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Delito de Opinião

Bons filmes, excelentes séries

Pedro Correia, 29.12.19

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Enquanto o cinema vai definhando, monopolizado em grau crescente por blockbusters de fabrico industrial que prometem (quase sempre sem cumprir) «arrasar nas bilheteiras», as séries florescem. Reflectindo a tendência actual: as pessoas trocam esse espaço colectivo que é uma sala de cinema regida por horários fixos pelo reduto doméstico em que imperam. Do social ao individual, do gregário ao solitário, do real ao virtual. Sair de casa, cumprir uma deslocação física, partilhar durante um par de horas uma sala (quando existe, o que já não sucede em várias cidades) com uma porção de estranhos deixou de atrair jovens e menos jovens.

Nos últimos três meses, à moda antiga, vi apenas duas longas-metragens que justificam elogio: Era Uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, e Dor e Glória, de Pedro Almodóvar - este com uma interpretação superlativa de Antonio Banderas. Sem surpresa, vejo ambas incluídas na lista dos três melhores filmes do ano elaborada pela revista Time.

 

No mesmo período, reforçando uma tendência dos últimos anos, vi bastante mais séries com qualidade.

Destaco três, que já mencionei aqui.

The Crown «Muito mais do que uma simples série televisiva: é uma exemplar coreografia do realismo político, aqui elevado a um patamar artístico.» (Terceira temporada, na Netflix)

O Método Kominsky«Vive de inteligentes e subtis modulações de texto em torno da velhice e da decadência física a ela associada, numa linha de fronteira ténue entre o drama e a comédia sem nunca excluir a ironia.» (Segunda temporada, na Netflix)

Ray Donovan - «Uma série amarga e tensa e desencantada, servida por um notável elenco onde se distingue o veterano Jon Voight.» (Sétima temporada, na Netflix)

 

Recomendei-as antes, recomendo-as de novo. Não por acaso, os cineastas de maior mérito e os actores mais consagrados têm trocado os estúdios de cinema pelas produções televisivas: é neste formato que hoje dão livre curso aos seus atributos artísticos. Aproveitemos, enquanto espectadores, esta idade de ouro da televisão. Com a certeza antecipada de que não durará sempre.

Um assunto de porteiras

Pedro Correia, 16.07.19

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A reprodução descarada e obsessiva da lógica das redes sociais pelos órgãos de informação está a contribuir para o descrédito acentuado do jornalismo que vai restando.

Há dezenas de jornalistas, em quase todas as redacções, que nada mais fazem durante dias inteiros senão escrutinar o que se cochicha e bichana nas redes, acabando por dissociar-se por completo do mundo concreto e do país real. Nas suas prédicas em papel ou no digital, recorrem aos temas e à semântica que pupulam nessas «vias alternativas à informação», como há já quem lhes chame no meio jornalístico, disparando assim contra o próprio pé.

 

Reparem no que acontece naquilo a que ainda é costume chamar «canais de notícias» na televisão. Num curioso fenómeno de mimetismo, generalizou-se o modelo CMTV, absorvido inicialmente pela TVI 24 e agora já vampirizado também pela SIC Notícias: fecham três ou quatro mecos num estúdio durante horas a discutir coisa nenhuma sobre a bola que agora nem rola nos relvados e assim supõem cumprir a missão jornalística.

Mas não cumprem: essas tertúlias de bitaiteiros são meras correntes transmissoras de boatos e rumores. Basta comparar as imagens que reproduzo acima: foram propaladas com escassas horas de intervalo no mesmo canal - a primeira às 18.17, a segunda às 22.32. Sujeitas a esta lógica editorial mais que duvidosa: primeiro imprime-se a lenda, depois (se não chover) imprime-se o facto. Assim duplica-se a audiência (o que não parece ser o caso, longe disso, no canal em causa, a avaliar pelos mais recentes números tornados públicos).

 

Isto já se pratica hoje sem sofisticação nenhuma, como é patente no exemplo que deixo aqui em baixo. Talvez farto de publicar notícias, essa coisa anacrónica e maçadora, um jornal de difusão nacional acaba de instituir uma secção intitulada "Negócios e Rumores". Como se fosse um assunto de porteiras em vez de jornalistas, sem desprimor para as porteiras.

