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Delito de Opinião

Gente apaixonada por máquinas

Pedro Correia, 30.04.23

Notável entrevista de Noah Chomsky ao suplemento Ípsilon, do jornal Público (entrevistado por Ivo Neto e Karla Pequenino). Tema dominante: a inteligência artificial. O pensador norte-americano adverte: hoje há pessoas que se apaixonam por máquinas. Gente nascida após 1997, os chamados "nativos digitais". Gente deste XXI - o século em que a máquina, tendencialmente perfeita, supera de vez o homem, imperfeito por definição. 

«Porque é que uma criança de três anos fala com os seus brinquedos? Algo nestas tecnologias lembra a nossa infância e todos podemos ser apanhados nisso», assinala Chomsky. Na sua perspectiva, proibir não é solução. Nunca é. «Podemos levar as pessoas a compreender o que a inteligência artifical é e não é. Acabar com a euforia e olhar para a realidade como ela é. Basicamente, é como qualquer outra ideologia ou doutrina. (...) Não há maneira de a impedir, não vai acabar nem desaparecer. Pode educar-se a população para compreender como realmente são as coisas.»

Sempre estimulante, concordemos ou discordemos dele. Com lúcidos 94 anos.

A minha experiência com os audiolivros

Paulo Sousa, 14.10.22

Por recomendação de um amigo, deixei que se me abrisse a mente e anteontem experimentei o meu primeiro áudio livro.

À primeira busca tropecei imediatamente no clássico A Cidade e as Serras de Eça de Queirós. Já tinha ficado com ele debaixo de olho há algum tempo e em especial após este postal do Pedro Correia. Estava no topo da lista no Spotify e escolhi-o de imediato.

Os capítulos estão organizados em ficheiros separados sendo que os mais extensos estão distribuídos em três partes. A dicção é clara e bem perceptível. Enquanto tratava de outros afazeres, de pá e enxada na mão, fui ouvindo a história do Jacinto e do seu amigo e nosso narrador José Fernandes. Uma vez ou outra recuei uns segundos para não perder a sequência e quase que virei o livro ao longo do dia. Sobraram apenas dois capítulos, que ouvi ontem de manhã, num passeio de bicicleta até à Nazaré.

Por não estar a olhar para a evolução da recta temporal no écran, senti que estava a chegar ao final, mas acabei por ficar surpreendido quando ouvi a última frase. Se estivesse a ler materialmente, com o livro na mão, a antecipação do encerramento da obra seria muito mais notória e, por isso, menos surpreendente. Mas esta é uma diferença com a qual se pode viver.

Logo de seguida, quando chegava à Lagoa de Fanhais, quase como se de um novo capítulo se tratasse, lá arrancou o Singularidades de uma Rapariga Loura e ainda não tinha chegado ao Porto de Abrigo da Nazaré e já podia contabilizar mais uma obra deste romancista maior da nossa língua.

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No regresso, após um pastel de nata e um abatanado num bar dentro do areal (a praia estava enovoada e quase deserta) comecei a ouvir o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. A edição (o leitor) é brasileiro e bem menos profissional que a experiência proporcionada pela Neolivros das obras anteriores. Além de algumas gafes de dicção, em que o Rei Lear passou a ser Rei Liár, durante algumas passagens ouve-se um cão a ladrar ao fundo, e que não pertence à história. Uma vez ou outra ouve-se também o virar das páginas, o que até pode ser interessante. Apesar disso consegue-se acompanhar o desenrolar da acção.

Este meu amigo que me recomendou esta experiência, trabalha dentro de um espaço povoado com muitos ruídos, onde o ferro e madeira são matérias primas e por isso tem de andar muitas vezes com protectores auriculares. Debaixo deles está quase sempre a “ler” qualquer coisa. Pelo que soube, ele nunca apreciou muito o aroma das folhas encadernadas e teve uma vida académica abaixo das suas capacidades. Acho que tem uma qualquer forma de dislexia, nunca quis questionar directamente, e isso explicará parte do seu percurso. Quando nos encontramos, a conversa passa invariavelmente por grandes obras e grandes autores. Da última vez relatou-me várias passagens do Arquipélago Gulag de Soljenitsin e com isso convenceu-me a experimentar. Importa dizer que ele é fluente em inglês e quase tudo, ou tudo mesmo, do que lê, ou ouve, é nessa língua. As opções em língua portuguesa são menos extensas, mas mesmo assim passei a ser freguês.

Task managing

Maria Dulce Fernandes, 16.07.22

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De todas as obras do universo da criação, o ser humano é seguramente a mais dependente de todas as criaturas.
Tomo-me como verdadeira prova provada da minha anterior citação, pois como racional que sou, não consegui racionalizar a complexa situação com que me deparei na manhã em que as máquinas pararam.
Não me considero lerda nem ignorante, nem incapaz... nem ao que parece muito humilde.
Não trato por tu os computadores, servidores, bastidores e outros estupores mecanizados, mas sempre tivemos uma relação de reciprocidade tolerante. O meu conhecimento limitado é suficiente para podermos trocar galhardetes, eu e as máquinas chipadas. A sua memória é efectivamente mais poderosa do que a minha, mas eu tenho o poder de lha limpar, ou formatar, ou optimizar, até mesmo de a recarregar, introduzindo novos objectivos e objectos que criarão novas e poderosas memórias numa memória que se resumirá a uma vaga recordação.
Dias há em que as hostilidades abrem cedo e a minha antiga massa cinzenta range de agonia, volteando na busca incessante pela solução, que normalmente tarda, mas não falha. É um feito davidiano suplantar uma máquina teimosa e isso torna-nos orgulhosos, de bem connosco, vaidosos, até.
Depois aconteceu hoje. Uma noite dormida a correr despertada por uma aurora vermelha e ardente num fundo de azul límpido, duas chalaças e um café duplo sem açúcar, a escada, a luz e o ritual dos botões.
Os monitores saudaram-me sorridentes na sua habitual simpatia. Os sistemas operativos operaram ao som da sua opereta matinal, retribuíndo-me fundos azuis repletos de ícones coloridos e os programas do arranque, a pensar no fim de semana prolongado, esses arrancaram sem dúvida, mas dali para fora os torpes vilões não quiseram dar ar da sua graça, nem da minha, nem da de ninguém.
Seguiu-se o habitual liga-e-desliga, põe e tira, entra e sai, mas do azul redundou a escuridão total e eu, sempre tão sábia e ciente das minhas capacidades, parecia uma criança de meses a tentar gatinhar, balbuciando um jargão incoerente e babado, sem conseguir acreditar que me encontrava com uma pulseira electrónica, um gadget que não me tolhia os movimentos, mas me deixava subjugada aos caprichos implacáveis da mãe de todas as máquinas, a matriz que não me serve e  cujo servidor afinal sou eu.
Agastada e desorientada, aceitei a derrota com a raiva de quem sabe que se não morreu na batalha, nunca desistirá da guerra!
Hoje foi o dia em que o switch me apagou do sistema, a mim, a prodigiosa task manager.
 
