Parem as máquinas
Não dizer nada agora é notícia com enorme destaque. Capaz de ultrapassar qualquer outra.
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Não dizer nada agora é notícia com enorme destaque. Capaz de ultrapassar qualquer outra.
Nas mesmas televisões onde se escutam lamentos diários sobre a multiplicação de casos irrelevantes, sem substância, e os "ataques pessoais" na campanha eleitoral já em curso, assistimos todos os dias à exploração até à náusea dos tais casos ditos irrelevantes e desses "ataques pessoais". Porque geram cliques e garantem audiências.
Nada de novo. É a lamúria hipócrita do costume. Própria de quem apregoa uma coisa e pratica o contrário.
Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana
Cenários e mais cenários e mais cenários. Os canais informativos abdicam cada vez mais da informação enchendo os estúdios de jornalistas que preferem dedicar-se ao comentário. Quando não sabem, inventam. Quando não têm certezas, especulam. Quando lhes falta informação, debitam uma narrativa ficcional.
"Cenarizam", como agora se diz.
É também telenovela, embora com outro nome. No fundo, há poucas diferenças. A principal é sentarem-se em cadeiras em vez de sofás.
Chantal Goya no filme Masculin Féminin, de Jean-Luc Godard (1966)
Oiço muitas vezes por aí chamar "o" Iniciativa Liberal ao quarto maior partido parlamentar português. No seu programa de domingo à noite, Ricardo Araújo Pereira pôs a ridículo este absurdo desnorte gramatical exibindo excertos de noticiários televisivos (incluindo da própria SIC) que mencionavam a IL, alternadamente, como pertencente aos géneros feminino e masculino. Chegando-se ao ponto de ouvir jornalistas diferentes, no mesmo telediário, usarem as duas fórmulas. Questiono-me se não haverá livros de estilo e editores que assegurem o controlo de qualidade nestes canais para impedir esta algaraviada sem senso algum.
A norma gramatical é clara: artigo e substantivo concordam em género e número. Aqui não há transgénero: masculino é masculino, feminino é feminino. Nem há transnúmero: singular é singular, plural é plural.
Assim, dizemos os Verdes ao aludirmos a um partido que integra a actual coligação governamental na Alemanha - no plural. E a UNITA ou a FRELIMO quando mencionamos estes partidos políticos, um em Angola (União para a Independência Total de Angola), outro em Moçambique (Frente de Libertação de Moçambique).
A sigla IL só deve ser lida com artigo feminino - por a primeira letra ser abreviatura de Iniciativa. Ninguém diz "o FRELIMO" ou "o UNITA". Diferente é se disserem "o partido Iniciativa Liberal" - só aí o artigo é masculino. Mas faz pouco sentido usar 24 letras para aquilo que pode ser dito só com duas.
Enfim, regras que deviam ser fixadas desde as aulas da instrução primária, mas que jornalistas supostamente com formação universitária são incapazes de aplicar. O que diz muito sobre a qualidade do nosso ensino. E sobre a qualidade do nosso jornalismo.
A África do Sul está há vários dias em convulsão. Ocorrem ali os maiores distúrbios e os mais graves actos de violência desde o fim do regime de minoria branca: 72 mortos confirmados, mais de 1200 pessoas já detidas. A tal ponto que o Governo mobilizou as forças armadas para reforçar os contingentes policiais, impotentes perante tanta devastação.
Protesta-se contra a detenção do antigo presidente Jacob Zuma, condenado pelo Tribunal Constitucional sul-africano a 15 meses de prisão por recusa em comparecer perante a justiça que o acusava de envolvimento em actos de corrupção.
Mas há motivos muito mais profundos e graves para esta espiral de violência, já com vários episódios dramáticos. Desde logo o facto de a África do Sul ser o país com maior índice de desigualdade à escala planetária, segundo dados do Banco Mundial. Um em cada cinco dos seus habitantes, de acordo com um recente relatório da ONU, sobrevive em condições de pobreza extrema.
Há oito dias consecutivos que esta onda de pilhagens e assassínios sem precedentes desde a implantação do regime pós-apartheid varre o país aparentemente mais próspero do continente africano. O embaixador de Portugal na África do Sul já recomenda aos compatriotas que se recolham em casa. Não são poucos: cerca de 450 mil estão radicados no país.