Assim ao menos não ilude ninguém: o leitor, à partida, já sabe que irá mesmo ser enganado. 

 

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Dizer não às idiotices

Alexandre Guerra, 31.10.18

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Barbara Broccoli e Daniel Craig/Foto: The Guardian

 

A mudança dos tempos implica, quase necessariamente, a mudança das mentalidades. É uma evidência que decorre da evolução das sociedades ao longo da História. São processos morosos e que não acontecem de um dia para o outro. Não se mudam mentalidades por decreto e muito menos por imposição. A questão é que, nos últimos anos, tem-se assistido a uma aceleração incontrolável para a instituição de modelos de pensamento que resultam, em parte, dos excessos da globalização e da (r)evolução das tecnologias de informação /comunicação, com a emergência, por exemplo, do fenómeno das “redes sociais”, onde impera uma espécie de anarquia e que acaba por ditar tendências. São estas tendências, impostas sobretudo por essas novas “massas” digitais, que, de forma imparável e a uma velocidade louca, têm contribuído para uma certa histeria e cegueira no processo de decisão, de forma a ir ao encontro daquelas que passaram a ser as “convenções socialmente aceites”, comummente o chamado “politicamente correcto”, na convivência entre os cidadãos da polis. E o problema é que estes processos (mesmo aqueles que têm fins mais virtuosos) se desenrolam de forma desenfreada e irreflectida, cometendo-se abusos, exageros e, muitas vezes, absurdos monumentais.

 

A cultura pop, nomeadamente através do cinema e da televisão (leia-se, séries), tem sido quase mimética no eco que faz dessas “exigências” que se fazem ouvir ruidosa e ferozmente nas “redes”. Exigências que, mascaradas com uma pseudo-tolerância e com o mote da defesa da igualdade de direitos, acabam, na verdade, por esconder preconceitos e ideias castradoras, conduzindo ao disparate. Disparates como aquele que, há uns tempos, começaram a circular, sugerindo que uma das personagens masculinas mais icónicas da história do cinema das últimas décadas poderia, na verdade, dar lugar a uma mulher. Felizmente, teve que ser uma mulher a ter a coragem para vir dizer que James Bond continuará a ser um personagem masculino (obviamente) e com as características que lhe são inerentes. Quem o disse foi Barbara Broccoli, a produtora da saga 007 e filha do histórico “Cubby”, que, juntamente com Harry Saltzman, foi quem trouxe o espião dos livros para o cinema.

 

“Bond is male. He’s a male character. He was written as a male and I think he’ll probably stay as a male. And that’s fine. We don’t have to turn male characters into women. Let’s just create more female characters and make the story fit those female characters.” Com esta frase proferida ao The Guardian há umas semanas, Barbara Broccoli pôs fim a um infeliz devaneio, alimentado não se sabe bem por quem, mas, certamente, por alguém que olha para a causa dos direitos de igualdade com as lentes distorcidas do fanatismo. E Broccoli foi ainda mais longe ao reconhecer que James Bond não é propriamente um ideal feminista e que muitas características não seu ADN nunca mudarão. É uma das produtoras mais poderosas da indústria do cinema, precisamente por deter os direitos de James Bond, e quem tenha acompanhado com atenção a evolução da saga dos filmes 007 nos últimos 20 anos, constata que Broccoli foi uma das primeiras a introduzir alterações relativas ao papel da mulher e à forma como o agente secreto as via, indo ao encontro da tal mudança dos tempos. Mudanças que foram sendo graduais sem desvirtuar a essência de 007. Mas a verdade é que nos dias que correm, onde reina um ambiente de “caças às bruxas”, as palavras de Broccoli pressupõem coragem e determinação contra os extremismos da idiotice, sendo de salutar a sua sensibilidade na defesa de algo que continua a alimentar o imaginário de muitos de nós, homens e mulheres.

