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Delito de Opinião

«É a circunstância que gera uma parte daquilo que é o problema com o qual nos temos confrontado»

Pedro Correia, 28.06.22

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«Nos tempos mais recentes uma das coisas que tem falhado é a capacidade institucional de ter uma articulação estável e articulada e integrada que permita que de facto a rede funcionando como um conjunto, funcionando como um todo, seja utilizada, conhecida, programada e sem alguns desequilíbrios nessa resposta. Portanto, dai que a primeira resposta seja de facto a criação de uma comissão de acompanhamento da resposta em emergência de ginecologia e obstetrícia e bloco de partos que integra cinco coordenadores regionais e um coordenador nacional e que replica de alguma forma o modelo que já utilizámos quando foi necessário maximizar a coordenação nacional por exemplo na resposta às necessidades de medicina intensiva. Portanto esta comissão irá funcionar num modelo semelhante, sendo que o trabalho desta comissão é muito vocacionado para aquilo que é o curto prazo e quando estou a dizer curto prazo estou a falar dos meses de Junho, Julho, Agosto e Setembro. Então o que irá fazer esta comissão? Designadamente identificar os recursos disponíveis por hospital e região mas também aprovar um modelo de articulação e gestão integrada dos hospitais de cada região apoiando as administrações regionais de saúde nesse trabalho, centralizando, analisando, apoiando a elaboração dos planos de contingência de cada hospital. (…) Por outro lado esta equipa terá também a missão de por exemplo propor ou discutir com as administrações regionais de saúde a necessidade de celebração de acordos com outros sectores – o sector privado, o sector social – como aliás já fizemos no passado também noutras situações de necessidade e como sabem também as nossas reuniões desta semana envolveram o sector privado e social e houve disponibilidade de, dentro das limitações que também o sector privado tem para esta resposta, nos apoiarem. Por outro lado será também uma tarefa muito importante desta equipa, desta comissão, o acompanhamento dos indicadores de saúde materna, daqueles que se podem acompanhar no curto prazo, ir monitorizando para efeitos de acompanhamento daquilo que é a qualidade. Entre outros aspectos, naturalmente estou a sublinhar os mais importantes. Este é um aspecto, outro aspecto também no curto prazo prende-se com uma circunstância que todos temos percebido que é também a circunstância que gera uma parte daquilo que é o problema com o qual nos temos confrontado, que é a necessidade de rever questões associadas à remuneração médica em serviço de urgência.»

 

O enorme parágrafo anterior transcreve parte do que disse a ministra da Saúde na semana passada, só para anunciar isto: face ao caos nas urgências hospitalares, o Governo decidiu criar uma comissão. Recurso habitual para iludir o problema: consta dos manuais do ramo.

Conversa mole, discurso redondo, gastando quatro ou cinco vezes mais palavras do que o necessário. Para marcar a agenda mediática. Muita forma, nenhum conteúdo.

Com este palavreado, de que aqui ficam apenas breves excertos, Marta Temido abriu os telediários dessa quarta-feira. Conseguiu 4 minutos e 36 segundos de tempo de antena no Jornal da Noite da SIC, 5 minutos e 53 segundos no Jornal das 8 da TVI e 6 minutos e 46 segundos no Telejornal da RTP.

Missão coroada de sucesso. Os problemas da saúde podem esperar.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Memórias amargas e doces de Paula Rego

Pedro Correia, 21.06.22

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O nosso olhar pode prender-se a uma imagem e ela funcionar como chamariz irresistível: ficamos conquistados. Por exemplo, aquela fascinante casa dos avós de Paula Rego, à entrada da Ericeira, onde a pintora viveu os seus anos mais felizes e surgiria transfigurada em diversos quadros que pintou. Ou os retratos dela enquanto jovem, de uma beleza fulgurante, embora sem aparente noção disso. Uma das filhas alude ao tema no documentário: «Era lindíssima, parecia uma estrela de cinema.»

 

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Produzido pela BBC, o documentário foi realizado pelo filho de Paula, Nick Willing, que durante dois anos manteve um diálogo filmado com a mãe, já octogenária. Num fluxo de confidências, ela fala pela primeira vez da sua vida, desde a mais remota infância, e da sua arte, que viria a dar-lhe fama tardia mas merecida, no final da década de 80.

Paula era pessoa reservada e tímida, confessa ter sido sempre marcada pela depressão, à semelhança do que sucedia com o pai, prematuramente desaparecido, enquanto mantinha relação tensa com a mãe, artista frustrada. 

“Paula Rego, Histórias e Segredos” desvenda-nos Maria Paula Figueiroa Rego, nascida em Lisboa a 26 de Janeiro de 1935 e falecida a 8 de Junho de 2022 em Londres, onde estava radicada há quase meio século. Fala em inglês com o filho, mas a primeira frase que pronuncia é na língua materna. E o filme encerra com a voz de Amália cantando “Gaivota”, o mais belo fado de sempre.

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O documentário é de 2017 e teve até estreia em sala. Fez bem a RTP3 ao exibi-lo agora, a pretexto da morte da nossa mais célebre artista contemporânea. Muitos de nós só agora ficámos a conhecê-la em discurso directo, com depoimentos dos filhos – além de Nick, falam as filhas, Caroline e Victoria. Também surge Jorge Sampaio, que convidou Paula a pintar oito imagens da Virgem Maria para a capela do Palácio de Belém. «A religião tinha um papel importante na vida dela», revela o falecido Presidente. Questionada pelo filho, a pintora confirma: «Acredito em Deus, claro que acredito.»

No pós-25 de Abril, viu-se forçada a vender a quinta Figueiroa Rego para liquidar dívidas familiares. Em Portugal, naqueles anos, era impossível viver da produção artística. Paula e o marido britânico, Victor Willing, rumaram a Londres. Ele, também pintor, tinha sérios problemas de saúde, vindo a morrer em 1988. Ela afundou-se na depressão, o que se reflectiu nas telas.

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«Nos meus quadros podia fazer tudo», segreda ao filho. Reabilitou a pintura figurativa, na linha de um Francis Bacon ou de um Lucian Freud. E manteve uma saudade amarga e doce pela casa dos avós na Ribeira da Baleia: a perda foi tão devastadora que não regressou à Ericeira. A quinta de 11 hectares desapareceu, o bosque deixou de existir: resta a magnífica mansão de portas encerradas, sem memórias nem préstimo, à portuguesa. Disto o filme nos fala também.

Assim vale a pena haver serviço público. Para alargar horizontes, combater a mediocridade e subir de nível. Enquanto outros canais, à mesma hora, desperdiçam horas de emissão com broncos aos gritos sobre tricas do futebol.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Cavaco e as causas do eclipse laranja

Pedro Correia, 13.06.22

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Dizia alguém que somos escravos das nossas frases e donos do nosso silêncio. Aníbal Cavaco Silva bebeu desta sabedoria: evita desgastar-se em alocuções diárias, sabendo de antemão que será mais escutado nas raras ocasiões em que decide intervir no espaço público.

Voltou a acontecer há dias, num serão televisivo. Cavaco não decepcionou aqueles que o ouviram na entrevista exclusiva à CNN Portugal. Falou de forma clara e acutilante, sem rodriguinhos nem entretantos. Mostrando ao seu partido de sempre, o PSD, como se deve fazer oposição. A ocasião escolhida para prestar estas declarações não surgiu por acaso, coincidindo com o final do mandato de quatro anos de Rui Rio à frente dos sociais-democratas e a eleição, ainda sem tomada de posse, do novo líder, Luís Montenegro.

É o momento propício para lançar avisos à navegação. Cavaco não mandou recados por “fontes próximas”, ao contrário do que costumam fazer outras ilustres figuras do palco político: falou em discurso directo, o que confere valor reforçado às suas palavras.

 

Furo jornalístico, sem sombra de dúvida. Ciente disso, a CNNP apressou-se a exibir em oráculo, logo a abrir: «Cavaco arrasa Rio.» Recorrendo a um dos verbos mais desgastados da comunicação social portuguesa. E pecando por precipitação: o telespectador ainda nada ouvira.

