Frases de 2019 (25)
«As corridas de touros fazem parte da História de Portugal. Como faz a Inquisição, a tortura, a pena de morte, o colonialismo.»
André Silva, ontem, em campanha eleitoral no Alentejo
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«As corridas de touros fazem parte da História de Portugal. Como faz a Inquisição, a tortura, a pena de morte, o colonialismo.»
André Silva, ontem, em campanha eleitoral no Alentejo
«Portugal não pode dizer que é um país civilizado enquanto tiver touradas.»
André Silva, porta-voz do PAN, em entrevista ao jornal Sol (1 de Junho)
Reparem em quem causou maior mossa a António Costa no último mês. Terá sido alguém da oposição? Nem por sombras. Foi o líder parlamentar do PS ao promover um levantamento de rancho da sua bancada contra a ministra da Cultura, incondicional de Costa e protegida do primeiro-ministro. Carlos César não hesitou em partir praticamente ao meio o grupo parlamentar socialista para encostar às cordas a ministra a propósito da pseudo-superioridade civilizacional dos cidadãos urbanos que detestam touradas, forçando o Executivo a baixar para a taxa mínima do IVA os ingressos em espectáculos tauromáquicos.
Isto, repito, foi a maior contrariedade sofrida pelo chefe do Governo neste último mês, marcado pela discussão parlamentar do Orçamento para 2019. A oposição, encabeçada por Rui Rio, foi dócil e branda: aliás passou o tempo a lamber as feridas, pois afogou-se em trapalhadas devido ao escândalo dos deputados que marcaram presença nas sessões parlamentares mesmo quando estavam a centenas ou milhares de quilómetros de distância, só para empocharem a espórtula diária que a lei lhes confere.
Está nisto, a oposição: totalmente inane. Já repararam no sorriso de Costa, cada vez mais rasgado?
Sobre isto de touradas bloguei em 2012 (um texto um pouco mais longo que recoloquei aqui). Resmungando que a) numa sociedade que trata fauna e flora desta forma omnívora e voraz, e que tem estas práticas de produção alimentar, o centramento das preocupações com o episódico sofrimento taurino mostra uma enorme inconsciência e mediocridade intelectual (e moral); b) a oposição à tauromaquia é, fundamentalmente, a raiva ideológica face à socioeconomia rural, em particular a de "lezíria"; e que c) estas preocupações ("civilizatórias" nas palavras da actual ministra da Civilização) mostram o primado uma política de cabotagem, encerrando a questão ecológica numa redoma de "petização" (no duplo sentido de "pet", animal doméstico, e "petiz", infantilização dos cidadãos) - consagrada na recente legislação sobre o acesso de animais domésticos a cafés e restaurantes. Esta política centra-se na domesticidade, pois as relações da sociedade com a sua natureza são olhadas e criticadas através das preocupações mais quotidianas das famílias elementares (e do crescente isolamento individual) em palco urbano e suburbano. Ou seja, obedece à irreflexão típica do quotidiano do eleitorado, e é nesse sentido que é política de cabotagem (e também muito cabotina, e não só por tendencial homofonia).
Nunca fui a uma tourada, e o que vi na tv não me criou qualquer afeição. Por mais que os seus defensores clamem é óbvio que a festa sanguinolenta tem os dias contados, deixou de corresponder às sensibilidades e valores predominantes, tanto no país urbano como no contexto cultural mais amplo em que nos inserimos. Tal e qual outras actividades festivas e económicas que fazem actuar animais, como a luta de galos ou de cães. Ou algumas formas de caça (ainda se caça com armadilhas?). No mesmo âmbito de mudança que instituiu novas formas de controlo sobre as corridas de cães e de cavalos, evitando a sua exaustão, ou os circos. Ou foi transformando o tétrico paradigma dos horrorosos "jardins zoológicos" com animais enjaulados. Os adeptos da tauromaquia podem então continuar a clamar mas não há nada a fazer, o tempo desta tourada passou. E, mais uma década ou menos uns anos, ela será terminada. Ou então evolui.
