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Delito de Opinião

O Dono do Tempo.

Maria Dulce Fernandes, 24.08.23

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Quando recebemos o sopro da vida, é-nos informado que tem limitação. Só Deus saberá quando, mas é como dizem, Deus põe e o homem dispõe. Ou pelo menos deveria ser.

O homem é um homem. Um homenzinho pequeno, triste, mau e vingativo com o complexo de Deus. É incompreensível como lhe permitem os outros homens ser  o dono do tempo de tanta gente.

A expressão “Ah, era uma questão de tempo” é a que mais se relaciona com os seus desmandos.

Nenhum homem deveria brincar a ser Deus. Ainda há homens justos no mundo ou será apenas uma questão de tempo?

https://areferencia.com/europa/os-mortos-de-putin/

https://cnnportugal.iol.pt/geral/nome-de-prigozhin-esta-no-manifesto-de-voo-do-aviao-que-se-despenhou/20230823/64e66a78d34e371fc0b6eeb5

 

(Imagem Google)

Tempo a tempo

Maria Dulce Fernandes, 04.12.22

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Amor, uma cabana e uma catraia a tiracolo...  um começo pouco auspicioso para uma dupla de ostracizados da moral e dos bons costumes que quis cortar com as parcas de tesouras afiadas e línguas ainda piores e rumar a outras paragens, distantes o suficiente para não alterar radicalmente a ordem das coisas mas o bastante para nos encontrarmos um ao outro, juntos os três, sem ruído de fundo.
Escolher o Cacém foi ingénuo. Visitar a localidade distante 20 minutos de carro e 15 de comboio  dos nossos locais de trabalho, num belo domingo de Setembro à tarde, foi ingénuo. Comprar o apartamento solarengo, num doce 4.º andar a contar vindo do céu, de onde se via um ribeiro, que corria entre ervas, árvores e cabrinhas a pastar, foi muito, mas muito ingénuo.
Não demorou três anos para que o pequeno paraíso boçal se transformasse pelas artes de um qualquer desconhecido PDM, na maior selva de pedra da Linha de Sintra, onde a poluição atmosférica, sonora e humana era tão asfixiante e densa que quase se podia cortar à faca. Dizer que sair e entrar daquela Palestina requeria muito tempo, esforço e paciência,  é muito pouco.
 
Se há algo que o meu pai me ensinou e que raramente quebro, é dar valor à pontualidade.
Eu sou o exemplo vivo de um talibã da pontualidade, sou fundamentalista nesse ponto. Não faço ninguém esperar. Não me atraso. Não sou condescendente para quem falha, principalmente para com os contumazes.
 
Nunca, mas nunca me esquecerei que, recém-casados, fomos de lua de mel para Amsterdam. Devido a um acidente na 2.ª Circular, que esteve mais de duas horas intransitável, perdemos o avião. Como é possível perder-se um avião? Hummm?? A lição que retirei deste facto, foi que, independentemente de onde me encontre, chego SEMPRE ao local de embarque no transporte escolhido, duas horas mais cedo do que nos é indicado no título de transporte. Há sempre um livro que ajuda a manter viva a eficiência da pontualidade.
A TAP entendeu e reemitiu o bilhete para o dia seguinte graças à simpatia da KLM, e lá fomos a caminho  do frio, dos moinhos, dos tamancos, das flores, do gouda... e do haring, cru, odoroso, intenso... uma semana e já era uma iguaria.
 
De volta ao Cacém, retomámos os nossos hábitos diários, tentando contornar situações complicadas e exasperantes que, se ainda o são em 2022, como o não seriam em 1980? Estoicamente sobrevivemos durante 19 anos à custa de muita abnegação.
Foram tempos muito difíceis, mas deixaram recordações maravilhosas e inesquecíveis e uma imensa saudade, principalmente no que toca ao respeito entre as pessoas, termo já descontinuado nas mentalidades de última geração.
Só a de partir 2000 a talibã da pontualidade conseguiu adquirir para si um pouco de um dos bens mais preciosos do mundo e que tão dificilmente se encontra disponível. Dá pelo nome de tempo e é raro não estar esgotado, ou é produto de primeira necessidade e é coisa rara de encontrar nos escaparates.
 
(Foto Google)
 

Da «seca extrema» ao «mau tempo»

Pedro Correia, 20.10.22

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Os canais de televisão que passam meses a fio soltando angustiados sinais de alarme sobre a «seca severa» ou a «seca extrema» em Portugal são os mesmos que, ao fim de um banal dia de chuva, desatam a aludir ao «mau tempo» - precisamente como sinónimo de clima chuvoso.