Olhei de lado para uma esferográfica e uma resma de papel A5, respirei fundo e pensei que era boa ideia começar a preparar-me para os dias do fim. 

A tecnologia blockchain - II

Paulo Sousa, 21.12.21

Na sequência do meu postal anterior, faz sentido falar também sobre os NFT. Literalmente esta sigla significa Non-fungible Token, e a sua existência baseia-se na tecnologia blockchain. Aqui a "não fungibilidade" assenta numa lógica de estar a lidar com algo único e irrepetível.

Como sabemos é possível fazer cópias infinitas e absolutamente fidedignas de um ficheiro digital, mas não do NFT de uma obra de arte que exista apenas em suporte digital. Uma obra digital pode ser assim transaccionada como se de uma peça de arte convencional se tratasse.

O mercado de transacções de NFT já movimenta valores na ordem dos muitos milhares de milhões de dólares. Aqui os dólares surgem apenas como valor comparativo, pois os NFT são transaccionados em criptomoedas.

Esta é uma tendência razoavelmente recente, mas que não será passageira. Pelo contrário a sua importância irá aumentar e constituirá uma sólida alternativa de investimento e de divulgação artística.

Dentro do mercado dos NFT de arte existe um aspecto deveras interessante para os artistas. Ao contrário do que acontece nas transacções de obras de arte tangíveis, o seu criador ganha apenas o valor pelo qual o vende na primeira vez. Por exemplo, quando ouvimos uma notícia de um preço recorde de uma transacção de um clássico da pintura, os lucros envolvidos são exclusivos de quem os vende. Pelo contrário, neste mercado, o criador do NFT irá receber uma percentagem, um royalty de cada vez que a sua obra mudar de mãos, que depende do estipulado pelo próprio e pela plataforma onde este é lançado o que é muitíssimo interessante, e até justo, para os artistas.

Alguns dos NFT que já foram comercializados por valores mais caros deixam-nos com as mãos na cabeça pelo que de artístico se poderão considerar, mas existe arte produzida em suporte digital, onde se podem incluir fotografias, de elevado valor artístico e que assim, graças ao blockchain e aos NFT, ganham um efectivo canal de venda.

Deixo-vos com duas gravuras que existem exclusivamente em suporte digital, produzidas pelo meu amigo Dom Nuno Viegas, e que foram colocadas à venda há dias. Graças aos NFT podem agora ser transaccionadas neste novo mercado de divulgação e que assim valorizará o seu talento maravilhoso.

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"Maria cookies" / "Bolachas Maria"

 

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"Bowl of tomatoes" / "Terrina de tomates"

A tecnologia blockchain - I

Paulo Sousa, 20.12.21

Lembro-me de antes do virar do milénio ouvir dizer que uns fulanos registavam o domínio informático de algumas marcas conhecidas e depois os vendiam por um dinheirão. Talvez fosse um mito urbano, mas garantiram-me que a própria expo98 teve de negociar o seu domínio .com com alguém que se tinha antecipado.

À época, imaginar o que era um domínio, o que permitia e como este poderia ser comprado e vendido, era algo de uma escala quase esotérica.

Os anos foram passando. Com a progressão e penetração da internet nas nossas vidas esse e muitos outros conceitos impossíveis de explicar nos nossos tempos de juventude tornaram-se banais. O conceito de blog faz parte deste grupo de coisas. Como poderíamos explicar ao nosso avô o que é que afinal é isto do delito de opinião ponto blogs ponto sapo ponto pt?

Tendo já todos estes conceitos enraizados e clarificados, está em curso nos dias de hoje uma outra revolução. Já aí está, mas ainda só mexe nas franjas das massas. Refiro-me ao blockchain. Há muitas fontes de informação, mas nem todas são muito claras. Ouvir algumas dessas explicações traz-nos à memória aquela sensação de 1998 quando tentávamos entender como se podia negociar um domínio.

Sem me querer substituir aos entendidos, julgo que podemos explicar a tecnologia blockchain como algo que permite realizar registos comparáveis aos feitos num livro-razão mas de forma partilhada e descentralizada. Pode ajudar imaginarmos que esta tecnologia permitirá o equivalente aos registos públicos centralizados, mas que dispensa uma autoridade que os valide, pois podem ser verificados por todos e por isso tornam-se incorruptíveis.

Quando nos afirmarmos donos de um carro ou de um imóvel, baseamo-nos no registo que temos em nosso nome na Conservatória do Registo Automóvel ou Predial, conforme o caso. Ora, a tecnologia blockchain permite algo comparável, mas dispensando o registo centralizado. Segundo algumas opiniões é o próprio conceito de comunidade que sai reforçado face ao controlo centralizado.

É nesta lógica que assentam as criptomoedas, mas há um mundo imenso para além disso.

Daniel de Oliveira Rodrigues é um colunista convidado do Observador que aborda frequentemente estes temas e sobre os desafios que tudo isto coloca aos estados, à democracia e à liberdade. Como já disse não pretendo substituir explicações mais competentes, mas em termos das criptomoedas existe uma outra fronteira entre as que são efectivamente descentralizadas e aquelas que os estados pretendem programar como forma de controlar os movimentos financeiros e os assim os seus cidadãos.

A China, que não permite que nada das vidas dos seus cidadãos fique fora do controlo do Partido, quer banir as criptomoedas e subsitui-las pelo yuan digital que passará a ser mais uma ferramenta dentro do seu sistema de créditos sociais. O yuan digital é uma criptomoeda programada que, ao contrário das descentralizadas, além de permitir saber onde os seus cidadãos gastam cada um dos seus cêntimos de yuan, permite ainda que o stock de moeda de cada cidadão seja valorizado ou desvalorizado de acordo com o comportamento do seu detentor. Nem George Orwell se lembrou disto.

As criptomoedas descentralizadas funcionam como se de uma cortina se tratasse, na medida em que para além das quais não se consegue seguir o trajecto de pagamentos e transferências de valores. Os criminosos sabem disso e até se pode dizer que estas acabam por fazer concorrência às offshores.

Desde Setembro passado que a moeda oficial de El Salvador é o Bitcoin. Este pequeno país da América Central, que mais facilmente associamos aos narcotraficantes do que à inovação financeira, tornou-se assim o primeiro estado do mundo a abdicar de uma moeda convencional e a confiar numa criptomoeda descentralizada.

Se por um lado os estados, tal como os conhecemos, pretendem continuar a cobrar impostos sobre todos os movimentos comerciais, financeiros, sobre todas as remunerações de trabalho, valores patrimoniais e tudo mais, e ao mesmo tempo abdicar de invadir a última esfera de controlo sobre a privacidade dos cidadãos, acabarão por ter de decidir se permitem que esta realidade funcione de forma descentralizada ou se, tal como a China, exigirão que só funcione de forma programada. Tudo isto num mercado sem fronteiras e onde a concorrência é efetiva.

