-ministra Yuliya Tymoshenko, assim como do candidato surpresa e muito bem colocado nas sondagens, Volodymyr Zelenski, uma estrela televisiva que está a beneficiar da sua popularidade. No entanto, existem nuances entre estes três candidatos.

Com Poroshenko dificilmente haverá qualquer aproximação a Moscovo, sendo pró-UE e NATO, já Tymoshenko, também pró-ocidente e um dos principais rostos da Revolução Laranja de 2004/5, poderá facilitar um desanuviamento nas relações entre Kiev e Moscovo. Pelo menos no passado, a antiga chefe de Governo mostrou bastante proximidade e até empatia com o Presidente russo, Vladimir Putin, chegando inclusive a suscitar alguns boatos na imprensa sobre um possível "affair". Más línguas, certamente. Quanto a Zelenski, é uma incógnita, visto ser um estreante nas lides políticas, mas nada indica que seja um radical.

Perante isto, não é de estranhar que Moscovo esteja fortemente empenhado no condicionamento destas eleições, nomeadamente através de operções subversivas cibernéticas e campanhas negras nas redes sociais. São várias as evidências dessa intrusão, que, aliás, não causam qualquer estranheza, se se tiver em consideração que a Ucrânia ficou sem várias partes do seu território de forma hostil para a Rússia: a península da Crimeia e as regiões de Donetsk e Luhansk. É muito possível que a vitória recaia num destes três candidatos, pelo menos as sondagens assim o indicam, sendo que para o Kremlin, provavelmente, Petro Poroshenko será aquele que menos interessa. Num mundo e numa Europa em aceleradas mudanças face há uns anos, é bem possível que entre o comediante Zelenski e a bela Tymoshenko, Putin, desta vez, prefira ter como interlocutor um cómico. No fundo, seria apenas mais um a juntar-se ao clube dos governantes.

Notas (mais ou menos) soltas sobre a Turquia

Diogo Noivo, 26.06.18

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I. Tal como um pêndulo, o modo como a Turquia encara a Europa oscila entre dois extremos. De um lado, a Europa ameaçadora e cínica, pejada de preconceitos contra o povo turco, apostada em explorar as debilidades e as crises do país. Do outro lado, a Europa enquanto vocação, enquanto modelo político, económico e cultural admirável e que é imperativo adoptar. Tem sido assim pelo menos desde o início do século XX. Porque a política tem leis próprias, que não se submetem às da física, em diversos momentos da história contemporânea o pêndulo esteve nos dois extremos em simultâneo.

De facto, e apesar de ser um lugar-comum descrever a Turquia como um Estado entre dois mundos, Ocidental e Oriental, democrático e autoritário, laico e religioso, a verdade é que a vida política do país é feita de contradições e paradoxos, fruto de um percurso político e social invulgarmente rico e dinâmico, onde as sucessivas rupturas – muitas vezes sob a forma de golpes de Estado – disfarçam linhas de continuidade imperturbáveis.

 

II. A muito criticada deriva autoritária de Erdoğan não é inovadora. Assenta em procedimentos e medidas de um reportório que governa o país de forma intermitente desde a década de 1950, alternando momentos de liberalização política e económica com fases de estatismo, de corporativismo e de repressão de liberdades individuais. Porém, no passado, as detenções arbitrárias e multitudinárias, as alterações constitucionais, o ataque à liberdade de imprensa e às universidades, além de outras medidas de corte autoritário, foram impostas pelo “Estado paralelo” – termo usado para designar uma aliança informal entre forças armadas, poder judicial e burocracia pública, que se arroga a missão de defender os princípios fundadores da República da Turquia, interferindo com frequência na arena política sempre que entende que esta se afasta do perímetro do “republicanismo” criado por Mustafa Kemal Atatürk. Por outras palavras, um “Estado paralelo” jacobino que desfez resultados eleitorais (democráticos), impôs estados de emergência e limitou direitos fundamentais.

 

III. Por razões várias, Erdoğan começou a desmantelar o "Estado paralelo". No entanto, em vez de o substituir por instituições sólidas e independentes, optou por concentrar poder e entregar-se a ajustes de contas, empurrando a Turquia para um abismo autoritário inegável. 

