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Delito de Opinião

Ambiente de trabalho XI

Teresa Ribeiro, 06.11.23

Todos sabem que é um eufemismo, pois nunca “colaborador” foi sinónimo de “trabalhador”, por isso mesmo é interessante tentar perceber porque houve uma adesão massiva a esta designação, na hora de chamar os assalariados pelos nomes.

Foi como se de um momento para o outro a palavra “trabalhador” passasse a ter desagradáveis conotações, só porque expõe, de forma clara e inequívoca, a natureza de um vínculo contratual. Banida da comunicação empresarial, a palavra “trabalhador” passou a ser usada quase exclusivamente por sindicatos e no discurso político, algo que está a contribuir para modificar a sua percepção. Nos tempos que correm já mais parece uma expressão politizada e usá-la pode tornar-se suspeito para alguns interlocutores. No limite, e dentro de certos contextos laborais, insistir em empregar o vocábulo proscrito será considerado uma provocação.

Vivemos tempos de grande fluidez no mundo laboral. A natureza das relações que se criam é efémera e sustenta-se em dinâmicas que se alimentam de sofisticadas estratégias de marketing (pessoal e corporativo), destinadas a defender da melhor forma os interesses das partes envolvidas. Se há coisa que o marketing sabe fazer é diluir conceitos, confundir perspectivas, arredondar palavras. Quem domina a técnica sabe que as palavras (é que) contam. Terá sido algures durante este processo que a palavra “trabalhador” caiu em desgraça. É tão objectiva, que parece que vai nua.

Ambiente de trabalho X

Teresa Ribeiro, 30.05.23

Sempre houve gente impreparada a arriscar no seu próprio negócio, mas temo que a tendência se esteja a acentuar, como escape ao atrofio financeiro a que garantidamente está sujeita a maioria dos trabalhadores por conta de outrem.

Com um investimento reduzido e uma equipa mínima, estes “empreendedores” têm de poupar muito para atingir os seus objectivos. Fazem-no à custa da fuga aos impostos – pagando parte dos vencimentos por baixo da mesa, empregando “recibos verdes” a tempo inteiro – e de baixos salários. O Portugal dos empresariozitos, cujo pensamento estratégico é conseguir o máximo de margem para garantir casa, carro, férias no estrangeiro e colégio para os filhos, corresponde à maior fatia do nosso tecido empresarial, por isso estabelece o paradigma. As médias, grandes e até algumas pequenas e talentosas empresas podiam influenciar o mercado, quebrar este círculo vicioso, mas, claro, consideram que não é esse o seu papel. “Como saímos disto?” – quem sabe com um bom patrocínio da Multiópticas (passe a pub).

Ambiente de trabalho VIII

Teresa Ribeiro, 27.09.22

A glorificação do empreendedorismo abriu caminho à proletarização do trabalho intelectual. A partir do momento em que a iniciativa empresarial se transformou em valor supremo, os dependentes, aqueles que pela sua natureza ou pela natureza do seu trabalho exercem a sua profissão por conta de outrem, passaram à condição de subalternos, independentemente do seu nível de competências.

Esta simplificação, que dividiu o mundo do trabalho em dois, colocou do lado dos assalariados um conjunto indiferenciado de profissionais, de cientistas e arquitectos, a trolhas e empregadas de limpeza. Segundo esta nova ordem, passaram a equivaler-se, na medida em que uns e outros não detêm o único e verdadeiro poder, o do dinheiro.

A curva descendente que levou a que a maioria dos licenciados passasse a ganhar salários absolutamente desajustados do seu nível de preparação e conhecimentos começou com esta desvalorização social indiferenciada dos assalariados, algo que conduziu à desvalorização profissional e correspondente descida de salários.

O argumento de que os impostos são elevados para quem contrata, sempre usado pelos empregadores para justificar porque pagam tão mal, não explica a existência neste país de um fosso cada vez maior entre pobres e ricos. A falta de ética, sim.

Até porque não é só de salários baixos que se faz esta nova cultura empresarial. As ilegalidades são uma constante e praticam-se com crescente despudor. A avaliar pelos casos de abuso que me vão chegando aos ouvidos, através da geração que na minha família está a entrar no mercado de trabalho e da sua rede de amigos, e de amigos de amigos destes, percebo até que ponto a cultura do trabalho, no país, se tem degradado. Há já quem queira admitir jovens licenciados à experiência sem lhes revelar o salário que pretendem pagar e a partir de quando; há quem anuncie sem embaraço que “nas semanas em que há feriado, o feriado conta como folga”; o hábito de pagar um x por debaixo da mesa está instituído; o pagamento de horas extraordinárias está fora de questão; o aumento de salário, idem; o direito a “desligar” à noite e aos fins-de-semana não é sequer tema de conversa. Não admira que os jovens estejam a fugir deste país ao ritmo a que fugiam da guerra colonial nos anos 60.

É a economia? A inépcia de quem nos tem governado? Sim, mas também esta falta de civismo, tão tuga. O oportunismo sonso dos muitos que podiam contribuir para o aumento do salário médio em Portugal, mas que aproveitam os saldos para comprar “talento” ao preço da uva mijona. O talento de que precisam para manter os seus projectos de pé. Porque o espírito de iniciativa não é tudo. Mas isso, claro, quando reconhecem, é no tom paternalista que reservam ao elogio dos subalternos.

À espera da reacção solidária dos antifascistas e sindicalistas portugueses

Sérgio de Almeida Correia, 30.08.22

Ora aqui estão belíssimos temas para serem debatidos na Festa do Avante.

Seria interessante saber qual a receita do PCP e da CGTP-IN para que numa das regiões mais ricas do mundo aconteçam situações de despedimentos sem justa causa, redução salarial e de salários em atraso. Sim, leram bem.

Deve haver uma explicação qualquer para que uma deputada patriota, ligada à Associação dos Operários de Macau, acuse um Governo empossado pelo Presidente Xi Jinping de "falhar nas suas funções e permitir que empresas fiquem longos períodos sem pagar aos trabalhadores, com total impunidade". Eu sou testemunha.

Ao mesmo tempo, um outro deputado, dado a um patriotismo menos saudável e mais adaptado às circunstâncias, queixa-se das condições de chegada a Macau, classificando-a de "situação inqualificável, insustentável e repugnante". Também fui testemunha.

Mas gratificante mesmo é saber que vêm aí as alterações à Lei relativa à Defesa de Segurança do Estado e que não há que temer a  “intercepção de comunicação de informação" como medida preventiva. Ora bem, preventiva, uma vez que para "as informações obtidas serem admitidas como provas legais, têm de ser aprovadas pelo juiz, senão as informações só podem meramente servir a investigação policial.".  Esta parte final, dita pelo Secretário para a Segurança, que foi antes director da Polícia Judiciária e magistrado, há-de ser de molde a sossegar toda a gente e mais alguma. Se as escutas não forem aprovadas por um juiz ficam para a malta das escutas se divertir na investigação. Não vou querer ser testemunha.