Não sou nada especialista, e um conhecedor porventura ficará escandalizado com o que digo. Mas julgo que o toureio português tem duas especificidades preciosas: o equestre, uma dressage peculiar que possibilita e até histrioniza a encenação do conúbio homem-animal (a cultura) enfrentando a besta (a natureza); a pega, a encenação do colectivo humano, armado apenas de força e destreza, enfrentando a natureza.
Ora estas encenações são algo anacrónicas: por um lado, e ainda que a estética tauromáquica muito se cruze com as estéticas dos movimentos políticos homossexuais actuais, a pega apela a uma rusticidade máscula que afronta a presente homofilia, que àquela diz "tóxica". E esse é um grande inimigo ideológico, indito, subterrâneo das touradas. Talvez mesmo o mais importante neste curto prazo. Por outro lado, mais estrutural, a encenação ritual do conflito homem(/animal)-natureza perdeu estes referentes: a natureza está domada (escavacada até), fauna desaparecida ou domesticada, flora recondicionada, e até vírus e bactérias recuam face à indústria química. A natureza agressiva é hoje a climatérica, muito menos (ou até nada) simbolizável numa arena.
Como preservar a tourada? Seus valores, e em particular a criação equídea e taurina, e um precioso ambiente de diversidade ecológica? "Mudar ou morrer" é o que lhes resta. Mas a proposta socialista de introduzir protecções para touros é recebida com apupos pelos imobilistas aficionados ("Vitória ou morte!", urram, na antevéspera de ulularem "Viva a Morte"). E com gozo pelos adversários das touradas - pois a estes, de facto, não preocupam os touros mas sim o meio social, e seus valores, ligado às touradas, que abominam.
Deixemo-nos de rodeios. Por mais que seja obrigação (intelectual, patriótica, até moral) pontapear tudo o que advém do partido do vice do miserável José Sócrates, esta proposta tem toda a pertinência. Permitirá, para desespero dos puristas, preservar mas também disseminar a tourada, potenciar o seu carácter simbólico, a festa. Tornará a tourada uma encenação? Não. Pois ela já é uma encenação. Transformará a cenografia, potenciará a representação. Será um pouco circense? Será. Mas, de facto, não o é já?
Olhe-se para o wrestling (esse sobre o qual Roland Barthes escreveu, iluminadamente, há mais de 60 anos). Veja-se como essa encenação, ridícula que seja aos olhos mais secos, se tornou num espectáculo global e milionário. Sem precisar de ser efectivamente um combate físico, mas sendo a ritualização (até exasperadamente) histriónica do combate. A tourada, "mudando sem morrer", pode ser isso, e assim um monumental filão de recursos. Com criatividade e inovação, com coreógrafos e dançarinos (perdão, cavaleiros e forcados). Entre os quais haverá "forcados pobres" (qual a personagem do magnífico Mickey Rourke) e "cavaleiros ricos". Fazendo assim continuar, e até bem mais rica, a lezíria. Os seus magníficos cavalos, os touros livres. E a gente. Essa, felizmente, nada suburbana.
Ou então não. Aquilo acaba e far-se-ão campos de golfe. E uns condomínios para reformados com "vistos doirados".