Reparo entretanto que as televisões portuguesas só ontem despertaram para a questão com as primeiras notícias e as primeiras imagens. E penso no contraste: se tivesse ocorrido nos EUA, com apenas um morto fosse em que local fosse, o alarido que não teriam feito, dias a fio, até agora.
Se há coisa que me repugna, entre os péssimos hábitos que começam a instalar-se na indústria mediática portuguesa, é a glamorização dos assassinos.
Não há crime mais repugnante e hediondo sem que os protagonistas mereçam todos os holofotes jornalísticos, com ampla revelação dos seus nomes e rostos. Agora tornou-se moda picar fotografias nas redes sociais - e eis, portanto, as imagens de duas mulheres que assassinaram um homem, desmembraram o corpo e andaram a espalhar pedaços do cadáver por todo o Algarve difundidas com poses suaves e requintadas. Imitando actrizes de cinema, imortalizadas em jornais e televisões.
Mulheres, repito. Mas nas notícias recebem tratamento adocicado: chamam-lhes "jovens" enquanto repetem uma vez e outra os nomes, como se fosse gente íntima cá da casa. Algumas notícias emprestam até uma aura romântica à coisa, sublinhando que as criminosas andavam muito apaixonadas. Possuídas pelo fogo que arde sem se ver.
Um youtuber que "espanca namorada até à morte em directo por dinheiro" vê a sua foto estampada nos jornais, com nome associado. Foto de rede social, não da polícia: tem ares de artista em voga, não faltará quem o ache simpático. É "jovem" também, sublinham as notícias. Matar a namorada em directo talvez seja um inócuo pecadilho de juventude. E ela - sabe-se lá - pôs a jeito...
Um dia destes o assassino vai ao "confesso-me", num programa de telelixo qualquer, e obtém absolvição do respeitável público ali reunido. Também em directo.
E siga o baile: este espectáculo alimenta-se de sessões contínuas.
Há dois meses, o Governo anunciou a distribuição de um pacote financeiro destinado a apoiar grupos privados de comunicação social em forma de publicidade institucional. Os dois grupos mais apoiados foram a Impresa (da SIC) e a Media Capital (da TVI), que embolsaram praticamente sete milhões do total do bolo, avaliado em 11,2 milhões de euros. Em fatias quase iguais: a Impresa encaixou 3,5 milhões deste financiamento, ficando a Media Capital com 3,3 milhões.
Cada uma gere a verba como bem entende, sem obrigações acrescidas de serviço público. A TVI, imitando os clubes de futebol durante o mercado de transferências, não demorou a usar este dinheiro extra para atrair Cristina Ferreira com um salário milionário e um lugar no Conselho de Administração da empresa, trazendo-a de volta a Queluz de Baixo e causando um rombo à SIC, sua principal concorrente. E promete continuar a fazer uso imoderado deste subsídio governamental: aproveitou para contratar ao exterior dois novos responsáveis pela informação (sem deixar de indemnizar o director cessante, seguramente) e agora até acena com um salário de um milhão de euros a José Rodrigues dos Santos para o tirar da RTP.
Tudo isto em tempo de grave crise sanitária, social e financeira, quando faltam recursos para o essencial. «É quase uma afronta o valor pago aos enfermeiros [8 euros por hora] na pandemia», como sublinhava Odília Neves, enfermeira-coordenadora das urgências e cuidados intensivos no Centro Hospitalar Lisboa Central, em entrevista à mais recente edição do Expresso.
Haverá quem seja indiferente a tudo isto, aplaudindo vedetas como Cristina Ferreira, que volta a saltitar de televisão, desta vez à custa dos contribuintes. Eu não encolho os ombros nem calo a indignação: injectar dinheiro dos nossos impostos em empresas privadas de comunicação social para que estas contratem estrelas da pantalha a preço astronómico enquanto pagam salários cada vez mais residuais a quase todos quantos lá trabalham, é algo inaceitável. Com a bênção de um governo capaz de tudo em busca de propaganda.
