Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Esta mania de mudar para pior

Pedro Correia, 09.08.24

                    300.webp 0000.jpg

                    200.jpg 300x.jfif

Mania tão nossa esta, muito nossa, de alterar os nomes às coisas. Como sucedeu com Uma Agulha no Palheiro, de Salinger, entretanto crismada com um título horrível, À Espera no Centeio. E com a já clássica Cabra-Cega de Roger Vailland, que passou a um insípido Jogo Curioso. Ou - pior ainda - com o magnífico O Monte dos Vendavais, de Emily Bronte, transformado, sucessivamente e estupidamente, em O Monte dos Ventos Uivantes, O Morro dos Ventos Uivantes, A Colina dos Vendavais e O Alto dos Vendavais.

Em data recente, A Metamorfose - clássica novela de Kafka, sempre conhecida por este título em português - passou a chamar-se A Transformação. Sintoma da acelerada compressão lexical em curso, que enxota para o lixo tudo quanto ficou para trás. Num tributo à ignorância, num insulto à inteligência.

Um dos mais célebres policiais de Agatha Christie, Ten Little Niggers (depois baptizado And Then There Were None) já mereceu entre nós títulos tão diversos como Convite para a Morte (Livros do Brasil e Círculo de Leitores), As Dez Figuras Negras (ASA) e No Início, eram Dez... (ASA). Neste último caso, espantosamente, a mesma editora imprimiu dois títulos diferentes da mesma obra em poucos anos, sempre com pior opção do que a versão portuguesa inicial, datada de 1948. 

Se fosse hoje, Citizen Kane, de Orson Welles, sairia para o circuito comercial crismado de Cidadão Kane, como reflexo mecânico do dogma da tradução literal: O Mundo a Seus Pés, o excelente nome que recebeu na estreia entre nós, seria banido. E Tudo o Vento Levou - título poético como poucos - passaria a Levad@ pelo Vento, em obediência à estrita versão original (Gone With the Wind) e às novas convenções de género neutro impostas pela correcção política.

Mania de mudar por mudar. E para pior.

Contra todas as cegueiras

Pedro Correia, 10.03.19

20190303_113706-1.jpg

 

É curioso analisarmos, por vezes, como resulta a transposição de grandes romances em língua portuguesa para outros idiomas. Aconteceu-me faz hoje oito dias, em Londres. Com o Ensaio Sobre a Cegueira, porventura o melhor livro de José Saramago - que originou um filme premiado. Intitula-se Blindness, em inglês.

Espreito o parágrafo de abertura:

«The amber light came on. Two of the cars ahead accelerated before the red light appeared. At the pedestrian crossing the sign of a green man lit up. The people who were waiting began to cross the road, stepping on the white stripes painted on the black surface of the asphalt, there is nothing less like a zebra, however, that is what it is called. The motorists kept an impatient foot on the clutch, leaving their cars at the ready, advancing, retreating like nervous horses that can sense the whiplash about to be inflicted.»

Eis a força da boa literatura: capaz de suplantar barreiras linguísticas, geográficas, afectivas, culturais. Capaz de emocionar, inspirar, comover e fazer sonhar gente de todos os idiomas.

Saber escrever, saber escutar

Pedro Correia, 04.04.18

beingthere06B[1].jpg

 

É infelizmente cada vez maior o número daqueles que entre nós cultivam a tradução literal de textos literários, à margem de considerações estéticas, como se estivessem a traduzir um relatório árido e burocrático. Sem entenderem que um livro estrangeiro, quando é traduzido para o nosso idioma, torna-se de algum modo um livro português, sujeito às nossas regras gramaticais, à sintaxe que utilizamos e à própria musicalidade da escrita que foi sendo fixada ao longo de séculos por figuras com a dimensão de um Camões, um Garrett, um Camilo, um Pessanha ou um Pessoa.

Não perceber isto é nada perceber de essencial nesta matéria.

 

Qualquer texto em português, ainda que possua matriz estrangeira, torna-se património da nossa língua. Com as suas particularidades, o seu ritmo, a sua semântica muito específica, a sua inconfundível eufonia. Porque cada idioma tem a sua própria cadência musical.

Não sabe escrever quem não sabe escutar.

 

O sujeito elidido ou subentendido é uma dessas características que conferem subtileza ao nosso idioma. Enquanto noutras línguas, designadamente o inglês, as regras determinam a menção expressa do sujeito, a nossa regra impele-nos à omissão do nome ou até do pronome assim que ele nos tenha sido apresentado.

Um exemplo básico:

"Clara went away. She left everything behind."

Não faz sentido traduzir este trecho assim:

"Clara foi embora. Ela deixou tudo atrás de si."

