Os debates, num registo frente-a-frente, têm sido entre líderes de partidos. Mas certos jornalistas que deviam moderá-los, em vez de se apagarem o mais possível, procuram concorrer com os políticos em fome de palco. Fazendo lembrar aqueles árbitros que roubam protagonismo aos jogadores em partidas de futebol exibindo cartões de várias cores a torto e a direito enquanto apitam a cada 30 segundos. Numa tentativa desesperada de serem o centro das atenções.
Infelizmente isto não acontece só nos estádios: passa-se o mesmo nos estúdios. Na segunda-feira de Carnaval, na RTP, o moderador do debate entre Luís Montenegro e André Ventura fez tudo para se evidenciar. E, de algum modo, concretizou o objectivo: naqueles 39 minutos conseguiu interromper 121 vezes os candidatos! Quase em partes iguais, com o presidente do PSD a ver as suas frases 61 vezes cortadas por João Adelino Faria, enquanto o mesmo sucedeu 60 vezes ao presidente do Chega.
«Quando estamos os três a falar, ninguém nos ouve», lamentou a certa altura o pivô da RTP. Num involuntário exercício de autocrítica, pois era incapaz de se calar enquanto os dois políticos se confrontavam.
«Temos muito pouco tempo», foi outra das suas frases, dignas de cronometrista. Além da bengala verbal «muito bem» que já se transformou numa espécie de senha no canal público de televisão. É raro o jornalista que ali não usa e abusa dela, mesmo totalmente fora de contexto. Já ouvi alguns dizerem «muito bem» até quando se fala de guerras, massacres, catástrofes climáticas ou epidemias. Vale para tudo.
Quanto ao debate em si, nos escassos momentos em que Faria deixou os participantes completarem três frases, a ideia dominante foi esta: o Chega funciona como aliado objectivo do PS. Daí ter sido eleito, durante toda a legislatura que agora termina, como interlocutor preferencial de António Costa nos confrontos parlamentares - imitando o precedente inaugurado em França, na década de 80, pelo socialista François Mitterrand com a ultra-direita de Jean Marie Le Pen.
Os socialistas, cá como lá, alimentaram o ovo da serpente. Na expectativa de assim neutralizarem a direita moderada, sua rival directa nas urnas. Em França, o tiro saiu-lhes pela culatra: o Reagrupamento Nacional, liderado pela filha de Le Pen, tem hoje 89 deputados na Assembleia Nacional enquanto o PSF não conseguiu eleger mais do que 24, entre 577 lugares, nas legislativas de 2022. Tornou-se um partido irrelevante.
Neste confronto na RTP, Montenegro fez o que lhe competia. Desmascarando a irresponsabilidade do Chega, que exige agora o direito à filiação partidária e o direito à greve aos elementos das forças de segurança sem avaliar as consequências do que propõe. E esclareceu que só as 13 medidas mais emblemáticas do pacote de promessas eleitorais do partido da direita populista custariam cerca de 25,5 mil milhões de euros se fossem postas em prática - o equivalente a 9% do PIB anual português.
Contas que aparentemente Ventura não fez: embatucou ao ouvir isto, ficando sem resposta.
Argumentou como? À maneira dele: com insultos.
Acusou o PSD de «traição», de «espezinhar as forças de segurança», de «enganar os pensionistas há 50 anos», de ser «uma prostituta política». Montenegro, para ele, é «o idiota útil da esquerda» - representante «de um sistema que nos tem dado corrupção, tachos e bandidos à solta».
Eis o caudilho do Chega, uma vez mais, a funcionar como guarda avançada do PS. Nem lhe passaria pela cabeça chamar alguma vez «prostituta política» a António Costa...
Ventura berra tudo quanto for preciso para gerar títulos na imprensa e cliques nas redes sociais. Mesmo baixando cada vez mais o nível. Comparado com ele, o Tino de Rans faz figura de estadista.
Este debate confirmou que há sérios problemas de governabilidade à direita com o líder do Chega em cena. À esquerda, ninguém imagina uma peixeirada destas entre Mariana Mortágua, Paulo Raimundo e Pedro Nuno Santos.
Montenegro nunca governará com quem lhe chama idiota e traidor, nem se coligará com quem acusa o PSD de prostituição política. Há limites para tudo. De algum modo, beneficiou com a estridência insultuosa de Ventura: atraiu votos moderados, separando as águas. «Muito bem», como diria João Adelino Faria pela enésima vez, repetindo a bengala verbal tão em voga na RTP.