Devemos ter sempre a noção muito clara de que a democracia é um bem precioso mas extremamente frágil. Há quem se aproveite dela para tentar exterminá-la, menosprezando o princípio liberal do Estado de Direito com todas as garantias que lhe são associadas. O populismo, a demagogia, os nacionalismos, a xenofobia ou o radicalismo identitário são instrumentos políticos de que se usa e abusa - à esquerda e à direita - para estrangular a democracia.
Não devemos perder de vista as lições da História. Em 1900, na chegada ao século XX, muitos pensadores e um número incontável de políticos embriagados de "optimismo" e "modernidade" vaticinaram um mundo de imparável progresso. Ninguém imaginava a partida que esse seria o século dos maiores morticínios e das mais tenebrosas ditaduras. Ninguém supunha que nesse século então emergente seria inventada a mais terrível das palavras: totalitarismo.
Nada tão ilusório como o optimismo antropológico, nada mais enganador do que a noção de que existe necessariamente um "final feliz" e redentor na sucessão dos ciclos históricos. Patranhas destinadas a iludir incautos, hoje como ontem.
O recente desaparecimento de Adriano Moreira motivou muitos textos de homenagem e de comentários vários, também aqui no DO, sobre quem foi e como contribuiu para a evolução entre o Portugal em que nasceu e aquele que, cem anos depois, o viu partir.
Num desses textos, João Carlos Espada, no Observador, recorda uma explicação prévia dada por Adriano Moreira à dupla pergunta: “O que é ser de esquerda?” e “O que é ser de direita?”. Apesar deste episódio se ter passado nos idos anos 80, a explicação prévia continua actual como se tivesse sido dada hoje.
“O totalitarismo não é de esquerda nem de direita — inclui o nacional-socialismo de Hitler e o comunismo de Stalin — eles não estiveram coligados? Na actualidade, o totalitarismo abrange os regimes de Leste, as ditaduras de capitalismo selvagem sul-americanas, muitos regimes do Terceiro-Mundo.”
E a seguir explicou enfaticamente: uma vez definida a diferença fundamental entre totalitarismos (de esquerda e/ou de direita), podemos então conversar tranquilamente sobre as escolhas entre direita e esquerda democráticas: “Serão de esquerda os que dão um papel predominante ao Estado, e de direita os que dão um papel predominante às pessoas e às instituições “.
Alguns psicólogos explicam a devoção pelos totalitarismos como uma patologia assente na vontade de uns dominarem todos os demais, a qualquer custo e sem travão, assim como pela incapacidade de outros em decidir por si, preferindo seguir cegamente quem lhes mostre convicções fortes e explicações simples. Uns e outros, tal como lobos disfarçados de cordeiro, circulam por aí disfarçados de democratas. Uns dizem-se de esquerda, outros de direita, mas, mais do que qualquer outra coisa, são apenas amantes do totalitarismo e não hesitarão um instante em derrubar a democracia para lhe tomarem o lugar.
Nos tempos da comunicação contínua, em que o caudal de estímulos é de uma dimensão que torna impossível digerir tudo o que nos acerta, somos facilmente levados pela nossa natureza e pelos nossos enviesamentos cognitivos. Mais apelativo do que quaisquer factos que precisam de ser ponderados e trabalhados, são as emoções que mais facilmente nos mobilizam e agitam. Os amantes do totalitarismo sabem disso, e não hesitam em armadilhar essa informação contínua de forma a poderem chegar ao poder.
Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça no Estado da Bahia, entrevistada há dias pela Folha de São Paulo, dribla magistralmente o conceito básico da liberdade de expressão. Não se chega ao “Anjo das Pernas Tortas”, que foi Garrincha, mas bem que tenta (perdoem-me a formulação sul-americana).
Questionada sobre como a desinformação tolhe a liberdade de expressão, ela começa por afirmar que “as pessoas”, coitadas, não conseguem aceder a elementos que lhes permita ter o que ela designa como “liberdade de expressão consciente”. Por isso acabam por apenas repetir o que ouvem, “supostamente exercendo a sua liberdade de expressão”, mas que é apenas uma “liberdade de expressão manipulada”. Mostra-se assim preocupada com a “absolutização da liberdade de expressão de grupos hegemónicos”. De imediato, como só um estrábico com um joelho varo e o outro valgo conseguiria, e por isso fez-me lembrar o mítico ponta brasileiro, avança e avisa que “os inimigos da democracia podem estar na própria democracia”. E quando? “Quando nós tornamos em valor absoluto determinados princípios da própria democracia, como a liberdade de expressão”.
Jinga que finge que não jinga e avança, como se de um jogo de espelhos se tratasse, salta rapidamente para deduzir que como a sociedade é misógina, racista e LGBTfóbica, em consequência, isso reproduz-se nas redes sociais. Após mais umas simulações e uns faz-de-conta, lá chega à frente da baliza, e após tão elaborada jogada, remata com um “acaba a ser uma ditadura da liberdade de expressão”.
Quem não conseguiu ver bem por onde é que a bola passou, precisa de repetição, ou do VAR, que me dizem ser a moda actual. E é então no VAR que, deixando o estádio incrédulo, Lívia Sant’Anna Vaz afirma que “a liberdade de expressão é um elemento fundamental da democracia, MAS não se pode tornar num elemento absoluto e minar e destruir a própria democracia”. “Então é importante que a gente tenha limites à liberdade de expressão para concretizar a própria democracia”.
Os finteiros que sugerem uma democracia com limites à liberdade de expressão, não são mais do que totalitaristas disfarçados de cordeiros. É gente perigosa. Adriano Moreira avisou-nos.
