Marcelo Gutierrez, um dos riders de downhill de topo a nivel mundial, veio em 2016 experimentar um dos trilhos na Serra de Sintra com os riders locais/Fotos: Red Bull
Um santuário pode ser um local de culto, de oração, mas pode ser também um refúgio, um sítio onde se encontra tranquilidade e distanciamento daquilo que é o tradicional quotidiano, com as suas rotinas e gentes. Cada pessoa terá o seu próprio conceito de santuário, o local que serve de escape àquilo que é a sua vivência diária, um espaço de índole quase sagrado, onde cada um vai explorar outros limites, viver diferentes experiências com outras pessoas, outras "tribos".
“Apanhar” uma onda, escalar uma montanha, descer um trilho, mergulhar nas profundezas do mar ou fazer base jumping, são daqueles momentos pelos quais se anseia durante toda a semana e que assumem uma obrigação quase religiosa que, durante algumas horas, se sobrepõem à realidade diária, ao trabalho, à família, ao círculo dos amigos de sempre… É todo um outro mundo. São tempos de "retiro" físico e também espiritual, onde os cânones da normalidade não se aplicam e o que conta é explorar ao máximo os nossos limites. São aqueles momentos de libertação dos constrangimentos diários e das convenções sociais, dos problemas e das pressões, para dar lugar à adrenalina, a um estado de satisfação quase transcendente.
Nesses santuários encontramos outras gentes, normalmente ausentes do nosso circuito do dia-a-dia, mas que naquele contexto quase tribal são companheiros de aventura. Provavelmente, a maioria das pessoas não terá essa necessidade ou o ímpeto intrínseco para procurar outras realidades mais “extreme” que, de certa forma, sejam disruptivas mental e fisicamente com o quotidiano. Nunca perceberão a vontade suprema de uma pessoa, sem qualquer ambição de ser pró seja no que for, se “fazer" a uma onda, ou de pegar no seu skate para sacar umas manobras num qualquer cenário urbano e decadente da cidade, ou ainda de se meter em cima da “bike” e fazer umas descidas serra abaixo.
Ryan Dicenzo, um dos skaters profissionais da equipa da Globe que esteve há uns meses em Lisboa, a sacar um ollie abusado sobre dois lanços de escadas algures num bairro nada turístico da cidade de Lisboa/Foto: Thrasher Magazine/Globe.
De certa maneira, tal como um crente procura conforto e uma certa paz interior numa missa de Domingo de manhã, junto de pessoas que naquela circunstância e momento partilham uma ideal comum, também um surfista, um skater ou um rider espera encontrar no seu santuário a serenidade necessária para se transcender para um outro estádio físico e mental. Quando encontramos esse tal santuário, normalmente é uma relação para a vida, porque dificilmente abdicaremos daquilo que nos proporciona sensações únicas. Infelizmente, os santuários não são locais herméticos e podem acabar por ser desvirtuados pelas dinâmicas das próprias sociedades, sendo que, muitas vezes, não há sequer essa consciência da parte de quem “invade” massivamente (com todo o direito, note-se) determinados espaços, que foram locais de conforto para tribos antigas.
Um dos exemplos desta realidade tem a ver com o recente fenómeno “trendy” dos “trail runners”, cuja massificação se faz sentir de forma particularmente intrusiva naquele que sempre foi o meu santuário na Serra de Sintra, tido há muitos anos como um dos melhores spots em Portugal e na Europa para a prática de BTT nas vertentes Enduro e Downhill. Desde sempre, houve uma relação harmoniosa entre a tribo local e o ambiente, com a aventura a iniciar-se no mesmo ponto de encontro, aos primeiros raios de sol dos sábados e domingos, juntando alguns riders, num clima sereno, mas devoto à aventura. Foi assim durante anos. Custa agora ver ali uma mudança praticamente imparável.
O brasileiro Gabriel Medina na final do Meo Rip Curl Pro Portugal de 2017, em Peniche
Aquele que foi um ponto de encontro sagrado dos riders nativos, é agora alvo de uma invasão massiva de carros que despejam dezenas de “trail runners”, muitos deles em grandes grupos, por vezes, ruidosos e demonstrando um entusiasmo histriónico na descoberta de um mundo novo, acabando por desrespeitar, de forma inconsciente, é certo, as tribos ali instaladas há muitos anos. É um pouco como no turismo de massas em Lisboa, no qual se reconhece o seu direito e algumas virtudes, mas é impossível negar o custo que isso implica na vivência das comunidades autóctones e na descaracterização dos locais. Os tais santuários que sempre foram local de culto ficam comprometidos.
Esta questão, no entanto, merece um olhar mais sociológico. Ao contrário daquilo que são as actividades mais “extreme” de carácter tribal que, por natureza, são disruptivas com o quotidiano e irreverentes com as normas sociais instaladas, o fenómeno do “trail running” resulta precisamente da aceitação das normas, numa lógica urbana e cosmopolita, associada a um estilo de vida regulado e organizado, dotado de um certo “status”. Não é por isso de estranhar que o “trail running” tenha surgido de rompante como uma tendência de massas, como tantas outras que surgem nestes tempos onde impera a ditadura do politicamente correcto e dos hábitos “saudáveis”, ao contrário de modalidades como o surf, o skate ou o BTT, que nos seus primórdios apareceram como elementos de contra-corrente ou contra-cultura.
Compreende-se, por isso, que o “trail running” esteja muito instalado em quadros de empresas e organizações, como elemento agregador e modernizador. Também no seio dos amigos e famílias, é uma actividade socializante e potenciadora de práticas “saudáveis”. No fundo, e é aqui que reside a grande diferença com as actividades de matriz “subversiva” ou "irreverente", o “trail running” acaba por ser uma extensão social das vivências diárias, de uma lógica “mainstream”, fruto das novas tendências urbanas e cosmopolitas. Não é que isso tenha algum mal, até porque a prática do desporto é sempre louvável, mas para quem sempre ansiou pelo fim-de-semana, de modo a pegar na bike e ir ao santuário para se reunir com a tribo, é uma desolação espiritual começar a manhã rodeado de carros e pessoas, pondo em causa o equilíbrio de um ambiente que devia ser sagrado e imune à “contaminação” pelos hábitos e comportamentos das vivências diárias da urbe e das cenas “trendy” da sociedade cosmopolita.