Mas, de facto, o homem que ocupou durante 20 anos o poder em Portugal – uma década como primeiro-ministro, outra como Presidente da República – não foi meigo com o líder cessante do PSD. Disse, no fundo, aquilo que quase todos os tradicionais eleitores sociais-democratas pensam destes quatro anos de eclipse laranja. Naquele seu jeito de comunicar em linha recta, sem procurar atalhos nem esbanjar vocábulos.

«O PSD não foi vencedor em nenhum concelho a sul de Alcobaça. Os eleitores não viram o PSD como um partido verdadeiramente nacional, como alternativa ao PS. Quase parecia um partido regional. Muitos eleitores viam um PSD que era suporte do PS e às vezes era humilhado em debates na Assembleia da República pelo PS.»

Bastaram quatro frases para demolir o desastroso legado de Rio, que sai de cena como o maior derrotado de que há memória na já vasta galeria de presidentes da agremiação política fundada em 1974 por Francisco Sá Carneiro. António Costa bem pode agradecer-lhe a maioria absoluta que o PS agora ostenta.

 

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Ficou a sensação de que a entrevistadora, Maria João Avillez, poderia ter permitido maior intervenção ao entrevistado. Algumas das suas perguntas continham considerações diversas, tornando-se mais extensas do que as respostas. E houve desnecessárias interrupções ao fio discursivo do economista de Boliqueime, que falava no seu habitual gabinete de trabalho. Numa das paredes, exibe-se uma gravura em grande dimensão com a imagem do próprio Cavaco Silva, ainda jovem, daquele tempo em que conquistou duas maiorias absolutas em São Bento. Meta inimaginável para o PSD de hoje.

Detecta-se ali um traço de nostalgia, que a realização soube destacar também com faro jornalístico. Em política, cada pormenor conta. Em televisão também.        

 

Texto publicado no semanário Novo.

Angola, berço e túmulo de Sita Valles

Pedro Correia, 06.06.22

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Estamos infestados de indignações selectivas. A todo o momento se erguem palavras de ordem contra as mesmas ditaduras e se invocam as mesmas injustiças com localização precisa no tempo e no espaço. Enquanto outros actos repressivos são silenciados. Como se nunca tivessem existido.

Entre as omissões mais chocantes figura a actuação do MPLA nos anos pós-independência de Angola. Quando a tropa portuguesa deu lugar a um largo contingente neocolonial cubano. Quando a PIDE ressuscitou, baptizada de DISA. Quando a pena de morte foi restabelecida e vigorou até 1992. Quando as execuções extrajudiciais se tornaram moeda corrente. Quando o ditador angolano, Agostinho Neto, proclamou: «Não vamos perder muito tempo com julgamentos, vamos ditar uma sentença.»

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Disto nos fala o desassombrado documentário Sita – A Vida e o Tempo de Sita Valles, realizado por Margarida Cardoso e há dias exibido na RTP2. Centrado numa jovem médica angolana de origem goesa que militou no PCP clandestino, ascendeu a segunda figura mais importante da União dos Estudantes Comunistas após o 25 de Abril e no Verão de 1975 decidiu regressar a Luanda para ajudar a edificar o novo país.

Angola, que lhe servira de berço, também foi seu túmulo. Um túmulo apenas metafórico, pois Sita Maria Dias Valles (1951-1977), assassinada após uma alegada insurreição para derrubar Neto, nunca mereceu funeral nem teve sequer direito a certidão de óbito. Foi capturada, acusada pelos esbirros do poder de conspirar contra o Estado e liquidada sem se saber ao certo quando nem como. Deixou um filho de três meses, fruto do seu casamento com José Van Dunem, político também assassinado em circunstâncias jamais esclarecidas. O menino viria a ser criado por sua tia Francisca, até há pouco ministra da Justiça em Portugal.

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Sita situa-nos nessa data sinistra: 27 de Maio de 1977. Em que o MPLA condenou à execução sumária dezenas de milhares de pessoas. Incluindo alguns dos seus melhores quadros jovens nos centros urbanos do país. Acusados de conspirar contra o Estado. Rotulados de «fraccionismo», quando a dissidência se pagava com a vida. Muitos enlameados em vergonhosas colunas do Jornal de Angola e tratados como lixo humano aos microfones da rádio estatal, entre miseráveis apelos ao linchamento.

O país encheu-se de valas comuns. A Amnistia Internacional concluiu que as vítimas mortais da repressão – prolongada por dois anos – terão sido pelo menos 30 mil.

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Sobre este massacre, caiu um véu de chumbo. Não apenas em Angola: também em Portugal. Começando pelo PCP, que viu desaparecer dezenas de militantes nesta onda sanguinária sem um esboço de protesto. Neto, falecido em 1979, foi sendo enaltecido como humanista e «libertador». Pepetela, colunista do Jornal de Angola em 1977, ainda recebe vénias intelectuais.

Afortunadamente, alguns dos torturados sobreviveram para contar. Um deles é o actual ministro da Economia: António Costa Silva chegou a ser encostado ao muro da prisão, numa simulação de fuzilamento que recorda em impressionante depoimento no documentário, 45 anos depois.

Ainda bem que o silêncio se rompeu.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Ontem em Díli, hoje em Kiev: ainda há heróis

Pedro Correia, 30.05.22

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As melhores histórias, por vezes, passam quase ao lado das peças que preenchem o quotidiano televisivo. Sucedeu isso na última semana, em dois pontos muito diferentes do mapa. Primeiro em Díli, depois em Kiev. Tivemos a noção de que havia ali potenciais reportagens a pedir relato detalhado, mas acabaram por ser apenas notas de rodapé porque a agenda política prevalecia como prioridade absoluta.

O primeiro caso ocorreu durante a visita oficial do Presidente da República a Timor-Leste, associada às comemorações do vigésimo aniversário da independência daquela nação lusófona da Insulíndia. Independência conquistada graças a uma resistência tenaz – daquelas que a História regista com assombro. David venceu o Golias indonésio após 25 anos de opressão. Enfrentando torturas, violações, massacres.

A independência foi um parto com dor. A que assistiu o padre João Felgueiras, ali residente desde 1971. Nunca abandonou a população local – nem quando a administração portuguesa partiu, nem quando o último militar regressou a Lisboa, nem quando os esbirros de Jacarta ali semeavam o terror. Permaneceu. Continuou a divulgar a nossa língua, tornada clandestina. Ajudou vários timorenses a fugir, em busca da liberdade – incluindo a actual embaixadora em Portugal.

Hoje com cem anos, este missionário jesuíta sente orgulho ao ver enfim inaugurada a escola que sonhou. Surgiu de relance nas televisões que cobriram a viagem presidencial. Soube a pouco: daria reportagem autónoma.

 

O mesmo pode dizer-se do funcionário ucraniano da embaixada portuguesa em Kiev condecorado por António Costa na sua visita-relâmpago à capital ucraniana. Graças a ele, que ali trabalha há 25 anos, a nossa legação diplomática nunca encerrou. Durante largas semanas, em que se previa o pior, Andryi Putilovsky actuou como nosso embaixador de facto. «O pessoal desta embaixada é a minha segunda família e Portugal tornou-se a minha segunda pátria», declarou, visivelmente comovido, ao ser abraçado pelo primeiro-ministro.

Heróis quase anónimos que as televisões nos apresentam por instantes, à boleia da agenda oficial dos políticos. Mereciam mais. Para conhecermos em pormenor as odisseias que travaram, na sombra e no silêncio. Como têm feito, nos últimos três meses, alguns enviados especiais à Ucrânia. Desmentindo aquela canção de Chico Buarque: «A dor da gente não sai no jornal.»

 

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Entre eles, justifica-se destacar Iryna Shev, da SIC. A tragédia ali desenrolada tem sido uma oportunidade para esta luso-ucraniana se revelar exímia narradora de histórias que vai descobrindo num terreno fértil em minas e armadilhas. O facto de dominar o idioma, sendo bilingue perfeita, ajuda muito. Evita fazer a triste figura daquele “grande repórter” de outra estação que andava perdido nas ruas de Kiev soltando frases em inglês aos transeuntes, incapazes de entendê-lo.