Vamos lá ver. Sempre gostei de touradas. Gostei da 1ª vez que vi ao vivo, com 5 anos, até porque a minha mãe me garantia que aquilo que saía do touro quando lhe espetavam as bandarilhas era vinho tinto. E, nesse dia, quem lhas espetava era o Chibanga. Gostava de ver touradas na televisão, com a minha avó, num tempo em que na televisão não se passava nada, ou o que se passava eram o TV Rural, o Tom e o Jerry, os desenhos animados desencantados na Checoslováquia pelo Vasco Granja e os Jogos Sem Fronteiras. E gostava de ver ainda que, até certa altura, a minha mãe tivesse de me tapar os olhos para não ver as pegas porque nas pegas eu tinha um bocadinho de medo. Depois, já em Braga, onde víamos mais a televisão espanhola do que a portuguesa (eu já conhecia o Piranha e o Chanquete uns bons anos antes de a RTP os trazer para Portugal), descobri a tourada à espanhola. Com os Miuras e os Victorinos. Com picadores, morte do touro na arena e, nos dias perfeitos, corte de rabo e orelhas. E sim, a tourada portuguesa perdeu um bocadinho de interesse, com excepção da parte dos forcados. E sim, houve tardes em que corri para casa para ver as transmissões da TVE da Feria de Las Ventas, ou da Maestranza de Sevilla ou de Ronda. Sim, vi o Antoñete, o Ruiz Miguel, o Espartaco, o Paco Ojeda, o El Niño de la Capea, o José Luis Manzanares e o El Yiyo e o Curro Romero. Adorava aquilo, cheguei a perceber um bocadinho daquilo. Do "temple", dos "espacios", das "querencias", das "tablas". Por isso, não me venham falar das touradas do ponto de vista de gostar. Gostava de touradas e acho, para ser sincero, que ainda gosto. Do frisson, da valentia, do perigo, da violência, eu sei lá. Não me interpretem mal, mas gostava das touradas como gostava dos filmes de cowboys em que os índios eram sempre os maus e perdiam sempre. Morriam como tordos à pistola do John Wayne e dos tipos do Bonanza e nós ficávamos contentes. Ou não ficávamos? Ou como gostava do wrestling até perceber que aquilo não era pancada a sério, que estava tudo feito. Da mesma maneira, imagino, que alguns gostam de ver quando há acidentes. Ou que outros gostam de insultar árbitros todos os fins-de-semana. Somos herança genética e somos cultura e uma e outra influenciam-se. Nesse gostar de tourada, de filmes de cowboys, havia uma questão de empatia direccionada que resolvia o problema. Os índios eram todos maus, não eram? E os touros, na verdade, eram praticamente um objecto. E se estavam lá, era porque queriam. Essa é a história perfeita da tourada. O touro está lá porque é da sua natureza ser bravo, investir, ser toureado. Se não for toureado, extingue-se e, como todas as espécies, o touro orienta-se para a sua sobrevivência. E o toureiro está lá, com todos os que estão, porque essa a é a sua cultura, a sua tradição. Está tudo bem, então. Somos genética, química e cultura e a violência está presente no resultado. Está tudo bem, não está? Do ponto de vista dos instintos básicos, está, Desse traço fundamental da humanidade está, claro. Mas e depois? Não há na tourada uma violência gratuita que merece reflexão para lá disso? Pergunto porque continuo a gostar de tourada e, ao mesmo tempo, sinto que as touradas já não são deste tempo, que chegou a hora de pensarmos nisso.
Em 1973 mandámos ao festival da eurovisão esta canção, demonstrando bem como o governo de então estava a ser visto pelo país. Se olharmos bem para a letra, apesar de terem passado 45 anos, acho que a actual situação não é muito diferente. Neste dia, em que o governo e o grupo parlamentar do partido que o apoia se envolveram numa verdadeira tourada, acho que é adequado recordar esta canção.
Na China havia, como é sabido, a tradição de enfaixar os pés das meninas desde a mais tenra idade para que não crescessem mais que uns ideais dez centímetros. O sofrimento atroz que resultava da compressão dos ossos e das unhas por forma a impedir o normal crescimento do pé era justificado por motivos estéticos: um pé minúsculo era considerado mais atraente e os passinhos doridos das donzelas, a sublinhar a sua fragilidade, algo de muito erótico. Na Índia, o costume de queimar vivas as viúvas junto à pira funerária do seu falecido marido (o sati), embora proibido, parece que chegou ao século XXI (há registos de sacrifícios realizados em 2006) nalgumas comunidades hindus. A excisão genital feminina, outra prática bárbara que impende sobre as mulheres, essa está longe de ser erradicada.