Voltou a acontecer ontem. Sem qualquer surpresa minha, devo confessar. Devia haver limites à hipocrisia, nem que fosse no plano atmosférico e em nome da mais elementar coerência jornalística. Mas pelos vistos não há.

Um dia mortos

Pedro Correia, 31.12.21

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Um dia mortos, gastos voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados, irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dia do Mar (1947)

Ponteiros trocados

Pedro Correia, 12.11.21

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Mudou a hora. Passamos a reger-nos pela chamada "hora de Inverno". Mas Inverno porquê se ainda estamos em pleno Outono? E mudar a hora porquê se agora começa a anoitecer às 17.30, o que contribui para acentuar um clima depressivo que a própria época do ano já propicia?

Segundo os especialistas que estiveram na origem desta directiva da Comissão Europeia - que Portugal vem seguindo após um período de incerteza - a medida permite às famílias poupar cerca de 5% em energia eléctrica, havendo um benefício para as empresas em cerca de 3%. São as habituais contas dos teóricos que se regem apenas pelos princípios gerais da contabilidade sem saber aplicá-la a situações concretas: o que eventualmente se poupa em consumo energético logo se gasta em consumo de ansiolíticos e antidepressivos, consultas psiquiátricas e absentismo laboral.

Um estudo realizado em Espanha - país que alinha o seu "horário de Inverno" pelo da Alemanha, como se não houvesse quase dois mil quilómetros de distância entre Madrid e Berlim - permite concluir que 56% dos trabalhadores sofre «algum transtorno» com este atraso dos ponteiros do relógio. Uns queixam-se de insónias, outros de falta de concentração. Uma clara maioria acusa sintomas de acrescido cansaço, com bruscas alterações de humor.

Há aqui um problema de fundo: a progressiva falta de correspondência entre o período de trabalho regular e a hora solar. Cada vez se trabalha mais tempo em horário nocturno real. Entretanto, nada mais absurdo do que esta permanente obsessão dos burocratas europeus em gerir ínfimas parcelas do nosso quotidiano com directizes traçadas a régua e esquadro no sossego dos seus gabinetes alcatifados, indiferentes ao pulsar da rua. O mesmo é dizer: indiferentes ao pulsar da vida.

O seu tempo próprio

Ana Cláudia Vicente, 28.11.20

1Neste mundo, tudo tem a sua hora; cada coisa tem o seu tempo próprio.

 2Há o tempo de nascer e o tempo de morrer; o tempo de plantar e o tempo de arrancar (..)

5o tempo de atirar pedras e o tempo de as juntar; o tempo de se abraçar e o tempo de se afastar;

6o tempo de procurar e o tempo de perder; o tempo de guardar e o tempo de deitar fora;

7o tempo de rasgar e o tempo de coser; o tempo de calar e o tempo de falar (...).

Livro de Eclesiastes, 3 (1-2;5-7)

Não sei que idade terão os vossos pais, ou teriam. Os meus têm mais de oitenta. Estão a aguentar-se bem. Quando penso neles, recordo como quase nenhuma geração é poupada a aflições: conheceram primeiro a privação de alimento, a guerra; a peste ficou para o fim. Tiveram e têm o seu tempo próprio. E nós, e o nosso tempo? Não sabemos - não é coisa que consigamos realmente prever. Vivemos as primeiras décadas de vida em progressiva melhoria, comparativa abundância. Agora é hora de nos havermos com uma verdadeira dificuldade colectiva. Há semanas ou meses que convivemos com este encargo novo, cheio de cansaços e angústias surpreendentes. É vez de cuidarmos dos nosso mais velhos e dos nossos mais novos em circunstância instável. Todos os dias improvisamos, todos os dias há uma nova exigência a acrescer ao que tínhamos previsto. É isto, foi esta a fragilidade que os outros, neste mundo e noutra hora, sentiram antes de nós?

Num tempo de guardar e de deitar fora, de se abraçar e de se afastar, evoco duas grandes alegrias: trabalhar em algo que importa e  pertencer a uma boa equipa. Quis a sorte que neste ano desse por mim, todos os dias, a fazer parte de um colectivo de pessoas competentes, confiáveis e generosas. Uma pessoa aguenta quase tudo, quando assim acontece.

Ter tempo

Teresa Ribeiro, 19.03.20

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Olho lá para fora, espantada por ter vagar para "estar à janela", como  se dizia no tempo dos meus avós. Observar o movimento na rua, ou a falta dele, sem propósito é algo que só se fazia em férias. A diferença é que agora o sentimento é de opressão e não de liberdade. Estamos com tempo.