Histórias de gente comum, vítima dos horrores da guerra. Sem conhecimentos militares nem sapiência geopolítica. Ontem em Timor, hoje na Ucrânia. Amanhã pode ser qualquer de nós.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Calúnias anónimas não merecem palco televisivo

Pedro Correia, 26.05.22

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Em televisão abundam boas intenções que se esvanecem ao serem postas em prática. Exemplo: o Polígrafo da SIC, em complemento ao Jornal da Noite de segunda-feira. Começou em 2018 num blogue dinamizado por um núcleo de jornalistas apostados em separar o trigo do joio nesta era de desinformação acelerada. O blogue assumia vocação de jornal digital, com merecida visibilidade no circuito mediático. Faltava-lhe viabilidade comercial, alcançada quando a SIC interveio com a sua poderosa marca, firmando-se a partir daí uma parceria consistente.

Como acontece em muitos percursos, também este foi sofrendo uma deriva. Parte do crivo analítico do Polígrafo foi-se desviando da monitorização do conteúdo dos órgãos de informação clássicos – jornais, rádio e televisão, além do material produzido pela agência noticiosa estatal – para dedicar cada vez mais tempo e ocupar cada vez mais espaço ao que é soltado nas chamadas redes sociais. Dir-se-ia que em obediência ao mote “tudo quanto vem à rede é peixe”.

Nada mais incorrecto. Boa parte das bacoradas que por aí circulam não merece sequer um segundo de análise ponderada, sob pena de invertermos prioridades e concedermos tempo de antena ao analfabetismo mais galopante, sob o rótulo da denúncia.

Um erro factual em manchete na chamada imprensa de referência, com assinatura reconhecida, não deve colocar-se em plano similar ao da contra-informação alarmista ou do discurso de ódio que circulam nas plataformas digitais. Nem às delirantes teorias da conspiração que se propagam na massa informe da Rede, com recurso a perfis falsos.

Falar nisso, em horário nobre de televisão, é conceder aos autores anónimos de tais dislates uma projecção que jamais sonharam. E é incentivar outros a surgir em cena. Produzindo um efeito inverso ao da intenção que se proclama.

Assim a atoarda torna-se notícia. Este é um pecado que o Polígrafo vem cometendo com insistência.

 

Se não fosse a publicidade que a rubrica de segunda-feira lhe faz, muitos telespectadores não saberiam que uns quantos imbecis sem rosto nem nome andam a insinuar nas tais redes ditas “sociais” que Carlos Moedas vai cumprir uma emblemática promessa eleitoral – acesso gratuito dos mais jovens e dos mais idosos aos transportes públicos em Lisboa – com recurso a receitas do Orçamento do Estado.

Entende-se mal que o Polígrafo dê palco a tal gente. Tal como aos anónimos que, com linguagem insultuosa, juram aos gritos que só alemães e dinamarqueses pagam impostos mais elevados que nós. Já para não falar nos trolls robotizados, talvez paridos em Moscovo, que cospem torpes insídias contra o Presidente da Ucrânia, herói da resistência às atrocidades russas.

 

Eis a demonstração prática de como uma ideia louvável pode ficar desvirtuada quando sofre uma alteração de rota. No caso concreto, causa danos reputacionais ao Polígrafo, tão óbvios quanto desnecessários.

Calúnia anónima é lixo, seja por que meio for. E deve ser ignorada. Não merece outro tratamento em caso algum.

 

Texto publicado no semanário Novo.

O lado oculto da Lua, celebrizado pelos Pink Floyd

Pedro Correia, 14.05.22

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Há sempre outro lado da história em Portugal. Ou da História, se optarmos pela maiúscula. Mas esse lado costuma permanecer obscuro. Prevalece a narrativa oficiosa, que se torna oficial, e dela emana uma falsa verdade incontestada. De via única.

Felizmente este relato unidimensional vai abrindo brechas. Em forma de ficção. Começou com os portugueses de origem europeia que viviam em África no 25 de Abril. Eram cerca de um milhão, só em Angola e Moçambique. Alguns nunca tinham posto um pé na capital do império quando se viram forçados a abandonar aquele continente em escassos meses, deixando lá tudo, em 1975. Houve inúmeros episódios traumáticos, jamais contados no espaço público: não interessava falar disso. Os civis eram esquecidos em torrentes de imagens e palavras que só aludiam aos militares.

Felizmente um romance e uma série resgataram-nos dessa intolerável omissão. O livro foi O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, editado em 2011. A série foi Depois do Adeus, da RTP, exibida em 2013, com realização de Patrícia Sequeira e Sérgio Graciano. Graças a elas, as gerações mais jovens conheceram enfim o pesadelo dos compatriotas radicados em África naqueles tempos – primeiro lá, depois aqui. Compatriotas sem farda, não os da tropa.

 

Uma série também pode fazer serviço público. Se for na RTP, tanto melhor. Como sucede com 3 Mulheres – Pós-Revolução, em exibição no primeiro canal. Pondo de novo em foco o trio feminino que surgira em 2018, em ambiente pré-revolucionário: Natália Correia, Vera Lagoa e Snu Abecassis. Num país dominado por homens, elas romperam o bloqueio, cada qual a seu modo, contestando o salazarismo.

A nova série realizada por Fernando Vendrell tem vários méritos. A começar no guião e nos diálogos, que jamais soam a falso. E na qualidade da representação – com destaque para Soraia Chaves como Natália Correia: no gesto, na pose histriónica, na inflexão de voz, na pronúncia de cada sílaba. Superlativa.

Também Victoria Guerra (Snu) e Maria João Bastos (Vera Lagoa) compõem bem as personagens, tornando-as credíveis. Victoria trabalha com inegável competência o sotaque, aspecto em que as produções portuguesas costumam desleixar-se a pontos inconcebíveis.

Há notáveis secundários – Fernando Luís (no papel de Alfredo Machado, marido de Natália) e Luís Mascarenhas (interpretando Vitorino Nemésio). E jovens actrizes emanando talento, como Vera Moura e Madalena Almeida.

 

Mérito suplementar: 3 Mulheres assinala com desassombro que no período revolucionário, sobretudo entre 11 de Março e 25 de Novembro de 1975, houve outras intolerâncias – de sinal oposto às da ditadura. Novas prisões arbitrárias, novas sevícias, novos interditos. Eis um: Natália impedida pelo Conselho de Redacção do diário A Capital de ali publicar uma crónica com a frase «A minha revolução não é esta.» Levando à digna demissão de David Mourão-Ferreira do cargo de director, solidário com a escritora censurada.

Desvenda-se a face oculta da Lua, para lembrar um título dos Pink Floyd tão em voga naquele tempo hoje transfigurado pela nostalgia.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Servir gato por lebre em defesa do indefensável

Pedro Correia, 09.05.22

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A pretexto da guerra na Ucrânia, a televisão pública insiste em convidar como suposto especialista em assuntos militares o major-general Raul Cunha. Que aproveita para falar de política, reforçando em muitos dos que o ouvem a convicção de que estamos perante um simpatizante de Moscovo.

Convocado novamente pela RTP3, o que declarou ele no serão de 30 de Abril?

Coisas como esta, referindo-se ao Batalhão Azov, agora integrado na Guarda Nacional ucraniana: «Há ali gente que cometeu crimes graves.» E esta: «Como os militares ucranianos não se renderam, terá ali havido um grande desbaste.» E ainda esta: «Os russos estão a procurar atingir sobretudo grandes concentrações de tropas, postos de comando e depósitos logísticos ucranianos.» Sem esquecer esta: «As forças que libertaram Mariúpol estão agora a progredir em direcção a Zaporíjia.»

Segundo este major-general, portanto, as forças ucranianas «cometem crimes» no seu próprio país – não se tendo escutado dele a menor alusão a crimes russos. Na sua versão, Putin apenas visa alvos com relevância bélica no país invadido, não escolas, hospitais, teatros, igrejas, lojas e habitações: tudo quanto temos visto relatado por repórteres no terreno deve ser ilusão de óptica. Além disso, coisa espantosa, Mariúpol – arrasada em 90% pela artilharia invasora – foi «libertada», não destruída. Cereja em cima do bolo: militares ucranianos mortos por tropa de Moscovo são mero «desbaste». Como quem corta relva no jardim.

