Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 27.03.23

18159045_k8RA2.jpeg.jpg

Hoje assinala-se O Dia Mundial do Teatro

«Em 1962 celebrou-se pela primeira vez o Dia Mundial do Teatro pelo Instituto Internacional do Teatro. Seis décadas depois, a data continua a ser comemorada, anualmente, a 27 de Março.

Este ano, a mensagem é da autoria do encenador norte--americano Peter Sellars: “O teatro é a criação na terra de um espaço de igualdade entre humanos, deuses, plantas, animais, horas de chuva, lágrimas e regeneração. O espaço de igualdade e audição profunda é iluminado pela beleza escondida, mantida viva numa interacção profunda de perigo, equanimidade, sabedoria, ação e paciência. (...) O teatro é o convite para fazermos este trabalho juntos.”

A arte de representar prosperou em terrenos sagrados na Índia, Egipto, Grécia, China e nas igrejas da Idade Média. Era (e ainda é) o modo pelo qual o homem revelava sentimentos de amor e ódio relacionados com a vida e a morte.

Os principais géneros dramáticos são a tragédia, nascida na Grécia; a comédia, que representa os ridículos da humanidade; a tragicomédia e o drama, que pode ser também melodrama quando acompanhado de música.»

 

Quando eu era nova, havia uma cultura de "ir ao teatro" muito superior à de "ir ao cinema", ver fitas que não nacionais. Convenhamos que nunca por cá vi filmes dobrados e com a legendagem a não permitir uma leitura eficaz, não era fácil entender sem "tradução". A minha avó adorava cinema, mas tinha de ir sempre acompanhada com alguém que lhe lesse as legendas, o que para ela era um embaraço, por isso preferia o teatro. Tínhamos sempre teatro no Monumental, na Trindade, no Villaret, no Vasco Santana, entre outros, e teatro revistas no Parque Mayer. Destes tenho memória de ver produções antes do 25 de Abril. Depois muitos encerraram e outros foram fundados. É importante referir que a RTP passava a Noite de Teatro com periodicidade regular. Creio que, a seguir ao Cartaz TV,  era um dos programas mais vistos. Lembro-me como se fosse hoje de ver Frei Luís de Sousa e O Auto da Barca do Inferno, que contribuiu com várias expressões para a gíria popular.

 

not-27.jpg

Hoje é O Dia Nacional do Dador de Sangue

«Embora em Portugal este dia se assinale hoje, o Dia Mundial do Dador de Sangue é assinalado a 14 de Junho, por iniciativa da Organização Mundial de Saúde.

O sangue salva todos os dias, em todo o mundo, milhões de vidas e melhora a saúde e a qualidade de vida de muitos doentes.

Este ano há apelos renovados para que mais pessoas dêem sangue regularmente. Fundamental é o papel dos jovens, sendo este grupo populacional, cheio de idealismo, entusiasmo e criatividade, extremamente importante para a obtenção de sangue seguro.»

 

"Dar sangue é dar vida." Este era um slogan que passava muito na TV. Deixou de passar. Provavelmente agora dá-se vida de um modo diferente. Pela parte que me toca, na altura em que dar sangue era fundamental,  ajudei a dar vida. Agora devo estar seguramente na fase do sangue em pó.

(Imagens Google)

Lembrei-me de Gil Vicente

Paulo Sousa, 24.01.23

O Salão Paroquial da minha terra foi inaugurado há mais de 80 anos. Muito antes de alguém ter inventado a expressão multiusos, já o conceito ali funcionava há muito. O teatro foi sempre uma das principais actividades desenvolvidas e desde há várias gerações que as grandes noites de teatro fazem parte da nossa memória colectiva.