Os designados “Arquivos da Polícia de Xi Jiang” contêm dezenas de milhares de registos com detalhes sobre o funcionamento do sistema de campos de internamento chineses, assim como milhares de imagens de uigures detidos, de guardas policiais empunhando armas automáticas, algemando e imobilizando detidos durante as rotinas de segurança do campo.
Os arquivos também contêm discursos de alguns dirigentes chineses que permitem entender o estado de espírito e a lógica de funcionamento desta perversa rede de campos de concentração. Tudo assenta numa lógica de que determinados grupos étnicos devem ser tratados como criminosos perigosos. Os procedimentos são claros, para evitar fugas do acampamento pode abrir-se fogo sobre qualquer detido que tente escapar-se.
A partir de um discurso do ministro de Segurança Pública revelam-se ordens directas de Xi Ji Ping para expandir este sistema prisional como forma de resolver a sobrelotação da estrutura existente.
A partir destes arquivos é permitido concluir que Pequim tem detidos “mais de dois milhões” de uigures considerados “extremistas”, e portanto, alvos potenciais para a reeducação.
Os registos policiais indicam que numa região administrativa específica em 2018 mais de 12% da população uigur adulta estava detida.
De acordo com o Embaixador Andrew Bremberg, presidente da Fundação para a memória das Vítimas do Comunismo, “os arquivos da Polícia de Xi Jiang provam que os chamados centros de educação vocacional da China são realmente prisões”. “Estes documentos demonstram também que Pequim tem mentido sobre suas graves violações de direitos humanos em Xi Jiang.”.
Estes dados foram autenticados e analisados por Adrian Zenz, um dos principais estudiosos sobre a campanha de internamento de Xi Jiang, assim como por outros académicos que publicam regularmente no respeitado Journal of the European Association for Chinese Studies e ChinaFile.
Adrian Zenz afirma que "estas descobertas são significativas porque nos fornecem directrizes claras de implementação de políticas assim como os processos de pensamento e intenções que os tornaram realidade” e “isso dá-nos uma visão sem precedentes da abordagem das autoridades chinesas assim como do envolvimento pessoal de Xi Ji Ping.”
Ao navegar pelas fotos dos detidos recordei-me dos corredores de fotos expostas em Auschwitz, sendo que perante as imagens destes campos de “reeducação” chineses podemos ver os rostos de pessoas que neste momento poderão estar vivas.
A invasão russa da Ucrânia lembrou-nos como podem ser perversos e atrozes os regimes autoritários e totalitários. Este relatório deve lembrar-nos que as perversas atrocidades deste tipo de regimes não se esgotam nas invasões criminosas de outros países, pois decorrem rotineiras todos os dias, mesmo quando esses países se apresentam como respeitáveis na cena internacional.
As democracias liberais do ocidente têm de ter consciência disto. Só assim se poderão defender da ameaça que estes regimes constituem assim como das tentações autoritárias que dentro delas possam surgir. Estejamos alerta.
Postal destinado aos que querem banir palavras e, especialmente, aos que estão, e irão, ser proibidos de as utilizar.
Na sequência do postal do Pedro Correia de ontem, e do meu que o seguiu, e para não perder o balanço passo a transcrever mais algumas passagens do já referido “1984” de George Orwell.
Excerto de uma conversa de almoço entre Winston e o seu camarada Syme, que trabalha na Décima Primeira Edição do dicionário da Novilíngua.
“– Estamos a dar ao idioma a sua forma final, a forma que há-de ter quando ninguém falar nenhuma outra língua. Quando chegarmos ao fim, pessoas como tu terão que aprendê-la de novo. Julgas com certeza que a nossa principal tarefa é inventar palavras novas. Mas não é nada disso! Estamos é a destruir palavras, dezenas, centenas de palavras por dia.
(…)
– Coisa magnífica, a destruição de palavras.
(…)
– Tu não aprecias verdadeiramente a novilíngua, Winston – disse quase com tristeza. – Mesmo quando nelas escreves continuas a pensar em velhilíngua. (…) Não compreendes a beleza da destruição das palavras. Sabias que a novilíngua é a única língua do mundo cujo vocabulário diminui ano após ano?
(…)
– Não vês que a finalidade da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensamento? Acabaremos por fazer que o crimepensar[i] seja literalmente impossível, pois não haverá palavras para o exprimir.
(…)
– Em 2050 (provavelmente até antes) todo o conhecimento da velhilíngua terá desaparecido. Chauser, Shakespeare, Milton, Byron só existirão em versões da novilíngua, não simplesmente transformados numa coisa diversa, mas no contrário daquilo que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mesmo as palavras-de-ordem mudarão. Poderá substituir um slogan “liberdade é escravidão” quando o próprio conceito de liberdade tiver sido abolido? Toda a atmosfera mental será diferente. No fundo, não haverá pensamento, tal como hoje o entendemos. A ortodoxia significa a ausência de pensamento: a ausência de necessidade de pensar. A ortodoxia é inconsciência.”
[i] Pensamentos punidos pela Polícia do Pensamento
Na sequência do postal do Pedro Correia sobre a autoproclamada “conquista civilizacional” do governo espanhol, não pude deixar de recordar este excerto do clássico “1984” de Orwell.
“O acto sexual era encarado como uma operação desprovida de importância, vagamente repugnante, como um clister. (…) Havia até organizações como a Liga Juvenil Anti-Sexo, que defendiam o celibato total para ambos os sexos. Todas as crianças deveriam ser engendradas por inseminação artificial (insart, em novilíngua) e educadas em instituições públicas. Winston dava-se conta que ninguém levava esse projecto a sério, mas de certa forma quadrava bem com a ideologia geral do Partido. O Partido estava a tentar extinguir o instinto sexual ou, caso não fosse possível extingui-lo, pelo menos distorcê-lo e conspurcá-lo.”