Uma afronta, para usar a justa expressão de Odília Neves.
Marcelo Rebelo de Sousa revelou à SIC uma das cachas políticas do ano: vai submeter-se a um cataterismo, para avaliar eventuais danos cardíacos e deste exame clínico dependerá uma decisão sua sobre a recandidatura à Presidência da República.
Acontece que a entrevista em que o Chefe do Estado fez esta e outras revelações não foi conduzida por um jornalista, munido do respectivo título profissional, mas pelo director-geral de entretenimento da estação outrora sediada em Carnaxide. O que constitui mais um significativo sinal da desvalorização do papel social dos jornalistas e da sua progressiva irrelevância no circuitos comunicacionais contemporâneos.
Que a SIC, onde trabalham dezenas de jornalistas qualificados e prestigiados, tenha prescindido deles para a obtenção desta informação em exclusivo e que o próprio Presidente da República elegesse como emissário desta novidade alguém ligado à área do entretenimento diz muito sobre a degradação de um ofício hoje invadido a todo o momento por gente que não se inibe de divulgar matéria supostamente noticiosa sem sujeitar o que supõe saber ao crivo do contraditório nem cumprir outras normas deontológicas que só vinculam os portadores da carteira profissional de jornalista.
Não passa praticamente um dia sem que, neste ou noutros canais, escutemos comentadores da política ou do desporto difundirem em antena "notícias exclusivas" que muitas vezes são meros rumores, à revelia das respectivas direcções de informação. O caso mais flagrante acontece na área do futebol - a tal ponto que me questiono se continuam a existir jornalistas habilitados a pronunciar-se na área do desporto em qualquer destes canais. Mesmo que a resposta seja afirmativa, o facto é que qualquer deles pouco mais servirá do que para estender um microfone, muitas vezes em "conferências de imprensa" onde não se escuta uma verdadeira pergunta digna desse nome.
Tudo isto deveria preocupar a estrutura dirigente dos jornalistas - se ela existisse. Acontece que esta é a única actividade abrangida por um código deontológico que não está organizada enquanto ordem profissional. Condenados à proletarização, sem condições mínimas para exercer o trabalho, desconsiderados pelas empresas onde prestam serviço e ultrapassados a todo o momento por qualquer "comentador residente" em estúdio, os jornalistas figuram hoje no posto mais baixo da cadeia informativa.
Problema exclusivo deles? Não: é um problema dos cidadãos que tantas vezes preferem ser "informados" pelo que "se vai dizendo" nas redes sociais e elegem as televisões que mais transformam notícias em "entretenimento".
Um problema do País, portanto.
«Temos de libertar a comunicação social da tutela dos partidos políticos, sobretudo do cartel de partidos políticos dominantes na Assembleia da República.»
António Marinho Pinto, do Partido Democrático Republicano (ontem, na RTP)
A RTP cumpriu ontem a sua vocação de serviço público. Dando voz aos chamados "pequenos partidos" que concorrem à eleição do próximo dia 6.
Eram 15, no total: recorde absoluto em debates deste género. Nada fácil de conduzir, numa emissão que durou mais de duas horas e esteve a cargo da jornalista Maria Flor Pedroso.
Uma emissão verdadeiramente democrática. Que juntou candidatos da extrema-direita (como José Pinto Coelho, do PNR) e da extrema-esquerda (como Cidália Guerreiro, do MRPP). Que pôs o antigo primeiro-ministro Pedro Santana Lopes (em representação da Aliança) ao lado do antigo calceteiro Tino de Rans (do novo partido RIR).
É vergonhoso que os canais privados de televisão - infestados de doutos comentadores que lançam anátemas ao sistema político e costumam criticar a perpetuação dos mesmos protagonistas na cena partidária portuguesa - tenham abdicado de organizar debates com partidos que não estão representados na Assembleia da República.
Apostar só no consagrado é assumir uma opção editorial de vistas curtas. E com manifesta falta de sensibilidade democrática. Lamento que Ricardo Costa (da SIC), Sérgio Figueiredo (da TVI) e Octávio Ribeiro (da CMTV) tenham sido incapazes de dar voz aos que falam e pensam de modo diferente. Ao menos por uma vez em quatro anos.