Mas já fará sentido traduzi-lo desta maneira:

"Clara partiu. Deixou tudo para trás."

 

 

A propósito, não sei se já repararam. Esta é uma das maiores diferenças entre os diálogos pretensamente "naturais" ou "realistas" das telenovelas e os diálogos da vida real:

- Ó João, vamos sair esta noite?

- Não posso, Maria. Tenho que trabalhar.

- Ó João, mas tu tinhas prometido...

- Eu sei, Maria. Mas não posso mesmo.

São duas pessoas lado a lado num sofá (nunca falta um enorme sofá em qualquer telenovela). Tudo muito solto e despachado. Único problema: ninguém na vida real fala assim. Quantas vezes mencionamos o nome da pessoa que se encontra ali em casa, à nossa frente, trocando connosco umas frases banais do quotidiano?

Estamos perante um truque retórico que os autores dos guiões utilizam para ajudar os espectadores a memorizar o nome das personagens. Mesmo à custa da verosimilhança que dizem cultivar com esmero e afinal desmentem em cada frase.

 

A tradução literária, quando é competente, não se ocupa apenas do idioma: ocupa-se da qualidade da escrita. Não numa pretensa fidelidade à letra original levada ao extremo, mas na fidelidade ao espírito do autor para melhor o reproduzir no texto traduzido.

É aliás neste sentido que se diz com frequência que As Minas de Salomão, de Henry Rider Haggard, "ganharam" qualidade literária na célebre tradução de Eça de Queirós. Ou, em sentido inverso, ainda hoje nos chegam os ecos da tradução francesa do romance A Selva, de Ferreira de Castro, feita por Blaise Cendrars -- que alguns garantem ser superior ao original.

MPW-54606[1].jpg

 

Como é frequente dizer-se, o tradutor trai. Ainda bem: nunca nenhum texto, ao ser transposto para outro idioma, será traduzido de forma competente através de uma colagem de vocábulos.

Costumo ilustrar isto com títulos de filmes. Nunca saberemos quem se lembrou de traduzir Gone With the Wind por E Tudo o Vento Levou, algo muito mais intenso e radical. Mas devemos estar gratos a tal pessoa. Porque o título português, que se tornou numa expressão idiomática, faz sentido no contexto e adequa-se ao conteúdo. "Levado (ou levada?) pelo Vento", tradução literal na voz passiva, deixa-nos tão indiferentes como se estivéssemos a contemplar uma parede de tijolos.

E nunca poderemos agradecer bastante a quem se lembrou do título Bem-Vindo, Mr. Chance para baptizar em português a obra-prima de Hal Ashby protagonizada por Peter Sellers. Ao ponto de não faltar quem garanta que o título original deste filme de 1979 é "Welcome, Mr. Chance".

Não é: chama-se Being There.

Mas algum de nós guardaria dele tão boa memória se algum burocrata de turno, como se recebesse um relatório para traduzir, lhe tivesse chamado "Estando Ali"?

 

Em cima: fotograma do filme Bem-Vindo, Mr. Chance

Elogio a tradutores que resistem

Pedro Correia, 23.08.17

371776[1].jpg

 

Lembrei ontem que a esmagadora maioria dos escritores portugueses rejeita o impropriamente chamado "acordo ortográfico". É justo mencionar outra categoria de utentes qualificados do nosso idioma que tem estado na primeira linha do justo combate às aberrações ortográficas tão bem enumeradas aqui pelo Nuno Pacheco. Tantas vezes incompreendidos, os tradutores - vários deles aliás também escritores, como Pedro Tamen, Ana Luísa Amaral, Daniel Jonas, José Miguel Silva, Desidério Mucho ou Ernesto Rodrigues, entre outros, podendo todos ser considerados autores, enquanto criadores ou recriadores literários - exercem uma função muito importante na oposição ao AO90, enfrentando por vezes pressões de determinados editores ou de certos "agentes culturais" indiferentes à absurda segmentação de famílias lexicais (quem sofre de epilepsia deixou de ser epiléptico, tornando-se epilético) e à disparatada diversificação ortográfica de palavras anteriormente escritas da mesma forma em Portugal e no Brasil (como decepção e recepção, que perderam a suposta consoante muda na escrita acordística cá da terra).

Aqui expresso portanto a devida homenagem a esses resistentes, que têm sabido remar contra a maré. É uma lista necessariamente incompleta, que irá aumentando à medida que me for lembrando de mais nomes, podendo os próprios leitores fazer-me tais sugestões também.

Uma lista que não poderia esquecer Rui Santana Brito, prolífico e competentíssimo tradutor, infelizmente falecido já este ano.

Com o meu agradecimento, enquanto leitor, a todos eles.

