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Delito de Opinião

A origem do Mirandês

Cristina Torrão, 27.10.24

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Fotografia de 1914

Deparei, há dias, com um vídeo do Professor Marco Neves sobre o Mirandês, reconhecido como língua, pela Assembleia da República, há vinte e cinco anos. Infelizmente, tenho apenas este link do Instagram, não sei se há acesso ao vídeo por outro meio.

Costumo seguir os vídeos do linguista Marco Neves e este chamou-me particularmente a atenção, porque a língua mirandesa é algo que me tem ocupado, nos últimos anos, não tivesse eu uma boa costela transmontana – de “Trás-os-Montes Oriental”, acrescente-se, pois há grandes diferenças entre os distritos de Vila Real e de Bragança, incluindo os dialectos que se falavam nas aldeias.

O Professor Marco Neves vem clarificar um equívoco: muita gente pensa que o Mirandês começou por ser um dialecto do Português. Nada mais errado! Sabemos que o Português e o Galego têm a mesma origem. O Mirandês, no entanto, pertence a um outro grupo linguístico, o Asturo-Leonês, uma variante situada, geograficamente, entre o Galaico-Português e o Castelhano.

Acrescento (isto não vem no vídeo) que, à altura da formação de Portugal, Castela ainda não era o grande reino no qual se tornou mais tarde. O reino mais poderoso da Península Ibérica era Leão (ao qual pertencia o condado Portucalense). E, nesse reino, como é óbvio, não se falava Castelhano, mas Asturo-Leonês. Esta língua acabou por desaparecer. Falava-se na região que, das Astúrias, descia para Zamora e Salamanca e espalhou-se ainda mais para Sul, enquanto o rei de Leão deu cartas na Reconquista. Leão acabou, porém, por ser engolido por Castela, com uma (grande) ajuda de Portugal. A independência da nossa nação foi-lhe fatal. Enquanto, a Leste, Castela se tornava cada vez mais poderosa, a expansão de Afonso Henriques para Sul impediu a progressão do malogrado reino para Ocidente. Enfim, o nome ficou eternizado na grande região espanhola de “Castilla-León”.

Tudo isto para dizer que, no Portugal dos primeiros séculos, em vastas regiões das terras de Bragança, não se falava o Galego-Português, mas o Asturo-Leonês. Tenho seguido com muito interesse este estudo, através de Rui Rendeiro Sousa. Natural de Macedo de Cavaleiros, dedica-se, há mais de trinta anos, à História do seu concelho, tendo já publicado livros sobre muitas freguesias.

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Carrapatas, anos 1960 (desconheço o autor da fotografia)

Rui Rendeiro Sousa afirma que a língua, hoje conhecida como Mirandês, se falaria numa vasta região do actual distrito de Bragança. Esse idioma foi, ao longo dos séculos, sendo empurrado, pelo Português, cada vez mais para Leste, até se limitar a uma pequena zona circunscrita (a de Miranda do Douro).

Uma coisa é certa: quando eu era criança, não entendia as pessoas da aldeia-natal do meu pai, com o curioso nome de Lombo. Quase nem entendia a minha própria avó. Falavam Português, mas de uma maneira, digamos, estranha. Hoje, já quase ninguém fala assim. O sotaque transmontano continua a ser especial (não o confundam com o da faixa litoral Minho/Porto, não tem nada a ver), mas já nenhum português de outras paragens tem dificuldade em entender os naturais da região.

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Freguesia do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros (fonte: página da freguesia no Facebook)

Acrescento palavras do próprio Rui Rendeiro Sousa, até porque ele consegue muito bem demonstrar uma maneira de falar única e que começou a desaparecer nos anos 70/80 do século passado. Estas palavras são excertos de textos que vai publicando no Facebook, na sua luta pela verdadeira identidade do que ele denomina de “Trás-os-Montes Oriental”. O primeiro vem a propósito de um artigo sobre a mania de os nortenhos trocarem os “vês” pelos “bês”, acrescentando-se: «No passado, o Norte de Portugal e a Galiza partilhavam a mesma língua, o galaico-português»:

Um Norte ao qual também tenho imenso orgulho em pertencer! Todavia, há dois «Nortes», geográfica, histórica, linguística, etnológica e etnograficamente. Por isso não dançamos por aqui o Vira Minhoto, nem Pauliteiros ou Caretos há pelo Norte Litoral… Mais orgulho ainda tenho em pertencer ao segundo dos «Nortes», o Interior, que nada tem a ver com o Litoral! E ainda mais orgulho tenho em pertencer a «Trás-os-Montes Oriental» denominação que se vem tornando tradição, no universo da historiografia, para designar, grosso modo, o território que corresponde ao actual distrito de Bragança!