SalaoParoquial.JPG

Foto Fernanda Horta

Soube pelos mais antigos que numa certa noite de estreia, com casa cheia, durante a peça um actor empurrou um punhal de lâmina retráctil contra o abdómen de outro que, tal e qual como se tivesse sido mesmo esfaqueado, soltou um grito agoniante e, com as roupas sujas de sangue fresco, caiu no palco. Uma das faces do punhal estava limpa e a outra suja de vermelho. A face visível quando o punhal avança é a limpa e o actor que faz de assassino roda o punhal quando o encosta à barriga da vítima, de forma que no movimento seguinte o público a veja ensanguentada. E nem actores profissionais poderiam emprestar mais realidade àquela sequência. Todos os olhos da plateia estão esbugalhados, o silêncio é total e o espírito dos mais simples e susceptíveis, até transtornado.

Numa cena posterior, o assassino é acusado do crime e, com toda a convicção nega que alguma vez o tivesse feito.

Se até aqui isto poderia ser um relato de uma peça de teatro amador, numa aldeia no longínquo Portugal dos anos 60, o que aconteceu em seguida fez com que durante muitos anos depois, todo o episódio fosse contado e recontado, com umas gargalhadas pelo meio.

Na senda de muitos relatos escutados por aí, o Zeca das Cabras já tinha decidido que da próxima vez que houvesse teatro, teria de gastar uns cobres e lá ir ver como é que isso era afinal. Depois de uma lavagem de cara e de mãos, e da troca das botas com que pastorava o seu gado, o Zeca ali estava, no lado direito da plateia, o último de uma fila de cadeiras. Quando assistiu àquele “crime”, quem estava ao seu lado na plateia reparou que, no momento da facada, ele levantou-se num reflexo empurrando para trás a cadeira com a contracurva dos joelhos. Após o choque inicial, todo ele, muito direito, e tenso, com os braços esticados e com os punhos cerrados a apontar para o chão, ficou a olhar para a restante plateia, incrédulo com o que tinha visto, e acima de tudo com o silêncio dos demais. Como é que podia toda a gente ali estar impávida e serena depois de terem assistido ao filho do moleiro a dar uma facada ao Fanan?

Os minutos seguintes passou-os de pé com as omoplatas encostadas à parede, enquanto varria com o olhar, ora a plateia, ora o palco.

Quando o Zeca ouviu o filho do moleiro a negar aquilo que tinha acontecido à vista de todos, ele não se conteve mais e teve de usar da palavra. Usar da palavra é pouco para o berreiro que se seguiu. O Zeca abriu as goelas e, de dedo em riste, desmascarou-o ali mesmo. Não irei recriar o diálogo porque aquilo que sei já foi filtrado por muitas versões ouvidas e recontadas, além de que envolveu algum vernáculo pesado. Parte do que foi dito foi dirigido ao público. Como é que a polis, a comunidade, poderia ficar indiferente perante um crime de sangue? Incrédulo e revoltado, a todos desmascarou, e o filho do moleiro ficou logo ali avisado que quando se encontrassem na rua, iria ter de se entender com ele.

Várias pessoas tentaram acalmar o Zeca, explicando-lhe que aquilo era tudo a fingir, que o filho do moleiro não era assassino e que o Fanan depois da peça viria cá fora conversar com ele e ainda lhe pagava um copo de vinho na tasca que ficava a poucas casas de distância do Salão Paroquial. E assim lá se acalmou o Zeca.

Aos olhos de hoje, na terceira década do século XXI, podemo-nos rir da inocência e da simplicidade do Zeca das Cabras, que não entendeu que o que se passa no palco é tudo uma representação. Essa é a essência das arte cénicas, do Teatro e do Cinema. Ali conta-se uma história, dá-se corpo às personagens a quem os actores apenas emprestam a voz, a imagem, os movimentos e, se forem mesmo bons, até os sentimentos.

Recordei-me deste episódio por ocasião do assunto que anda por aí aos saltos e até já foi aqui trazido pelo nosso colega JPT.