Espera-se, pois, que depois seja promovido um concurso de recrutamento de pessoal para a nova carreira de técnico superior de escutas preventivas e afins. E oxalá não se esqueçam de mencionar que constitui factor qualificado de ponderação uma boa audição, sendo dada preferência a quem não use aparelho, tenha experiência anterior na área e na fiscalização do direito de opinião e da liberdade de expressão, uma vez que será necessário verificar os "likes" que pelos funcionários públicos andam a ser colocados nas redes sociais. Também espero não vir a ser testemunha.

Em todo o caso, nada disto tem a ver, nem é comparável, com aquilo que nos foi dado saber pela pena de Wang Xiangwei quando ainda há dias, no South China Morning Post, relatava a sua experiência em Hainão, demonstrativa, segundo o próprio, da "arbitrary nature of China’s vast surveillance network and how its mandatory health QR code app, known as jiankang ma, can be subject to egregious abuse for political control". Quem diria? É preciso ir de férias para uma ilha no mar do Sul da China para se aperceber do mundo em que vive. E no caso dele até é em Pequim.

Não sei se este último artigo, se escrito por um residente de Macau, virá a cair ao abrigo da nova lei, mas por agora não faltam motivos para que todos, a começar pelo Presidente Marcelo, que deve ter vindo cansadíssimo de Luanda e intrigado com aquilo que o Sebastião Bugalho escreveu e o José Manuel Fernandes repetiu, se sintam tranquilos e motivados para encararem com redobrada confiança os próximos vinte e sete anos do princípio "um país, dois sistemas".

No final desse período já cá não estarei, garanto-vos, pelo que, lamento dizê-lo, não poderei então vir a ser testemunha.

Mas, pelo menos, fiquem os camaradas que vão à Festa com a certeza de que não haverá o risco dos holandeses arriscarem uma nova tentativa de invasão. As escutas preventivas mantê-los-ão ao largo. Eles são comerciantes; não são parvos.

O Estado das coisas

Zélia Parreira, 12.01.22

A 24 de Dezembro um dos meus filhos fez um teste rápido,  em casa, cujo resultado era duvidoso. Em menos de 2 horas, graças ao contacto imediato com o médico de família, já tinha realizado teste PCR na Área de Doenças Respiratórias e um teste antigénio na farmácia local, que confirmou a positividade à covid19 e reportou ao SNS. Em consequência dessa notificação, o SNS contactou o paciente, por mensagem de telemóvel,  pedindo que identificasse, no portal do SNS, as pessoas que se encontrassem na mesma habitação. Assim fizemos e fomos todos identificados.


Família fechada em casa, cuidados preventivos para os restantes membros da família, acompanhamento quotidiano do médico de família. Pensei "isto está muito bem organizado!".


No primeiro dia útil seguinte (27 de Dezembro) avisei a minha entidade patronal. O mesmo fizeram os meus filhos. Comprometemo-nos a enviar o comprovativo da necessidade de isolamento profiláctico logo que ele nos fosse facultado.

Perante a total inoperância da linha SNS24 durante vários dias (só conseguimos contactar a 1 de Janeiro) e corroborando os esforços do meu médico de família,  contactei a Unidade de Saúde Pública, por email e por telefone, no dia 29 de Dezembro. Desde aí,  insisti e insisti. Zero resposta. Zero declarações.

Sou funcionária pública. Tenho 5 dias úteis para apresentar a justificação da ausência ao trabalho, sob pena de me serem aplicadas sanções que podem ir até à expulsão da função pública. Nesta data, já lá vão 13 dias úteis.

Felizmente, tive o cuidado de pedir para ficar em teletrabalho enquanto estava em isolamento profiláctico. Fi-lo por uma circunstância muito simples: porque podia. Nem todos têm esta sorte e para esses, que tiverem passado por esta situação, tratou-se efectivamente de uma ausência injustificada ao trabalho.

Ainda assim,  o pedido de teletrabalho teve como fundamento a necessidade de isolamento imposta pela saúde pública, mas que a saúde pública se recusa a atestar. Ou seja, neste momento, pode dizer-se que prestei falsas declarações porque não consigo fazer prova do fundamento que aleguei.

Eu sei que houve muitos casos nas últimas semanas,  mas estamos a falar de uma unidade de saúde local. Quantos casos terá havido aqui, diariamente, para impedir a emissão dos respectivos atestados?

Ponteiros trocados

Pedro Correia, 12.11.21

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Mudou a hora. Passamos a reger-nos pela chamada "hora de Inverno". Mas Inverno porquê se ainda estamos em pleno Outono? E mudar a hora porquê se agora começa a anoitecer às 17.30, o que contribui para acentuar um clima depressivo que a própria época do ano já propicia?

Segundo os especialistas que estiveram na origem desta directiva da Comissão Europeia - que Portugal vem seguindo após um período de incerteza - a medida permite às famílias poupar cerca de 5% em energia eléctrica, havendo um benefício para as empresas em cerca de 3%. São as habituais contas dos teóricos que se regem apenas pelos princípios gerais da contabilidade sem saber aplicá-la a situações concretas: o que eventualmente se poupa em consumo energético logo se gasta em consumo de ansiolíticos e antidepressivos, consultas psiquiátricas e absentismo laboral.

Um estudo realizado em Espanha - país que alinha o seu "horário de Inverno" pelo da Alemanha, como se não houvesse quase dois mil quilómetros de distância entre Madrid e Berlim - permite concluir que 56% dos trabalhadores sofre «algum transtorno» com este atraso dos ponteiros do relógio. Uns queixam-se de insónias, outros de falta de concentração. Uma clara maioria acusa sintomas de acrescido cansaço, com bruscas alterações de humor.

Há aqui um problema de fundo: a progressiva falta de correspondência entre o período de trabalho regular e a hora solar. Cada vez se trabalha mais tempo em horário nocturno real. Entretanto, nada mais absurdo do que esta permanente obsessão dos burocratas europeus em gerir ínfimas parcelas do nosso quotidiano com directizes traçadas a régua e esquadro no sossego dos seus gabinetes alcatifados, indiferentes ao pulsar da rua. O mesmo é dizer: indiferentes ao pulsar da vida.

Greve no metro

Teresa Ribeiro, 04.11.21

Há décadas que esta gente faz greve todos os anos para reivindicação de aumento de salário (durante a pandemia fizeram uma trégua, por motivos óbvios). Esta recorrência, tão regular como um relógio suíço, só lhes pode ter rendido muito para lá do que qualquer trabalhador ganha, em média, neste país. Pena que ainda não se tenham lembrado de fazer o que há uns anos fizeram com o pessoal da CP: Divulgaram publicamente as suas tabelas salariais e as regalias de que gozavam e foi um escândalo.