 

IV. A aparente predominância do Islão na arena política também não é da lavra do AKP de Erdoğan, mas sim a consequência de uma política de islamização do kemalismo levada a cabo pelo “Estado paralelo” após o golpe militar de 1980 – uma forma de Islão político designada como “síntese turco-islâmica”, baseada numa mistura por vezes incongruente de nacionalismo étnico, revivalismo otomano, Islão sancionado pelo Estado, e o republicanismo laico de Atatürk. A islamização do país às mãos de Erdoğan é um mito. O Presidente turco limita-se a dar continuidade a uma tendência que o precede, intensificando e afrouxando o pendor “islâmico” de acordo com as circunstâncias. 

 

V. O AKP é o partido com mais tempo de permanência no poder desde que se celebram eleições livres na Turquia. Erdoğan, líder cuja imagem se confunde com a do próprio partido, superou Atatürk em longevidade no exercício de funções políticas, o que é sintomático do seu poder e relevância públicas.

No passado domingo, Recep Tayyip Erdoğan foi reeleito presidente à primeira volta e o AKP, que liderava uma coligação partidária às legislativas, obteve a maioria no Parlamento. Esta vitória faz com que entrem em vigor as alterações constitucionais aprovadas em 2017, das quais decorre um reforço dos poderes presidenciais à custa do parlamento. Conhecidos os resultados, Erdoğan descreveu-os como a consolidação de uma “transição” –  o Presidente parece querer emular Atatürk na fundação (no caso, refundação) do país. Hoje tem poder para tal. Más notícias. 

Tão subtil como um choque frontal entre dois A340

Diogo Noivo, 19.12.16

Mais do que prestarem um serviço público, as companhias áreas de bandeira foram instrumentos da política externa dos Estados. A Turkish Airlines, certamente por excesso de zelo, levou a coisa um pouco mais longe e assumiu o papel de veículo de propaganda do regime liderado pelo presidente Recep Tayyip Erdoğan. E fê-lo com a subtileza e com a elegância de um choque frontal entre dois Airbus A340.
Mão amiga – uma expressão lamentavelmente caída em desuso – mostrou-me há umas semanas a revista de bordo da companhia aérea turca. Esta edição apenas existe em turco e, pelo que pude perceber, só está disponível em voos regionais. Junto a este post algumas fotos que fiz a essa publicação, pedindo desculpa pela fraca qualidade das imagens.
Em 1984, Orwell escreveu que quem controla o passado, controla o futuro. Cientes disto e da consequente necessidade de consolidar uma versão oficial da História, a Turkish Airlines diz ao que vem logo na capa e na contracapa. Imagens épicas e com imenso potencial iconográfico dos “protestos pró-democracia”, isto é, das manifestações de apoio ao presidente no momento em que decorria um estranho golpe de Estado, marcam o tom da revista (ver imagem abaixo).

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Um ataque à pátria requer inimigos. Se houver conspiração, tanto melhor. E se essa conspiração tiver ramificações internacionais então é um mimo para a máquina de propaganda. A revista da Turkish resume tudo isto com mestria (ver imagem seguinte). De um lado, fotos das detenções dos golpistas, encabeçadas por uma cronologia dos “factos” – a narrativa não pode ter falhas. Do outro lado, uma infografia onde se explicam as ligações norte-americanas, com o respectivo apoio financeiro e institucional, de Fethullah Gülen, o alegado instigador do golpe falhado.

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Mas há mais. Fotos dos cabecilhas locais do golpe são acompanhadas por uma infografia onde constam as intuições às quais pertenciam e quantos homens de cada uma delas estiveram envolvidos na tentativa de derrube de Erdoğan. Seguem-se obviamente imagens de um presidente corajoso, determinado e sereno a dar uma entrevista à CNN (se for a um órgão de comunicação social estrangeiro sempre dá um ar menos amanhado). Há ainda fotografias de manifestantes pró-Erdoğan à porta de várias embaixadas turcas, nas quais o fotógrafo, socorrendo-se das técnicas de Leni Riefenstahl, faz com que 8 tipos pareçam 80 – mas destas, infelizmente, não colhi imagens.

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Depois de anos submetida a jacobinismo militar, a Turquia atura agora o autoritarismo despudorado do presidente Recep Tayyip Erdoğan. E já não se disfarça. Ao ver esta revista percebe-se bem o interesse de alguns governos em manter as companhias aéreas sob controlo estatal.

O regresso da Sublime Porta.