Fossem estes candidatos jogadores de futebol ou treinadores da bola e teriam todo o tempo e todo o espaço nos canais que aqueles jornalistas dirigem. Dá que pensar. Depois não venham pregar-nos sermões sobre défice democrático. Poupem-nos, ao menos, a tamanha hipocrisia.
Debate Costa-Rio foi ontem acompanhado por 2,7 milhões de telespectadores. Demonstração clara de que as pessoas se interessam por política. E só não acompanham mais porque os canais de televisão pouco mais têm para oferecer do que telenovelas e futebol. Aliás, à hora do debate, um dos putativos canais de "notícias" dava destaque... à bola.
Foram estes os outros debates com maior audiência:
Costa-Sousa (SIC) - 1,1 milhões de espectadores
Costa-Silva (SIC) - 1,065 milhões de espectadores
Costa-Cristas (TVI) - 935 mil espectadores
Costa lidera, portanto - não só nas sondagens, mas também nos debates.
O menos visto? Martins-Silva, na SIC Notícias, apenas com 68.100 espectadores.
Já havia os directos de horas intermináveis sobre autocarros a caminho dos estádios.
Agora regista-se uma inovação nos noticiários televisivos: directos, dia após dia, sobre estações de abastecimento de combustível onde não se vê ninguém, excepto a desgraçada da jornalista (são quase sempre mulheres) a preencher tempo de antena sem novidade alguma: «Aqui regista-se perfeita normalidade»; «Todos os postos que visitámos tinham muito poucas viaturas»; «A tarde tem estado muito tranquila»; «Não há filas em lugar nenhum»; «Encontrámos muitos postos vazios não por falta de combustível mas por falta de clientes.»
Um imenso bocejo. Em perfeito contraste com o alarmismo dos ministros que andaram uma semana inteira a entrar-nos em casa a falar como se o País estivesse em estado de sítio e fosse necessário mobilizar as tropas especiais para travar uma agressão de um país estrangeiro ou uma invasão de marcianos.
Com momentos que me fizeram lembrar a guerra do Solnado. Deixo-a ali mais em cima para quem não sabe ou já não se lembra.
Terceiro dia consecutivo a ver "directos" atrás de "directos" nos telediários cá do terrunho, com repórteres perorando sobre coisa nenhuma junto a postos de abastecimento de combustível literalmente às moscas. Enchendo chouriços, como se diz na gíria jornalística.
Esta manhã ouvi duas repórteres dizendo que lá onde estão «há hoje até menos gente do que é habitual». Azar para quem previa grande movimentação: as tão ansiadas corridas às gasolineiras não aconteceram.
Alguns pivôs televisivos - com ordenados superiores a um ministro - querem criar um clima de alarmismo nacional responsabilizando os motoristas de matérias perigosas, em greve para conseguirem melhorar o miserável salário-base de 630 euros, que na melhor das hipóteses subirá apenas para 700 euros a partir de Janeiro de 2020. Mas - lamento muito - não estão a conseguir. E talvez ainda sejam forçados a pagar direitos autorais ao aposentado Artur Albarran, celebrizado pela trilogia «O drama, a tragédia, o horror».
Podem, no entanto, continuar a tentar. Assim, ao menos, acabam por encher o depósito noticioso. De chouriços.
SUMIDADES
Todos os dias escuto umas sumidades exprimindo o seu imenso nojo pela campanha eleitoral em curso porque nela «não se debate a Europa».
Nos mesmos canais de televisão onde, durante um ano inteiro, quase só há lugar para debater futebol.
Futebol e mais futebol e mais futebol e mais futebol. Em todos os canais, começando pela televisão pública. Serões inteiros dedicados à bola, internacional ou doméstica. Serões cujo conteúdo é retransmitido madrugada adiante nos sonolentos canais que garantem ter noticiário "24 horas". Na manhã seguinte, mais futebol. E à hora do almoço. E durante a tarde.
Nunca o escrutínio governativo andou tão arredado das pantalhas cá do burgo.
