Timor ontem, Ucrânia hoje
Xanana Gusmão, na resistência ao invasor indonésio
Algumas almas angelicais abraçadas a velhas aves de rapina hoje travestidas de pombas, como Henry Kissinger, andam obcecadas com isto: há que «evitar humilhar os russos».
Como se não fossem eles os agressores da Ucrânia.
Como se a tropa de Moscovo não devorasse território ucraniano com fúria expansionista - o Kremlin ocupa agora, ilegalmente, cerca de 125 mil km² de superfície territorial do país vizinho, quase o triplo dos cerca de 43 mil km² que ocupava desde 2014.
Como se vissem a realidade invertida: soldados da Ucrânia envolvidos em operações de conquista e anexação da Rússia.
Como se a agressão moscovita devesse ser recompensada, encorajando futuras campanhas bélicas decalcadas do guião nazi naqueles alucinantes meses que levaram Hitler a engolir a Áustria, os Sudetas, a Checoslováquia e enfim a Polónia. Até tudo desembocar num conflito global já imparável.
Esta amálgama de gente - neofascistas, comunistas, falsos pacifistas e alguns idiotas úteis - procura iludir uma evidência: a Ucrânia equivale hoje, numa escala muito superior, à resistência timorense que enfrentou com êxito o imperialismo neocolonialista indonésio entre 1975 e 1999, suportando as maiores atrocidades cometidas pelos esbirros de Jacarta naquele solo onde durante séculos flutuou a bandeira portuguesa.
Também nessa altura pululavam por aí os "realistas" recomendando o reconhecimento da situação de facto, imposta pelos canhangulos indonésios, e desencorajando o apoio ocidental à abnegada guerrilha timorense. Diziam esses tais que eram impossível vergar um dos exércitos mais numerosos e bem equipados do planeta.
Pela lógica actual, o PCP deveria ter gritado então contra o levantamento das sanções ao regime de Jacarta e exigido a «paz» imposta pelos fuzis. Com Timor-Leste debaixo da pata indonésia.
É curioso vermos hoje Jerónimo de Sousa fazer coro com Henry Kissinger. Este, enquanto responsável máximo da diplomacia norte-americana, deu luz verde à brutal invasão de Timor-Leste pela tropa do ditador Suharto, em Dezembro de 1975, sob o argumento de que o Ocidente não deveria «humilhar a Indonésia». Nada melhor, portanto, do que outorgar-lhe direito de pernada e garantir-lhe aquilo a que chamam «concessões territoriais» - eufemismo para designar a anexação de uma nação soberana por um Estado vizinho em grosseira violação do direito internacional.
Henry Kissinger (à esquerda) em Jacarta, Dezembro de 1975
Kissinger estava redondamente enganado, como sabemos: a força da razão derrotou a razão da força. Foi preciso esperar 24 anos, mas aconteceu.
Aprendamos com as lições da História. Ontem em Timor, hoje na Ucrânia.
Ao lado de quem é agredido, não de quem agride.
Solidários com as vítimas, não com os verdugos.
Ninguém humilha tanto a Rússia como Vladimir Putin, que já provocou danos reputacionais incalculáveis ao seu país. Com fatais reflexos nas gerações futuras.