Ambiente de trabalho VII

Teresa Ribeiro, 29.07.21

As novas elites não dão ponto sem nó. Traçam o seu percurso, começando cedo a identificar que pessoas devem conhecer e em que circunstâncias. Preparam-se cuidando dos mais ínfimos detalhes, porque hoje o  que parece, é. Há soft skills que devem constar num currículo, porque são muito valorizadas nos tempos que correm, daí ser conveniente exercer atividades a partir das quais se possa tirar ilações sobre a qualidade do seu carácter ou capacidade de trabalho. 

Como bailarinas em pontas aprendem, depois, a andar em bicos de pés para serem notados por quem tem poder. E o que é, para esta nova geração, ter poder? Ter poder é ter influência. Ser conhecido e reconhecido. Mas este reconhecimento não tem necessariamente a ver com competência, conhecimento e muito menos experiência. Três atributos que a nova cultura do trabalho esvaziou ao introduzir no discurso um novo mantra: proactividade, competitividade e "gosto pelo desafio". Três magníficos eufemismos cuja elasticidade permite cobrir um vasto leque de perfis, desde os jovens com ambição que desejam legitimamente subir na vida, àqueles que antes se designavam por arrivistas: tractores que não olham a meios para "chegar lá". Não importa como, pois já ninguém quer saber.

"Estar lá" quer dizer que se ganhou a medalha olímpica da notoriedade, o novo oiro. Não por acaso chegou-se ao ponto de criar uma nova "profissão", a dos influencers. Ter poder é conhecer e ser conhecido por "toda a gente", sendo que "toda a gente" é a gente que tem uma importante rede de contactos. Trata-se de uma pescadinha de rabo na boca, círculo onde até se vende a mãe para entrar, pois os que ficam de fora são nada. Pertencem à massa indistinta dos que não "chegaram lá". Engenheiros, arquitectos, artistas, limpa chaminés, jornalistas, rapariguinhas do shopping, é indiferente. A todos é dispensado um tratamento indiferenciado que se verte, de resto, em salários absurdamente semelhantes.

As novas elites lideram, sem complexos, áreas que desconhecem, apoiadas na expertise dos profissionais que este novo sistema proletarizou. Mas formadas que foram na cultura narcísica do autoelogio e do elogio mútuo sustentada pelas redes, não resistem a deixar a sua marca de génio na gestão de pessoas e coisas, tomando por capricho decisões absurdas e irresponsáveis, ignorando os conselhos de quem sabe, só pelo prazer de mandar. É nisto que estamos, nas mais diversas áreas de actividade. Até dói.

Trabalho juvenil

Paulo Sousa, 18.06.21

O aumento da escolaridade obrigatória, que na essência e na intenção é uma medida positiva, acabou por inviabilizar o trabalho juvenil durante as férias escolares.

Este tipo de trabalho foi durante muitos anos, e noutras paragens continua a ser, a forma de fazer um pé-de-meia para uma compra acima dos limites da mesada ou até como recurso de apoio às finanças familiares.

O benefício desta prática legalmente extinta, alargava-se também às empresas, que conseguiam assim colmatar os normais transtornos que as férias de empregados causam às  suas rotinas.

Mas para além deste efeito positivo para as finanças pessoais e para a rotina das empresas existia um outro, que se prendia com a familiarização dos jovens com o mundo do trabalho, com as suas rotinas e horários, aborrecimentos, relações laborais, conquistas e desilusões. De acordo com o sector da actividade podia existir atendimento ao público, a repetição de uma linha de montagem, o enfoque de um processo ou até dor/satisfação pela (in)justiça da decisão de um patrão ou da reacção de um cliente. Além de que um trabalho aborrecido e repetitivo, que não exija qualificações, pode ser um excelente estímulo para motivar quem anda a estudar. Esse será outro benefício intangível de uma experiência desta natureza.

Lembro-me de um primo mais velho, que se formou em gestão e que hoje trabalha numa empresa financeira, pregar paletes à mão nos tempos livres. Os miúdos da mesma idade invejavam-lhe a sorte a que só tinha acesso pelo facto do seu avô ter sido encarregado da fábrica que lhe encomendava esse serviço. Outro destino habitual por aqui eram as cerâmicas de construção (telha e tijolo) assim como as faianças de loiça. Os mais afortunados chegavam a conduzir empilhadores. Algumas famílias vizinhas tinham em casa uma máquina manual de armar as molas da roupa que eram distribuídas dentro do detergente Juá. Eu atendi ao público na loja de onde a minha família tirava o sustento.

Nos dias de hoje, qualquer coisa desta natureza incorreria numa infinidade de multas por violações de regras e de obrigações fiscais.

Os jovens de hoje ficam assim privados de uma perspectiva do que é exigido aos adultos, do esforço que os seus pais fazem para governar a casa e sobra-lhes por isso mais tempo para, em linha, se isolarem dentro de um mundo virtual, desligando-se dos estímulos que afectam diariamente os mais velhos.

Termino sublinhando a ideia transmitida pelo título, pelo que não me estou a referir a trabalho adolescente e muito menos infantil.

Mandar vir

Maria Dulce Fernandes, 17.06.21

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Levar a vida a correr ou pertencer ao culto do menor esforço?

Antigamente… bem, sejamos realistas, antigamente era um massacre!

Alvorada às cinco e meia, prepararmo-nos, preparar as crianças, preparar papas, engolir um café, mala à tiracolo, saco ao ombro, marsúpio ao peito.

Apresentar… filhos!!! E toca a correr avenida abaixo para o comboio, ansiando pelas folgas semanais. Ansiando? Porquê? Ou eram compras no super, ou cozinhados, ou manobrando aquele instrumento de tortura, criado para escravizar o belo sexo, chamado ferro de engomar.

Um massacre diário. Uma tortura semanal.

Chegadas em casa, pelas oito da noite, cozinhar era a última vontade, aquela que passamos em testamento para quem vier depois. Ah pois! Depois, não vem seja quem for, por isso se queres comer, olha… cozinha!

Está claro que todas estas arestas se vão limando com o tempo e passa muito por cultivar no cara-metade o gosto pelo malabarismo dos tachos e panelas, mesmo sabendo que não sabe fritar, ou cozer, ou mexer um simples ovo.

Mandar vir significava chegar a casa e ter tudo por fazer porque, por exemplo, estava a dar o Sporting na TV, e não conseguir ficar calada sentida que era a injustiça.

Mandar vir tem  presentemente todo um novo significado.

O que é o jantar? Não sei! O que te apetece? Olha… Mandamos vir!!

A oferta e a procura são muito equiparadas e há preços que compensam o tempo e o trabalho.

Se a qualidade e a quantidade não são importantes  porque não mandar vir?

É comida? É sim. É variada? É sim. É boa? Meh… no máximo escapatória.