As "tradições" são assim: difíceis de combater. Nem todas refletem o lado mais pérfido dos seres humanos, mas as que o fazem felizmente têm sido pouco a pouco desacreditadas pela civilização, embora - e esse é um traço comum - sob os mais vivos protestos das camadas conservadoras.
Os elos mais fracos - mulheres, crianças, idosos, pessoas doentes - têm sido ao longo dos tempos as vítimas preferenciais de muitos rituais, que sob falsos pretextos mais não fazem do que dar largas à agressividade larvar que faz parte da natureza humana. Mas se no mundo civilizado a que pertencemos a censura social já está perfeitamente estabelecida relativamente a maus tratos infligidos a outros seres humanos, quando se fala de animais, o consenso desaparece. Defender seres que estão abaixo da condição humana é subir mais um patamar civilizacional e isso demora tempo.
Pessoas e animais não estão no mesmo plano, nem têm os mesmos direitos, mas a discussão não é essa. O que está em causa quando se fala de maus tratos a animais mais do que o sofrimento da vítima é a atitude do flagelador e a complacência que deve ou não existir face à crueldade que manifesta. No fundo é a tolerância relativa ao prazer da carnificina, ao gozo de provocar sofrimento num ser capaz de sentir com todas as fibras do seu corpo a atrocidade a que está a ser sujeito, que se discute. E essa é a questão de fundo da tourada. Algo que os aficcionados pretendem iludir quando falam da "arte do toureio". Mas de eufemismo em eufemismo a que se referem eles, quando elogiam a "festa brava"? À estética. Às chiquelinas, aos pasos dobles, ao confronto estilizado entre homem e besta. A visão crua da realidade, a de que no fundo gozam com a tortura de um bicho, não lhes interessa.
Fossem os toiros robots, as praças ficariam vazias. Porque a festa brava precisa de sangue. Sem sofrimento, sem aquela luta desesperada e inglória do bicho pela sua vida, não seria a mesma coisa.
Uma pergunta: se durante uma lide o touro der uma cornada num desses moços apertadinhos em sedas, adornos, luces, fru-frus, aos gritos de hei, hei, o animal tem direito a palmas, ou fica mal? Só para saber.
Eu odeio touradas e até apreciaria que o país não as tivesse. Dito isto, acho que foi uma total loucura o projecto do PAN para as proibir, e que o BE, PEV e alguns deputados do PS votaram favoravelmente. Parece que não se lembram do que foi Barrancos e de como o Estado se viu forçado a recuar numa proibição legal centenária que a vila nunca aceitou aplicar. Queriam estes deputados de uma assentada criar 300 Barrancos em Portugal, contribuindo para o descrédito ainda maior do Estado, ou até provocar no séc. XXI um movimento semelhante à Maria da Fonte? A irresponsabilidade desta gente é confrangedora. Conheçam primeiro o país em que vivem antes de proporem leis irrealistas.
Se é verdade que a "festa brava" é fundamental para evitar a extinção do "touro de lide", já começávamos a tourear linces da malcata.
Byron Browne, 1952
Francis Bacon, 1969
Julio Pomar, 1992
Rineke Dijkstra, 2000
Eric Fischl, "Corrida in Ronda n. 3", 2008
Ena Swansea, 2010
«"Viver para contá-la", escreveu García Márquez. "Sentir para escrevê-lo", poderia dizer-se relativamente a este texto.
Quem sou eu, ligeiramente adepto das touradas, apesar de leigo (ou diria aficionado...), para negar a componente bárbara deste espectáculo?
Parece que na Califórnia se protege o dorso do touro com uma almofada de velcro da cor da pele do animal, para evitar o sangramento.
Mas as touradas não são propriamente massacres, uma vez que os toureiros, por vezes, também sofrem acidentes gravíssimos e até mortais.
Os forcados, então, levam pancada até mais não...