Como é visível, o debate sobre as possibilidades que esta tecnologia irá acarretar nas nossas vidas está atrasado face ao seu potencial impacto.

Mas, muito para além das criptomoedas, o blockchain permite também transaccionar outros activos, como obras de arte, música, domínios, “cromos” coleccionáveis, mundos virtuais para jogos, tudo isto e ainda mais um par de botas.

O meu próximo postal será sobre os NFT.

O desafio da gestão da água em Portugal

João André, 22.11.17

Agora que a seguir aos incêndios começam a surgir os alertas para a falta de água, vale a pena reflectir sobre o desafio estrutural de abastecer água, potável e não potável, a uma população. Portugal é um caso onde este desafio já deveria ter sido assumido há muito de forma interpartidária: é um país pouco húmido, com zonas mais áridas, forte concentração populacional em centros urbanos no litoral e uma costa marítima muito extensa. É também um país com forte implantação de energias renováveis, o que é bastante útil no caso do abastecimento de água.

 

Uma primeira reflexão deve ser feita no que diz respeito à escassez da água. Tenho frequentemente que explicar a amigos que a água não é um bem escasso, ou pelo menos não o é da mesma forma que o petróleo o é. Toda e qualquer molécula de água que é consumida na esmagadora maioria dos processos de humanos (consumo humano, irrigação, lavagens, incorporação noutras bebidas, etc) continua a existir após o seu "consumo". Mesmo nos casos raros em que a molécula de água é decomposta nos seus átomos (como por exemplo em electrólise), estes acabam por se reconstituir na atmosfera (é o facto de a molécula de água ser um arranjo tão favorável para o hidrogénio e o oxigénio que a torna tão estável e útil). Isso significa que não há razão para se considerar a água um recurso finito, antes transformável.

 

Esta distinção importa porque significa que a água pode ser obtida a partir de múltiplas fontes ou - e é este o aspecto essencial - reutilizada. Aliás, observar um mapa mundial da acessibilidade de água para consumo ajuda a perceber a distinção. O gráfico abaixo mostra Portugal numa situação pouco melhor que Espanha e França, pior que vários países africanos e melhor que Bélgica, Holanda e Alemanha, países líderes no campo. Uma das razões para isso é a disparidade temporal do acesso à água. Nos países africanos a disponibilidade de água depende da época das chuvas - fora destas pode haver falta de água. O mesmo acontece historicamente com a Índia. No caso dos países do centro da Europa o problema prende-se mais com a qualidade da água disponível. Nestes países o nível de industrialização levou a que os cursos de água estejam frequentemente poluídos. No caso da Holanda acresce o problema de terem recuperado terra ao mar: os recursos hídricos estão frequentemente contaminados com sal.

 

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Fonte: National Geographic

 

Como resolvem estes países o seu problema? "Simples": tratam a água de forma proactiva e agressiva e consideram-na um recurso fundamental. A qualidade é monitorizada constantemente e ajustada conforme o necessário. Além disso os recursos hídricos estão incorporados no processo de gestão de água, não só no aspecto da captação de água mas também na descarga da mesma depois de tratada. Só que isto não deveria ser suficiente e é muitas vezes um desperdício. A gestão correcta deveria ser muito mais eficiente.

 

Um caso que conheci é o da cidade de Aachen. Nesta cidade alemã (muitos portugueses ainda a conhecem pelo nome francês de Aix-la-Chapelle) junto às fronteiras com a Holanda e  Bélgica o sistema de tratamento e captação de água é integrado. As águas residuais municipais são recebidas pelas estações, tratadas e descarregadas nos cursos de água naturais da região. As águas destas fontes são captadas, tratadas e enviadas para a cidade. Isto cria um ciclo mais ou menos fechado que parece ser eficiente (e de certa forma é-o).

 

Olhe-se no entanto para o mapa abaixo, onde coloquei os pontos de e para onde a água é bombeada, por onde flui e onde é tratada (atente-se a legenda). O mapa abaixo não referencia diferenças de altitude entre os diversos pontos (este artigo do Aachener Zeitung tem uma ilustração que o mostra).

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Legenda: 1 - Estação de tratamento de águas residuais. 2 - Albufeira que recebe (por bombagem) as água tratadas em 1. 3 - Estação de bombagem de água para 4. 4 - Albufeira. 5 - Barragem que liga com outra Albufeira. 6 - Estação de bombagem de água para outra albufeira. 7 - Estação de produção de água potável. 8 - Aachen.

Linhas vermelhas: água bombeada (as linhas não descrevem o percurso real). Linhas verdes: água em curso natural (rio, albufeira). Losangos: estações de tratamento e/ou bombagem. Círculo: barragem com passagem natural de água.

 

Aquilo que eu gostaria de salientar é a distância, mínima, entre a estação de tratamento de águas residuais e a estação de produção de água potável. Também seria bom indicar que a água que é descarregada nos cursos de água naturais não tem uma qualidade muito distinta da da água que é captada para produção de água potável. Isso significaria que seria tecnicamente simples tratar o efluente da estação de tratamento de águas residuais para produzir a água potável necessária para a cidade de Aachen. E isto seria possível muito mais próximo da cidade.

 

Há outras questões técnicas que teriam de ser resolvidas. Levar a água residual ao nível de potável é relativamente simples, mas não é possível com eficiência a 100% (a segunda lei da termodinâmica impede-o naturalmente, mas tecnicamente seria inviável). Haveria portanto que encontrar uma solução para a fracção do efluente. No entanto não é esse o maior impedimento para tal opção.

 

O maior impedimento é humano: as pessoas não querem beber água tratada, independentemente da qualidade que seja assegurada. Queremos beber água "natural", que imaginamos nunca contaminada em ponto nenhum ou, em alternativa, que tenha sido "purificada" pela Natureza. Claro que isto é uma fantasia. A maior parte da água que existe no mundo não é fresca (i.e., não é salina). Da água fresca, apenas cerca de 30% está disponível e não sequestrada como gelo. E da disponível, apenas uma parte está à superfície da Terra.

 

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Disponibilidade de água no mundo. Tirada daqui.

  

Ainda assim, sistemas como o que descrevi acima (reuso indirecto) ajudam à fantasia. Os humanos rejeitam de tal forma o reuso directo de água (tornar a água imediatamente potável, por oposição ao uso indirecto) que preferem sempre que possível dessalinizar água do mar. Isto faz sentido em certas situações, como no Médio Oriente, em zonas costeiras áridas (Califórnia) ou em ilhas-estado muito populosas como Singapura, mas é energeticamente menos eficiente (pressões equivalentes a 60 atmosferas são necessárias para produzir 60 L de água dessalinizada por cada 100 L de água bombeada, por exemplo).