Luís Menezes Leitão, 11.11.16

Na sua obra The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, de 1996, Samuel P. Huntington previu claramente o risco de uma guerra no séc. XXI em virtude do afrontar das civilizações, de que o Ressurgimento Islâmico estava a ser o factor decisivo. Curiosamente deixava de fora desse Ressurgimento Islâmico a Turquia. Para ele a Turquia, desde que Ataturk a tinha laicizado e abandonado o alfabeto islâmico em benefício do latino, constituía um Estado dilacerado, que tinha destruído o seu próprio passado e consequentemente a sua civilização. Na verdade, o Estado Turco não se via como herdeiro do Império Otomano e, ao adoptar um novo alfabeto, impedia as novas gerações de conhecer todas as obras escritas durante séculos no seu país.

 

Quando visitei a Turquia, disseram-me que essa análise era exagerada. No tempo de Ataturk a população alfabetizada era insignificante, pelo que a mudança de alfabeto não teria tido grande significado e o meu interlocutor considerava o alfabeto latino muito mais adequado à língua turca do que o islâmico. Só que, ao contrário do que Huntington previu, os sinais que surgiam desde a eleição de Erdogan davam a entender que a Turquia não ia ficar de fora do Ressurgimento Islâmico. Efectivamente, hoje na Turquia as velhas igrejas bizantinas estão a voltar a ser mesquitas, como já aconteceu com a Santa Sofia de Trabzon, e receia-se que o mesmo aconteça também com a Santa Sofia de Istambul. Erdogan pode homenagear Ataturk, mas é claramente o oposto dele. E quando anuncia que a Turquia precisa de um Lebensraum, e que os estudantes têm que voltar a aprender o passado otomano, o que está a destruir é a herança de Ataturk e a proclamar o desejo de um regresso ao passado glorioso do Império Otomano. E afinal quem o pode censurar por isso? Se Trump ganhou as eleições americanas com o slogan "Make America Great Again", o que impede Erdogan de proclamar "Make Turkey Great Again"?

 

O problema é que isto significa a guerra total. Basta olhar para o mapa do antigo Império Otomano. Abrange a Síria, onde a Turquia já está envolvida, o Iraque, para onde caminha, e até pode envolver a Crimeia e a Europa Oriental. Quando vejo muito boa gente a contestar os direitos russos sobre a Crimeia, apesar de a população ser esmagadoramente russa, com o argumento de que antigamente o território pertencia aos tártaros, o que está a propor é o regresso da Crimeia à Turquia. Os tártaros fazem parte do grupo dos povos turcos, a propósito. E neste momento nem a Rússia assusta Erdogan, como se viu no episódio do abate do avião russo por caças turcos. A Sublime Porta está de volta e é um facto novo na esfera internacional, onde uma hipótese de guerra generalizada não pode ser descartada.

É por isso que me parece que a derrota de Hillary Clinton nas eleições americanas até pode ter sido positiva na esfera internacional. Hillary Clinton era um falcão assumido com muito pouco bom senso, como se viu por ter deixado alastrar a Primavera Árabe quando era Secretária de Estado. E o facto de ter sido incapaz de gerir a sua própria derrota na noite eleitoral deixa-me sérias dúvidas sobre a sua capacidade de lidar com uma crise internacional com proporções colossais. Porque não tenhamos dúvidas, é para lá que caminhamos.

Intrigante

Alexandre Guerra, 20.07.16

Já muito se escreveu e várias teorias da conspiração emergiram sobre as origens da tentativa de golpe de Estado na Turquia, mas há algo que considero bastante intrigante: morreram mais de 260 pessoas em Ancara e Istambul e ficaram feridas quase 1500, no entanto, nem na imprensa nem na Internet se conseguem encontrar fotografias dessas vítimas ou desses acontecimentos (apenas consegui encontrar duas ou três fotos e nada mais).

 

Numa época em que tudo é registado no momento e divulgado segundos a seguir, não deixa de ser estranha esta escassez de registos visuais das consequências sangrentas nas ruas das duas principais cidades turcas.

 

Do que pude ver, apenas o funeral colectivo das vítimas civis foi amplamente fotografado e divulgado, no qual se vêem alguns caixões com a bandeira turca e um ou outro corpo a ser enterrado, perante a presença de Erdogan, cujas lágrimas que vertia eram questionadas pelo Daily Mail... se não seriam de "crocodilo".