Jorram nas redes discursos inspiradores sobre como é bom tê-lo e as partilhas, como soi dizer-se, dos passatempos a que podemos voltar para gozar em família. Se nuns casos não passa do teatrinho comportamental que tantos gostam de exibir com o único objectivo de continuar, desta vez em modo de combate, a cuidar da sua "brutal" imagem pública, noutros é, com certeza, sincero. Mas por mais transparente que seja o propósito de animar a malta, esta resiliência de espírito soa a desespero. Não é crítica, trata-se apenas de uma constatação. Tenho a mania, pouco saudável, de olhar para o que se me oferece sob todos os ângulos.

Junto a mim, o meu gato segue os pardais que saltitam à volta da cevadilha que está em frente ao prédio, com rancor. Ele é que está bem. Continua a viver na ignorância, dentro da sua bolha, desvalorizando com altivez todos os privilégios de que goza. O conforto, a segurança, comida no prato. Tudo o que lhe dá, imagino, uma parva sensação de imortalidade. Mas já estou a resvalar para o discurso moralista que queria evitar. Comparar-me com ele seria um imperdoável cliché...

O vírus do tempo

Sérgio de Almeida Correia, 16.03.20

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(imagem daqui)

Aquilo que por aqui ninguém queria voltou a acontecer. Ontem, ao final do dia, fomos confrontados com o aparecimento do 11.º caso do COVID-19.

Há quarenta dias que não tínhamos casos novos. Voltámos a ter.

De Aveiro às encostas do Douro, passeando pelo Porto, descendo até Lisboa, contactando com mil e uma pessoas. Quantos se terão cruzado com o vírus? Alguém sabe quem o viu? Antes ou depois das 21 horas?

A taxa de progressão do vírus é desabrida. Os nossos vizinhos e amigos têm a casa a arder; saem labaredas pelas janelas.

Há gente a morrer a um ritmo impressionante. Nem os tordos caem tão depressa.

E, no entanto, o nosso tempo continua lento.

O nosso tempo não consegue adaptar-se às necessidades de um combate de vida ou de morte. Temos de ter paciência.

Continuamos a viver com todo o tempo do mundo. Ao sol, olhando o infinito azul do céu, a brancura da nossa luz.

No meu país, o tempo não tem nada de democrático. Escolhe o seu próprio ritmo, que é o ritmo das instituições. 

No meu país, o tempo é suicidário, mas pleno de ternura, de carinho e de afectos. Por isso confiamos na Virgem.

Antes e depois da decisão.

Às vezes também sem decisão, no consenso dos dias.

A montanha mágica

Maria Dulce Fernandes, 06.01.20

O peso dos anos e o peso das ancas, quando unidos, conseguem seguramente desmoralizar um monge tibetano. Nada que não pudesse ter sido evitado, portanto, mas tirando um bom livro ou uma viagem sonhada, que outros prazeres mundanos e reconfortantes nos restam?
As festas deixaram de ser as festas como as conhecíamos, à medida que os presentes à mesa se foram fazendo representar por uma ausência doída. É verdade que a alegria das crianças é contagiante e balsâmica, mas também sublima a saudade e agiganta o apartamento.

 

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Encontrar o caminho para o lenitivo espiritual através do estômago é a fórmula milenar mais básica e mais cliché que existe, mas também a mais praticada. E já que a carne é fraca, coma-se em dobro.
Janeiro é o mês da montanha mágica, aquele excesso acumulado na cintura de muitos hidratos de carbono, açúcares, lípidos e imoderações proteicas. O nosso Castorp interior transforma num ápice três semanas em sete anos ou numa eternidade, porque a nossa montanha desafia o tempo e a vontade.
O peso da corpulência está em proporção directa ao peso da consciência e inversamente ao da tendência feita carência, derrotando em toda a linha a paciência.
A solução é simples acrescida de um tremendo grau de dificuldade, e é aí que nos agarramos ao tempo, porque o tempo das pessoas não interessa para nada e é bem quantificado ao mês.
Em assim sendo, respiramos fundo e assentamos todos os meses voltar à montanha mágica no mês seguinte, subindo e descendo as assomadas em frequentes oscilações alimentares.

Vazios

Sérgio de Almeida Correia, 13.01.19

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Quando era miúdo não apreciava por aí além, até as coisas mudarem depois de adulto. De Verão nunca foi uma tentação, mas a partir do Outono e, em especial, durante os dias de inverneira azul dava por mim, muitas vezes, a pensar quando chegaria o Domingo para irmos comer um cozido à portuguesa. Sem frango nem batatas, que para mim sempre estavam a mais.