Seja como for, os seres humanos são os animais mais cruéis, destrutivos e gananciosos que a Natureza criou. Nenhum outro animal, para além do Homem, passa fome nas condições naturais de vida. A fome é possível, sim, em caso de doença, ferimento grave ou catástrofe natural, mas nunca, como no caso dos humanos, acontece haver alguns (muitos!) a passarem fome e outros a morrerem com excesso de fartura, passe o pleonasmo.
Enquanto os homens matarem outros homens por causa do poder e do dinheiro, enquanto os homens criarem animais em espaços minúsculos para depois os comerem, enquanto os homens exibirem animais em jaulas para seu prazer pessoal, hei-de sempre considerar que a questão das touradas é secundária.»
Do nosso leitor Mário Pereira. A propósito deste texto da Teresa Ribeiro.
Como bem sabem os aficionados, nem todos os touros são mortos nas arenas onde é permitido matar. Os animais que revelam excepcional bravura são poupados. Não se trata de um acto de misericórdia, mas apenas de um processo de selecção dos exemplares mais bravios para futura reprodução.
O El Mundo publicou há dias um artigo sobre Ingrato, um touro de 530 quilos que foi indultado na arena de Nimes, no sul de França. Quem aprendeu a assimilar esta cultura feita de elipses, desde logo a que elimina a consciência do sofrimento dos animais que fazem a festa, dificilmente terá passado dos primeiros parágrafos.
Neste artigo conta-se que durante a corrida Ingrato perdeu 25 quilos e que dias depois, quando regressou a "casa", em Sevilha, já teria abatido mais 50. Nova viagem na camioneta que o transportara anteriormente para a arena ter-lhe-á despertado tal pavor que deixou de comer. Mas bebia. Bebia compulsivamente devido à desidratação sofrida durante o toureio, provocada pela intensa sudação que o stress e o sofrimento lhe induziram e também porque lhe subiu a febre aos 43 graus.
Dos ferimentos que resultaram da lide, dois apresentavam-se particularmente fundos, com 35 cm e 22 cm. Os que foram provocados pelas seis bandarilhas que lhe espetaram tinham "apenas" 10 cm cada. Ingrato foi sujeito a tratamentos com antibióticos e desinfectantes. Tantos cuidados têm um único objectivo, o de lhe enfiarem no recto um tubo até à próstata assim que estiver em condições. Esse tubo, ligado a uma bateria eléctrica, disparará pequenas descargas por forma a induzir-lhe uma ejaculação. O sémen recolhido será depois enviado para análise. Se o trauma da "festa" não lhe tiver afectado a fertilidade, então sim, poderá gozar mais uns anos de vida na companhia de meia dúzia de fêmeas simpáticas e bem parecidas.
Ingrato será, assim esperam os criadores, replicado em toda a sua pujança, assegurando uma estirpe que mais tarde lutará desesperadamente pela vida no meio dos gritos e das palmas de gente que sabe apreciar a beleza de uma chicuelina. Gente que sabe preservar as tradições porque partilha com os nossos ancestrais a paixão pelas lutas de morte e rituais de sangue. Gente que ferve quando assiste ao jogo sensual do predador a brincar com a presa e partilha com deleite o silêncio religioso que precede o momento do sacrifício da vítima.
A bravura do toureiro que encarna, no seu traje de luces, a superioridade da raça humana é o espectáculo. Que adrenalina vê-lo aos poucos a vergar a besta, a estocá-la com elegância e requinte. Quanta testosterona em cada farpa. Algumas penetram fundo no lombo. Há golpes que chegam aos 35 cm de profundidade, se calhar até mais. É sublime esta catarse colectiva, não é? Olé!
A controvérsia em relação às corridas de touros / touradas já dura há alguns anos, e promete (assim passada a crise) intensificar-se. Trata-se, provavelmente, do tema fracturante por excelência. Talvez não tanto na extensão da fractura (arriscaria que há uma significativa fatia da população para quem o tema ainda é irrelevante), mas na intensidade da mesma. Com efeito, quem é contra as touradas acha-as um resquício medieval, de uma brutalidade animalesca completamente desfasada dos dias de hoje, preservado por uma antiga aristocracia e praticado em localidades interiores. Quem defende as corridas de touros, por seu lado, é visceralmente incapaz de entender os argumentos dos opositores. Considera-os um bando de anarcas que não conhecem as tradições e a vida rural.