E cozinhar? A arte da culinária, a 12.ª arte?

Muito provavelmente entrará em desuso, sendo apenas praticada na clandestinidade por um punhado de resistentes que se recusam a mandar vir.

O Livro Verde*

José Meireles Graça, 11.06.21

Já em Junho de 2014 defendia a extinção da Câmara Corporativa, perdão, do Conselho Económico e Social, ao tempo dirigido pelo simpático e inútil Silva Peneda, um prócere do PSD, e hoje pelo inútil e simpático Francisco Assis, um prócere do PS. E de então para cá inúmeras vezes tropecei neste organismo daninho, presumível coio de traficantes de influências e de ideias irrelevantes umas, deletérias outras, e todas supranumerárias.

Como é normal, expele regularmente pareceres. E há dias ejaculou um Livro Verde sobre o futuro do trabalho. O verde do título ou vem da bandeira terceiro-mundista que é a nossa desde 1910, tendo portanto um carácter nacional, ou do vomitado que é típico destes organismos, tendo portanto um carácter ideológico. Vejamos o que dizem as ponderadas cabeças que, de cenho franzido em concentração meditabunda, engenheiraram para o futuro as soluções para os problemas que julgam virão a existir, com base no asneirol que defendem hoje para os problemas que existem. Por partes:

O trabalho digno para todos deve ser colocado no centro das políticas para o crescimento e o desenvolvimento sustentáveis e inclusivos.

O mercado do trabalho está, como qualquer outro, sujeito às leis da oferta e da procura e as políticas públicas não devem provocar distorções, excepto na medida em que os desempregados devam ser apoiados por razões de solidariedade social. O paleio do desenvolvimento sustentável é uma das bandeiras do movimento terroristo-ecológico e quer dizer basicamente isto: ó pra nós que defendemos a terra, e morte aos capitalistas que a assassinam. A inclusividade, ela, é simplesmente o palavrão que recobre uma panóplia de intervenções no mercado do trabalho destinadas a garantir a sobrevivência de empregos condenados e o poder dos sindicatos.

A globalização, o envelhecimento da população, a transição energética, a descarbonização e a economia circular, as relações e os laços sociais, as formas de comunicação e o uso crescente das tecnologias nas diferentes esferas da vida no quotidiano são disso exemplo.

A globalização, por si, se provoca desemprego nuns sítios, provoca emprego noutros; a transição energética ou vem da evolução tecnológica ou de normas imperativas dos poderes públicos à boleia de teorias fajutas; as relações e os laços sociais, as formas de comunicação e o uso crescente de pérépépé são exemplo não de realidades que importe corrigir mas de evolução imprevisível que importa acompanhar. Em todos os casos, os produtores e as sociedades ajustar-se-ão e, a julgar pelo passado, a intervenção dos poderes públicos produzirá no melhor algum bem e com certeza muito mal.

A resposta aos desafios colocados por esta nova realidade exige uma abordagem sistémica, integrada, dinâmica e estratégica, articulando diferentes áreas das políticas públicas e procurando mobilizar os diferentes instrumentos, envolvendo os parceiros sociais, as empresas e a sociedade civil.

O futuro não contém, salvo para organizações desportivas, desafios, mas sim oportunidades e circunstâncias, umas negativas e outras positivas, quase todas imprevisíveis. Não se pode prever o futuro senão projectando tendências do presente que nada garante não virão a ser influenciadas por invenções, adaptações e inovações que ainda não existem. É aliás por causa das incógnitas que o fraseado é deliberadamente treteiro (“articulando”, “mobilizar”, “envolvendo”), significando nada.

O atual Programa conjunto do Trio de Presidências do Conselho da UE, ao definir como uma das principais prioridades a construção de uma Europa com impacto neutro no clima, verde, justa e social, deixa também evidente a necessidade de dar resposta a estas transformações.

Este parágrafo é antecedido de uma extensa lista de piedades dirigistas da UE, todas padecendo da ideia singular de que a vasta camada de burocratas inimputáveis que constituem a superestrutura da URSE pode garantir que a Europa vai liderar o mundo com um acelerar do desenvolvimento num clima de grande verdura e felicidade social. Coisa que não tem sabido fazer: A UE não cessa de perder posições no mundo e, incidentalmente, Portugal dentro da União Europeia.

Na resposta à crise provocada pela pandemia, o Programa de Estabilização Económica e Social e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) inclui, igualmente, uma forte presença das questões do digital, do futuro do trabalho e da adaptação das pessoas e das empresas a esta realidade. E isto em duas dimensões de tempo, ou seja, naquelas que são as respostas às necessidades de curto prazo a uma crise económica imprevisível e causada por uma pandemia, mas também a preparação das pessoas e das empresas para os próximos anos e para que estejamos coletivamente bem posicionados numa economia global cada vez mais competitiva e em rápida transformação.

Esclareçamos um ponto prévio: A pandemia não provocou qualquer crise, o que a provocou foram as respostas públicas, o que não cabe demonstrar aqui. A ideia de que os poderes públicos (isto é, políticos e funcionários) podem preparar “as pessoas e as empresas” para uma “economia global” é uma fantasia: quem nunca deu provas de ser capaz de dirigir um minimercado só por acaso pode produzir mais do que tretas – curiosas, eventualmente úteis se postas em monografias, e perigosas se transformadas em directivas.

Este palavreado aparece até à pág. 11. E das restantes até à 145, com excepção da caracterização da situação actual com recurso a vários indicadores úteis, continua o enjoativo lero-lero a granel, destinado a preparar toda a casta de intervencionismos sortidos. Não vale por isso a pena comentar, ficaria um pastelão ainda mais intragável que o comentado. Saltemos para aquela 145:

… combate à precariedade, promoção da negociação colectiva, aprofundamento das políticas ativas de emprego, formação e qualificação, defesa dos rendimentos, protecção social inclusiva e respostas específicas para os segmentos mais desfavorecidos e afastados do mercado de trabalho, incluindo neste âmbito uma estratégia nacional para o futuro do trabalho;

Serviço de tradução: Promover o desemprego através de obstáculos ao despedimento; reforçar o poder dos sindicatos através do amalgamento da situação e recursos das empresas de um mesmo sector; obrigar à formação subsidiada em competências inúteis para alimentar corrupção, concorrência desleal e escolas de faz-de-conta que fingem ensinar quem finge que quer aprender coisas que de todo o modo não servem para nada; imposição legal de aumentos salariais, quer as empresas possam quer não possam suportá-los; cuspo.

Regular as novas formas de trabalho associadas às transformações no trabalho e à economia digital, nomeadamente o trabalho desenvolvido nas plataformas digitais, teletrabalho e nomadismo digital (ver capítulos próprios);

Serviço de tradução: Meter o bedelho no que ainda não esteja regulamentado, a fim de estrangular uma parte da flexibilidade pelo efeito de a regulamentar.