 

O reuso directo de água, bem como o reuso de água não potável (como no caso de irrigação) poderia baixar drasticamente a necessidade de captar água a partir de fontes à superfície ou subterrâneas, além de baixar imenso o custo do tratamento da água. Igualmente importante seria potenciar a captação e gestão de água da chuva, criando bacias que recebessem o excesso de água. Esta prática milenar existiu por todo o mundo e terá sido aperfeiçoada na Índia, mas a expansão humana e industrialização destruíram muitas das opções que existiam ao cortar cursos naturais (ou de mão humana mas muito antigos) de água.

 

Portugal tem algumas condições excelentes para não ser um país com escassez de água. As zonas mais populosas são também as mais prósperas e onde a indústria está mais desenvolvida e também onde em teoria é mais fácil implementar sistemas integrados de gestão de água. Isso significa que seria simples implementar sistemas técnicos de reuso em cidades como Lisboa ou Porto (ou outras) e reduzir de imediato as necessidades de captação de água e, consequentemente, diminuir o risco causado por períodos de seca.

 

Nas zonas menos populosas, os sistemas de reuso de água não potável seriam perfeitos. Nestes casos parte do efluente que sai das ETARs poderia ser redireccionado para irrigação e outra parte poderia ser tratado para uso como água potável para as populações. outra vantagem que Portugal poderia ter relaciona-se com o uso de energias renováveis. O uso de água é mais intensivo durante o dia, altura em que a energia solar (especialmente a térmica, no caso de sistemas de evaporação/condensação) está disponível. Além disso as albufeiras são reservatórios perfeitos de água que podem ser integrados correctamente na gestão local e fornecem a energia a partir das barragens.

 

Por fim, para complementar e onde necessário, seria possível recorrer à água do mar para obter água em caso de necessidade. Com a maioria da população portuguesa a viver provavelmente não mais que 30-50 km do mar, a dessalinização, mesmo que menos eficiente energeticamente, poderia ser usada para complementar o abastecimento quando necessário.

 

Resolver o problema da disponibilidade de água, em Portugal ou noutros países, não se pode basear simplesmente numa ou noutra solução. Não existe uma solução mágica que resolva tudo. É necessário integrar a poupança de água, com a gestão dos recursos hídricos (inclusivamente do ponto de vista geológico) e harmonizar isso com os sistemas de tratamento e reuso de água, bem como criar opções d emitigação de casos extremos, como a dessalinização.

 

Se tal fosse feito, estou em crer que hoje não seria organizar comboios para andar a transportar água entre localidades. Todos os nossos municípios poderiam ser auto-suficientes.

I&D e Inovação

João André, 26.04.17

Todos os anos a empresa onde trabalho tem um dia dedicado a criar novas ideias tecnológicas que possam ser usadas. Várias empresas são convidadas para apresentar ideias que sejam interessantes e, se existir potencial, poderão ser convidadas a participar de um projecto. Isto, claro, à parte quaisquer ideias ou projectos de I&D que sejam desenvolvidos internamente ou em colaboração com parceiros. O objectivo é apenas ter um dia dedicado a descobrir o melhor que existe em oferta no mercado.

 

No início do dia há sempre um convidado que faz um "discurso motivacional". Desta vez tivemos um convidado que falou sobre inovação em grandes empresas e como as grandes empresas frequentemente ficam tão presas no seu ciclo de sucessos passados e modelos de negócio que (até ver) funcionam perfeitamente, e deixam de investir em inovação. Para ilustrar o seu ponto de vista, pegou no relatório da PwC sobre inovação e apresentou alguns números.

 

Fê-lo também usando comparações entre empresas de indústrias semelhantes. Volkswagen vs Tesla, IBM vs Apple, Microsoft vs Google (Alphabet...), etc; e ia pedindo para indicar qual seria a empresa com mais orçamento de I&D e a mais inovadora. O top-10 em ambas as categorias na lista da PwC está abaixo.

 

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Valores em milhares de milhões de dólares.

 

Nesta comparação, sublinhou como a VW tem o orçamento de I&D mais elevado do mundo, mas não consegue surgir nas empresas mais inovadoras. Foi aqui que me comecei a irritar com a apresentação. É já comum este tipo de "gurus" apresentarem conclusões baseadas em conceitos que formaram antes de elaborarem hipóteses, mas este caso aborreceu-me mais que o habitual. A razão para isso é simples: quis fazê-lo para demonstrar que investimento em I&D, mesmo como proporção das receitas, não correspondem a mais e/ou melhor inovação.

 

Nas palavras imortais do Dr. Homer Simpson: Duh!... Penso que qualquer pessoa o poderia dizer. Gastar dinheiro, só por si, não significa nada. Num caso absurdo, se a VW gastar mil milhões de dólares em bancos de células, poderia dizer que o gastava em I&D, mas provavelmente não melhoraria em nada a sua inovação.

 

O que falta na análise são duas coisas: a) como se define inovação e, b) como se qualifica o investimento de I&D?

 

Inovação

O livro do apresentador dá uma definição e muitas outras poderão ser usadas. No entanto, o ranking da PwC foi criado após consultas com especialistas em inovação. Ou seja, é um ranking completamente qualitativo e subjectivo e provavelmente ignorará os muitos milhares de empresas que são essencialmente desconhecidas e muito mais inovadoras que uma Apple ou uma Tesla.

 

Pense-se na Tesla. Qual a sua inovação? Não criou o conceito de carro eléctrico. Não produziu sequer o primeiro para venda. É um carro tecnologicamente avançado, mas não tem nada de excepcionalmente novo. Muitos "especialistas" em gestão de inovação apontam para o seu software, mas mesmo este nada tem de especialmente inovador. A principal inovação da Tesla foi no seu modelo de negócio - vender directamente ao consumidor - e mesmo este está a ser parcialmente abandonado. Há muitas outras inovações, é certo, mas não serão, no seu alcance e conceito, diferentes das de uma Ford que produz um novo motor a gasolina de 1.000 cc com 100 hp ou de uma Mercedes que cria um novo sistema de estacionamento automático.

 

O mesmo se pode apontar em parte para a Apple. O iPod não foi inovador pelo que trouxe - já existiam leitores de MP3 - mas pela sua qualidade e design e, essencialmente, pela sua ligação ao iTunes. O iPad não foi novo - a Microsoft tinha apresentado o seu Tablet PC em 2001 - mas foi apresentado não como um novo tipo de PC mas antes como um novo produto. Quando a Apple trouxe o iPhone para o mercado foi a primeira verdadeira e completa inovação tecnológica revolucionária que apresentou na sua i-Family. Não foi pequena e não pretendo menorizar o que foi feito, mas a percepção da inovação na Apple é influenciada pela forma como alterou a cultura popular. No entanto, a maior inovação que a Apple trouxe foi diferente e económica: o seu modelo de negócio. Conta, obviamente, como inovação, mas outras empresas que terão feito o mesmo e de forma mais influente (Google, Amazon, Facebook) aparecem abaixo da Apple.