Parece que a actriz e performer travesti Keyla Brasil conquistou os seus minutos de fama quando interrompeu uma peça de teatro, acusando o actor de ser um transfake, uma vez que sendo cisgénero representava ali alguém que era transexual.

Sendo levada a sério, esta linha de raciocínio condenará irremediavelmente o Teatro. Poderia alguma vez Chaplin dar corpo ao Grande Ditador sem que estivesse à frente de um regime autoritário? Onde se poderão recrutar actrizes para a cena inicial das três bruxas em Macbeth? Apenas no governo de António Costa? E quem poderá representar Macbeth? Apenas um assassino? Esta obra de Shakespeare só poderá ser representada durante uma saída precária de um condenado, ou será necessário recorrer à colaboração do Ministério Público? E como é que mais alguma vez se irá arranjar quem queira dar corpo ao Romeu e Julieta? Angariam-se interessados na linha SOS Suicídio? Quem é que poderá ter o papel principal na peça do Fantasma da Ópera? E em Édipo Rei? Terá o actor de ser recrutado no sofá de um psicanalista?

É certo que, mesmo conseguindo arrancar umas palmas, não serão estes palermas que irão ditar o fim desta arte maior, mas todos eles, e nos mesmos rigorosos critérios que agora defendem, reúnem condições para representar o mítico personagem do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, o Joane, o parvo.

 

PS: Os nomes dos envolvidos no episódio passado no Salão Paroquial são fictícios.

Falsidade

jpt, 22.01.23

jokerfilm960.jpg

 

(JOKER Final Trailer)

Só ontem vi este "Joker", filme já de 2019, com realização de Todd Philips e argumento dele próprio e de Scott Silver, o qual foi na época bastante elogiado, tendo ganho o prestigiado prémio Leão de Ouro no Festival de Veneza. E que lhe valeu os celebrados prémios Óscar para melhor argumento e para melhor actor. Não pude deixar de me indignar com o que ali vi. Pois a trama do filme centra-se na vida de Arthur Fleck, um doente mental que ambiciona tornar-se comediante e cujo rumo delirante o tornará um assassino. Ora a convulsa personagem está a cargo do actor Joaquin Phoenix - o qual, repito, ganhou o Oscar desse ano devido a esta actuação. Acontece que se consultada a biografia de Joaquin Phoenix poder-se-á constatar que o actor não tem essa condição psicológica, não lhe sendo conhecidos distúrbios mentais graves nem tendências homicidas. É assim uma falsidade o que a indústria fílmica norte-americana, "Hollywood", nos apresenta, pois é inaceitável que este actor possa representar os indivíduos que apresentam essas condições - os quais, ainda por cima, são em quase todas as áreas profissionais francamente desvalorizados. Um verdadeiro caso de "crazyfake"...

É certo que no mundo do espectáculo nem tudo é assim tão mau. Hoje mesmo assisti ao filme "O Comediante", no qual o actor Robert de Niro pertinentemente interpreta um actor, papel para o qual não lhe falta legitimidade social. E até por cá as coisas vão melhorando, como se vê no recente caso do teatro municipal S, Luiz, no qual a inaceitável apropriação de um papel de uma personagem transexual por actor heterossexual (um ilegímo caso de "transfake") foi já revertida pela iluminada direcção após justificados protestos públicos. O caminho faz-se caminhando - ainda que citando eu António Machado seja também uma apropriação indevida, um verdadeiro caso de "writerfake"...