Apostar em áreas estratégicas e com potencial de crescimento do emprego, em particular nos sectores e competências fortemente ligados à digitalização e à tecnologia, à transição climática e energética e à internacionalização da economia portuguesa, entre outros, decisivos para o posicionamento do país nas transformações em curso;

Serviço de tradução: Financiar com dinheiros públicos empresas amigas do Poder do dia, frequentemente criadas para o efeito por apparatchiks.

Lançar um programa nacional de mercado social de emprego, direcionado para os territórios e grupos mais desfavorecidos, numa estratégia de aproximação ao emprego e de promoção da qualificação das pessoas para prevenir bolsas de exclusão e de afastamento prolongado do mercado de trabalho;

Serviço de tradução: Diminuir artificialmente as taxas de desemprego através de programas de formação subsidiados e premiar as empresas que empreguem pessoas que, sem apoios públicos, nunca empregariam, e que serão despedidas logo que os apoios cessem ou as empresas imprudentes estourem.

Promover o envelhecimento ativo no quadro do mercado de trabalho, de modo a responder às profundas transformações demográficas das últimas décadas, reforçando os instrumentos de inclusão dos trabalhadores mais velhos, por exemplo na formação ao longo da vida e requalificação profissional, e por via de instrumentos de adequação dos tempos de trabalho às fases do ciclo de vida, nomeadamente, apostando em mecanismos de reforma parcial nos últimos anos de carreira contributiva, numa lógica de prolongamento da vida ativa e faseamento da saída do mercado de trabalho;

Serviço de interpretação: Quanto à formação, imaginar que resulta com velhos o que não resultou com novos é ternurento. E estúpido. Quanto ao resto, já deveria estar em vigor há muito. O CES nunca o defendeu porquê?

Reforçar os instrumentos de apoio à manutenção de emprego em períodos de crise e de choques agudos, numa dupla óptica de viabilidade das empresas e de proteção dos trabalhadores, de modo a preservar a base de potencial de crescimento do emprego e a diminuir os impactos de curto e médio prazo de situações de forte deterioração no mercado de trabalho;

Serviço de tradução: Agora que a população já está preparada para a destruição do tecido económico quando haja ameaça de pandemias, tornar permanente o delírio intervencionista, no pressuposto de que as dívidas daí decorrentes nunca terão de ser pagas.

Admitir figuras como o redeployment ou a recolocação de trabalhadores no âmbito da promoção do trabalho em rede entre organizações e empresas e da chamada economia partilhada, através da qual os trabalhadores de empresas que estão em situação de crise económica e eventualmente em situação de lay-off podem, querendo, ser temporariamente colocados em empresas que têm carência de mão-de-obra, mediante acordos de colaboração e de cedência, de forma a permitir que os trabalhadores em causa possam manter atividade profissional e adquirir novas experiências de trabalho.

Serviço de tradução: Tomar providências para que, na inexistência de hábitos de flexibilidade que a legislação não permite, passar a macaquear as práticas que existiriam naturalmente se fossem possíveis, agora desde que com intervenção e discricionariedade das autoridades.

Basta. O mais fere o mesmo diapasão: interferir, regular com minúcia, proibir, subsidiar e (o Livro não fala nisso, decerto por elegância) multar.

Em suma: mais do mesmo, garantindo que o futuro será completamente diferente nas suas circunstâncias, e perfeitamente igual nos resultados.

 

Publicado aqui.

 

Em Portugal, ao primeiro dia do mês de Maio

Zélia Parreira, 01.05.21

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Portugal descobriu, esta semana, os trabalhadores ilegais. Camaratas com dezenas de pessoas, sem condições mínimas de higiene, sem distanciamento social, alimentação inenarrável, horários de trabalho esticados até ao limite da resistência física. Indigno, desumano, cruel.

É irónico que este assunto seja discutido quando se assinala mais um Dia do Trabalhador, essa “festa” da “esquerdalha”, que os críticos do sofá afirmam servir apenas para passeios, piqueniques e compras, com a desculpa das manifestações. Esse dia anacrónico, fossilizado, de uma luta que, dizem, já não se justifica e que é só uma desculpa para não trabalhar.

Mas não é, pois não? Se dúvidas havia, os trabalhadores ilegais do sudoeste alentejano aí estão, evidentes, impossíveis de ignorar, a demonstrar que há ainda tanto por fazer, tanto por que lutar.

A crueldade maior – e a hipocrisia de tudo isto – é que se não fosse a Covid, permaneceriam “arrumados” nas suas camaratas, invisíveis de segunda a sábado, fugazes na carrinha que os leva a fazer as compras ao domingo e os traz de volta ao alojamento. Em Odemira, no cultivo dos frutos vermelhos, mas também nas estufas entre Pegões e o Montijo, ou no Alentejo interior, no tempo da azeitona. Fazem o que os portugueses não querem fazer. Ou melhor, corrijo: fazem o que os portugueses fariam, se recebessem salários compatíveis com a dureza do trabalho, em horários decentes e com condições de alojamento minimamente dignas.

A Covid, que não distingue ricos e pobres, trouxe-os para a ribalta, exibiu-os aos olhos de todos. Eis a podridão do sistema. Eis o que todos sabiam, mas sobre o qual nunca falavam. Eis o que se permitiu que acontecesse, com a conivência do silêncio, dos suspiros ligeiros para o lado, enquanto se murmura “coitados!”.

Este “coitados” não são mais do que os portugueses que nas décadas de 60, 70 e 80 limparam prédios e escritórios, trabalharam na construção civil e nas fábricas de França, Suíça ou Alemanha. Mas a esses, aos nossos, não os víamos, estavam longe dos olhos. Só lhes conhecemos os carros, os modos estrangeirados e o português transfigurado, com os quais rapidamente fizemos piadas de mau gosto.

A estes, aos que nos produzem os frutos que saboreamos, não os podemos ignorar. Estão aqui e são um problema que se alimentou de um silêncio insuportável. Do nosso silêncio insuportável.

 

(imagem retirada daqui.)

Multiplicação dos pães

José Meireles Graça, 22.03.21

Nos seus quase nove séculos de vida Portugal atravessou fomes, pestes e guerras, incluindo civis, e portanto a afirmação que costumo fazer de que a dívida portuguesa actual é a maior da sua História é provavelmente falsa. Por exemplo, sei lá qual o tamanho do tombo que a guerra civil de 1832-34 provocou, e qual foi exactamente o preço do apoio inglês a um dos lados. Quem sabe dessas coisas é um economista como Nuno Palma, e mesmo esse lança mão de métodos indirectos – o Instituto Nacional de Estatística só foi fundado em 1935, em vez de, como teria sido desejável, no séc. XII.