Frases que causam náuseas. Sendo emitidas num canal público, pago por nós, a sensação de repugnância aumenta. E redobra por virem de alguém que a 25 de Fevereiro, no mesmo canal, justificava assim a criminosa acção de guerra: «Quando o puseram num beco sem saída, o que é que ele [Putin] fazia a seguir? Tinha de atacar a Ucrânia, obviamente.»

 

Há um evidente contraste entre este patético apego à causa russa e a análise serena, esclarecida e bem informada de um comentador assíduo noutro canal: refiro-me a Miguel Monjardino, especialista da SIC em temas internacionais.

«Uma brigada mecanizada precisa de cem mil litros de combustível a cada 48 horas. A grande dificuldade russa é o apoio logístico à sua ofensiva e o atrito a que estas forças estão a ser submetidas. A Ucrânia vai ter de ceder território nesta fase perante as barragens de artilharia russas, mas o que será decisivo no futuro é o número de soldados russos que estão a morrer diariamente e o impacto que esse atrito tem no potencial ofensivo das unidades russas», dizia neste domingo.

Com ele aprendemos sempre alguma coisa. E também com as reportagens nunca destituídas de enquadramento ético nem despidas do factor humano feitas por jornalistas como Susana André ou Nuno Pereira, também na SIC. Não admira que o Jornal da Noite desta estação tenha sido em Abril o bloco informativo mais visto dos canais portugueses. Os telespectadores podem nunca ter ido à Ucrânia, mas sabem distinguir quem lhes serve gato por lebre e repudiam quem se presta a defender o indefensável.

 

Texto publicado no semanário Novo.

As aparências iludem quando se editorializa em excesso

Pedro Correia, 02.05.22

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Uma imagem faz toda a diferença. Aconteceu na cobertura da campanha eleitoral para a segunda volta das presidenciais em França – o mais importante escrutínio do ano na Europa – quando a candidata da direita radical, Marine Le Pen, visitava uma comunidade rural no norte do país. Um camponês foi ter com ela e desabafou: «Não há franceses a quererem trabalhar nos nossos matadouros. Têm de ser os brasileiros que vêm de Portugal.»

A repórter da RTP, Rosário Salgueiro, estava lá e destacou o facto. Fez bem. Ao invés de outros enviados, que trocavam a reportagem pelo comentário político, ocupando grande parte do tempo a partilharem connosco aquilo que pensam da política francesa em vez de nos mostrarem o que ia acontecendo.

À medida que prosseguia a contagem decrescente para a eleição, alguns canais portugueses dramatizavam. A estação pública, há que salientar, funcionou como modelo de sobriedade. «Tudo aponta para uma vitória de Macron», disse dias antes o correspondente da RTP em Paris, José Manuel Rosendo. Com clareza e concisão, sem uma palavra a mais.

 

Na concorrência, a situação era descrita em tom diferente. «Há um descontentamento muito grande em relação a Macron», assegurava o enviado da TVI. «É um presidente das elites, um presidente dos ricos. Esta ideia não se apaga, dificilmente se apagará», garantia o enviado da SIC, por sinal o próprio director da estação. Em peças muito editorializadas, com a componente opinativa galgando terreno à informação.

O correspondente da SIC em Paris, editorializando ainda mais, dizia-nos já depois de contados os votos que «destas eleições presidenciais sai um grande sinal de alarme». Porque a França é hoje «um país profundamente dividido».

Ninguém diria, analisando este desfecho nas urnas em contexto histórico. Há 20 anos que um Presidente francês não era reeleito. Macron acaba de vencer a sua oponente por 18 pontos percentuais (59%-41%). E obteve maior percentagem que o mítico presidente Charles de Gaulle na única vez em que se submeteu ao sufrágio universal (recolheu 55% dos votos em 1965, derrotando François Mitterrand).

Profundamente dividido estava o país de Jean-Paul Sartre e Raymond Aron nas presidenciais de 1974, quando Giscard d’Eistang venceu Mitterrand por uma unha negra (51%-49%). Ou, sete anos depois, quando as posições entre ambos se inverteram: o socialista derrotou o liberal por 52%-48%. O que diriam os nossos repórteres se nessa altura já existissem SIC e TVI?

 

Macron, suposto representante das elites, saiu vencedor folgado: a classe média confiou nele. Surpresa? Só para alguns enviados especiais. Num país que em 2021 registou um crescimento económico de 7%, tem a idade de reforma mais baixa do continente europeu e apresenta o menor índice de desemprego jovem das últimas quatro décadas, outra coisa não seria de esperar.

Isto explica afinal por que motivo só lá se encontram brasileiros a trabalhar nos matadouros. É um dos muitos ofícios em que nenhum francês está hoje disposto a desperdiçar tempo e calorias.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Um despudorado exercício de sabujice

Pedro Correia, 26.04.22

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A RTP, fiel à sua vocação, fez serviço público. Mas por ínvios caminhos, fornecendo-nos um exemplo concreto do que é a propaganda em larga escala travestida de informação. Em quatro penosos serões dedicados a Vladímir Putin, o agressor da Ucrânia.

O ditador russo foi estrela numa série de entrevistas em Moscovo entre Fevereiro de 2015 e Fevereiro de 2017 conduzidas pelo cineasta Oliver Stone, admirador assumido de Hugo Chávez e Fidel Castro – péssimo cartão-de-visita. The Putin Interviews, transmitidas há cinco anos nos EUA com base em 12 conversas entre Putin e Stone, foram agora desenterradas na RTP3. Deviam constituir material pedagógico em cursos de Comunicação Social. Como demonstração prática do que não deve ser feito.

 

Estamos perante um despudorado exercício de sabujice. Stone coloca o entrevistado nos píncaros. Debitando frases como estas: «O senhor é um verdadeiro filho da Rússia e serviu muito bem o seu país»; «O senhor é um homem de sorte, tem duas boas filhas»; «Está com bom aspecto»; «Podia ser uma estrela de cinema».

Quatro horas de conversa mole, em que o realizador de Platoon assume a cumplicidade com o interlocutor e anfitrião – já depois da anexação da Crimeia por forças russas em flagrante violação do direito internacional. Que isto seja exibido quando a Ucrânia é hoje alvo de um acto de guerra sem precedentes na Europa desde 1945 roça o despudor. Ou até o obsceno.

 

Putin surge sempre em contexto positivo. Disciplinado, trabalhador, dedicado ao país. Visto a cavalgar, a praticar judo, a disputar uma partida de hóquei no gelo. Contemplamos a mansão de campo do entrevistado, com capela privativa guarnecida de ouro, e a piscina olímpica de que o déspota dispõe para seu uso privativo.

Condescendente, serve cafezinho a Stone e até faz de motorista, dando-lhe boleia na viatura oficial entre o centro da capital russa e a luxuosa vivenda no bosque onde passa parte do seu tempo.

Sem genuíno contraditório, quase sem uma questão incómoda, sucedem-se perguntas dignas de um programa de humor. Eis algumas: «Os seus pais tinham orgulho em si?»; «Gosta dos seus netos?»; «Como foi o seu dia?»; «O senhor sabe qual é o seu destino?»; «Alguma vez perde a calma?» Putin responde à última com uma graçola misógina: «Não sou mulher, não tenho dias maus.»

Stone escancara a boca num sorriso alarve.

 

O cineasta humaniza Putin enquando demoniza os EUA, seu país. «Na América, o dinheiro compra o poder», garante. «A estratégia americana é destruir a economia russa», assegura. Em Moscovo, ao contrário do que sucede em Washington, «não há vigarice nem corrupção».

O senhor do Kremlin, lisonjeado, aproveita para debitar mais propaganda: «Somos um país democrático e lutamos pelos direitos humanos.» Com frases dignas de Rei-Sol: «Só temos de agradecer a Deus a oportunidade de servir o nosso país.» O outro faz-lhe vénia.