Notas soltas

Alexandre Guerra, 18.07.16

1. Grande ambiente em Amarante, cidade banhada pelo Tâmega, com um dos centros históricos mais bonitos do país, que este fim-de-semana recebeu o Festival Mimo, naquela que foi a primeira vez que esta iniciativa decorreu fora do Brasil. Pena mesmo, foi não ter conseguido ver ontem à noite o concerto de Pat Metheny com o lendário Ron Carter. As autoridades locais e os promotores estão de parabéns.

 

2. Já aqui no Delito tinha falado sobre Kendrick Lamar e este fim-de-semana todos se renderam ao seu brilhantismo no Super Bock Super Rock. Mais do que um músico sofisticado, é também já uma figura influente com uma voz activa na cena social e política americana. 

 

3. Marques Mendes disse ontem que o Governo já tinha enviado para Bruxelas a famosa "carta" para evitar as sanções. Hoje, o Público foi atrás e deu também isso como certo. Como é hábito, os outros meios seguiram. Entretanto, a Comissão e o Governo fizeram saber esta manhã que, afinal, a carta ainda não tinha sido enviada. O documento só seguiu para Bruxelas já quase à hora de almoço desta Segunda. É preciso dizer mais?

 

4. Nem sempre aquilo que parece ser mais evidente corresponde ao que aconteceu. É preciso ainda tempo e mais informação para se perceberem os contornos que envolveram o brutal atentado de Nice e a tentativa de golpe de Estado na Turquia. 

 

5. Hoje, começa um grande show político em Clevelend: a Convenção do Partido Republicano para eleger Donald Trump como candidato formal às eleições presidenciais dos Estados Unidos.

 

6. Em Espanha, Pedro Sánchez devia mostrar mais inteligência e menos egoísmo na leitura dos resultados das duas eleições que já se realizaram naquele país no espaço de seis meses e, no mínimo, devia garantir a abstenção do PSOE e permitir a Rajoy formar Governo.

O golpe que nunca o foi

Diogo Noivo, 18.07.16

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Na passada sexta-feira, mal soube que havia um golpe de Estado em curso na Turquia, apressei-me a enviar mensagens através de uma rede social aos bons amigos que deixei em Istambul. Não esperava respostas instantâneas. Os meses que passei na Turquia ensinaram-me que a internet local é pouco fiável (este “pouco” é simpatia minha). Se é assim em condições normais, era expectável que, com um golpe de Estado a decorrer, o serviço tivesse sido interrompido. Para minha surpresa, recebi três respostas de imediato. Estavam bem, agradeciam a minha preocupação, mas desvalorizavam as notícias. “Isto tem o dedo do Erdoğan”, escreveu um dos meus amigos. “Não te sei explicar exactamente como o fez, mas isto só lhe interessa a ele”. Todos coincidiam na análise. “Conheces bem este país, por isso dispenso-me a longas explicações. Pensa apenas nisto: temos internet, as rádios e as televisões continuam a emitir e todas as estações passam mensagens de apoio ao Presidente”, escrevia outro. “Neste país sabemos bem o que são golpes de Estado. Isto que está a acontecer é uma treta”.

 

Boa parte destas amizades foi forjada em 2007. Conhecemo-nos em Istambul, numa conferência por eles organizada sobre política externa e segurança internacional. Por mero acaso, a conferência decorreu no período de campanha para as legislativas desse ano, o acto eleitoral no qual o Presidente turco (na altura, Primeiro-Ministro) consolidou o seu poder a nível nacional. Quando saem os resultados eleitorais, a frustração destes meus amigos era indisfarçável. Nenhum apoiava Erdoğan, o grande vencedor. Com a excepção de dois comunistas, são todos votantes do partido kemalista CHP. Uns por convicção, outros por oposição ao AKP do então Primeiro-Ministro Recep Tayyip Erdoğan.

Eram opções políticas que não escondiam. Aliás, um dos oradores-estrela que convidaram para a conferência era Çevik Bir, General do Exército turco e figura de primeira linha do 'memorando militar de 1997' (mais conhecido como ‘Golpe de Estado Pós-moderno’) que provocou a queda do Governo islamista liderado por Necmettin Erbakan. Quando o conheci, Çevik Bir era um herói nacional, não apenas pela sua participação nos assuntos internos do país, mas pelos cargos internacionais que desempenhou, nomeadamente o comando das tropas da ONU na Somália, no início da década de 1990. Poucas figuras granjeavam tanto respeito público na Turquia como Bir. Na sexta-feira, um dos organizadores desta conferência dizia-me “temos menos liberdade…se fosse hoje, seria impossível apresentar-te ao General Bir”. Este General turco, detido preventivamente em Abril de 2012 pela sua participação no golpe de 1997, é hoje persona non grata para o regime incumbente.