 

Ou seja: na impossibilidade de colocar números no ranking de inovação, as empresas foras classificadas em função do élan que possuem. Dificilmente a melhor forma d emedir inovação.

 

O investimento em I&D

Este é um aspecto mais difícil de avaliar. Comparando com a VW com a Tesla, chegamos à conclusão que o orçamento da Tesla é cerca de 5% do da VW. Em parte isto deve-se ao tamanho das empresas. A Tesla tem cerca de 5% dos empregados da VW e um alcance das operações mais pequeno. Além disso, a VW está distribuída também no negócio das partes, tem divisões de serviços, logística, etc.

 

Além disso, a VW provavelmente terá uma forma diferente de qualificar os orçamentos, mais em linha com o de outras empresas alemãs (das que conheci). As empresas alemãs têm o hábito de considerar uma despesa de I&D tudo o que esteja tangencialmente relacionado com tal. Um novo equipamento, mesmo que já em tamanho industrial, será pago desse orçamento. O mesmo para todos os custos com ele relacionado (instalação, teste, início de funções, avaliação, manutenção, etc). O mesmo se pode dizer para actividades de debottleneckingtroubleshooting, (lamento mas não conheço termos portugueses) ou simples melhorias incrementais nos seus processos ou sistemas.

 

Outras empresas poderão não o fazer. Conheci empresas (especialmente americanas) que preferiam colocar qualquer investimento acima de um determinado valor (por exemplo, 200 mil dólares) na categoria de "investimentos", mesmo quando destinado a I&D. Isso automaticamente baixa o valor investido em I&D. Se a Tesla usar esta prática (e creio que a usa, olhando para o seu orçamento de I&D - baixíssimo), isto ajuda a explicar a sua diferença para a VW. Algumas outras empresas fazem outsourcing da investigação, decidindo quais as áreas interessantes e escolhendo parceiros. Isso transfere o investimento em I&D, que é indirecto, para categorias como "parcerias" ou "serviços".

 

Por outro lado, o investimento da VW em I&D é de 11,6% das suas receitas (12.3 mil milhões a dividir por 105,651 mil milhões), enquanto que o da Tesla é de 17,7%. O da Apple, no entanto, é de apenas 3,5%, o que pode ser resultado de receitas elevadíssimas ou de outras práticas de contabilidade financeira.

 

Eu não concluo nada de diferente de todos os gurus que decidem que não existe relação entre orçamento de I&D e inovação (por outro lado não sou nenhum guru nem aspiro a sê-lo). Só que olho para os valores de forma crítica. A VW ou a Microsoft são empresas líderes nas suas indústrias e que têm sabido reinventar-se constantemente, mesmo quando enfrentam revezes graves. Uma Tesla já poderá ser muito inovadora, mas não sei se existirá daqui por 10 anos (prevê ter quase todos os seus lucros para lá de 2020).

 

Quando se tenta avaliar inovação, convém, antes de tudo, olhar para tendências históricas e descobrir aquilo que foi feito de forma correcta no passado e tentar adaptar tais lições ao presente. A gestão eficaz não muda só porque a tecnologia muda. No entanto, para quem quer vender um livro, o mais importante são os próximos 50 minutos mais 10 minutos para perguntas.

Lysenko-Trumpismo energético

João André, 19.01.17

Lysenko

No final dos anos 1920, um homem chamado Trofim Lysenko (deveria escrever-se Lissenko mas manterei a grafia inglesa) ascendeu a posições de poder na União Soviética. Lysenko era supostamente um agrobiólogo que rejeitava as teorias genéticas de Mendel e preferia uma visão ideologicamente mais em linha com a ortodoxia política.

 

Nesta visão, a evolução acontecia não por aleatoriedade e selecção natural, mas como resultado das experiências de vida dos progenitores. Na sua visão original, postulada por Lamarck, o exemplo era o do pescoço da girafa, que tinha vindo a alongar-se porque ao ser esticado para chegar aos ramos mais altos, as girafas promoviam a sua extensão, característica que passavam aos filhos.

 

Lysenko usou estas teorias, tão do agrado de quem se propunha a desenvolver um novo tipo de homem e de sociedade, para avançar a sua posição e implementar acções que terão sido tão responsáveis pela fome nos anos 30 (que recebeu o nome de Holodomor na Ucrânia) como as políticas económicas implementadas. Entre outras fantasias os cientistas "lysenkistas" (os outros eram aprisionados - se tivessem sorte) afirmavam ser capazes de converter centeio em trigo e trigo em cevada. Ou que poderiam converter trigo de Verão em trigo de Inverno (apesar da sua diferença genética), tudo isto numa única geração. O resultado destas políticas foi não só fome mas também um enorme atraso científico nas áreas da biologia, bioquímica e genética que ainda não terá sido devidamente compensado.

 

Trump

A partir de amanhã, Donaldo Trump terá o poder de começar a cumprir a sua promessa de mudar a orientação energética dos EUA para os combustíveis fósseis. É obviamente difícil de prever qual o resultado final, mas a vontade aparente de Trump em promover as indústrias do carvão e petróleo em prejuízo das energias renováveis (ou mesmo do gás natural, fóssil mas mais limpo) terá essencialmente dois resultados:

1. Os EUA passarão a poluir muito mais que até agora. Isso terá consequências de muito longo prazo na qualidade do ar e água, e no clima a nível mundial.

2. Os EUA ficarão para trás no desenvolvimento tecnológico das energias renováveis, o que terá consequências também em outras áreas tecnológicas e afastará muitos talentos do país.

 

Esta inclinação de Trump parece vir da sua incapacidade de compreender as novas tecnologias (o uso de Twitter não conta) e da sua tendência para um populismo com pouco contacto com a realidade. Tal como li noutro lado, a indústria do carvão já atingiu um tal nível de automatização que qualquer reactivação da mesmo nos EUA, mesmo no alcance que Trump prometeu, não traria mais que uma fracção dos empregos do passado. Pior que isso, no entanto, é o facto de as energias renováveis e adjacentes estarem, finalmente, maduras o suficiente para poderem substituir os combustíveis fósseis.

 

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Fonte 

 

Não vou aqui alongar-me com as questões dos custos da energia renovável (fica para outro post) e deixo apenas um gráfico (acima). O essencial da minha reflexão prende-se com a influência que uma visão ideológica e retrógrada sobre um aspecto de ciência e tecnologia terá nos restantes e no país em geral. Não se trata apenas da vontade de desinvestir na geração de conhecimento na área das energias renováveis. Trump promete também cortar os fundos que a NASA dedica ao estudo das alterações climáticas, o que ultimamente resultará num enorme défice de conhecimento que terá repercussões também no desenvolvimento das tecnologias do espaço.