No que respeita à publicação em causa, desconhecerá (naturalmente) a autora (e todos aqueles que a partilham), que pelas bandas do tal de «Trás-os-Montes Oriental», especificamente na tal de Terra Fria, não havia Galego-Português para ninguém (à excepção dos letrados da corte que para aqui vinham em públicos cargos). Havia, sim, um outro ramo, o Asturo-Leonês, do qual derivam os dialectos Riodonorês e Guadramilês, e a oficial Língua Mirandesa. Idioma este que até era o por aqui falado pelos nossos bisavós/trisavós… E no qual não há nenhuma troca de «vês» por «bês», ou o inverso, porque o alfabeto Mirandês nem sequer contempla a letra «v»! Dito de outra forma, enquanto a «Língua Fidalga», a norma-padrão Português, é uma evolução a partir do Galego-Português, a «Língua Charra», na qual se inclui o Mirandês e os dialectos com raízes aí, é uma evolução com origem no Asturo-Leonês.

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Fotografia de Artur Pastor (desconheço a data)

E a propósito da passagem, em 1884, do linguista Leite de Vasconcellos por Macedo de Cavaleiros:

Porque falavam os nossos “abós d’ua forma ztranha” e temos Pauliteiros em Salselas? [Salselas é uma outra freguesia do concelho de Macedo de Cavaleiros]

As “belhinhas” e medievais «Terras de Miranda» abrangiam, histórica e geograficamente, uma vasta extensão, que incluía, não só os concelhos de Miranda do Douro, Vimioso e Mogadouro, mas também uma grande parte dos concelhos de Bragança, Freixo, Moncorvo e… Macedo de Cavaleiros!!!

É por isso que (ainda) temos por cá Pauliteiros (os magníficos de Salselas!), e outros já tivemos…

Havia outras coisas, que ele [Leite de Vasconcellos] deixou magnificamente registadas. Nomeadamente a soberba essência dos nossos “abós”, os tais que falavam de uma forma “ztranha”. E é delicioso ver os apontamentos desse «básico» Homem que incluiu as Terras Macedenses no seu périplo, por cá andando “d’a cabalu’e n’ua burra”… E descansando numa hospedaria, que na altura era chamada de “stalaige”, porque os seus donos eram os “stalajadeirus’e” (e as “stalajadeiras’e”). E “habia deis im Macedu’e, pur’u menus’e”, não sabendo a qual dos dois terá solicitado repouso… Mas sei que, nessa época, pediu batatas para acompanhar o jantar e os convivas riram-se… Porque, a contrariar a realidade actual, na qual a “balula” é indissociável da nossa riquíssima gastronomia, nesse tempo dos nossos “abós/bisabós”, o digno tubérculo era produzido, quase exclusivamente, para “butare na bianda”… A dos “cutchinus’e”…

E “prontus’e”… Lá vou “intentandu’e” partilhar o tanto que “fêzu” o que “sêmus’e”, trazendo por aqui o muito que guarda uma terra que até já foi “mim piquerrutcha”…

Dizem, por «Terras de Miranda», no seu fantástico idioma, que também já foi o nosso, que têm imensa «proua an ser Mirandés». Deturpo-lhes a expressão, alterando-a para algo que melhor se me adapta, não a escrevendo em «Pertués», mas no original «Mirandés»: «proua an ser de Macedo de Cabalheiros»! Porque «ye a tierra adonde naci, a mie tierra»…

 

Castanhas assadas.jpg

Desconheço autor e data

Flores

Cristina Torrão, 01.05.24

Quando se pensa em Maio, pode pensar-se em flores, primavera e um clima excelente, diz-nos a Maria Dulce Fernandes ali mais abaixo.

Por acaso, fiz ontem um vídeo de flores silvestres transmontanas. Foi em Macedo de Cavaleiros, não em Miranda do Douro, como a canção pode fazer pensar. Mas eu fiz questão de uma banda sonora com gaitas de foles. Adoro este instrumento, tão típico desta região, mas tão pouco divulgado em Portugal. E adoro Pauliteiros, que aliás não existem apenas em Miranda do Douro.

Espero que gostem, neste 1º de Maio:

O primeiro nevão do ano

João Pedro Pimenta, 03.03.23

Como parece que o Inverno ainda não acabou, ao contrário do que os optimistas pensavam em meados de Fevereiro, mesmo que estejamos no mês do seu fim, deixo aqui algumas recordações dos momentos mais frios, a 18 de Janeiro. As imagens foram tiradas na serra do Alvão, provando que não é só na serra da Estela que há neve.

 
 
Ao longe o monte Farinha, encimado pela Senhora da Graça, paragem obrigatória da Volta a Portugal, como uma ilha no meio de um oceano branco.
 
 
 
 


Ceder energia, arder por indiferença

João Pedro Pimenta, 22.07.22
Felizmente já estão em fase de resolução (espero, porque em dois casos voltaram), mas os grandes incêndios da última semana, tirando o da Guarda e o do Fundão, foram todos em Trás os Montes. E à parte de um perto de Bragança, todos no distrito de Vila Real - Chaves, Vila Pouca, Murça, até o de Baião invadiu o Marão. Entre aldeias habitadas por idosos, que por isso mesmo têm mais dificuldade em limpar as suas propriedades, fragas difíceis de alcançar e pinhais dispersos, arderam milhares de hectares, inúmeras árvores que eram o sustento das populações, algumas casas e morreram inúmeros animais e três pessoas (apesar de tudo muito menos do que em 2017).
 