 

Recep Tayyip Erdoğan, fundador do partido AKP, ex-presidente da câmara municipal de Istambul, antigo Primeiro-Ministro e actual Presidente, tem vindo a desenvolver um assalto metódico ao poder, no qual o islamismo serve um propósito puramente instrumental. Vale para ganhar votos nas zonas não urbanas (a maior parte do país), serviu para meia dúzia de iniciativas de política externa, e pouco mais. O Presidente turco é um tiranete igual a tantos outros, cujo único objectivo é dispor de um controlo absoluto do poder. O resto são adereços.

Escrevia um dos meus amigos: “vais ver, amanhã dirão que o golpe fracassou, o Erdoğan aparece como herói incontestado e com força para executar mais uma purga, e vai exigir mais apoio político aos Estados Unidos da América e à Europa”. Os turcos são dados a teorias da conspiração. Mas a verdade é que não se enganou.

O golpe na Turquia.

Luís Menezes Leitão, 16.07.16

Visitei a Turquia no ano passado, mais precisamente Istambul e Trabzon. É impossível não ficar fascinado com esse país. Istambul, a antiga Constantinopla, capital do Império Bizantino, é uma cidade situada entre dois continentes, onde Santa Sofia, o Hipódromo e o Grande Bazar fazem as delícias dos turistas. Já Trabzon foi a capital do Império Grego de Trebizonda, possuindo ainda imensos marcos da presença bizantina, como a Igreja de Santa Sofia local e, a pouca distância, o Mosteiro de Sumela, quase inacessível, uma vez que fica na escarpa de uma montanha, sendo que no Inverno, altura em que fui, os caminhos ficam cobertos de neve e gelo.

A Turquia tem uma relação peculiar com a Europa. Os europeus aprendem nas escolas que a queda de Constantinopla marca o fim da Idade Média europeia e os turcos queixam-se em consequência de que mesmo depois de 500 anos na Europa ninguém esqueceu essa derrota. Os europeus vingaram-se quando partilharam o Império Otomano, após a derrota na Primeira Guerra Mundial. O Tratado de Sévres, assinado em 1920, reduzia a Turquia a um território minúsculo, tornando Istambul numa zona internacional, e sendo o restante território partilhado entre a Arménia, Grécia, França e Inglaterra, admitindo ainda a criação do Curdistão.

O tratado não foi para a frente porque Mustafa Kemal, depois chamado Ataturk (pai dos turcos), dando como perdido o Império Otomano, quis salvar a Turquia, criando um estado laico e europeu, cuja continuidade seria assegurada pelos militares e pelos juízes. Santa Sofia, então uma mesquita, foi laicizada e a Turquia surgiu como um Estado com pretensões à própria integração europeia.

 

Só que, de há uns anos para cá a influência islâmica tem crescido cada vez mais. O presidente Erdogan é claramente defensor da preponderância islâmica, fazendo a mulher questão de usar o véu islâmico. Por isso, em 2013 a igreja de Santa Sofia em Trabzon foi transformada numa mesquita e hoje os panos brancos cobrem praticamente tudo. Garantiram-me que a Igreja de Santa Sofia em Istambul iria cedo ou tarde ter o mesmo destino, uma vez que os islâmicos não aceitam a laicização de um lugar que já foi mesquita.

 

Durante imenso tempo os militares impediram as tentativas de abandonar a laicidade do Estado na Turquia. Hoje já não o podem fazer. O golpe surgido ontem foi um golpe de militares islâmicos que foram derrotados por um presidente também islâmico. O séc. XXI está a ser claramente o século do Islão e mesmo na própria Turquia a herança de Ataturk está em risco.