 

Outras áreas que sofrerão serão a ciência dos materiais, diversas áreas de engenharia (civil, mecânica, naval, etc), os estudos do clima e metereologia, a área de big data e computer learning (ambos fundamentais para prever padrões de vento e exposição solar e optimizar os sistemas), acabando nas ciências fundamentais, uma vez que química, física e matemática beneficiam colateralmente dos fundos gastos no desenvolvimento das tecnologias renováveis.

 

O futuro poderá ser um em que o centro do conhecimento das energias do futuro não estará nos EUA mas sim na Europa, China, Japão, Brasil e/ou outros países ou regiões. Uma vez que o principal recurso do planeta é a energia, com a sua obsessão pelo carvão, Trump poderá fazer mais para comprometer os EUA com estas suas opções puramente ideológicas do que com qualquer outra escolha política ou ideológica.

 

Basta perguntar aos russos órfãos de Lysenko.

O maravilhoso mundo das membranas (2) - tipos de membranas

João André, 05.07.16

Continuando com a série, explicarei agora quais os tipos de membranas existentes. Primeiro falando da técnica em uso e depois, noutro post, do material em si.

 

2.1. Tipos de membranas - Técnica

As membranas podem ser divididas em membranas para aplicações com líquidos e membranas para aplicações com gases. As aplicações com líquidos são as mais comuns e é o campo onde se encontra o tratamento de água. De forma geral, com líquidos, pode-se falar em 4 tipos de membranas, dependendo do tipo de componentes a que são permeáveis. Esta separação está apresentada graficamente na imagem abaixo. Nota para quem queira ler o resto do texto, as explicações vão-se tornando algo técnicas, mesmo que eu tente deixá-las o mais simples possível.

 

Tipos Separacao.jpg

 Tipos de separação possíveis com cada tipo de membrana, baseados no tamanho dos componentes a separar.

 

Já acerca de membranas de outros tipos (separação de gases, usando electricidade ou outras), escreverei noutra altura.

 

 

Foi há já muito tempo que publiquei o primeiro post. Agora, finalmente tive o tempo, a disponibilidade e a motivação para completar o segundo post. Apenas posso desejar que o próximo não dure tanto tempo.

Ídolos tecnológicos com pés de barro?

João André, 12.01.16

Em 2015, os órfãos da figura tutelar que era Steve Jobs receberam um estímulo na forma de uma Steve Jobs no feminino e orientada para as Ciências da Saúde. Elizabeth Holmes, uma jovem empresária que deixou o seu curso em engenharia química em Stanford (que foste tu fazer Liz?...) para fundar a Theranos, uma empresa dedicada a produzir testes sanguíneos rápidos e baratos e assim revolucionar o mercado das análises clínicas.

Aquilo que levou às comparações com Steve Jobs foram a ambição e, aparentemente, um gosto por roupas pretas e com camisolas de gola alta para não perder tempo a escolher o que vestir. Todo o bom geek gosta destas coisas, especialmente quando resultou numa potencial fortuna pessoal de 4.500 milhões de dólares (cerca de 50% da Theranos, avaliada em 9 mil milhões).

O maravilhoso mundo das membranas (1)

João André, 06.11.14

Nunca o tinha feito antes, mas gostaria de deixar pela primeira vez uma explicação sobre a minha área de trabalho: tecnologia de membranas. Tentarei descrever um pouco do que se trata e quais as aplicações. Não sei, no momento em que escrevo, se sairá apenas um post ou vários (provavelmente será este o caso). Seja como for, penso que será uma lufada de ar fresco (para mim) sair dos temas políticos e escrever por uma vez sobre um tema que me fascina.

 

Porous membrane.jpg

 Imagem de uma membrana porosa feita com um microscópio electrónico. Na parte superior da imagem está a superfície da membrana e na parte inferior a estrutura interna vista por corte transversal. 

 

1. O que é uma membrana?

Comecemos por esclarecer que as membranas de que falo são membranas sintéticas, ou seja, produzidas - sintetizadas - pelo Homem. As membranas celulares partilham muitas das características que descreverei (falarei talvez um pouco delas a certa altura) mas são consideravelmente mais eficientes e estruturalmente diferentes das que os humanos produzem. Noutras situações, há quem se refira a membranas ou difragmas de forma alternada. A nomenclatura não estará errada em determinados campos tecnológicos, mas diafragmas são barreiras frequentemente absolutas, não permeáveis dentro das condições utilizadas. São por exemplo utilizadas como uma barreira flexível em bombas (das que bombeiam, não das que explodem) e não se pretende que deixem passar componentes.

 

 

 

Taxar Pandora

João André, 24.08.14

Em tempos, os EUA criaram a internet. Pouco depois, Barners-Lee criou a World Wide Web. A meio da década de 90 do século XX, surgiu o Napster. Isto é semelhante a falar em criação do mundo, criação do Homem e abertura da caixa de Pandora. Não vejo de maneira nenhuma a troca de ficheiros na internet como "os males do mundo", mas a verdade é que como a caixa de Pandora, aquilo que saiu daquele momento já não pode ser desfeito. A partilha de ficheiros chegou para ficar e ainda bem que assim é.

 

Obviamente que, como em todas as revoluções tecnológicas, há sempre aqueles que tentam remar contra a maré por não se quererem adaptar. É um pouco como quem tem posições dominantes numa determinada indústria no seu país e tenta pedir barreiras tarifárias à importação do mesmo produto, mais barato e frequentemente melhor. É isto que se passa quando o país aprovar a nova lei da cópia privada.

 

A questão da pirataria é falsa. Não passa de um espantalho levantado por quem não quer procurar novas formas de fazer dinheiro e quer manter os seus "direitos adquiridos". A televisão é o melhor exemplo da possibilidade de fazer dinheiro na era da partilha de ficheiros. A pirataria e a troca de ficheiros não veio acabar com as indústrias musical e cinematográfica, mas certamente que as veio mudar.

 

Como tem sido óbvio desde há vários anos, os lobbies em Portugal não ligam a nada disso. São constituídos por pessoas sem qualquer criatividade, preguiçosas e sem qualquer noção do mundo real. É o mundo da gente que crê que pedir uns 20 a 25 euros por um CD de terceira categoria constitui o modelo de negócio ideal. É o mundo dos Tózé Martinho ou outros que tais que certamente julga que um CD se cria entre os buracos 7 e 8 algures na Quarteira.

 

Uma taxa sobre os dispositivos é uma solução preguiçosa, perigosa e estúpida. Preguiçosa pelas razões acima: numa altura que várias bandas portuguesas começam a revolucionar o panorama musical português, agarra-se aos modelos velhos, gastos e ultrapassados. Perigosa porque abre espaço à legalização da troca de ficheiros, sendo que qualquer pessoa se pode defender dizendo que já está a pagar a sua contribuição. É estúpida também porque qualquer pessoa pode simplesmente comprar os seus dispositivos noutros países (pela internet, por exemplo) sem que a taxa esteja incluída.