Um café (sem uísque)

jpt, 15.11.21

41419_63754_76043.jpg

O José Navarro de Andrade (nosso bloguista no Delito de Opinião e meu [e não só] co-bloguista no sportinguista És a Nossa Fé) estreou a semana passada o seu programa de entrevistas "Vamos Beber Um Café..." - que passa na RTP2 mas pode ser visto ad aeternum na RTP Play. O Navarro tem a coisa (muito) boa de ser um entrevistador que interpela os seus entrevistados, assim evitando a conversa mole e as proclamações autorais, até pomposas (estas muito em especial habituais nos consagrados). Vi durante este fim-de-semana o primeiro programa: tem uma entrevista muito interessante com a escritora Djaimilia Pereira de Almeida (que acaba de publicar o romance "Maremoto"), a qual nunca li mas que decerto irei ler depois de a ver aqui. Pois é uma entrevistada como deve ser, sem poses, sem "atitudes", e cheia de pertinência e entusiasmo a falar do seu livro e da sua escrita. Segue-se uma entrevista com o escritor Jaime Rocha, a propósito da sua peça versão da "Filoctetes" de Sófocles - e de repente um tipo pode ver uma interessante e animada conversa sobre tragédia grega e sua refracção actual. Coisa rara e preciosa nos tempos actuais.

Deixo as entrevistas para quem tenha vagar...

(Vamos Beber Um Café..., episódio 1: entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida)

(Vamos Beber Um Café..., episódio 1: entrevista a Jaime Rocha)

A culpa foi do Bill Clinton

Pedro Correia, 06.02.19

3600[1].jpg

Alan Arkin e Michael Douglas em O Método Kominsky

 

É o regresso em grande estilo de Michael Douglas à televisão – o meio que o tornou célebre junto do grande público, na década de 70, com uma série de âmbito policial que deixou rasto: As Ruas de São Francisco, contracenando com o grande Karl Malden, intérprete de Um Eléctrico Chamado Desejo no palco e na tela.

O filho de Kirk Douglas – lenda viva do cinema, com 102 anos – surge agora como produtor executivo e principal intéprete da novidade mais original desta temporada televisiva: O Método Kominsky, mini-série de oito episódios, cada qual com cerca de meia hora de duração, em exibição exclusiva para os assinantes da Netflix.

Aqui não há perseguições de automóveis, cenas de tiros ou piadas escatológicas: estamos precisamente na margem oposta à que conduz ao consumo de pipocas em larga escala. O Método Kominsky vive de inteligentes e subtis modulações de texto em torno da velhice e da decadência física a ela associada, numa linha de fronteira ténue entre o drama e a comédia sem nunca excluir a ironia – incluindo a depreciação auto-irónica do protagonista, que alude a todo o momento aos achaques da idade.

 

Douglas (74 anos) e o veteraníssimo Alan Arkin (84 anos), galardoado com um Óscar em 2007 pelo seu desempenho na irresistível comédia Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos, compõem um fabuloso par de resistentes à nova vaga das produções em série de Hollywood, bem espelhada na letra e no espírito da série. O primeiro, Sandy Kominsky, já foi actor renomado, agora ganha a vida como professor de teatro; o segundo, Norman Newlander, é um produtor à moda antiga, inadaptado às tendências actuais – incluindo a febre tecnológica. São os melhores amigos um do outro, embora com feitios e hábitos muito diferentes e a convicção de que os melhores tempos da arte de representar nos EUA e da própria sociedade norte-americana já ficaram há muito para trás.

«A culpa é do Bill Clinton. Quando o sexo oral deixou de ser sexo, a nossa civilização acabou», conclui um deles. O outro concorda.

 

Estreada em Novembro e polvilhada de divertidas aparições de vedetas convidadas (Jay Leno, Patti LaBelle, Danny de Vito, Ann-Margret, Elliott Gould), esta série concebida pelo conceituado produtor e argumentista Chuck Lorre vive sobretudo de excelentes diálogos. Segue um exemplo.

Norman, viúvo recente, conversa ao telefone com o amigo.

«- Já está. Almocei com outra mulher.

- Seu sacana! De que falaram?

- Do costume. Mulheres mortas, maridos mortos, amigos mortos. Foi muito agradável.»

