...sejamos francos e cinjamo-nos ao que interessa.
A responsabilidade do Governo no estado a que as coisas chegaram é essencialmente uma, que terá uma gravidade tão grande que ficará para a História, se se confirmar, mas deixará o Governo numa posição de bode expiatório se não se comprovar.
Refiro-me à acusação de que o governo Governo (leia-se, Passos e Gaspar) é de uma ortodoxia obstinada, um “lacaio” da Alemanha. Por outras palavras, a ideia de que o Governo não faz ver à troika quão contraproducente é obrigar o país a tomar medidas pró-cíclicas que não sejam de carácter estrutural porque não quer, e não porque não pode.
Infelizmente, a questão de se o Governo tem, ou teve alguma vez, latitude para persuadir as instituições internacionais a mudar de rumo, é algo que permanece (quiçá permanecerá para sempre) envolto em incerteza. Sobretudo, não se percebe se esta ortodoxia aparentemente convicta é um disfarce, no sentido de ganhar leverage sobre os credores, ou antes a própria pele da ideologia do Governo. De uma coisa podemos estar certos: se o Governo tem tentado, de facto, tomar passos nesse sentido, disfarça-o muito, muito bem.
Regressando à premissa (oculta) inicial, a culpa do Governo seria/será apenas esta na medida em que, um, a situação actual não lhe é imputável, dois, um ano e quatro meses não são suficientes para fazer mudanças estruturais na economia, e três, as dificuldades que têm surgido na execução do plano derivam muito mais do modo deficiente como este foi arquitectado pela troika (e da própria conjuntura externa) do que da ineficiência do Governo em cumpri-lo.
Começando pelo último ponto, o plano, como o próprio FMI reconheceu recentemente (antes de, esquizofrenicamente, ter feito ouvidos de mercador em vez de tomar a posição que se impunha), pressupunha que o impacto da austeridade sobre a actividade económica seria muito mais moderado do que aquilo que efectivamente se observou. Esta divergência levou, como se sabe, automaticamente a um aumento da despesa e a uma diminuição da receita do Estado, deitando consequentemente por terra os objectivos estabelecidos no programa.
Relativamente ao segundo ponto, importa compreender que, enquanto as medidas do lado da receita são extremamente fáceis de levar a cabo (basta "primir um botão", se descontarmos a dificuldade, nao despicienda, em diminuir a fuga ao fisco), as políticas de diminuição da despesa do Estado sao extremamente difíceis de implementar. Senão vejamos: i) os contratos das PPP têm que ser renegociados; ii) as fundações estão quase na sua totalidade na prática fora das mãos do Estado; iii) institutos, centros regionais e outros organismos estão, muitas vezes, protegidos constitucionalmente; iv) não são permitidos despedimentos no sector público. Trata-se apenas de alguns exemplos que não consideram sequer o facto de o sector Estado ser hoje uma estrutura mastodôntica, cujas peças é dificílimo mover.
Em suma, é ainda muito cedo para avaliar a capacidade reformadora deste Governo. O escrutínio público deveria concentrar-se, isso sim, em perceber se o Governo está a fazer tudo o que pode no sentido de persuadir as instituições internacionais a estabelecer condições mais razoáveis, que assegurem, sim, a tomada de medidas de carácter estrutural, contudo escudando-as de uma conjuntura que é por inerência exógena.