Guerra já não temos desde 1974 e essa, que decorreu a partir de 1961, coincidiu com o maior período de crescimento económico da nossa história (mais uma vez, se formos procurar nos escaninhos da memória histórica talvez se encontre outra época dourada, os historiadores económicos que desembrulhem essa meada), e, já agora, também com o das antigas colónias.

A desvalorização destes factos, tal como o do saneamento das contas públicas que o Estado Novo realizou, é um sub-produto da guerra ideológica: o regime salazarista, e a sua versão edulcorada, isto é, o marcelismo, não podiam ter produzido crescimento porque reconhecê-lo é o mesmo que coonestar o regime.

Não é, claro, e haveria alguma coisa a ganhar em estudar o passado sem as lentes dos partis pris ideológicos. Mas nem quem o interpreta se subtrai a preconceitos: a explicação para a vertiginosa convergência com a Europa na década de 60 costuma ser a adesão à AECL em 1960 e a base relativamente baixa de que se partia. Explicações significando pouco porque a ainda maior abertura ao comércio externo em 1986 não produziu efeito tão relevante (sem guerra e com apoios que a AECL não contemplava) nem a base de que se parte quer dizer muito: Portugal está há quase duzentos anos, pelo menos, relativamente atrasado no continente a que pertence, e nem por isso deixou de ter largos períodos de estagnação.

Não vou, num artigo para um blogue, resolver o problema da dívida que nos atenaza. Aliás, se resolvesse escrever um livro sobre a matéria, é provável que ficasse com lesões no couro cabeludo, de tanto o coçar; e ainda menos o do atraso português, que há vinte anos se acentua.

Mas, se é difícil enunciar a longa lista do que seria necessário fazer, é muito mais fácil tropeçar no que não se deve porque temos todos os dias exemplos diante do nariz. E destes a importação acrítica de soluções de países em circunstâncias diferentes é quase sempre uma burrice. Eça disse algures (cito de cor) que Portugal era um país traduzido do francês em calão; e agora continua a ser, mas do inglês macarrónico das faculdades do mundo anglo-saxónico, onde actualmente a seita dos economistas vai buscar a sua formação, para o efeito de preopinar receitas para o desenvolvimento – já andamos nisto há quarenta anos.

Desse mundo vêm as modas do pensamento mágico. E destas a última é a da semana dos quatro dias. Há países e empresas que já estão a estudar, e a aplicar, versões diferentes deste milagre. Nós, se tivéssemos juízo, deveríamos olhar para semelhante movimento por aquilo que é: empresas e países que, tendo pouco a invejar à concorrência, transferem para empregados e cidadãos os benefícios do desenvolvimento e o maná dos recursos. Imaginar que, trabalhando menos, se produz mais sem mexer nos outros factores que têm a ver com produtividade, é o milagre da multiplicação dos pães, a menos que o resultado do trabalho seja o mesmo, apenas o seu ritmo aumente.

Não é que, longe disso, a quantidade de horas de trabalho seja a variável mais importante no desempenho das empresas: qualquer empresário de vão de escada sabe que se duplicar a produção porque investiu numa nova máquina, mesmo que requerendo pessoal com formação, portanto mais bem pago, pode ter feito um excelente negócio; como o pode ser a contratação de quem se ocupe do marketing, ou a criação de canais próprios de distribuição, ou a adopção, se for bem sucedida, de uma estratégia de diferenciação do produto, ou, ou, ou. Tudo isto e o mais que qualquer licenciado em gestão pode papaguear, em geral acrescentando queixa das deficiências de formação dos ridículos empresários que o não contratam, razão pela qual o país está muito atrasado e pérépépé. Os motivos por que quem não sabe faz, e quem sabe opina em vez de fazer, ficam em geral no segredo dos deuses.

“Aquilo que é robusto na literatura é que em termos macro existe uma correlação negativa entre o PIB por hora trabalhada e o número de horas trabalhadas. Países com maior produtividade trabalham menos horas em média (Dinamarca e Noruega) e países com menos produtividade trabalham mais (Grécia e Portugal). Correlação não quer dizer causalidade”.

Não, não quer, se bem que neste caso a causalidade exista: os países que são mais produtivos não precisam de trabalhar tantas horas porque… são mais produtivos, isto é, têm mais capital, do propriamente dito e do humano, além de uma história mais ou menos recente de progresso que lhes permitiu estarem onde estão – candeia que vai à frente ilumina duas vezes. Candeia em termos micro, não sei se me entendem, em termos macro deveria talvez dizer uma rede de holofotes, que arranho umas coisas do dialecto economês.

Porquê então este disparate? A ideia de que depois da Covid nada ficará como antes é aliciante: o cidadão já se habituou a achar que o Estado pode tudo, combater a epidemia e paralisar a economia, subsidiando-a de modo a tornar o sofrimento invisível, e que o endividamento daí resultante é uma abstracção – eles resolverão o problema.  Quem pode o mais pode o menos, haveremos de ter o mesmo PIB por cabeça da Alemanha, um design do nível do italiano e as mulheres bem vestidas como as francesas até mesmo no Casal Ventoso. E para isso não é preciso esforço, do que precisamos é de governos de esquerda, daquela esquerda que se acolhe ao que a define – bandeiras, como dizia Kundera (cito de memória, mais uma vez). De modo que podemos contar com engenheiros do progresso, empresas que querem aliciar os melhores quadros, sindicatos, a malta do PCP que quer pôr fim ao capitalismo e a do BE que o quer melhorar até ao ponto de ficar irreconhecível, bem como adeptos da descarbonização, não dos refrigerantes em garrafa, como se esperaria, mas da economia, uma iniciativa ecológica que tem a grande vantagem de não se saber bem o que seja além de subsidiar parasitas para produzir o que sem ajudas não veria a luz do dia.

Isso e idiotas úteis, dos quais entre nós há uma generosa abundância.

Ambiente de trabalho VI

Teresa Ribeiro, 15.02.21

Tudo começou com a democratização do ensino. Algo que urgia, mas que esbarrou num mercado de trabalho impreparado. Num país sem investigação nem iniciativa empresarial nas mais diversas áreas, não havia lugar para muitos licenciados. Por isso no fim da linha tantos passaram a desembocar no desemprego, na emigração, ou na precariedade. A desvalorização do trabalho intelectual inicia-se assim, em meados dos anos 80, rumo à proletarização das mais diversas profissões, sobretudo na área de humanidades, mas não só.

Hoje é comum um empresário pagar mais à empregada que lhe limpa a casa do que aos licenciados que emprega no seu escritório. Isto porque as empregadas domésticas, ao contrário  destes novos proletários, beneficiam da lei da oferta e da procura. 

Com a crise pandémica esta vulnerabilidade aumentou. Sei de gente que esteve seriamente doente e que nunca parou de trabalhar. Isto de o trabalho intelectual poder ser feito à distância tem sido - para muitos doentes COVID e não só - uma dificuldade acrescida. Porque a entidade empregadora presume que em casa, mesmo doente, dá para ir trabalhando.

