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Delito de Opinião

O Mundo Às Avessas

Francisca Prieto, 30.11.16

Há um par de anos, a Associação Italiana de Pessoas com Síndrome de Down produziu este filme, com jovens de toda a Europa, como resposta a uma carta que tinha recebido de uma futura mãe grávida, a quem tinham diagnosticado Trissomia 21 no feto.

Recentemente, a Alta Autoridade Para a Comunicação Social Francesa proibiu a passagem do filme por considerar que era ofensivo para mulheres que tivessem abortado bebés com Trissomia 21.

Este é talvez o filme mais realista que já vi sobre o assunto. Não doura a pílula, não diz que é fácil. Limita-se a dizer que ter um filho com Trissomia 21 não é o fim do mundo. E que, apesar das dificuldades, podemos hoje esperar que estas pessoas tenham vidas relativamente normais.

Não compreendo como é que num país onde se grita por toda a parte que se é Charlie, se censura um filme que mostra o lado bom da moeda de uma situação que parece a priori tão difícil.

Esta censura amordaça o direito dos jovens com Trissomia 21 de gritarem que são felizes. Diz-lhes que a sua felicidade pode magoar mulheres que tenham abortado pessoas como eles. Manda-os serem deficientes lá no cantinho deles, sem fazer muito estrilho.

Se isto não é o mundo virado ao contrário, vou ali e já venho.

 

 

 

Portugal arrecada 33 Medalhas nos Primeiros Jogos da Trissomia

Francisca Prieto, 25.07.16

Li esta notícia ontem. Anuncia que Portugal terminou os Primeiros Jogos da Trissomia, em Itália, com 33 medalhas, seis delas de ouro, numa espécie de Olimpíadas que juntaram cerca de 750 competidores de 36 países.

Confesso que a princípio achei que estava no meio de um skech dos Gato Fedorento, tipo ah e tal, agora até os trissómicos portugueses são melhores do que os outros, querem lá ver. Mas depois pareceu-me óbvio o motivo que está por detrás deste sucesso.

Portugal é um dos países mais avançados em termos de integração. Neste momento, virtualmente todas as crianças com trissomia 21 frequentam sistema regular de ensino. E, a par com isso, praticam actividades em ambiente não exclusivo. Lá vão para a natação, para o judo, para os escuteiros, para o pingue-pongue, para a ginástica, ou seja lá para onde for, treinar em conjunto com crianças perfeitamente normais.

Isto torna a fasquia alta. Faz com que cada um deles, não obstante as suas dificuldades, se paute pela normalidade.

E este ambiente, que só é possível porque quer os pais, quer os treinadores, acreditam que eles são capazes, faz com que consigam realmente superar qualquer expectativa. É este ambiente que faz deles campeões.

Na maior parte dos países, mesmo nos mais avançados, estas crianças são colocadas em ambientes exclusivos. É perfeitamente defensável dizer que há vantagens nessa opção: trabalham com professores mais preparados, fazem desporto adaptado às suas dificuldades e convivem na maior parte do seu tempo com os seus pares. Mas, do meu ponto de vista, são menos desafiados. É como se criássemos escolas para crianças tímidas para não correrem o risco de sofrerem bullying. Seria certamente mais confortável, mas muito menos enriquecedor na preparação para a vida.

Como tenho um projecto de vida para a minha filha, que passa por muito mais do que assumir a sua deficiência e cruzar os braços, defendo ferozmente a integração.

Quero para ela o que quero para os outro filhos: que seja autónoma e feliz. Sei que, no caso dela, a rota é diferente e que vai tendo de ser adaptada. Mas tenho a certeza de que se não a puser a olhar para cima, ela não vai saber onde tem de chegar.

 

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Mau Humor

Francisca Prieto, 30.06.16

Hoje foi dia de andar para aqui de estômago embrulhado numa difícil digestão daquelas que só as polémicas nas redes sociais são capazes de provocar.

Ora um rapaz humorista, de nome Diogo Faro, resolveu escrever uma crónica na revista Visão onde, divagando no formato dicotómico a que Miguel Esteves Cardoso brilhantemente nos habituou, abordou a temática das idas à praia dos Betos versus os Mitras.

A crónica até podia ter graça, mas não tinha lá assim muita. Repleta de lugares comuns e até de algumas incongruências, avançava pelas linhas fora ridicularizando os Lourenços versus os Fábios e as sanduíches de peru sem glutén por oposição aos papo-secos mistos e por aí fora.

Tudo isto passaria ao lado, se não houvesse pelo meio uma tirada infeliz em que o autor considerou hilariante comentar que os betos se apresentavam na praia com as suas grandes ninhadas, onde muitas vezes constavam crias com trissomia 21 que as mãe não afogavam à nascença porque ficavam óptimas nas fotos da família.

Defendo há muito tempo que não há fronteiras para o humor, excepto as do nível da graça. Ou seja, podemos fazer humor sobre aquilo que bem nos apetecer (sim, mesmo sobre o Menino Jesus ou a Madre Teresa ou os paralíticos do deserto), mas se nos atrevemos a levar o humor para temas extremos, é bom que a piadola seja mesmo hilariante. Não pode ser só uma graçola palerma.