Parecem dois compinchas em amena cavaqueira. Comparado com Oliver Stone, António Ferro era um modelo de isenção quando entrevistava Salazar.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Tiros de pólvora seca contra a resistência ucraniana

Pedro Correia, 19.04.22

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São insondáveis os critérios que levam alguns canais televisivos a eleger «especialistas em questões militares».

O principal motivo de escolha devia ser a capacidade de qualquer deles para descodificar e contextualizar as manobras bélicas em curso na Ucrânia, deixando considerações políticas de fora. Até porque comentadores políticos não faltam nesses canais.

O segundo – e fundamental – critério seria a capacidade desses convidados para antever o que iria passar-se no terreno.

Acontece que alguns destes supostos especialistas acorreram aos ecrãs nos primeiros dias de guerra, tendo falhado em quase tudo quanto disseram. Além de usarem as questões militares como mero pretexto para fazer considerações políticas, benevolentes até à náusea face à potência invasora.

Nem uma coisa nem outra conseguiram removê-los da pantalha, onde persistem em revelar enorme incapacidade para acertar no alvo. Enquanto se sucedem notícias das atrocidades russas no martirizado país vizinho.

 

Um dos casos mais notórios é o do major-general Agostinho Costa.

A 28 de Fevereiro, quatro dias após o início da agressão decretada por Vladímir Putin à Ucrânia, este alegado especialista compareceu na SIC Notícias, que lhe concedeu mais de um quarto de hora para perorar sobre o tema. Enalteceu os russos, criticou os dirigentes ocidentais e disparou tiros de pólvora seca contra a resistência ucraniana.

Sobre o secretário-geral da NATO: «Está [a resultar, a invasão russa]. Onde anda a NATO? O senhor Stoltenberg amanhã devia entrar como governador do Banco da Noruega. Já tem emprego.»

Sobre Josep Borrell, responsável máximo da União Europeia para a Defesa e Negócios Estrangeiros: «Quem decide a política externa da Europa não são os europeus. Os europeus não decidem nada.»

Sobre a cúpula de Moscovo: «O senhor Putin é um jogador de xadrez. E lá não é como cá. O senhor Shoigu, o ministro da Defesa, é um homem de barba rija.»

Sobre Zelenski: «Estou convencido que o senhor Zelenski já não está lá [em Kiev]. Senão a gente via-o na rua. Já não está lá. Está certamente em Lviv.»

Entre críticas ao Ocidente por «lançar gasolina» na Ucrânia e a certeza de que neste país «há armas a ser entregues a bandidos». E uma convicção: Putin «vai conseguir».

 

A 8 de Abril, agora na CNN Portugal, o mesmo major-general viu-se forçado a concluir: «Os objectivos que os russos alcançaram em 44 dias de campanha são nitidamente poucos, nitidamente insuficientes, tendo em conta todo o aparato inicial.» E concedeu: «Houve um excesso de confiança russo logo no início.»

Ah, o exímio jogador de xadrez afinal falhou. Ah, o tal homem da «barba rija» viu-se forçado a abandonar o cerco a Kiev. Ah, Zelenski mantém-se firme na capital, não fugiu para Lviv. Cobrindo de ridículo aqueles que no conforto climatizado dos estúdios, neste cantinho mais ocidental da Europa, tentaram lançar-lhe lama.

Que alguns sejam militares não constitui atenuante: é agravante. Para eles e para quem continua a dar-lhes guarida serão após serão.

 

Texto publicado no semanário Novo

E se fosse Biden a mandar invadir Portugal?

Pedro Correia, 12.04.22

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Imagine-se o Corvo e as Flores declararem independência unilateral, proclamando-se «estados soberanos», em ruptura com a República Portuguesa. No dia seguinte obtêm reconhecimento oficial de Washington, que para lá envia forças especiais em defesa e manutenção da «soberania».

Entretanto, Joe Biden faz uma solene alocução garantindo ter enviado os marines em socorro de populações insulares de língua inglesa, nomeadamente antigos emigrantes açorianos nos EUA, que viam os seus direitos à livre expressão neste idioma condicionados pelos lusofalantes.

Lisboa objecta, invoca a Constituição e a legalidade internacional, solicita a convocação urgente do Conselho de Segurança da ONU, que condena a invasão. Mas a resolução é invalidada pelo fatal veto norte-americano.

Como represália, as forças dos Estados Unidos ocupam todo o arquipélago dos Açores e começam a disparar mísseis sobre o território continental português, atingindo sobretudo Lisboa e Porto.

Neste hipotético cenário, na fictícia República da Parvónia, logo um alegado «especialista em relações internacionais» se exibe em tournée de segunda-feira nas pantalhas televisivas proclamando que a decisão da Casa Branca é «totalmente imaculada à luz do direito internacional», pois os norte-americanos dão sequência «a um direito de defesa das Flores e do Corvo enquanto estados soberanos».

Na terça-feira, o protagonismo nos ecrãs cabe a um major-general à paisana: de dedo acusador em riste, aponta responsabilidades ao povo invadido, ilibando a potência invasora.

«Lisboa pôs o Presidente Biden num beco sem saída. O que haveria ele de fazer? Tinha de atacar território português, obviamente», sentencia o ínclito militar.

No serão de quarta-feira, avança outro major-general, tão convicto como o anterior na bondade dos alegados libertadores daquelas ilhas oprimidas por séculos de domínio lusitano. Nega em absoluto que as populações civis estejam sob fogo: «Washington só visa objectivos estratégicos de interesse militar.» Alertado para o facto de as ogivas destruírem hospitais, escolas, teatros, igrejas e centros comerciais, esboça um ligeiro sorriso, próprio de quem já espremeu as meninges em inúmeros jogos de estratégia: «Só pode ser propaganda do inimigo. O Presidente Biden não é louco nem irresponsável nem desumano.»

Nesse instante, num canal dos EUA, uma produtora televisiva atreve-se a exibir um cartaz exigindo o fim da intervenção norte-americana no arquipélago açoriano. Quase ao mesmo tempo, algures no exterior, um transeunte é detido por ousar exibir uma folha de papel em branco - outro protesto, embora mudo, contra a ofensiva bélica. Um e outro arriscam 15 anos de prisão por estes actos subversivos face às recentes alterações introduzidas no Código Penal.

Timidamente questionado por um jornalista sobre o possível desfecho da guerra, o major-general da quarta-feira rasga ainda mais o sorriso lá na Parvónia: «Guerra? Qual guerra? Estamos perante uma operação militar especial, nada mais.»

 

Texto publicado no semanário Novo

A presunção de inocência só funciona para alguns

Pedro Correia, 19.02.22

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A pressa de «dar primeiro». A febre de esmagar a concorrência. A desenfreada ânsia de transformar qualquer hora do dia em «última hora». Tudo isto pode manchar a reputação de um canal televisivo. Pouco interessa o minuto ou o segundo em que se «dá» informação: importa, isso sim, que essa informação seja rigorosa e sólida.

Em televisão, a credibilidade começa na criteriosa escolha das imagens. E ameaça ruir quando elas funcionam só como tapa-buracos. Infelizmente, a prática quotidiana é fértil nisto.

Tomemos como exemplo o «atentado terrorista» que durante dois dias trouxe as televisões em alvoroço, destronando a bola e a seca como prioridade noticiosa. Sabia-se muito pouco. Mas logo se pôs em antena esse quase-nada: soara a ordem para encher chouriços.

Resultado? Horas e horas de emissão plenas de vacuidade, com o habitual desfile de tudólogos que na semana anterior já tinham comparecido para arengar sobre o pobre miúdo marroquino que caíra num poço de onde viria a ser resgatado sem vida. Estes Doutos Especialistas em Coisa Nenhuma desempenham uma importantíssima missão: falar do que ignoram em absoluto.

 

Há que reconhecer: neste caso quem «deu primeiro» foi a novíssima CNN Portugal, às 18.34 desse dia. Mas teria sido recomendável aguardar. Talvez assim pudesse escolher outras imagens para ilustrar as peças em vez de exibir grandes planos de mãos femininas com unhas pintadas clicando ratos de computador – algo nada relacionado com esse «jovem estudante» subitamente transformado em Bin Laden português.