Hoje quis cumprir esse ritual e fui à procura do cozido. Não há?, foi ontem. Ontem? Mas ontem foi sábado. E ninguém avisa? Pois, agora é assim.

Vai ser menos uma preocupação. Até que possa voltar à Paisagem e ao senhor Paulo, ou ao Camponês, acabou-se o cozido ao Domingo. Passa a ser um dia como todos os outros.

Sem cozido, é certo, mas também sem o espectáculo da mesa da frente, onde um cachorro vestido de rapaz, com o impermeável azul que devia ter ficado à porta, lambia sofregamente o prato do doce. No final a mãe limpou-lhe a boca. 

Os tempos mudam. E não avisam.

Aunteicicluone

Rui Rocha, 08.06.18

Anda tudo atrás do Anticiclone dos Açores para ver se o tempo melhora. O problema é que vocês chamam por ele, mas o Anticiclone, como é dos Açores, não vos percebe. Tem de ser assim, ó: Aunteiceicluone, Aunteiceicluone leindo, aunda cáe, eita cousinha máe boneita! Aunda cáe, Aunteiceicluone!

O Inverno anunciado

João Pedro Pimenta, 27.02.18

Considera-se (isto é, eu considero) que o Inverno começa a moderar-se ou a ser "menos Inverno" a partir de vinte, vinte e tal de Fevereiro. Os dias são maiores, o frio glacial já passou, e a época das tempestades que caracteriza meados de Fevereiro começa também a dissipar-se.

 

Este ano, aparentemente, este fim de mês e início do próximo prometem ser verdadeiramente invernosos, apesar de já termos tido uns dias de frio. A Senhora das Candeias e o Phil de Punsxsutawney é que tinham razão: o Inverno estava mesmo para durar.

 

Já agora, quando é que os noticiários páram de falar no "mau tempo" que está a chegar? Com a seca gravíssima que o país atravessa, a chuva e a neve que caem por todo o país são tudo menos mau tempo.

Chegar ao fim

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.17

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Chegar ao fim.

Pode parecer duro, talvez mesmo cruel, assim dito desta forma seca, áspera, que por vezes soa tão violenta. Nunca me foi tão fácil dizê-lo. E ao mesmo tempo é tudo tão profundamente tormentoso.

Será difícil esquecer um ano sentido entre o pico do Evereste e a escuridão da fossa de Mindanau, em que de tudo um pouco e até o nada que aconteceu conseguiu ser tão perturbante.

O sucesso académico, e os termos de que o seu reconhecimento veio acompanhado na pátria que ficou para trás, mas também nas muitas que me foram acolhendo fora de portas, culminando anos de intenso trabalho, distribuindo o tempo — essa miragem que nos foge segundo a segundo e a que por vezes, estupidamente, damos a liberdade de se escoar ainda mais depressa — entre conferências, seminários, palestras, gabinetes, escritórios, bibliotecas, livros e revistas sem fim, jornais, até rádio e televisão, imagine-se, eu, aspirando a que os olhos não se cansassem, temendo que a luz lhes faltasse e as letras começassem a turvar-lhes o caminho, quando por momentos pensava em Borges e no meu Padrinho, cegos para a eternidade com tanto para fazerem, alternando o seu brilho, o dos meus, que me dizem ser intenso, com a mais profunda e desconsolada tristeza, assistindo impotente à partida daqueles a quem ficarei para sempre ligado por laços indestrutíveis de camaradagem, tornados eternos por essa mesma partida precipitada, comprometidos por amizades sem cedências, recebendo o exemplo de um combate incapaz de vacilar, imune a constrangimentos e dificuldades. Tão lento quanto feroz, mas capaz de fazer estremecer as portas do Céu.

E depois ver, e olhar com aqueles mesmos olhos, a tristeza dos outros olhos que me são mais queridos, sentindo-os envelhecer longe, desprotegidos do conforto a que sempre se habituaram, ali esperando, também eles, que os dias fossem mais curtos, menos penosos, ansiando desesperadamente pelo escoar do tempo enclausurado entre as paredes daquele mundo distante e rude que se tornou o deles, tornando mais amargos os seus próprios queixumes, as recriminações contra um ramerrão estranhamente atribulado, sem que percebessem o porquê tão intenso de tal destino, lavrando impropérios, frases soltas de revolta contra o tempo que eu queria controlar.