Fala-se de coisas frívolas com ar sério, fala-se de coisas sérias com um sorriso nostálgico naqueles rostos que já viram quase tudo. Mas a vontade de passar o testemunho às gerações mais jovens não se extinguiu. Como ensina o professor Kominsky nas suas aulas, «devem sempre prestar atenção ao que se passa na vossa vida para viverem os sentimentos que surgirem, por mais dolorosos que sejam, pois esse desgosto, essa dor impiedosa, é matéria em bruto, é o ouro que o actor explora para criar os melhores desempenhos.»

A representação é uma extensão da vida – em qualquer idade. Não é segredo para Michael Douglas: seria difícil dizer melhor.

 

.............................................................

O Método Kominsky, primeira temporada (2018). Com Michael Douglas, Alan Arkin, Nancy Travis, Sarah Baker. Na Netflix.

Cada temporada tem oito episódios.

Imperdível Porque é Extraordinário

Francisca Prieto, 14.01.18

Regresso ao teatro com a comoção de quem regressa a casa. Deixo-me embalar no ritmo de um bom texto, divirto-me com os pormenores de encenação, com a forma como a tela vazia do palco se vai pincelando em jogos de movimento, em marcações, em soluções improvisadas. E penso sempre nos actores, nas pessoas que estão por detrás das histórias, que fazem aquele trabalho porque não lhes faz sentido estar na vida a fazer outra coisa.

ACTORES, em cena no São Luiz, é uma celebração a tudo isto. Uma peça tão bem montada que dá vontade de continuar a ver mesmo depois do pano cair.

A sério. A não perder.

Até 28 de Janeiro, de quarta a domingo.

 

Actores.png

Do Que É Imperdível

Francisca Prieto, 06.12.17

Quando vamos ver um espectáculo e saimos de lá divertidos, emocionados, surpreendidos, sabemos lá. Quando temos vontade de dizer a toda a gente que não percam, que vão a correr comprar bilhetes, que gritem por uma sessão extra. É isso.
Teatro Trindade. Encenação de Beatriz Batarda e Marco Martins. Só mais este fim de semana. Imperdível.

 

teatro.jpg

 

quantas horas faltam para ir trabalhar?

Patrícia Reis, 23.03.14

O mais velho tem um guião para escrever, é bom, é dramático, dependerá dos actores e isso complica a coisa. O mais novo sabe O Auto da Barca do Inferno de trás para a frente e ainda os Lusíadas, estando para sempre agradecido a Vasco Graça Moura. O meu marido vê a bola. O Tango and Cash está a passar na televisão - mãe, quantas vezes é que já visto isso que é uma treta? -, não me dei ao trabalho de explicar. A casa vai entrar em obras, está a desfazer-se, vamos mudar para a casa ao lado, de um t4 para um t0, vai ser giro:) O resto da semana tratará mais notícias destas, boas e más, feitas de pedaços de palavras dos outros, acções desconhecidas e o planeta continua a caminhar. Aproveito para voltar a Antonio Tabucchi, depois de ter enchido a alma com O Enredo Conjugal de Jeffrey Eugenides (sim, o mesmo autor de Virgens Suicidas e do extraordinário Middlesex). Ah, os livros. Uma salvação. Lá se vai o Tango. Cash não temos.

Uma noite no Teatro

João André, 12.03.14

Há um par de meses fiz algo que há muito não fazia: fui ao teatro. Infelizmente há poucas oportunidades nas zonas onde tenho vivido para ir ao teatro e as poucas que têm existido têm-me, de uma forma ou de outra - frequentemente por culpa própria - escapado. Fui então ao teatro, dizia, ver O Misantropo, de Molière. Conhecia a história mas nunca tinha assistido a nada de Molière. A encenação pretendia-se moderna, com a acção a ter lugar nos nossos tempos e com adaptação das personagens aos estereótipos actuais. O grande senão da coisa (para mim): eu não falo a língua usada na peça.