Talvez assim evitasse antecipar que o tal putativo-eventual-alegado-hipotético «atentado terrorista» tinha o Instituto Superior Técnico por alvo. «É exactamente aqui, no Instituto Técnico Superior de Lisboa» (sic), jurou uma jovem repórter junto à fachada desse tranquilo estabelecimento universitário, invocando «uma fonte que não podemos revelar».

 

Apanhada desprevenida devido às minudências do futebol, a frenética CMTV tentou compensar o atraso. Eram 18.51 quando repetiu o erro da estação rival: «Este atentado terrorista seria suposto acontecer no Instituto Superior Técnico.» O duplo condicional, indiciando cautela num português trôpego, contrastava em absoluto com as legendas que gritavam: «Terror travado em Lisboa»; «Massacre ia ser amanhã»; «Terrorista já foi detido».

Também aqui os tudólogos não tardaram, munidos do seu magnífico estendal de lugares-comuns.

 

Nas 48 horas seguintes, foi a devassa absoluta em torno da pessoa em causa. Tomando suspeitas por realidades, confundindo relato jornalístico com auto policial.

Imaginem que estávamos perante um banqueiro ou um político: logo dezenas de ilustres causídicos irrompiam na pantalha, invocando o sacrossanto princípio constitucional da presunção de inocência. Como era apenas um estudante com supostas perturbações mentais, essas eminências jurídicas assobiaram para o ar e deixaram seguir o baile mediático.

Belo país onde tanto se clama pelo direito à igualdade mas onde a presunção de inocência só funciona para alguns.

 

Texto publicado no semanário Novo

Absolutamente sarcástico: isto é serviço público

Pedro Correia, 12.02.22

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Com maioria absoluta em São Bento, Ricardo Araújo Pereira vai valer-nos ainda mais. É o que esperamos muitos de nós, sabendo que os espaços de ironia e sátira política são residuais numa televisão higienizada, veneradora do poder de turno. Sobretudo quando esse poder reforça o seu alegado braço protector aos meios de informação, agora diluídos numa nebulosa a que chamam «indústria mediática» vocacionada para a «produção de conteúdos», seja lá o que isso for.

Em época de evidente carência de meios humanos qualificados e de escassez de recursos financeiros para informar com isenção e rigor, sem vénias a secretários de Estado e directores-gerais, o consumidor de notícias tem de estar atento: é bem provável que lhe sirvam gato por lebre. Faz-nos falta uma DECO nesta área. Ou uma ASAE, atenta à contrafacção galopante.

Na ausência de ambas, resta-nos a sigla RAP – detectora da incompetência e garimpeira da estupidez. Pondo a nu uma cascata de afirmações delirantes, que Araújo Pereira destacou na mais recente emissão de Isto é gozar com quem trabalha, colada à prédica dominical de Marques Mendes na SIC.

Nem Mendes escapou ao olhar sarcástico do comediante, que passou em revista alguns dislates proferidos pelos tudólogos em antena nos dias precedentes às legislativas. Um hilariante estendal de pitonisas sem vocação para ler o futuro nos interstícios políticos: tombaram na noite de 30 de Janeiro, alvejadas pelas suas próprias palavras, em doloroso e humilhante ricochete. Quase nenhuma fez a autocrítica que se impunha em nome da elementar honestidade intelectual.

Mas a maior autocrítica que vai tardando é a das empresas de sondagens. Nem as realizadas à boca das urnas, no dia da votação, garantiram o essencial. Daí o histriónico José Rodrigues dos Santos ter gritado, a abrir o Telejornal da RTP: «O PS pode chegar à maioria absoluta mas não é o mais provável.» A novidade viria a ser revelada, noite adiante, por Catarina Martins, recebida com vibrantes aplausos pela claque bloquista, que parecia festejar a perda de 14 dos 19 deputados e a ultrapassagem pelo Chega e pela Iniciativa Liberal no parlamento. Foi ela a anunciar ao país a maioria absoluta rosa, vá lá saber-se porquê.

Mérito suplementar de RAP, igualmente protagonista de previsões falhadas naquele programa sem nome que tem na SIC. Ele não se pôs de fora. Lá surgiu retratado entre as sibilas que erraram o alvo.

Será mais necessário que nunca, neste novo ciclo de maioria absoluta monopartidária – a primeira desde os dias nada saudosos de José Sócrates, quando diversos órgãos de informação funcionaram como contrapeso à arrogância autoritária do presidente do Conselho de Ministros.

Há uma diferença assinalável em relação aos tempos actuais, década e meia depois: jornais e televisões estão muito mais fragilizados. Por culpa própria, em grande parte. E também por serem vítimas da vampirização das redes sociais e da imparável pirataria que prossegue impune. Ninguém tenha ilusões: vêm aí tempos difíceis.

 

Texto publicado no semanário Novo

Alguns derrotados do comentário político

Pedro Correia, 07.02.22

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Em linguagem de banda desenhada, inspirada no Astérix, os resultados das legislativas de domingo deviam ter caído em cima da cabeça dos dirigentes do PSD e de uns tantos sábios que gravitam em seu torno. Levaram um banho de realidade no confronto com o país concreto, que os rejeitou neste dia 30. Tal como já tinha rejeitado em Outubro de 2019. Mas é duvidoso que tenham percebido o que aconteceu.

Revisitar o que disseram, nos dias precedentes ao escrutínio, é um exercício quase penoso.

 

Repare-se em Pacheco Pereira, uma das vozes mais influentes junto de Rui Rio. Na tertúlia intitulada “O Princípio da Incerteza”, na CNN Portugal, afirmava a 23 de Janeiro:

«Rio sobe em grande parte porque parece um tipo sensato, moderado, que se coloca numa perspectiva de diálogo e respeita o seu adversário. (…) A moderação de Rio é que resulta. Está a fazer exactamente o contrário daquilo que os seus opositores, como Rangel, diziam que ele devia fazer. (…) Este seu crescimento é também um exemplo dos erros dos seus opositores. (…) Ninguém acredita que eles [opositores de Rio] estejam lá [na campanha] de boa-fé.»

Neste exercício dialéctico, não basta incensar o líder: é necessário excomungar os seus opositores internos. Sempre vistos como inimigos, enquanto os externos, apenas adversários, mal são beliscados em homilias repletas de processos de intenção, orientadas para a intriga intestina.

 

Na noite de domingo, confrontado com o veredicto das urnas, Pacheco não se deixou contaminar pelos factos. Manteve o tom de louvaminha a Rio, enaltecendo-lhe as «qualidade pessoais», e voltou a disparar para dentro, numa saraivada de novos juízos de carácter contra a alegada oposição ao líder: «Alguns até ficaram felizes com este resultado porque se livram do Rio rapidamente.» Concluindo, sem pingo de ironia, que «não podemos julgar os partidos apenas pelos resultados eleitorais».

Na mesma linha, e no mesmo canal, outra personalidade muito próxima do presidente laranja, Manuela Ferreira Leite, declarava também no serão de domingo: «Prefiro ter menos votos mas ser mais coerente.» Três noites antes, havia emitido este douto vaticínio: «Ou ele [António Costa] perde as eleições e diz que se vai embora, ou ganha as eleições, obviamente sem maioria absoluta, e é evidente que vai para os braços da esquerda.»

 

Conclusão: o PSD teve derrota dupla. Nas urnas e no comentário televisivo. Na galeria dos perdedores, o vice-presidente social-democrata David Justino – outro “analista político” com lugar cativo na CNNP – justifica destaque. «Há um conjunto de votos que transitou do PS para o PSD, o que põe um bocado em causa as leituras precipitadas de que o PSD não conseguiu ganhar parte do centro. (…) Continuo a pensar que a estratégia [de Rio] foi bem definida. Há estratégias que são bem-sucedidas mas que não ganham porque os outros também têm estratégia», afirmou na segunda-feira.

Não esquecem nada, não aprendem nada. Como é que o PSD haveria de ganhar com pensadores destes?

 

Texto publicado no semanário Novo

Os minutos de fama dos micropartidos

Pedro Correia, 30.01.22

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É de bom-tom criticar os principais partidos com representação parlamentar, como se a pureza doutrinária e a bondade cívica morassem algures, noutras forças políticas, sem acesso aos circuitos do poder.

