"O aborrecimento é o sintoma da deterioração da nossa relação com o mundo e, também, connosco próprios. O aborrecimento apenas desaparece voltando ao mundo, ou seja, aceitando o desafio. Procurando, portanto, a nossa nova identidade" — Francesco Alberoni, A Amizade, 1984
Não é a primeira vez que a nossa vida pública é confrontada com um caso em que alguém é chamado a colaborar com o Estado, neste caso através do gabinete do primeiro-ministro, sendo levantadas dúvidas sobre o tipo de colaboração, a forma de vinculação e a relação existente entre convidante e convidado.
Nos dias que correm, num país e num mundo assolado por sucessivos casos de corrupção, burlas, aproveitamento ilegítimo de cargos de poder em benefício próprio, do partido, de amigos, de confrarias e até de seitas que funcionam à margem de qualquer controlo político-democrático, longe de qualquer escrutínio, onde se movimentam múltiplos e milionários interesses, alguns de origem e objectivos obscuros, é natural que muita gente se questione sobre a colaboração que tem vindo a ser dada por Diogo Lacerda Machado ao primeiro-ministro António Costa.
É natural, mas também é desejável que numa democracia tudo o que interessa aos seus destinatários e possa bulir com o interesse público seja devida e rigorosamente escrutinado. O que, evidentemente, não dá qualquer autoridade moral a quem protegeu os amigalhaços e a camarilha para vir agora dizer que "se possa confundir uma relação pessoal com uma relação institucional e contratual”.
Tal como aconteceu noutros casos, o problema que está em causa não é só de legalidade. Também é de ética, de transparência e de confiança nas instituições e nos seus agentes.
Que o primeiro-ministro, o actual ou qualquer outro, necessite de se rodear de pessoas da sua confiança para levar a cabo as tarefas que se propôs, as que são necessárias para salvaguarda dos interesses nacionais ou cumprir o programa de Governo que a Assembleia da República aprovou, não causa qualquer rebuço aceitá-lo. Como também é normal que numa democracia não baste à mulher de César ser séria e parecer séria. É também preciso que o que transpareça para a opinião pública, para além de uma mulher saudável e fisicamente atraente, seja uma relação sã, séria e salutar.
Não tenho dúvidas nenhumas, nunca as tive, quanto à honradez ou a seriedade do primeiro-ministro ou de Diogo Lacerda Machado. Conheço-os há anos suficientes para as poder atestar. Mas este facto, ou a amizade existente entre eles ou aquela que eu próprio lhes possa ter, não se confunde com a exigência de escrutínio e de transparência da nossa vida política.
Sabe-se que o Estado tem quadros cada vez menos qualificados em diversas áreas. Porque os seus técnicos são mal pagos, como o são os políticos. Só que não será por causa disso que as tarefas que se lhes impõem podem deixar de ser realizadas com seriedade e competência, sob pena de passarmos a vida, enquanto cidadãos e contribuintes, a sermos enganados por meia dúzia de burocratas ou de trapaceiros, consoante o pelouro, que vão aproveitando a sua incompetência e irresponsabilidade para se irem safando e criando as PPP’s que a todos nos enterram. As mesmas que hipotecaram o futuro de várias gerações de quadros qualificados, muitos obrigados a viverem e trabalharem no estrangeiro para poderem manter condições dignas de sobrevivência e valorização profissional e académica.
Mas é igualmente verdade que a democracia e a república não se esgotam nas leis. E é na forma como o poder é encarado, assumido e exercido, no modo como se faz a política, como as regras são ou não são cumpridas, que é possível julgar os actos de governo e as acções dos agentes políticos.
A transparência, tal como já antes o afirmei em relação a outros governos, não é uma palavra vã. E tão importante como ela é o que está acima dela e das leis: o compromisso ético. Numa democracia adulta o respeito por uma ética pessoal, política e de governo implica que seja esse o primeiro juízo a ser efectuado por quem escrutina. E é sobremaneira importante que o que tem de ser feito o seja em termos tais que seja tão transparente que até aos mais cépticos e aos mais mal intencionados não seja possível levantar-se a mais pequena dúvida sobre o que foi feito, como foi feito e com base em que pressupostos se fez. Foi isto que falhou no caso da contratação de Diogo Lacerda Machado.
Não vale a pena discutir se um tipo pode ou não trabalhar pro bono ou a receber uma quantia simbólica pelos valiosos e competentes — o Diogo merece que isto seja dito — que prestou ou pode vir a prestar. Todos sabemos que se pode trabalhar à borla, não só no voluntariado, e que nem todos são mercenários ou arrivistas ignorantes sedentos de poder e de dinheiro. A educação, o sentido de responsabilidade, a ética e a noção do dever não se compram, embora haja muitas “escolas” a vendê-las. Aquelas são coisas que se aprendem, que se cultivam e que se interiorizam porque nos são úteis ao longo de toda a vida.
Por isso mesmo, qualquer que seja a leitura que possa ser feita do passado próximo, mas também do mais distante, estiveram bem os que exigiram ver toda esta situação esclarecida. Espero que isso seja feito. Estou certo que o será rapidamente. E quero acreditar que situações de falta de transparência não se voltarão a verificar.
A amizade é um valor intemporal, uma projecção da alma de cada um, um pilar da vida e da confiança em nós próprios e nos que nos rodeiam. É também um valor que deve ser protegido e estimulado, mas que em matéria de assuntos de Estado deverá estar sempre abaixo deste e das sua leis e regulamentos. E todos estes devem subordinar-se a regras éticas e de transparência que são fundamentais para a confiança na democracia e nos homens que a fazem.
Em política há emoções, há sentimentos, há pessoas, há regras. Para alguns há, felizmente, ainda valores. Mas também deve haver inteligência e bom senso. A amizade, essa, coloca-se noutro patamar. Convém ter isso sempre presente porque qualquer amigo o compreende. Para que não se comprometa a amizade, para não nos comprometermos aos olhos dos que servimos comprometendo a imagem das instituições que servimos. Preservando, em especial, a confiança em quem em nós confiou. Tornando mais firme o compromisso ético a que estamos obrigados no serviço aos outros. Criando riqueza que não pode ser avaliada em acções, cotada em bolsa ou pendurada na lapela do casaco.
(Visto de Macau, em Cascais)