António Costa, com 40 anos de experiência política, sabe muito bem que este ópio do povo é o maior aliado de um Executivo em dificuldades. Imagino-o até a recomendar ao desaparecido ministro da Educação, que enfrenta uma contestação sem precedentes dos professores nesta legislatura: «Tiago, vai à Rússia e mostra-te lá com os jogadores da selecção.»
E ele foi. Como se dizia antigamente, e bem podia voltar a dizer-se agora, «o futebol é qu'induca, a bola é qu'instrói.»
Curioso: em todos os órgãos de informação deparamos diariamente com copiosas e exaustivas prelecções sobre a necessidade de estabelecer mecanismos de paridade que assegurem o aumento da participação feminina na sociedade portuguesa, mas são raríssimos os media que asseguram essa participação dentro de portas.
Eis um caso evidente daquele velho princípio do São Tomás: faz o que ele diz, não faças o que ele faz.
Comecemos pelas televisões. Todas dirigidas por homens.
Ricardo Costa, na SIC. Sérgio Figueiredo, na TVI. Paulo Dentinho, na RTP. Octávio Ribeiro, na CMTV.
Nos jornais diários, vemos o mesmo Octávio Ribeiro à frente do Correio da Manhã, Ferreira Fernandes recém-nomeado director do Diário de Notícias, David Dinis encabeçando o Público, Afonso Camões na liderança do Jornal de Notícias, Mário Ramires dirigindo o i, André Veríssimo conduzindo o Jornal de Negócios.
Nos desportivos, Vítor Serpa dirige A Bola; António Magalhães, o Record; José Manuel Ribeiro, O Jogo.
Homens, apenas homens.
Tal como na agência Lusa, dirigida por Pedro Camacho.
Domínio absoluto masculino igualmente ao nível dos jornais digitais.
José Manuel Fernandes dirige o Observador, António Costa lidera o Eco, Mário Rodrigues está à frente do Notícias ao Minuto.
E nos semanários?
Pedro Santos Guerreiro dirige o Expresso, Mário Ramires dirige o Sol, Eduardo Dâmaso dirige a Sábado, Filipe Alves dirige o Jornal Económico, João Peixoto de Sousa dirige a Vida Económica.
Mas aqui encontramos a primeira excepção feminina num reduto quase apenas reservado a homens: Mafalda Anjos, directora da revista Visão.
Finalmente, as rádios de expansão nacional.
Quem lidera a informação radiofónica? João Paulo Baltazar na Antena 1, Arsénio Reis na TSF, Graça Franco na Rádio Renascença.
A emissora católica é assim a segunda - e última - excepção ao domínio quase absoluto do "macho ibérico" no jornalismo português.
Em 26 títulos, 24 são dirigidos por homens. Noventa e dois por cento.
Mas tenho a certeza de que continuaremos a ler, ver e ouvir excelentes peças em todos estes órgãos de informação denunciando inadmissíveis "discriminações de género" na sociedade portuguesa.
As virgens pudibundas têm horror ao "confronto", como se a democracia só vivesse de consensos. Por isso correm às pantalhas para proclamar o seu imenso nojo perante a "escalada verbal" de candidatos que disputam votos.
Qualquer madre superiora era capaz de dizer algo semelhante lá no seu convento.
Os canais de televisão que passam o ano a alertar as massas ignaras para os riscos do aquecimento global e polvilham os telediários com oportunas notícias sobre os malefícios da seca prolongada são os mesmos que chamam "mau tempo" aos dias chuvosos. Sem perceberem que mau tempo, para boa parte daqueles que os escutam, é haver semanas e meses sem um só pingo de chuva a cair do céu.
Um homicídio foi ontem notícia. Mas com uma diferença em relação àquilo que é habitual sabermos: este foi cometido por um elemento de uma corporação policial. A notícia foi divulgada ontem, à hora do almoço, nos telediários de três canais em sinal aberto, cada qual à sua maneira.
Transcrevo aqui as diferentes versões e proponho aos leitores que me indiquem qual entendem ser a mais correcta e porquê. Podendo, naturalmente, comentar outros aspectos relacionados com este crime.