 

Alberto Gomes

Alberto Osório Fernandes

Alexandre Brandão da Veiga

Alice Rocha

Ana Barradas

Ana Corrêa da Silva

Ana Falcão Bastos

Ana Luísa Amaral

Ana Maciel

Ana Maria Chaves

Ana Maria Pinto da Silva

Ana Santos

Ana Simões

Aníbal Fernandes

António Guerreiro

António Lopes Cardoso

António Pescada

António Rodrigues

Carlos Afonso Lobo

Carlos Mota Cardoso

Carlos Sousa Almeida

Carlos Vaz Marques

Carlos Vieira da Silva

Catarina Mourão

Clara Alvarez

Cláudia J. Fischer

Daniel Jonas

Desidério Murcho

Diana V. Almeida

Diogo Ourique

Eliana Aguiar

Elsa Sertório

Elsa Vieira

Ernesto Rodrigues

Ester Cortegano

Filomena Vasconcelos

Frederico Pedreira

Gilda Lopes Encarnação

Gonçalo Neves

Gustavo Palma

Helder Guégués

Helena Pitta

Inês Dias

Isabel Castro Silva

Isabel Pettermann

Isabel St Aubyn

Isabel Veríssimo

João Barrento

João Bouza da Costa

João Moita

João Reis

João Tiago Proença

João Vala Roberto

Jorge Fallorca

Jorge Lima

Jorge Pereirinha Pires

Jorge Telles de Menezes

Jorge Vaz de Carvalho

José Alfaro

José Bento

José Colaço Barreiros

José Domingos Morais

José Manuel Ferreira

José Miguel Silva

José Miranda Justo

José Paulo Vaz

José Remelhe

José Santana Pereira

José Teixeira de Aguilar

Júlio Henriques

Liliete Martins

Lucília Filipe

Luís de Barros

Luís Leitão

Luís Lima

Luísa Luiz-Gomes

M. Gomes da Torre

Manuel de Freitas

Manuel Resende

Manuel Santos Marques

Manuela Barros

Manuela Gomes

Manuela Torres

Margarida Periquito

Margarida Vale do Gato

Maria Carvalho

Maria das Mercês de Sousa

Maria do Carmo Abreu

Maria Gomes Duarte

Maria João Freire de Andrade

Maria João Lourenço

Maria João Madeira

Maria João Teixeira Moreno

Maria José Figueiredo

Maria Manuel Viana

Maria Pacheco de Amorim

Maria Teresa Guerreiro

Mário Dias Correia

Marta Lança

Miguel Martins

Miguel Nogueira

Miguel Serras Pereira

Miranda das Neves

Mónica Dias

Natália Fortunato

Nuno Camarneiro

Nuno Costa Santos

Nuno Lobo Salgueiro

Patrícia Xavier

Paulo Faria

Paulo Osório de Castro

Paulo Ramos

Pedro Carvalho

Pedro Elói Duarte

Pedro Mochila

Pedro Tamen

Raquel Dutra Lopes

Raquel Mouta

Raquel Ochoa

Rita Almeida Simões

Rita Canas Mendes

Rita Carvalho e Guerra

Rogério Casanova

Rui Lagartinho

Rui Lopo

Rui Pires Cabral

Salvato Telles de Menezes

São Amaral

Sérgio Coelho

Sílvia Valentina

Sofia Castro Rodrigues

Susana Sousa e Silva

Tânia Ganho

Telma Costa

Teresa Casal

Vanda Gomes

Vasco Gato

Virgílio Tenreiro Viseu

 

 

ADENDA: Como bem me lembra Ivo Miguel Barroso na caixa de comentários, a Associação Portuguesa de Tradutores e a actual presidente da Direcção, Odette Collas, são subscritoras da petição Cidadãos contra o "Acordo Ortográfico" de 1990, ainda em fase de recolha de assinaturas.

Lista actualizada

Editor português, precisa-se

Inês Pedrosa, 22.05.17

Et si l'amour.jpg

«Sejamos reaccionários ou progressistas, voltados nostalgicamente para o passado ou resolutamente para o futuro, todos somos modernos, porque reivindicamos e exercemos a liberdade de amar quem quisermos, como quisermos e durante quanto tempo quisermos.  
Somos, por outras palavras, senhores dos compromissos que assumimos. Esta soberania preenche-nos, mas também nos confronta, sem evasão possível, com as questões que atormentavam a Princesa de Clèves : basta que amemos para sabermos amar?  O amor será em si mesmo amável, digno de estima e de confiança? 
Podemos tratar destas questões através da estatística e das ciências sociais.Sem subestimar a utilidade dessas aproximações, escolhi uma outra: a literatura. Madame de La Fayette, Ingmar Bergman, Philip Roth e Milan Kundera foram os meus guias.»
Alain Finkielkraut.