 

Não deixa de ser curioso: depois de tanto tempo com possibilidade - mesmo que esporádica - de assistir a peças em línguas que domino suficientemente (alemão ou holandês), acabei a ver uma peça numa língua da qual vou entendendo pedaços mas sem a conseguir acompanhar (servo-croata). Foi no entanto um capricho: queria ver teatro, algo que há muito não fazia. Quis ver uma peça mais clássica, com uma acção simples, sem experimentalismos que me obrigassem a revolver a cabeça em busca do simbolismo utilizado.

 

O resultado foi extremamente agradável. A representação foi suficientemente boa - especialmente as personagens de Alceste, Célimène e Oronte - para seguir a acção sem entender o texto. A encenação, usando portas japonesas para separar as divisões e actualizando as personagens como políticos, homens de negócio e artistas e introduzindo habilmente telemóveis e internet para fazer avançar a acção. Contaram-me depois que a tradução foi também actualizada, introduzindo referências a factos modernos (com fait-divers recentes a serem usados) e colocando alguns termos e expressões mais modernos, os quais tiveram um impacto algo misto (alguns foram bem recebidos mas outros vistos como desadequados).

 

Foi a minha experiência do género e confesso que a recomendo. Convém naturalmente que se assista a uma peça cuja história seja conhecida, de forma a que não nos percamos, mas a falta de compreensão das palavras permite que nos detenhamos na linguagem corporal, nos tons de voz, na interacção entre as personagens e na encenação e cenografia. É algo de diferente e, em certos momentos, é uma experiência mais rica que o habitual. Não algo para repetir frequentemente, mas servirá para refrescar de tempos a tempos.

Representar

Ana Vidal, 16.03.12

Esta foi uma semana de emoções fortes para quem, como eu, vibra com uma boa representação no Teatro ou no Cinema. Três mulheres de personalidade forte, três excelentes actrizes, três difíceis papéis. Tudo isto me foi dado saborear em poucos dias e me encheu a alma.

 

 

Sobre Meryl Streep e a sua inesquecível Margaret Thatcher, já quase tudo foi dito. Não tenho muito a acrescentar, a não ser a minha eterna reverência perante aquele grau de perfeição na arte de representar. Ou melhor, aquilo já não é representar. Aquilo é desabitar-se até ao âmago, mudar de pele como se fosse uma coisa natural, diluir-se num outro ser até que ele se torne vida e sangue e respiração e essência. Há outros actores tão bons como ela? Talvez alguns, os dedos de uma mão. Mas não creio que haja um único que a ultrapasse.

 

 

Seguiu-se a prata da casa: Maria do Céu Guerra. Prata, não: ouro. Ouro puro em cima de um palco, sem artifícios nem qualquer distracção que nos faça tirar os olhos e os ouvidos dela, abismados pela força daquela mulher. Um monólogo à medida de uma grande actriz: a rainha D. Maria I e a sua loucura delirante, instável, confinada à exiguidade de um barco, numa viagem feita de tormentas de toda a ordem a caminho da sepultura em solo desconhecido. Um belo texto do brasileiro Antônio Cunha, desfiando dois reinados e uma das épocas mais atribuladas da nossa História. Fixei uma frase, das muitas que a rainha louca nos serviu: "A loucura não é uma porta que se fecha, são muitas janelas que se abrem. O pior é que se abrem todas ao mesmo tempo". Enfim, uma peça que se pode ver ainda n'A Barraca, mas já só às quartas-feiras. Vale a pena.