E esta graçola do senhor Diogo Faro é tão pateta que, não tendo graça nenhuma, acaba por ser gratuitamente ofensiva para uma data de famílias que conheço que dão o litro para que os seus filhos com trissomia 21 tenham um projecto de vida capaz.

As crianças com trissomia 21 felizmente já não são remetidas para o quarto dos fundos das casas, mas também não são troféus de uma família. São só filhos. E para elas queremos um futuro igual ao que desejamos para qualquer outro filho: que sejam autónomas e felizes.

Aparecem evidentemente nas fotos de família, fazem o seu percurso em escola regular, andam na natação ou no judo ou no que bem lhes apetecer e trabalham o dobro dos outros para conseguirem metade dos resultados.

Nós estamos lá ao seu lado, como estamos para todos os filhos. Para os proteger das agruras desnecessárias, para lhes dar a mão quando calha não serem convidados para uma festa, para os ajudar nos trabalhos de casa e para garantir que, aconteça o que acontecer, venham a ter um papel relevante na sociedade.

Ao contrário do que o caríssimo Diogo Faro parodia, infelizmente há muitas famílias, de betos e não betos, que os afogam à nascença. Diz-nos a estatística que mais de 95% das crianças com trissiomia 21 ficam pelo caminho, logo ao início da gravidez, por opção dos pais. O que quer dizer que há muita gente que foge, como o diabo da cruz, de os querer ver no postal estival de família.

Mandar piadolas palermas sobre famílias que todos os dias têm de encher o peito para fazer valer os direitos dos seus filhos é uma crueldade.

Fazer humor em cima de crianças deficientes mentais é uma covardia.

Se o texto fosse de rebolar a rir, perdoava-se. O que está mal é que não era. Era só poucochinho.

Dia Mundial da Trissomia 21

Francisca Prieto, 21.03.16

Hoje é Dia Mundial da Trissomia 21 e da maneira como embirro com dias mundiais de coisas, seria normal não ligar nenhuma à data. Mas a verdade é que os cromossomas a mais da minha filha Francisca me fazem olhar de uma forma diferente para este dia. Porque ainda há muita mata para desbravar até que deixe de ser necessário gritar pelos direitos irrefutáveis destas pessoas.

 

Tive sorte. Quando ela nasceu ouvi muitas vezes falar dos olhares de soslaio de que estas crianças eram vítimas, da dificuldade de integração na escola regular, da falta de fé nas suas capacidades e na tendência vigente para serem consideradas cidadãos de segunda. Tive sorte, repito, porque nunca senti olhares preconceituosos. Pelo contrário, senti muitos olhares, mas sempre de curiosidade ou de simpatia, por verem uma miúda com Down a comportar-se de uma forma tão desconcertantemente normal. Da mesma forma, também tive uma sorte tremenda na escola que ela frequenta. Ao invés de me apresentarem problemas, sempre me ajudaram a encontrar soluções e sempre acreditaram que ela era capaz de feitos extraordinários. A prova é que, ao dia de hoje, com dez anos, a Francisca lê na perfeição, escreve e até faz composições simples sobre os assuntos que lhe interessam lá na sua vida.

É sempre convidada para as festas dos colegas e até tem um par de amigas do coração que disputam festas do pijama ora em casa de uma, ora em casa de outra. A nenhum pai vi alguma vez qualquer demonstração de desagrado por ter de a receber em casa. Pelo contrário, são sempre o cúmulo da simpatia e acham um piadão ao seu sentido de humor.

Uma vez disse-me que queria montar a cavalo. Lá arranjei maneira de a inscrever numa escola de hipismo durante as férias, onde ficava todo o dia. Quando a ia buscar, os professores contavam-me sempre grandes aventuras e o que é certo é que conseguiram pôr a rapariga a galopar num par de semanas.

Também foi para as Guias, com a irmã. É a animadora do bando das avezinhas e assim que lhe falaram em acampamento, lá estava ela na linha da frente, pronta para pôr a mochila às costas. As chefes nunca tiveram um momento de hesitação e sempre a receberam com a mesma alegria com que receberiam qualquer criança.

 

Mas sei que, infelizmente, ainda não é assim para todos. Que, na maior parte dos casos, as escolas olham para estas crianças como um fardo em vez de um desafio, que noutros agrupamentos de Guias ou Escuteiros disseram peremptoriamente aos pais que não tinham capacidade para as receberem, que nos cavalos as colocam em aulas de hipoterapia em vez de em classes regulares e que em muitos casos, nunca, mas nunca, são convidadas para festas.

 

É por isso que, apesar da sorte que tenho tido, tenho de marcar o dia 21 de Março como um dia para defender o direito à igualdade na diferença. Porque nem todas as famílias tiveram a sorte de encontrar pelo caminho pessoas do calibre das que nós temos encontrado. Das que acreditam que está nas suas mãos fazer a diferença.

 

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