Nada está garantido

Pedro Correia, 15.07.16

Ontem à noite, enquanto acompanhava as chocantes notícias da chacina em Nice - que provocou já 84 mortos, incluindo dez crianças, e 202 feridos, 52 dos quais em estado crítico -, ia-me interrogando sobre até quando iremos assistir impávidos a estes contínuos actos de terror. E lembrei as palavras sofridas de Albert Camus reagindo em 1957 ao terrorismo "nacionalista" na Argélia, que matava inocentes em nome da justiça anticolonial. Questionava-se ele (e cito de cor): "Neste momento, em Argel, explode um autocarro. A minha mãe pode ir nesse autocarro. Se isto é justiça, ponho a minha mãe à frente da justiça."
Milhares de vozes, por essa Europa fora, ecoarão esta ideia nas semanas mais próximas, nos meses mais próximos, nos anos mais próximos. Em crescendo, sempre em crescendo. Escrevo estas linhas enquanto se anuncia um golpe de Estado na Turquia - algo inimaginável às portas da Europa, em pleno século XXI, ainda bem há pouco tempo. Tanto quanto me recordo, o anterior golpe militar em Ancara ocorrera em 1980.
Os optimistas antropológicos que concebem a cronologia histórica como uma sucessão de avanços inabaláveis sofrem de acentuada miopia. Se algo a História nos ensina é isto: nunca há conquistas inteiramente adquiridas. Nem precisamos de recuar mais longe do que o sangrento século XX para aprendermos esta elementar lição.

Reflexões europeístas (6)

Pedro Correia, 17.05.14

 

Ignoro se haverá algum debate entre os candidatos dos diversos partidos à eleição do próximo dia 25. Mas se houver deixo aqui dez sugestões de temas europeus que justificam discussão.

 

1. A Turquia deve entrar na União Europeia? Antes ou depois de solucionada a questão de Chipre? Quanto custará a adesão turca a cada contribuinte português?

2. A União Monetária deve prosseguir? E em que moldes? Os efeitos da crise foram ou não agravados pela existência da moeda única? Portugal deve abandonar a zona euro?

3. O Pacto de Estabilidade e Crescimento deve ser revogado? Este pacto potenciou os efeitos da crise nos países da União Europeia?

4. Deve ser aprovada uma nova Agenda de Lisboa, que privilegie as políticas sociais e a criação de emprego?

5. Que política de imigração deve adoptar a União Europeia? Faz sentido reequacionar os critérios que levaram à adopção do Espaço Schengen?

6. Deve ser renovada a Aliança Transatlântica, pilar das relações entre a UE e os Estados Unidos? Faz sentido acelerar a criação de um exército europeu em prejuízo da cooperação militar com Washington?

7. A UE deve continuar a reger-se pelo princípio da intergovernabilidade ou privilegiar o reforço dos poderes efectivos do Parlamento Europeu?

8. Se parcelas dos actuais Estados membros declararem a independência -- na sequência de um referendo, como se anuncia na Escócia, ou de modo unilateral, como pode vir a suceder na Catalunha -- esses novos países receberão luz verde para se tornarem a curto prazo membros da UE? Que limites devem ser estabelecidos ao tradicional princípio da inviolabilidade das fronteiras?

9. Durão Barroso foi um bom presidente da Comissão Europeia? Em caso afirmativo, destacou-se em que domínios? Em caso negativo, qual o seu pior legado?

10. A União Europeia deve ampliar-se para lá do perímetro do continente europeu? E até onde?

 

Gostava de ver estes temas debatidos pelos cabeças-de-lista. Até para perceber se cada um deles tem um pensamento minimamente estruturado a propósito destas questões. Apostaria que não. Mas admito estar enganado.

De cara descoberta e em pé

Pedro Correia, 20.06.13

 

É, desde já, uma das imagens icónicas do ano: um jovem de camisa clara e calças escuras, mãos nos bolsos e olhar fixo num retrato descomunal de Atatürk, o fundador da Turquia moderna. Em silêncio num mundo cada vez mais dominado pela vozearia. Em pé, contrastando com as legiões contemporâneas de cidadãos acomodados. Uma espécie de estátua viva à desobediência civil através do mais inesperado dos gestos: o que contesta a força bruta sem exaltação nem agressividade.

Como se lhe bastasse a força da razão. E basta.

 

Esteve assim na segunda-feira durante oito horas este homem, chamado Erdem Gündüz e coreógrafo de profissão. Na praça Taksim, epicentro de todos os protestos na maior cidade turca.

Uma original forma de luta logo copiada por centenas de turcos - em Istambul, Ancara, Antália e outras cidades. Um exemplo de dignidade, carregado de simbolismo.

 

A imagem substitui todas as palavras neste admirável símbolo de resistência cívica, digno de um Gandhi ou um Luther King.

De cara descoberta e em pé, num orgulhoso desafio às forças da desordem. Outros ocultam-se e rastejam: quem tem força moral não.