Esta pressão verifica-se sobretudo junto dos que trabalham em PME's. Como estas constituem, como se sabe, a esmagadora maioria do tecido empresarial português, estamos a falar de muita gente. De profissionais cujas equipas se resumem, tantas vezes, a eles próprios. Em cujas funções sabem ser insubstituíveis. Circunstância que não os beneficia, pelo contrário. Pois se não podem parar, se porventura um dia o fizerem, pode significar o fim de um contrato de trabalho.

Mas entre os profissionais que não podem trabalhar à distância também vejo muitos a arriscar todos os dias um possível contágio, porque aceitam trabalhar sem condições de segurança e o motivo é sempre o mesmo: a precariedade endémica que os faz ceder a cumplicidades que lhes são impostas, de forma abusiva, a bem dos interesses da empresa. E cedem porque estão na base da cadeia alimentar que há muito vive da exploração impudica do talento. Esse bem que tantos agora gostam de louvar mas que hipocritamente, no segredo dos seus escritórios, tratam como lixo.

A violência católica

jpt, 11.10.20

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(São Tiago, o Matamouros, por José María Casado del Alisal )

Li há dias que um funcionário farmacêutico lisboeta, por ter defendido uma colega - acto que denota sentir cavalheiresco a indiciar algum machismo -, foi severamente espancado no seu local de trabalho por dezenas de membros de uma família - as parcas notícias do facto são díspares quanto ao número dos agressores, variando entre 20 e 50 ...

A imprensa pouco mais adianta, nem sobre os detalhes do acontecido nem sobre as investigações subsequentes. Não há qualquer proclamação das autoridades policiais ou dos orgãos camarários. Há silêncio governamental e até presidencial - e é particularmente surpreendente que o Presidente Sousa, que elabora sobre quase tudo, agora elida o assunto. Mais extraordinário, nada se ouve de sindicato, ordem, associação ou outro qualquer órgão da classe dos farmacêuticos. E as redes sociais não fervilham em ecos indignados. Não grassa a ira popular nem a preocupação oficial diante disto de um trabalhador ser espancado no seu local de trabalho, ainda por cima por motivos tão espúrios, pois, ao que consta, tudo foi originado por um pequeno incidente de trânsito no qual o agredido nem esteve envolvido.

Julgo que este silêncio social tem uma evidente causa: o receio, de respeito disfarçado, diante da Igreja Católica. Pois afrontar estes radicais católicos, tantos deles congregados na poderosa Associação das Famílias Numerosas, é ainda um risco. Pelos vistos, andam agora a espancar o cidadão comum. Tal como há séculos atrás fizeram ...

Adenda: sobre o nome próprio do santo representado no quadro que encima o postal surgiram comentários discordantes. Correndo o risco de acicatar a fúria das temidas Famílias Numerosas, não modificarei a versão que apresentei do nome do Santo Genocida (que é assim que deverá ser conhecido no pensamento actual).

O "desvio de direita" do PCP

Pedro Correia, 20.08.19

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1

Esta é, de um ponto de vista do que se convencionou chamar "esquerda", a pior herança da Geringonça: a rendição dos comunistas aos socialistas.

Aquilo a que Álvaro Cunhal sempre denominou "desvio de direita". Chegando ao ponto de fazer expulsar dos órgãos dirigentes do partido - o Secretariado e a Comissão Política - honestos e valorosos militantes que defendiam teses menos aproximadas ao PS do que as hoje vigentes.

Nunca tive uma sensação tão forte de que o PCP está em derrocada - agora no campo sindical, após ter sido derrubado nos seus principais bastiões autárquicos - como no passado dia 15, quando ouvi Jerónimo de Sousa apontar o dedo acusador aos camionistas em greve por melhores salários e maiores direitos.

Disse ele:

«[Esta é] uma greve decretada por tempo indeterminado, com uma argumentação que instrumentaliza reais problemas e o descontentamento dos motoristas, cujos promotores não se importam de dar pretexto à limitação do direito à greve, como se está a verificar.»

 

2

O secretário-geral do PCP assume-se assim como fiel aliado do Governo no ataque a sindicalistas que reivindicam salários reais decentes, menos tempo de laboração fora do quadro legal previsto para o horário de trabalho e a justa adequação das remunerações que recebem aos descontos para a Autoridade Tributária e a Segurança Social.

Funcionando, na prática, como ponta-de-lança do Governo PS já na corrida rumo à tão ansiada maioria absoluta.

 

3

O líder comunista chegou ao ponto de insinuar que a culpa da inaceitável instrumentalização das forças armadas e das forças policiais contra os grevistas era... dos próprios grevistas

Chegou ao ponto de insinuar que a culpa do desvirtuamento do enquadramento legal dos "serviços mínimos", transformados neste caso afinal em serviços máximos, era... dos grevistas.

Chegou ao ponto de insinuar que o descarado abuso da lei que regulamenta os mecanismos da requisição civil era... dos camionistas em greve.

Que diferença em relação ao comportamento do PCP quando os socialistas estiveram anteriormente no Governo. Num documento que aprovou a 12 de Fevereiro de 2011 definindo as principais linhas de intervenção política do partido nessa recta final do Executivo Sócrates, o Comité Central comunista sublinhava: «As acções de luta realizadas recentemente, como são exemplo as greves e paralisações num conjunto de empresas no sector dos transportes e comunicações (Metro, Carris, Transtejo, Soflusa, CP, EMEF, CP-Carga, REFER, STCP, RBL), nos CTT, INCM, Município de Loures (...) constituem uma importante resposta à ofensiva desencadeada pelo Governo do PS.»

 

4

Nunca imaginei ver o PCP alinhado de forma tão despudorada com uma entidade patronal - neste caso, a ANTRAM - para defender o Governo que vem patrocinando há quatro legislaturas e o sindicalismo que lhe está subordinado.

Nunca imaginei ver em sucessivos debates televisivos o representante da CGTP para os transportes alinhado com os patrões contra os seus camaradas no exacto momento em que estes desenvolviam uma «acção de luta».

Nem supus alguma vez que a Fectrans - braço da CGTP para os transportes - assinasse acordos de capitulação com os patrões no preciso momento em que outros sindicatos do sector se encontravam em greve. Assumindo-se assim como uma central sindical "amarela" e "colaboracionista" - acusações que noutros tempos a própria CGTP fazia à UGT.

Não por acaso, todos os comentadores da chamada "direita" se apressaram a enaltecer a «atitude respnsável» do sindicalismo orgânico ligado umbilicalmente aos comunistas. Diz-me quem te elogia, dir-te-ei quem és.