 

É, por fim, injusta. Injusta para quem tem aparelhos capazes de armazenamento e que nunca na vida irão trocar ficheiros, injusta para quem não quebra os direitos de autor e, por fim, injusta para os autores que nada ganham de especial com isto, com o dinheiro habitualmente a acabar nos bolsos dos intermediários.

 

Lendo esta notícia, o meu primeiro instinto é simples: dirigir-me ao mais próximo site de torrents e começar a sacar tudo o que consiga de autores ligados de alguma forma à SPA e ao Sr. Martinho. Começando pelas telenovelas dele. E a seguir partilhar. É que Pandora também não fechou a caixinha.

Da pequenez (2)

João André, 08.07.14

Na sequência do post anterior e dos diálogos na caixa de comentários, veio-me à memória uma passagem do livro A Short History of Nearly Everything, the Bill Bryson (lamento, li-o em inglês e não estou para ver qual o exacto título em português). Nele o autor brincava com a ideia de aliens a virem à Terra para marcar campos de trigo ou assustarem humanos com shows de luzes. As distâncias no espaço são tão grandes que ele justificava tais acções apenas com a possibilidade de os aliens também passarem pela adolescência.

 

A realidade é que as distâncias são ridiculamente grandes uma vez no espaço. O objecto humano mais rápido de sempre é a sonda Voyager 1, que viaja a cerca de 59 mil km/h e foi laçada há perto de 37 anos. Neste momento está no que já se chamou de espaço interestelar, ou seja, de certa forma está para lá dos limites do sistema solar. Isto se o sistema solar for visto como um espaço dominado por partículas solares. Se o observarmos como a zona de influência da gravidade do sol, as sondas estão longe, muito mas mesmo muito longe de ter saído do sistema solar - falta a nuvem de cometas Oort (apenas uma hipótese).

 

Que quer isto dizer? Bom, que qualquer exploração espacial, com base na ciência moderna, é absolutamente impossível. As sondas Voyager atingiram as suas velocidades graças ao efeito de "fisga" quando passaram por cada um dos planetas gigantes, assim acelerando. Estes efeitos seriam quase certamente impossíveis com humanos a bordo: as acelerações atingidas matariam qualquer pessoa. Mesmo que fossem possíveis, estamos a falar de viagens para lá da nuvem de Oort, que se situará a cerca de 20 mil unidades astronómicas (UA) de distância, ou seja, 20 mil vezes a distância da Terra ao Sol (que é de cerca de 150 milhões de km). A luz do sol demora cerca de 115 dias a chegar a este ponto. É longe.

 

No entanto estamos apenas nos limites do sistema solar e a própria nuvem de Oort extender-se-à por mais umas 30 mil UA, ou seja, 150% da distância até lá chegar. A luz do sol demoraria então nove meses e meio a chegar aos limites do sistema solar. E não chegámos ainda a lado nenhum em especial, ainda falta ir às outras estrelas.

 

O que significa que, perante a ciência conhecida (e não simplesmente imaginada, como no caso de viagens mais rápidas que a luz ou através de buracos negros), qualquer viagem até outras estrelas nunca poderia ser atingida no espaço de uma única vida humana. Nem sequer no espaço de mais vidas humanas. Provavelmente necessitaríamos de várias gerações para chegar a qualquer outro lugar com um mínimo de interesse. E quando esses descobridores lá chegassem, o mais provável seria que não valesse a pena informar ninguém na Terra, uma vez que devido a efeitos relativistícos (alguém de física que os explique melhor) seria bem possível que tivesse passado muito mais tempo na Terra do que aquele que os viajantes tivessem sentido.

 

Isto tudo para me levar à minha conclusão: a Humanidade nunca explorará pessoalmente o espaço para lá dos confins do sistema solar. Mesmo que um dia os nossos descendentes futuros cheguem a fazê-lo, o mais provável é que nessa altura já não sejam humanos como os definimos hoje, como homo sapiens. Terão evoluído naturalmente ou guiados pela tecnologia. O seu sentimento pelo nosso planeta, ao chegar a outro que fosse potencialmente habitável, seria talvez um de misticismo ou mesmo de rejeição. Seria o de seres que olhavam para a Humanidade como aquilo que, à escala do Universo, realmente somos: tão pequenos que não teremos importância.

 

Claro, isto assumindo que a tecnologia nao avança muito mais depressa do que penso. Um dia destes veremos Passos Coelho a inventar a tecnologia warp no intervalo de uma reunião com Merkel e aí logo resolvemos os problemas da Humanidade e, quiçá, dos portugueses (mas continuaremos a não ganhar o mundial).

 

PS - Para quem tenha curiosidade, uma página que representa de forma espectacular o tamanho do sistema solar. Outra que dá uma ideia da escala de tudo.

Os rendimentos e a revolução tecnológica

João André, 21.01.14

A Economist desta semana traz um trabalho sobre o impacto da tecnologia no trabalho e nos rendimentos. O impacto em questão é o do poder dos computadores e da forma como vão tomando conta de tarefas que sempre vimos como sendo do domínio humano. No artigo,e ste impacto é equiparado ao da Revolução Industrial, sendo que a comparação mais comum é com a do desaparecimento dos tecelões em favor dos teares mecânicos.

 

O artigo aborda, do ponto de vista dos trabalhadores, dois aspectos: o primeiro é o desaparecimento (ou pelo menos redução drástica) de alguns postos de trabalho tradicionais; o outro é o impacto desta nova revolução tecnológica nos rendimentos dos trabalhadores. Sobre o segundo ponto, o artigo faz referência à dinâmica da Revolução Industrial, a qual indica que os primeiros ganhos do impacto da tecnologia são favoráveis às pessoas com rendimentos mais elevados, mas que depois os trabalhadores de rendimentos mais baixos tendem a ser favorecidos. Isto faz perfeitamente sentido na lógica que o artigo apresenta: quem tem rendimentos mais elevados são pessoas habitualmente com educação superior e como tal mais capazes de responder de imediato ao novo paradigma. Mais tarde, com a educação das pessoas de rendimentos mais baixos, também estas ganham. Simples e claro.

 

Há, contudo, um aspecto que me parece desprezado e esquecido nesta história. Aquando da Revolução Industrial, os trabalhadores deixaram o campo e migraram em massa para as cidades para poder trabalhar na indústria. Ou seja, saíram de zonas pouco povoadas e mudaram-se para zonas de elevada densidade populacional (e acabaram por a aumentar ainda mais). Dadas as condições miseráveis que estes trabalhadores inicialmente conheceram (salários baixos, insalubridade, sobrelotação, etc), os trabalhadores uniram-se e começaram a criar sindicatos para lutar pelos seus direitos. Isto não será "conversa de comunista", mas um facto histórico. Com o tempo, essa luta (que incluíram naturalmente melhor educação para os trabalhadores) acabou por melhorar as condições dos trabalhadores, nomeadamente os seus salários (o artigo faz uma pequena referência acerca dos movimentos sociais e políticos).