Nada como espreitar uma campanha eleitoral na televisão para averiguar se isso é verdade. Sobretudo os tempos de antena, confiados à responsabilidade destas agremiações partidárias sem assento na Assembleia da República. É pedagógico, a vários títulos. Desde logo para desfazer ilusões sobre o suposto mérito de quase todas.

Dez dias a acompanhar estes espaços de propaganda elucidaram-nos sobre tais grupos alternativos, que vão da extrema-esquerda à extrema-direita. Valeu a pena o esforço.

 

Os anos passam, as décadas sucedem-se, mas há coisas que não mudam nos tempos de antena. Ao som da “Internacional”, reencontrámos o vetusto PCTP-MRPP envolto em naftalina exibindo a foice num país sem agricultores e o martelo numa nação desprovida de carpinteiros. Nem um bom canalizador se arranja por estes dias, quanto mais um ceifeiro…

Outro micropartido já repetente é o MPT, fundado pelo saudoso arquitecto Ribeiro Telles em melhores tempos. Mensagem actual pouco acima do zero: mera colagem de frases ao nível de turma liceal, do género «o planeta não pode esperar mais». Talvez a mais original tenha sido esta: «Todos gostamos da sombra das árvores mas poucos cuidam delas.»

Mais original, um partido caloiro chamado Volt sugere a criação de um novo ministério – o da Digitalização. Para «reduzir os processos burocráticos». Nas próximas eleições, pela mesma lógica, hão-de propor um Ministério da Verdade para extinguir as fake news. Fica a sugestão.

 

E que mais? O partido do Tino de Rans sempre a mostrar… o Tino de Rans. A distribuir beijinhos e abracinhos como se fosse concorrer a Miss Universo. Tem, pelo menos, o mérito de nada prometer. Ao contrário do Nós Cidadãos, que não faz a coisa por menos: reivindica uma «revolução da cidadania», seja lá o que isso for. Com direito a cantiguinha, para animar a malta. «É preciso dar as mãos para um país diferente», reza o refrão. Também a jovem Aliança debitou cantilena: «Aliança, Aliança! Votemos na Aliança!» Profundíssimo.

Outros partidos surgiram sem trolaró. Façanhudos, zangadíssimos, com vontade de nos bater. Um deles usa hífen: Ergue-te. Declara combate sem tréguas «contra este regime podre, maçónico-corrupto», e parece ansioso por «reverter os fluxos migratórios». Outro, sem hífen, diz chamar-se ADN: nega a pandemia e proclama-se inimigo dos certificados digitais. Enfrenta o coronavírus sem máscaras nem vacinas.

 

Quem se sente farto dos “partidos do sistema” devia prestar atenção a estes grupos pseudo-alternativos e extrair as devidas conclusões. Ao menos podiam ser diferentes na linguagem, mas nem isso: aliviam-se a soletrar lugares-comuns. Com palavrões como sustentabilidade, priorizar, implementar, descarbonizar, paradigma, janela de oportunidade. Em comparação, até o defunto “proletariado” do MRPP quase cheira a novidade.

 

Texto publicado no semanário Novo

O achismo a galopar em força no comentário

Pedro Correia, 25.01.22

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Digam o que disserem, só a política consegue rivalizar com o futebol em popularidade televisiva. Aí está o debate entre António Costa e Rui Rio para confirmar: 3,3 milhões de espectadores sintonizaram-no em simultâneo. Tanto ou mais do que um jogo internacional envolvendo equipa portuguesa.

Convém reconhecer que o facto de ter sido transmitido pelos três canais generalistas deu forte contributo para esta audiência digna dos Himalaias. Mas constitui um desmentido vivo daquela frase-feita acerca dos portugueses, que «não se interessam por política». Frase papagueada até à exaustão, curiosamente, por muitos bitaiteiros que exercem a profissão de comentadores e que deste modo fazem da política o seu ganha-pão. Alguns ocupam a pantalha há anos. Mudam os cenários, mudam os directores de informação, mudam até as designações dos canais e lá continuam eles, de traseiro colado à poltrona, a debitar vacuidades.

Entre as inanidades mais vezes propagadas, ao longo da maratona de confrontos televisivos entretanto concluída, inclui-se esta: «Os debates não mobilizam os indecisos.» Proferida em pose catedrática e autoridade pseudo-científica por vários daqueles que tomam assento em canais sempre prontos a anunciar «debates decisivos». O que não deixa de ter graça.

Também têm piada aqueles comentadores que parecem detectives: estão sempre a achar. Pertencem à escola do achismo. Desta vez, no rescaldo do confronto PS-PSD, proliferaram como cogumelos. «Eu acho que Rui Rio foi convincente»; «Eu acho que este debate foi construtivo»; «Eu acho que indiscutivelmente Rio venceu»; «Eu acho que Costa esteve muito bem».

Frases escutadas sobretudo na CNN Portugal, que tratou o tema ao nível do mítico combate de boxe entre George Foreman e Muhammad Ali no Zaire em 1974. Iniciou a emissão dedicada ao grande evento às 15.27 e só deu descanso aos telespectadores nove horas depois, já outro dia nascera, eram 00.32. Incluindo um bloco de comentários iniciado às 21.48 e que se estendeu até ao fim. Mais do que duplicando os 77 minutos do embate Costa-Rio, que teve duração inferior à de um desafio de futebol.

Também nisto a política vai imitando a bola: o tempo em que se fala é superior ao tempo em que se joga. Se houvesse uma taça para o canal campeão na «análise e comentário» dos debates, o troféu seria entregue precisamente à CNNP, aliás com inteiro mérito: pôs em antena três painéis simultâneos com um total de nove comentadores, acrescidos de três jornalistas da casa a lançar temas para a conversa. E voltou aqui o achismo à baila, em doses torrenciais. Acompanhado com cansativa frequência pelas mais detestáveis bengalas verbais: surgiu o estafado «em cima da mesa», pontificou o famigerado «anos atrás». E nem o ridículo americanismo «no fim do dia» deixou de vir à tona.

Nessa altura já meio país havia regressado às telenovelas: os painéis peroravam para um público residual. Eis um mistério a pedir detective. Como conseguiram tantos mudar de canal antes de os sábios lhes terem revelado quem vencera o debate?

 

Texto publicado no semanário Novo

Quando o comentário ultrapassa a notícia

Pedro Correia, 17.01.22

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O PCP, que tanto diz pugnar pelas «micro, pequenas e médias empresas», rejeitou figurar nos debates televisivos com os micro, pequenos e médios partidos em pequenos e médios canais. Se existe facto digno de realce na campanha para as legislativas é este: os comunistas apenas admitem ser confrontados pelos dois partidos maioritários, em sinal aberto. Excluindo os canais por cabo. Sem debaterem com Catarina Martins, André Ventura, Francisco Rodrigues dos Santos, Cotrim Figueiredo, Inês Sousa Real e Rui Tavares.

Devido à pandemia, a campanha volta a desenrolar-se quase em exclusivo na televisão. Aí se mobilizam os indecisos, não as claques que até votariam numa ventoinha eólica se fosse ela a liderar o rebanho. Desprezar os canais por cabo, hoje à disposição de quase todos os portugueses, é incompreensível para um partido que tanto se queixa de ser discriminado nos meios de informação.

No confronto com Jerónimo de Sousa, infelizmente retirado da campanha por doença dias depois, Costa endureceu o tom, sem complacência: nessa noite, na TVI, o PS deve ter pescado alguns milhares de votos ao PCP. Tal como sucedeu nas autárquicas de 2017 e 2021. É um problema estrutural nas fileiras vermelhas, que não se resolve com outro secretário-geral. Um problema de modelo e de projecto. Somado à imensa dificuldade em justificar o que levou o partido a precipitar esta crise política.

Será por isto que os comunistas abdicam dos confrontos nas pantalhas que podem ditar o destino das legislativas? As legiões de comentadores ali acampados deviam elucidar-nos, mas encolhem os ombros como se fosse a coisa mais normal do mundo ver um partido derrotado por falta de comparência.