Santuários

Alexandre Guerra, 01.08.18

marcelo-gutierrez-a-curvar.jpg Marcelo Gutierrez, um dos riders de downhill de topo a nivel mundial, veio em 2016 experimentar um dos trilhos na Serra de Sintra com os riders locais/Fotos: Red Bull

 

Um santuário pode ser um local de culto, de oração, mas pode ser também um refúgio, um sítio onde se encontra tranquilidade e distanciamento daquilo que é o tradicional quotidiano, com as suas rotinas e gentes. Cada pessoa terá o seu próprio conceito de santuário, o local que serve de escape àquilo que é a sua vivência diária, um espaço de índole quase sagrado, onde cada um vai explorar outros limites, viver diferentes experiências com outras pessoas, outras "tribos".

 

“Apanhar” uma onda, escalar uma montanha, descer um trilho, mergulhar nas profundezas do mar ou fazer base jumping, são daqueles momentos pelos quais se anseia durante toda a semana e que assumem uma obrigação quase religiosa que, durante algumas horas, se sobrepõem à realidade diária, ao trabalho, à família, ao círculo dos amigos de sempre… É todo um outro mundo. São tempos de "retiro" físico e também espiritual, onde os cânones da normalidade não se aplicam e o que conta é explorar ao máximo os nossos limites. São aqueles momentos de libertação dos constrangimentos diários e das convenções sociais, dos problemas e das pressões, para dar lugar à adrenalina, a um estado de satisfação quase transcendente.

 

Nesses santuários encontramos outras gentes, normalmente ausentes do nosso circuito do dia-a-dia, mas que naquele contexto quase tribal são companheiros de aventura. Provavelmente, a maioria das pessoas não terá essa necessidade ou o ímpeto intrínseco para procurar outras realidades mais “extreme” que, de certa forma, sejam disruptivas mental e fisicamente com o quotidiano. Nunca perceberão a vontade suprema de uma pessoa, sem qualquer ambição de ser pró seja no que for, se “fazer" a uma onda, ou de pegar no seu skate para sacar umas manobras num qualquer cenário urbano e decadente da cidade, ou ainda de se meter em cima da “bike” e fazer umas descidas serra abaixo. 

 

Globe_Portugal_photo14_750px_2x.jpgRyan Dicenzo, um dos skaters profissionais da equipa da Globe que esteve há uns meses em Lisboa, a sacar um ollie abusado sobre dois lanços de escadas algures num bairro nada turístico da cidade de Lisboa/Foto: Thrasher Magazine/Globe.

 

De certa maneira, tal como um crente procura conforto e uma certa paz interior numa missa de Domingo de manhã, junto de pessoas que naquela circunstância e momento partilham uma ideal comum, também um surfista, um skater ou um rider espera encontrar no seu santuário a serenidade necessária para se transcender para um outro estádio físico e mental. Quando encontramos esse tal santuário, normalmente é uma relação para a vida, porque dificilmente abdicaremos daquilo que nos proporciona sensações únicas. Infelizmente, os santuários não são locais herméticos e podem acabar por ser desvirtuados pelas dinâmicas das próprias sociedades, sendo que, muitas vezes, não há sequer essa consciência da parte de quem “invade” massivamente (com todo o direito, note-se) determinados espaços, que foram locais de conforto para tribos antigas.

 

Um dos exemplos desta realidade tem a ver com o recente fenómeno “trendy” dos “trail runners”, cuja massificação se faz sentir de forma particularmente intrusiva naquele que sempre foi o meu santuário na Serra de Sintra, tido há muitos anos como um dos melhores spots em Portugal e na Europa para a prática de BTT nas vertentes Enduro e Downhill. Desde sempre, houve uma relação harmoniosa entre a tribo local e o ambiente, com a aventura a iniciar-se no mesmo ponto de encontro, aos primeiros raios de sol dos sábados e domingos, juntando alguns riders, num clima sereno, mas devoto à aventura. Foi assim durante anos. Custa agora ver ali uma mudança praticamente imparável.

 

download.jpgO brasileiro Gabriel Medina na final do Meo Rip Curl Pro Portugal de 2017, em Peniche 

 

Aquele que foi um ponto de encontro sagrado dos riders nativos, é agora alvo de uma invasão massiva de carros que despejam dezenas de “trail runners”, muitos deles em grandes grupos, por vezes, ruidosos e demonstrando um entusiasmo histriónico na descoberta de um mundo novo, acabando por desrespeitar, de forma inconsciente, é certo, as tribos ali instaladas há muitos anos. É um pouco como no turismo de massas em Lisboa, no qual se reconhece o seu direito e algumas virtudes, mas é impossível negar o custo que isso implica na vivência das comunidades autóctones e na descaracterização dos locais. Os tais santuários que sempre foram local de culto ficam comprometidos.