Nestes dias ficou evidente, aos olhos dos portugueses, que o PCP é hoje um partido anti-revolucionário, reformista e conformista. Que não hesita em contemporizar com quem paga salários de miséria para favorecer os lucros milionários das petrolíferas, que não hesita em demarcar-se daqueles que reivindicam melhores condições de vida recorrendo a um instrumento legal e constitucional.

 

5

Conheço Jerónimo de Sousa e respeito o seu percurso.

Mas não consigo acompanhá-lo neste "desvio de direita" que ameaça descaracterizar de vez o PCP como partido que se afirma representante dos trabalhadores por conta de outrem.

Pelo contrário: a cúpula comunista tornou-se, por estes dias, cúmplice do maior atentado ao direito à greve ocorrido em Portugal desde a instauração do regime constitucional de 1976.

Há vinte anos, isto geraria um intenso debate interno no PCP - sei bem do que falo, pois acompanhei em pormenor a vida interna do partido enquanto jornalista. Que neste momento isto só ocorra em franjas marginais da estrutura partidária, com pequenos reflexos nas redes sociais, revela bem até que ponto o partido de Bento Gonçalves e Cunhal se tornou irrelevante. Não apenas no conjunto da sociedade portuguesa mas os olhos dos próprios militantes.

 

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Adenda: É inaceitável que o PCP continue a não ser escrutinado, como se impunha, pelo jornalismo político português. O mesmo que se intromete até na cama dos restantes partidos, se for preciso, mas se mantém respeitosamente do lado de fora da porta da sede central dos comunistas.

O País do trabalho sem direitos

Pedro Correia, 17.07.19

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Férias no Algarve. São 18.30 quando chego a um dos meus restaurantes favoritos, sem marcação prévia. Em busca do peixe bem grelhado de que tanto gosto. 

Atende-me um empregado que bem conheço. Hoje [ontem] parece-me pouco satisfeito.

- Que se passa? - pergunto.

- Falta de folgas. Cansaço. Dias após dias sem folgar.

- Mas ontem [segunda-feira] estiveram fechados, aliás como é costume...

- Sim, mas foi o último dia. O patrão acaba de avisar-nos que durante os próximos dois meses não teremos folgas. Até 15 de Setembro estaremos sempre a funcionar.

- E vão ter alguma compensação financeira por isso?

- Nem mais um cêntimo. É pegar ou largar, disse ele.

- E ele nega-vos mesmo a folga semanal?

- Sim. Ainda tentámos que no desse meia folga, ao menos isso. Mas recusou.

 

Eis um quadro que se vai multiplicando por esse Algarve fora. Acumulam-se os clientes, acumula-se a receita, acumulam-se os lucros - e diminuem os direitos dos trabalhadores, a começar pelo mais básico: o direito ao descanso.

Até Deus, que é omnipotente, descansou ao sétimo dia. Estas entidades patronais, julgando-se num mundo em que são elas a ditar as leis, arrogam-se no direito de explorar até ao tutano quem lhes presta serviço. É o caso deste restaurante, que tem um número fixo de empregados: em vez de reforçar os quadros nos meses de maior afluência de público, adequando a oferta à procura com o recrutamento de trabalhadores temporários, estica ao máximo os recursos de que dispõe, insuficientes nesta quadra, negando-lhes contrapartidas remuneratórias ou as mais que justas folgas de compensação.

Às sete da tarde, as duas salas estão cheias e começa a formar-se fila à porta para jantar. Os empregados correm de mesa em mesa: já ao almoço ocorreu algo semelhante e terão pelo menos mais três horas seguidas neste ritmo frenético.

 

Não é difícil fazer uma estimativa perante tal afluência, multiplicando comensais diários por custo médio de refeição: a meio da semana, neste estabelecimento, já a despesa estará coberta. A partir daí, tudo é lucro. O problema é que estes patrões - que adoram intitular-se "empresários" - mostram pressa em matar a galinha dos ovos de ouro. São cada vez mais frequentes os casos de cozinheiros e empregados de mesa que, cansados de tanta exigência a tão baixo preço, procuram vias profissionais alternativas. 

Tenho um amigo, proprietário de três restaurantes em Lisboa sempre cheios, que se queixa disto mesmo:

- Eles deixam de aparecer, muitas vezes nem avisam. Temos de improvisar tudo, transferindo pessoal de um estabelecimento para outro às vezes em cima da hora de abertura.

- Porque é que vocês não lhes pagam mais? - indago.

- Eh pá, sabes, a vida está difícil para todos...

 

Segue-se o habitual rosário de queixumes da parte de quem prospera a olhos vistos mas só pretende dividir escassas migalhas desses dividendos. Em Lisboa como no Algarve.

Mesmo em férias, vou pensando: eis o País que não mora nas estatísticas nem na propaganda do "Portugal positivo". O País do lucro máximo de alguns à custa dos direitos mínimos de muitos. O País onde é possível trabalhar dois meses sem sequer meio dia de folga diária, quase em regime de servidão feudal. O País do trabalho sem direitos a que partidos que tanto invocam a "classe trabalhadora", como o BE e o PCP, fecham os olhos neste quarto ano contínuo de "geringonça".

Foi para subsidiar patrões como estes que o Governo Costa/Centeno decretou logo no início uma das medidas mais demagógicas de que há memória em anos recentes: a redução da taxa do IVA na restauração. Os restaurantes não baixaram preços nem recrutaram gente: limitaram-se a ampliar as margens de lucro. Enquanto o Estado via diminuir quase 400 milhões de euros a receita fiscal neste sector, que logo tratou de compensar por outras vias, esmifrando os do costume - nós, os contribuintes - com a maior carga tributária de sempre: 35,4% do produto interno bruto.

 

Pela primeira vez, confesso, não apreciei o peixe grelhado que comi aqui.

Ambiente de trabalho V

Teresa Ribeiro, 14.03.19

Não sei quando e porque se inventou a norma  de etiqueta que estabelece que nunca, em caso algum, se deve declinar propostas ou convites com um rotundo e inequívoco "não". A verdade é que se tornou uma escola. E no entanto para quem fica suspenso de uma resposta não existe nada mais desgastante. Espero, ou não espero? Mudo de planos? Procuro novos interlocutores?

Tudo o que se obtém é silêncio ou um discurso reticente feito de promessas vagas. Em vez de fumo branco, sai nevoeiro cerrado. Névoa que nos faz perder tempo e isso em ambiente de trabalho tem impacto na  eficiência, o que é grave. 

A quem aproveita esta atitude? Não consigo entender. De um lado espera-se e desespera-se, do outro empata-se. Evitar um "não", em primeira análise, pode parecer simpático e até educado mas em termos práticos resulta muito pior. Leva o outro a impacientar-se, a ter de insistir, a levar com desculpas standard e por fim a perguntar-se se o gesto é deliberado, não passando, nesse caso, de uma grosseira manifestação de arrogância. 

Aonde é que isto conduz? Seguramente, a nada que interesse.