Tudo isso poderia levar-nos para a discussão do abandono, desertificação e envelhecimento do interior, mas houve um pormenor em que poucos notaram: a não muitos quilómetros dos incêndios, em Ribeira de Pena, António Costa inaugurava esta semana a nova central hidroeléctrica do Tâmega, três albufeiras que se destinam à produção de electricidade. Ou seja, um empreendimento que sacrificando parte das terras em redor, por norma do interior, pretende fornecer energia a parte do país, mas aparentemente sem grandes contrapartidas às populações da região. Vimos o mesmo com as barragens no Planalto Mirandês, vendidas sem que os municípios recebessem o que quer que fosse. Ou com as enormes albufeiras no Barroso, que poucos benefícios palpáveis vieram trazer à região. Os tais "empregos" e "oportunidades" não passaram de ilusões e a população decresceu a olhos vistos.
 
Este é o drama permanente do interior, particularmente de Trás os Montes: continuamente desbastado para fornecer energia ao resto do país, mas esquecido em tudo o resto e notícia apenas quando há tragédias como os fogos, consequência do abandono e do desinteresse por parte de sucessivas administrações que sempre olharam para a região apenas como reserva de energia. E vamos lá a ver se não abrem umas crateras para explorar lítio a mando do secretário de estado Galamba, o perfeito exemplo do governante que se está nas tintas para o território desde que tire de lá benefícios (nem contrapartidas se lhes pode chamar). Suprema e cruel ironia, a da zona que usa a água para o fornecimento de energia necessitar tanto dela para salvar o seu território.
 
Fogo em Murça possui uma frente ativa e lavra em zona sem acessos

Colectividades de bairro numa cidade transmontana

João Pedro Pimenta, 29.12.21

As pequenas colectividades contam muitas vezes a história dos locais que representam. Como a do Bairro Latino, clube desportivo do bairro dos Ferreiros, que desce abruptamente desde a imponente ponte metálica até à velha ponte de Santa Margarida, de pedra, ambas sobre o Corgo. Diz-se que um conjunto de estudantes de liceu locais encontrou algumas semelhanças entre o Quartier Latin de Paris e o seu bairro dos Ferreiros, zona de artesãos e, dizia-se, de casas de má fama, e impulsionados pelo Dr. Otílio de Figueiredo, Pai do Professor Eurico de Figueiredo (sim, o líder mais radical da greve estudantil de 1962 e mais tarde deputado do PS antes de passar a outros partidos, como o PDR e o MPT), resolveu criar um clube com o nome de Bairro Latino, dando conta que a rua principal e as ruelas que a ladeavam eram tantas como as línguas latinas. Apesar de muito eclético e de ter várias modalidades de salão e exteriores nunca teve um campo de jogos próprio nem nunca conseguiu ombrear com o vizinho maior, o SC Vila Real, que não lhe permitia jogar no mítico campo do Calvário. O Bairro Latino quase desapareceu, mas voltou a conseguir sede própria, próxima da antiga (onde ao que parece as francesinhas estavam ao nível das do Cardoso, lá em cima na "bila"), onde hoje funciona a Agência de Ecologia Urbana, mesmo à entrada da velha ponte sobre o Corgo (e por baixo da metálica), símbolo maior do velho bairro que representa.

O SC Vila Real, pelo contrário, além de campo próprio (agora até tem dois, ambos com nomes curiosos, Calvário e Monte da Forca), possui o seu próprio bar/loja no espaço nobre do centro da cidade (última foto) e continua a ser a principal agremiação desportiva da cidade.

Seja em aldeias, lugares, vilas ou bairros de cidades, as pequenas colectividades, constituídas em associações, grupos, agremiações e uniões acrescentados dos inevitáveis "desportiva", "recreativo", cultural", etc, constituem um elo de ligação das comunidades, uma oportunidade para a prática desportiva, para difusão cultural ou de informação ou o simples convívio, que no fundo é o que mais importa. São absolutamente essenciais em qualquer sociedade e para todas as idades. Quando desaparecem, extinguem-se também com elas ligações, amizades, práticas rotineiras, exemplos de vida e sobretudo muitas histórias. Quando isso acontece, é a antevisão do declínio das sociedades locais que representam, a não ser quando outras as substituam com sucesso.

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 As duas pontes: a de Santa Margarida e, lá em cima, a ponte metálica

 
A sede do Bairro Latino, entre duas pontes

Vista do bairro, do rio  e da velha ponte desde a ponte metálica

O bar/loja do SC Vila Real
 
O mítico campo do Calvário, há meia dúzia de anos, depois de ser relvado