Merecem também registo as fracas prestações do líder laranja face aos homólogos do Chega e do Livre: Rui Rio passou boa parte do tempo a escorregar nas cascas de banana que André Ventura e Rui Tavares lhe lançavam. Tentou replicar as ideias dos outros em vez de exprimir ideias próprias. Com fraco resultado, como se viu na trapalhada em que se enredeou a propósito da prisão perpétua. Nem parece alguém com 40 anos de traquejo político.

Custa igualmente perceber que os canais de televisão reservem pouco mais de 20 minutos a cada confronto destes, na comparação com o tempo que dedicam a qualquer programa com gente a debitar irrelevâncias sobre futebol. E espanta ver moderadores – como João Adelino Faria, na RTP – que parecem estar ali só enquanto cronometristas, sem pulso para coordenar debates. Ao contrário de Clara de Sousa, na SIC, e Rosa Oliveira Pinto, na SIC Notícias.

Usemos então o cronómetro. Ao frente-a-frente Costa-Jerónimo, que durou 22 minutos, seguiram-se 34 minutos com quatro comentadores a perorar sobre o debate. Depois dos 24 minutos de tête-à-tête entre Catarina Martins e Rui Tavares na SIC Notícias, dois “analistas políticos” mastigaram durante meia hora o que foi dito. Desproporção total entre uma coisa e outra.

Quando o comentário se torna notícia, imprime-se o comentário. Devem soar alarmes: algo vai mal no reino do jornalismo.

 

Texto publicado no semanário Novo

A bolha dentro da bolha com o país ao lado

Pedro Correia, 11.01.22

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Rui Tavares é o candidato-a-tudo na política portuguesa. Já concorreu a eurodeputado pelo Bloco de Esquerda – e mandou a sigla às malvas após ter sido eleito. Já concorreu a vereador em Lisboa, integrado no rol de candidatos encabeçado pelo socialista Fernando Medina – e em vez de somar subtraiu, contribuindo para a vitória de Carlos Moedas.

Agora corre para a Assembleia da República com a marca Livre. Mas a julgar pelo primeiro dos 32 debates que até ao dia 20 desfilarão nos diversos canais televisivos, ambiciona ser secretário de Estado num novo governo liderado por António Costa. É a conclusão que se extrai da sucessão de salamaleques trocados entre ambos neste sonolento frente-a-frente na RTP.

Foi o equivalente a um desafio amigável no futebol. Tavares gostaria de ser lateral esquerdo – ou direito, tanto faz – de uma geringonça recauchutada, sem a incómoda ganga operária do PCP nem a fachada radical do Bloco. Costa, que parecia ter tomado um litro de chá de tília antes deste falso debate, tratou-o reverentemente por «professor Rui Tavares»: não lhe desagradaria vê-lo como secretário de Estado fosse do que fosse.

O primeiro confronto autêntico desta campanha ocorreu na SIC Notícias, também no serão de domingo. A hora bem tardia: 22.45. De um lado, Catarina Martins; do outro, André Ventura. Houve faísca, como se previa: ela nunca o tratou pelo nome, apelidando-o sem cessar de «candidato da extrema-direita»; ele, fiel ao boneco que criou como comentador da bola no canal do Benfica, chamou-lhe várias vezes «mentirosa». Como um adepto a insultar o árbitro.

Inútil especular sobre quem ganhou: não competem no mesmo campeonato. O deputado do Chega terá conseguido fixar o seu eleitorado mais ortodoxo, travando eventual debandada para o PSD. A deputada do BE deixou por explicar uma questão de fundo que irá persegui-la ao longo da campanha: por que motivo o seu partido precipitou esta crise política ao chumbar o Orçamento, fornecendo capital de queixa ao PS? A 30 de Janeiro, o Bloco será o principal prejudicado numa dinâmica de voto útil. Chamar mil vezes «racista» a Ventura não soluciona o problema.

 

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Se os debates pecam por falta de substância, o subsequente desfile de “analistas” agrava a situação, desviando os telespectadores para outros canais. Essas “análises” andam a ser monopolizadas por gente que é parte interessada e não tem qualquer distância face ao que foi dito.

O exemplo mais gritante ocorreu há dias na CNN lusa. Acabava de ser exibida uma entrevista a António Costa. Quem surge em estúdio a comentá-la? O isentíssimo Medina, quinto candidato na lista do PS por Lisboa às legislativas, e o imparcialíssimo David Justino, vice-presidente do PSD. O bloco central personificado em antena. «Foi uma entrevista simpática», condescendeu o amável Justino, insólito opositor bissexto.

As televisões tornam a política num mundo ainda mais fechado do que já é. Uma bolha dentro da bolha. Falam uns para os outros e comentam-se entre si. Enquanto o país passa ao lado.

 

Texto publicado no semanário Novo

A preciosa mão que promulga os decretos

Pedro Correia, 03.01.22

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Já quase ninguém se lembra, mas o Governo chegou a anunciar um “Dia da Libertação Total” da pandemia. Ocorreu no momento que mais lhe convinha em termos de oportunidade política: divulgado escassas semanas antes das eleições autárquicas para se concretizar logo a seguir.

É a maneira típica de António Costa exercer o múnus governativo: isto proporciona bons títulos matutinos, dá-lhe crédito imediato, rende votos ao PS no escrutínio mais próximo. Sempre a pensar na eleição que vem, com o instinto do político profissional que sempre foi. Das gerações seguintes outros tratarão. Aliás de pouco vale invocar futuras gerações num país que regista o pior saldo natural negativo desde 1918 – o terrível ano da batalha de La Lys e do início da gripe pneumónica.

O problema, entre nós, não é morrer-se muito: é nascer-se quase nada. De covid – ou com covid – vai-se morrendo, como de tantas outras causas, sempre silenciadas: só o coronavírus existe para efeitos noticiosos. Numa desproporção chocante face aos restantes tópicos da actualidade.

 

Vamos a números, da semana passada.

Na terça-feira, a SIC dedicou os 21 minutos iniciais do seu Jornal da Noite ao monotema covid. Na quarta, 22 minutos. Na quinta, um quarto de hora. Em qualquer dos casos, voltou ao assunto nestes blocos noticiosos, os principais de cada dia.

O Jornal da CNN Portugal de terça-feira começou («arrancou», como eles preferem dizer) com 31 minutos em torno da pandemia. No dia seguinte, 34 minutos. Na quinta, 28 minutos.

Quase sempre em tom alarmista. Na quarta, foi esta a frase de lançamento do telediário da CNNP: «Vacinação e testagem – os números da pandemia vão subir nos próximos dias.» E a da quinta-feira: «O número de infectados por covid pode chegar aos 18 mil novos casos por dia.»

 

É pena que os jornalistas abdiquem de fazer perguntas incómodas, talvez com receio que alguém lhes chame negacionistas – palavra da moda em 2021.

Se ainda ousassem questionar o poder político, recordariam as promessas feitas e jamais concretizadas sobre a «imunidade de grupo» que levaram o Governo a fechar centros de vacinação, enquanto dispensava o vice-almirante Gouveia e Melo da coordenação do combate à pandemia. O mesmo Governo que hoje nos exige testes obrigatórios para entrar em cinemas e restaurantes. Como se a vacina em dupla e tripla dose já não servisse para nada.

 

Da "libertação total" prometida para o final do Verão, sobra uma triste caricatura: a do primeiro-ministro a cumprimentar à moda antiga o Presidente da República no Palácio de Belém e logo a sacar do bolso um frasquinho para desinfectar a preciosa mão direita do Chefe do Estado. Preciosa por ser a que promulga as leis.

Não há qualquer “pedagogia sanitária” nesta pantomima, ocorrida a 23 de Dezembro: é simplesmente ridícula. E agrava os índices de fadiga pandémica, já tão elevados.

O medo e o pânico, induzidos pelo fluxo de notícias alarmistas consumidas em sessões contínuas, enfraquecem o nosso sistema imunitário. Costa e Marcelo, cada qual a seu modo, contribuem para isto também.

 

Texto publicado no semanário Novo