Esta total clivagem tem levado a que alguns anos de polémica não tenham resultado em nenhuma alteração significativa no sistema, nenhuma cedência de qualquer parte. Na maioria dos temas fracturantes que têm sido discutidos nos últimos anos (e mesmo em tempos mais remotos), ainda que não deixando nunca de haver confrontação verbal, foram sendo feitas cedências de parte a parte. O motivo é simples, os defensores de cada posição não estavam aquartelados. Quando se discutiu a lei do aborto, por exemplo, todos nós conhecíamos pessoas próximas que defendiam a posição contrária à nossa. Mais, era comum haver várias posições intermédias entre os dois extremos. Na questão das touradas, tal não acontece: são duas tribos completamente distintas e sem qualquer relação que se enfrentam.
Dito isto, a solução para esta questão até é, paradoxalmente, muito simples, comparativamente com o que sucede com outras questões em que o consenso é virtualmente impossível. Sabe-se que os dois extremos jamais cederão um milímetro. No entanto, uma grande fatia da população, arrisco dizer, identifica-se facilmente com alguns dos argumentos de cada parte: aqueles onde reside o bom senso. Por um lado, o modo como os touros são tratados antes e após a lide é absolutamente inadmissível nos dias de hoje. É medieval e praticamente não supervisionado. Por outro lado, é evidente que as corridas de touros são uma tradição antiquíssima, com um papel cultural e identitário fortíssimo em algumas regiões (não falando sequer do seu significado económico). A lide implica algum sofrimento do animal, é verdade. Mas (quase) todos comemos carne, que não nasce propriamente no supermercado. E práticas como a matança do porco são bem mais cruéis e mantidas nos dias de hoje. Acresce ainda que os maiores maus tratos sofridos pelo touro acontecem, frequentemente, antes e depois da lide, e não durante esta.
A escalada de confrontação que certamente ocorrerá nos próximos anos acordará a opinião pública para o assunto, e esta começará a exigir alterações no sistema. Nessa altura, a bola estará essencialmente do lado dos defensores das corridas de touros, que se arriscam a ser vistos como incompreensivelmente inflexíveis e desfasados da realidade. Deverão, assim, capacitar-se de que a aceitação de alguma intromissão externa e a admissão de algumas regras civilizadas consistem numa pena manifestamente leve, se comparada com uma potencial proibição daquela prática.
Num país (urbano) tão pouco dado às tradições, é melhor não arriscar.
Com as três largadas de hoje, está aberta a temporada taurina na ilha.
Os aficionados têm muitas touradas à corda na Terceira até Outubro.
Ontem, no Jornal da Noite da SIC, discutia-se a proibição das corridas de toiros na Catalunha. Miguel Sousa Tavares (MST), na sua tribuna semanal, discordava, no seu direito. Depois de uns tantos argumentos laterais, gerou-se o seguinte diálogo.
Clara de Sousa: “A morte do animal na arena é o que choca basicamente as pessoas que fazem a defesa dos direitos dos animais.”
MST: “E os combates de boxe, quando saem de lá todos a sangrar, não chocam muita gente? E então, vamos proibi-los? E as corridas de automóveis, onde morre muita gente e até espectadores, vamos proibi-las?”
As corridas de toiros são uma instituição defensável, com argumentos lógicos. Porém, fingir que não se percebe a questão, valendo-se de comparações despropositadas, não tem outro nome senão desonestidade intelectual. É profundamente irritante o modo como alguns dos poucos comentadores que têm o privilégio de apenas ter como adversário um jornalista mais concentrado na condução da emissão do que no debate do tema em questão desbaratam esse capital utilizando constantemente argumentos falaciosos.