SIC, 13.16: «A PSP matou uma mulher por engano durante a madrugada passada em Lisboa. A polícia confundiu o carro da vítima com uma viatura em que fugiam os assaltantes de um multibanco. Este desfecho trágico aconteceu na Segunda Circular.»
TVI, 13.18: «Uma mulher foi morta esta manhã durante uma perseguição policial em Lisboa, numa operação destinada a capturar elementos de um gangue que de madrugada tinha assaltado um multibanco em Almada. A vítima mortal não estava relacionada com o crime cometido na Margem Sul do Tejo.»
RTP, 13.19: «Uma mulher morreu esta madrugada, em Lisboa, depois de baleada pela polícia. Seguia num carro que não parou numa operação policial que os agentes da PSP tinham montado para deter os assaltantes de um multibanco. Sabe-se agora que a mulher que morreu não tinha nada a ver com o assalto.»
Quatro canais de televisão especializados em "notícias". Os quatro, sem excepção, passam o serão deste domingo com conversa de café em estúdio a propósito de futebol. Mesmo com o futebol em férias, mesmo com o campeonato parado, mesmo sem a bola a rolar nos relvados.
A RTP, canal público, poderia fazer a diferença. Mas não: segue o mesmo alinhamento dos restantes. Como se não houvesse notícias a sério, no País e no mundo. Como se só lhes interessasse captar o público masculino, cliente-padrão deste bate-boca futebolístico, em horário nobre.
Com políticos a palrar de bola.
E politólogos a cacarejar de bola.
E tudólogos a tagarelar de bola.
Depois há quem se admire por estes canais cada vez mais monotemáticos estarem a perder audiência de mês para mês no cabo. Não sei porque se espantam.
Como sempre em Portugal, saltamos do oito para o oitenta - da indiferença total à lotação esgotada vai um curto passo. Canais de televisão que não mexeram um dedo para acompanhar o percurso da canção vencedora do Festival da Eurovisão em todo o processo que culminou com a final de Kiev, na noite de sábado, passaram a dedicar dezenas de minutos ao tema em sucessivos telediários mal soou a trombeta do triunfo.
Cidadãos que há muito se estavam nas tintas para eurofestivais soltam agora gritos de euforia, proclamando a “vitória de Portugal”, como se o destino da pátria estivesse em jogo. Políticos que nada fizeram nem fazem para instituir a educação musical no ensino público correm a colar-se à equipa vencedora, com o oportunismo de sempre.
Lamento, mas não alinho nestes coros colectivos nem me deixo iludir perante tamanha hipocrisia. A vitória na Eurovisão não foi “de Portugal”: foi de pessoas concretas. São essas que merecem os nossos parabéns. A Luísa Sobral, com talento e sensibilidade para conceber a letra e a música que estão a seduzir milhões de pessoas em todos os continentes. O Salvador Sobral, que tão bem interpretou a canção. O Luís Figueiredo, pianista e compositor de excepção, autor dos arranjos musicais que tanto valorizaram Amar Pelos Dois.
Não deixa de ser espantoso que os mesmos canais de televisão – incluindo a própria RTP – que promovem programas de formação e revelação de supostos novos talentos na música ligeira onde quase só se canta em mau inglês com dialecto americano sublinhem por estes dias a importância de se cantar em português. Como se só agora tivessem descoberto a musicalidade do nosso idioma – um facto tão notório desde as Cantigas de Amigo medievais até às trovas contemporâneas de um João Gilberto e um Caetano Veloso. Passando pela fabulosa lírica de Camões, toda ela digna de ser cantada.
Para serem consequentes, esses responsáveis televisivos que agora se derramam nos ecrãs a tecer loas à canção vitoriosa deviam anunciar desde já novos programas caça-talentos virados em exclusivo para a música portuguesa. Sob pena de toda esta euforia se esgotar num curto prazo e continuarmos a promover o tal “fogo de artifício” cénico de que muito bem falava o Salvador Sobral: miúdas e catraios aos saltinhos num palco, esganiçando-se em trinados num idioma de importação do qual mal conseguem arranhar uns refrões tontos, plastificados na forma e vazios de conteúdo.
Poupem-nos ao menos à retórica patrioteira. Para esse peditório não dou.