Como se alguma vez fosse possível amenizar a dor, aquela que é de facto sentida em cada hora, encurtando-lhe o tempo, penteando-a, escanhoando-a, enfiando-lhe uns rolos, mudando-lhe os pijamas e os lençóis, as fraldas, as camisolas coçadas que passaram a ser as de todos os dias em que o tempo parou.

E depois eu voltava a sair para o mundo, para o outro, em que o tempo é contado, tão longe deles e ali mesmo ao lado, comigo sentado na cadeira colocada ao seu lado, ou na borda da cama, enquanto via o seu esforço para comer, para que a couve não lhes caísse na mesa ou no tabuleiro, para que a manga já mergulhada no molho não se sujasse.

E depois não poder partilhar as minhas pequenas vitórias lá de fora, do outro mundo, do mundo de onde eu vinha e para onde iria logo a seguir, tornando ainda mais curto o seu tempo e mais prolongada e distante a minha ausência, dor sempre embarcada e a cheirar a combustíveis, tantos que se tornou indiferente saber se entre tantas estradas, portos e aeroportos se tratava de gasolina, de gasóleo ou de querosene, e onde a única certeza era a de que jamais teria a felicidade de me cruzar com eles, de poder abraçá-los, assim na rua, no meio das outras pessoas, numa estação, numa sala de embarque, no quiosque dos jornais, dar-lhes um beijo terno, como se fossemos ainda as pessoas normais que éramos antes desse sacana do tempo resolver tomar conta de nós e deles, castrando-nos outros sonhos e maiores prazeres definitivamente irreconciliados por força dele. E das chagas que os trouxeram até aqui.

Chegar ao fim sentindo que tudo o que foi feito ainda está por concluir, que o meu tempo se está a apartar cada vez mais do deles e que ambos e tornaram gelatinosos, fugidios, como aquele resto de pudim que se lhes escapa da colher, ali, às voltas pelo prato, até soltarem novo impropério, exaustos, abandonando essa luta sem sentido até que alguém lhes dê uma ajuda.

Ah, como estão longes e distantes aqueles dias em que caminhávamos junto ao mar, ouvíamos Rachmaninov e Brel, tomávamos juntos um copo de vinho, falávamos de futebol, de livros e de política. Para a Mãe o futebol ainda faz sentido, mas agora só se lembra do Eusébio e dos remates dele naquele jogo que nunca soube qual foi porque já se esqueceu. Aquele memória já não sabe de que era é, nem como se sobe o som do telemóvel.

Chegar ao fim tornou-se numa preocupação. Agora tudo se tornou em chegar ao fim. Para todos nós. Chegar ao fim do livro, chegar ao fim do jogo, chegar ao fim da corrida, chegar ao fim da rua, chegar ao fim da fila do supermercado, da farmácia, do estacionamento, das consultas, da urgência hospitalar, das finanças, para depois se chegar ao fim do dia, ao fim da noite, ao fim do mês, até se chegar ao fim do ano.

Esperando sempre que esse fim não chegue ao fim sem eu chegar. Sem que eu possa ver então o tempo partir ficando eu no mesmo lugar. Como tantas vezes fiquei este ano, sentindo a injustiça que há nisto tudo. No tempo deste tempo, que não tarda vai outra vez chegar ao fim. Para que amanhã as nuvens voltem a passar, o chão a sorrir, a correr, a saltar, a nadar, como se o tempo não existisse, como se não houvesse horas nem relógios, que ainda há alguns que também dão o tempo. O nosso e o deles. Vingativos, cobardes, acintosos, com a amargura estampada nos ponteiros, no tiquetaque rançoso do despertador, nos números encarnados do digital da mesinha, piscando quando a outra tipa vem e desata a bater com o tubo do aspirador em tudo o que é sítio com medo que o tempo não lhe chegue para se despachar mais cedo sem escaqueirar a mobília e as suas mossas, mais as tomadas, antes de acabar com as franjas dos velhos tapetes de um qualquer desses buracos terminados em “ão” onde o tempo parou no tempo e nas mãos de quem os teceu.

E é assim que se chega ao fim. Sem ruído. Tão perto e aqui tão longe. Onde ele está sempre presente, sem tom nas cores dos dias, perdido no cinzento dos séculos, para sempre imerso no tempo, num tempo que eu ainda espero, no meu íntimo, que não seja o último.

E que eu veja, e os veja, mesmo assim, quando ainda me podem abraçar, dar um beijo, um abraço na lonjura deste tempo que não me perdoa. Nem eu a ele. Até chegar ao fim. Porque ninguém merece um tempo assim.

 

Bom Ano Novo para todos vós. Que sejam felizes. Com saúde.

 

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