 

Esta questão, no entanto, merece um olhar mais sociológico. Ao contrário daquilo que são as actividades mais “extreme” de carácter tribal que, por natureza, são disruptivas com o quotidiano e irreverentes com as normas sociais instaladas, o fenómeno do “trail running” resulta precisamente da aceitação das normas, numa lógica urbana e cosmopolita, associada a um estilo de vida regulado e organizado, dotado de um certo “status”. Não é por isso de estranhar que o “trail running” tenha surgido de rompante como uma tendência de massas, como tantas outras que surgem nestes tempos onde impera a ditadura do politicamente correcto e dos hábitos “saudáveis”, ao contrário de modalidades como o surf, o skate ou o BTT, que nos seus primórdios apareceram como elementos de contra-corrente ou contra-cultura.

 

Compreende-se, por isso, que o “trail running” esteja muito instalado em quadros de empresas e organizações, como elemento agregador e modernizador. Também no seio dos amigos e famílias, é uma actividade socializante e potenciadora de práticas “saudáveis”. No fundo, e é aqui que reside a grande diferença com as actividades de matriz “subversiva” ou "irreverente", o “trail running” acaba por ser uma extensão social das vivências diárias, de uma lógica “mainstream”, fruto das novas tendências urbanas e cosmopolitas. Não é que isso tenha algum mal, até porque a prática do desporto é sempre louvável, mas para quem sempre ansiou pelo fim-de-semana, de modo a pegar na bike e ir ao santuário para se reunir com a tribo, é uma desolação espiritual começar a manhã rodeado de carros e pessoas, pondo em causa o equilíbrio de um ambiente que devia ser sagrado e imune à “contaminação” pelos hábitos e comportamentos das vivências diárias da urbe e das cenas “trendy” da sociedade cosmopolita.

Subsídios para o estudo do uso do fato sem gravata - 2

Ana Cláudia Vicente, 11.08.11

 

[Katie Holmes, Primavera de 2011

(Fato: Stella McCartney) ]

 

A apropriação feminina deste trajar também terá que se lhe diga. Ao longo de novecentos foi encarada das mais diferentes formas: como acto lúdico, perversidade, meio de amenização da tensão de género no local de trabalho, instrumento de uniformização social, etc. Hoje, felizmente, é apenas mais uma opção, sobretudo aplicada em momentos de maior formalidade profissional. Ou não?

 [Posts anteriores: #0;#1]

Subsídios para o estudo do uso do fato sem gravata - Introdução

Ana Cláudia Vicente, 21.07.11

Ainda que este seja o pretexto, não se pode dizer que a questão não seja polémica, intra e inter géneros. Não há muito tempo (mentira, para aí há um ano) eu e a Ana Margarida aqui do Delito dirimimo-la à saída de um convívio blogueiro, inconclusivamente. A minha posição é a seguinte (para além de sentada a escrever): é possível trajar um fato sem gravata sem que este pareça órfão, mal enjorcado, foleiro. Em caso de dúvida, tomem-se estes dois contrastantes exemplos:

 

Cary Grant, Philadelphia Story, 1940

[quando um casaco não tem cair, não há brilhantina que valha]

 

 

 Cary Grant, To Catch a Thief (1955)

[digam lá que não parece outro, vá]

 

Sim, isto é o antigamente no cinema, certo. Mas hoje há também quem consiga fazê-lo com sucesso. Tentarei respigar algumas ocorrências ao longo da estação atoleimada (aceitam-se sugestões), tudo, claro, a bem da camada do ozono, da conta da electricidade, etc. Começando pelos media de maior difusão (a televisão e a net), assim de repente ocorrem-me dois muito bons exemplos: o jornalista Martim Cabral e o blogger Zé G. Cabral. Duas gerações, dois estilos, e lá que são ambos elegantes, são. Digo eu.