 

 

Por fim, atraída pela memória de Mathilde em "La femme d'à côté" (quem poderá esquecer a magnífica Fanny Ardant nesse papel?) corri a vê-la e a ouvi-la ao vivo na pele de Joana d'Arc, numa passagem fugaz - só dois espectáculos, ontem e hoje - pela Gulbenkian. Continua elegante e sensual, com uma capacidade de interpretação invulgar, bem expressa nesta Oratória de Arthur Honegger em que era a principal narradora. Mas afinal as suspresas vieram de onde eu menos esperava: a beleza do auditório, aberto por uma parede de vidro e com os jardins iluminados em fundo de palco; a originalidade da peça musical, que eu não conhecia e de que gostei imenso; a qualidade do Coro da Gulbenkian, irrepreensível numa actuação muito exigente; o verdadeiro bailado que a maestrina autraliana Simone Yang executa enquanto conduz. Tudo isto me encantou, mas... por muito que eu admire Fanny Ardant e tenha sido emocionante vê-la em palco, não acho que a escolha para encarnar a adolescente mártir tenha sido a melhor: a personagem exigia uma voz fresca e inocente que os 62 anos da actriz, embora magníficos, há muito trocaram por uma vida bem vivida.

Pode alguém não ser o que é?

Pedro Correia, 01.03.12

 

A propósito da prisão de uma jovem portuguesa em Espanha, por tráfico de droga, leio várias notícias na imprensa portuguesa que a identificam como "ex-actriz". E ponho-me a pensar: o que será uma "ex-actriz"? Alguém que abandonou a profissão? Mas ser actriz, julgo eu, não é propriamente profissão - é vocação. Pode estar-se desempregado, sem actividade temporária nos palcos ou nos estúdios, e essa designação mantém-se como senha de identidade. A propósito, lembro-me de Shirley Temple. Ainda criança, na década de 30, foi uma das celebridades do cinema à escala planetária. Ao tornar-se adulta, perdeu a fotogenia e a graça inocente que a projectara para a capa de todas as revistas ilustradas. Estudou, constituiu família, envolveu-se em actividades políticas, tornou-se embaixadora de carreira com o apelido Black. Mas jamais deixou de ser a Shirley Temple do tempo dos nossos avós, a primeira e a mais inconfundível das inúmeras estrelas da 20th Century Fox. Nunca foi ex-actriz. Por mais que o destino a tivesse afastado dos plateaus cinematográficos. 

Actriz uma vez, actriz para sempre. De algum modo como um médico, que não se limita a exercer uma profissão: há nele um carácter de missão irrevogável. O mesmo se dirá de um jornalista. Ou de um escritor. Haverá "ex-escritores" ou "ex-pintores"? Julgo que não. Um poeta, por exemplo, só é "ex" quando morre. E mesmo assim as suas estrofes podem sobreviver-lhe, enternecendo gerações que nunca conheceram fisicamente quem as concebeu.

«Nunca penso na minha carreira. É uma palavra que não uso quando reflicto sobe o meu trabalho», declarou justamente, em recente entrevista ao El Mundo, Michelle Williams, galardoada com o Globo de Ouro para melhor actriz de comédia pelo seu desempenho no filme Uma Semana com Marilyn. Um actor tem como missão - muito mais do que profissão - seduzir os outros pela palavra, pelo gesto, pela entoação. Às vezes pelo silêncio, que também constitui uma poderosa arma de sedução. Podemos demitir-nos de um cargo, jamais conseguiremos demitir-nos da nossa vocação. É por isso que jamais me passaria pela cabeça chamar "ex-actriz" a alguém. Mesmo a uma jovem condenada a prisão em Espanha por tráfico de droga.

Dentro do tempo, o que é que vales exactamente?

Fernando Sousa, 01.02.11


Dentro de uns anos – e não passarão muitos – alguém fará de nós um número, um fantasma, o que quer que seja, condescerá de que fomos importantes sem saber provavelmente em quê, para uma mudança que também não se saberá em que é que deu. Esgravatar no tema pode ser no entanto um bom exercício sobre o valor do efémero antes de passarmos à arqueologia. Vamos ver o que é que Impressões, que vai estrear na Malaposta, tem para nos dizer sobre isso, para além do sangue que sempre correu desde que o homem fez de si mesmo o pior sócio. Porque pelo meio também terá havido momentos bons, digo eu, dentro, sei lá, de um valor cósmico qualquer, raios! Confesso que estou curioso.