 

E é este o ponto que me parece falhar no artigo da Economist: a melhoria dos rendimentos não adveio apenas e só porque a educação melhorou ou porque faça parte da dinâmica natural de novos paradigmas. Adveio como resultado de um conjunto de circunstâncias, entre as quais a emergência dos sindicatos não foi - de longe - a menor. Ora, no presente caso as coisas provavelmente não se passarão da mesma forma. A tecnologia que permite esta nova revolução também impõe a separação física entre as pessoas. Se a Revolução Industrial colocou os trabalhadores em contacto uns com os outros, esta nova revolução promove essa separação. Seja porque é possível fazer o trabalho a partir de outras localizações, seja porque as empresas promovem a mobilidade, a verdade é que os trabalhadores cada vez passam pouco tempo uns com os outros. O resultado disto é que os laços de amizade, camaradagem ou simples confiança não são estabelecidos.

 

E a verdade é que sem confiança nenhuma luta do tipo sindical terá sucesso. Um trabalhador vê-se essencialmente perante o Dilema do Prisioneiro: sem confiança que os seus colegas tomem parte, terá menos incentivos para lutar por direitos. Os sindicatos poderão beneficiar da tecnologia no que diz respeito ao número de adesões, mas a separação física não ajuda à organização de uma greve (por exemplo, uma vez que continua a ser a principal arma negocial de um sindicato). Sem esta forma de pressão, é improvável que os rendimentos dos trabalhadores beneficiem a prazo, pelo menos ao nível do que se passou após a Revolução Industrial. Certamente que a educação ajudará e não há dúvida que o talento será sempre bem remunerado, mas a esmagadora maioria dos trabalhadores não é talentosa: é simplesmente mediana.

 

O resultado, a meu ver, será um aprofundar do fosso entre ricos e pobres. Poderão existir mecanismos inovadores que os sindicatos (ou seus sucedâneos facebookianos) criem, mas do meu ponto de vista está tudo dependente das relações interpessoais de confiança. Estas, ao invés das tecnologias, dos métodos de trabalho ou das fábricas, não mudam facilmente: existem como resultado de evoluções biológicas e sociais ao longo de muitos séculos e possuem inércia a mais.

Explicação.

Luís M. Jorge, 03.07.11

Aos que julgam que enlouqueci talvez seja útil revelar que a imagem do meu post anterior é um código QR. Os QR codes são decifrados pelas câmaras fotográficas dos telefones móveis inteligentes, após o download de uma aplicação gratuita, e permitem ao utilizador aceder a sites, textos e outros tipos de conteúdos. Aqui está um bom exemplo do uso desta ferramenta.

 

Por motivos vários interessava-me saber qual era a penetração dos QR codes entre o público não especializado, e ontem criei um código em que pedia a quem o decifrasse para me comunicar a idade em caixa de comentários.

 

No Vida Breve, 7 pessoas responderam ao pedido, para cerca de 850 leitores entre a tarde de Sábado e o fim da manhã de Domingo (na verdade menos, porque uma parte foi dirigida por um link externo para um post específico e não foi impactada pelo código). No Delito de Opinião, 2 pessoas participaram.

 

Tratou-se de um teste pouco rigoroso, mas suficiente para percebermos que a penetração dos códigos QR ainda é muito baixa em Portugal. Assim se abalam as certezas de quem diz por aí que os nossos compatriotas são extraordinariamente sensíveis às novas tecnologias. O que é pena, porque me dava jeito que fossem.

Novas tecnologias, problemas antigos

Sérgio de Almeida Correia, 21.03.11

Novas tecnologias com sistemas obsoletos, computadores velhos e falta de capacidade de resposta dos serviços só servem para criar mais problemas, gastar dinheiro, indispor os funcionários e os contribuintes, contribuir para a diminuição da produtividade e fazer figura de rico nas estatísticas.

Aquilo que aconteceu nas últimas eleições presidenciais acontece com irritante regularidade com os sites das Finanças e da Segurança Social, com o Ministério da Educação, de cada vez que há concursos e é necessário apresentar candidaturas, por vezes também com a Justiça e, agora, pelos vistos, com o Censos 2011. Já era tempo destas coisas funcionarem de acordo com a procura que vão tendo. Ou então, se não houver capacidade de resposta, não as promovam.  

O choque tecnológico não é para todos

João Campos, 26.12.10

Este tipo de acções é mais ou menos equivalente a, para combater o tráfico de droga, a polícia prender quem consome, e não quem a vende. Os resultados, esses, são óbvios: a droga continua a circular, pois não é possível prender toda a gente que consome.

A verdade é que a ACAPOR e associações similares ainda não compreenderam muito bem os tempos em que (sobre)vivem. Até podem colocar dez mil processos em tribunal por mês - seria interessante ver a já entupida justiça portuguesa a transbordar. Mas por mais processos que inventem, continuarão a não ser capazes de ver que o seu modelo de negócio pertence ao século passado. Ninguém se desloca ao clube de vídeo quando pode, sem sair do sofá, alugar um vídeo por preços mais baixos no serviço de televisão por cabo. Tal como cada vez mais pessoas deixam de comprar CD de música e optam por serviços como o iTunes. Ou compram os filmes e os discos na Amazon ou noutra loja online, que pratique preços bem mais acessíveis que os balúrdios que cobram por cá. Até as bandas já o perceberam - não é por acaso que qualquer banda tem uma página no MySpace Music onde partilham algumas músicas e se promovem aos fãs. Como não é por acaso que muitas bandas começam por se mostrar na Internet, e depois passam para pequenas editoras independentes.

Quem tem dúvidas de que o futuro da distribuição audiovisual passa pela Internet, devia lembrar-se do famoso "caso Napster", com os Metallica a defenderem o recurso aos tribunais e com bandas como os Offspring e os Smashing Pumpkins a mostrarem as potencialidades da web ao lançarem discos apenas online (no caso da banda de Billy Corgan, o álbum chamava-se até "Friends and Enemies of Modern Music"). O Napster perdeu, na altura, mas a porta que abriu nunca mais se fechou. Ou o sucesso do iTunes, da Apple. Ou do lançamento de "In Rainbows", dos Radiohead, completamente online, ao preço que os fãs quisessem dar pelo álbum.

E talvez o futuro nem passe por modelos como o do iTunes, de downloads a pagar, mas por modelos de streaming, quando a Internet móvel com boa velocidade e capacidade for uma realidade acessível a todos. Já estivemos mais longe. Serviços como o Spotify reúnem cada vez mais utilizadores. É possível que os actuais leitores de mp3 façam companhia às cassetes e aos CD na estante das relíquias num futuro não muito distante. E que a chamada "indústria musical", com as mentalidade de que a notícia mencionada é exemplo, lhes faça companhia.