Livros: dez sugestões de Natal
A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (Tinta da China). Escreve com a elegante desenvoltura de muito poucos, utilizando a língua portuguesa com talento e requinte. O mineiro Ruy Castro, carioca do coração, ensina a escrever biografias. É algo que o leitor possa aprender? O irónico subtítulo "ciência e arte da biografia" basta para suscitar sérias dúvidas. Mas aqui o essencial é aquilo que o autor nos narra, a pretexto de revisitar os livros que foi publicando - com destaque para histórias ligadas às vidas de Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, João Gilberto e outros gigantes da cultura, do espectáculo e do desporto brasileiro. Mundo de algum modo nosso também.
ABRIL EM NOVEMBRO, de Rui Salvada (Lisbon Press). Quase meio século depois, a Revolução dos Cravos lembrada por quem a fez. Exemplo de história com fontes directas, que participaram nos acontecimentos e ainda cá estão para nos contar. Com factos, não com mitos. Homens que foram à guerra e depois lhe puseram fim. Como o coronel Luís Oliveira Pimentel, em 1974 capitão de Infantaria: «O 25 de Abril teve dois grandes motivos, o primeiro foi a ultrapassagem dos oficiais do quadro permanente que ficavam ali parados (...) e o segundo foi o reforço da convicção de que fazer a guerra não levava a lado nenhum.» Também se fala do 11 de Março e do 25 de Novembro de 1975.
O DEVER DE DESLUMBRAR, de Fillipa Martins (Contraponto). Em ano de centenário, Natália Correia (1923-1993) foi lembrada até na Assembleia da República, onde esteve como deputada - primeiro do PSD, depois do efémero PRD. Esta extensa biografia desvenda-nos muito sobre a vulcânica escritora açoriana que a seu modo, bem peculiar, lutou pela liberdade antes e depois de 1974. Filipa Martins já tinha recordado a autora de Não Percas a Rosa ao escrever o argumento da excelente série Três Mulheres, exibida na RTP. Aqui vai mais longe, evidenciando muito do brilho da biografada sem ocultar várias sombras de quem escreveu «Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»
TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (Guerra & Paz). Um dos melhores livros publicados sobre a dita "cultura do cancelamento" que vem anulando a liberdade de expressão em muitos países europeus. Vaga iniciada nos EUA a pretexto de justas causas, como a do feminismo com marca #MeToo ou do anti-racismo após o homicídio do negro George Floyd por um polícia branco em Minneapolis. «Uma das principais armas das guerras culturais do século XXI é precisamente o cancelamento: a obliteração do interlocutor, a mordaça digital. Na realidade virtual, o linchamento é electrónico», alerta Paulo Nogueira, escritor e cronista brasileiro que viveu 25 anos em Portugal.
PARA QUE SERVE O PCP?, de Adelino Cunha (Saída de Emergência). Prestes a sofrer talvez o seu pior resultado eleitoral de sempre, o Partido Comunista Português é aqui analisado por um historiador que se especializou nesta área e já publicou obras marcantes, como a biografia do injustiçado Júlio Fogaça, destituído por Álvaro Cunhal no comando do partido durante o salazarismo. Aqui se fala dos anos de fundação do PCP, desde as raízes anarco-sindicalistas à imposição do marxismo-leninisto - "bolchevização", para usar um vocábulo muito em uso naquela época. Com o primeiro secretário-geral (Carlos Rates) acabando a defender Salazar na União Nacional. Tempos que já não voltam.
ANTES QUE ME ESQUEÇA, de Francisco Seixas da Costa (D. Quixote). Memórias de um embaixador que serviu Portugal em Nova Iorque, Brasília e Paris já no topo da carreira. Memórias originais, com base na escrita algo anárquica do blogue Duas ou Três Coisas, que por cá sempre acompanhámos com atenção. É de política que aqui se fala, com vasta gama de protagonistas, portugueses e estrangeiros. Viajamos aos mais diversos locais do globo - da Líbia ao Turquemenistão, sem nunca esquecer Angola. Com múltiplas notas do quotidiano entre 2009 e 2022, além de constantes alusões a décadas mais recuadas. Quase um diário, quase um romance, verdadeiramente inclassificável. Dá gosto ler.
A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (Zigurate). Homicida contumaz, um dos maiores tiranos que o mundo já conheceu, Estaline era também leitor compulsivo. Tinha uma vasta biblioteca, cheia de livros de história e filosofia. Com Marx e Lenine em lugar privilegiado, mas sem faltarem clássicos russos: romance, teatro e poesia destacavam-se igualmente nas suas estantes. Enquanto lia, fazia anotações nos livros. Durante longos anos, o historiador irlandês foi investigando e desvenda-nos aqui um ditador na intimidade - leitor até de Oscar Wilde e Walt Whitman, de quem ele citava este verso: «Estamos vivos. O nosso sangue escarlate ferve com o fogo da força por usar.»
LIDERANÇA, de Henry Kissinger (D. Quixote). Falecido muito recentemente, já centenário, Henry Kissinger foi académico de prestígio antes de mergulhar a fundo na política, como secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford na década de 70. Judeu nascido em 1923 na Alemanha, emigrado aos 15 anos nos EUA, nunca perdeu o cerrado sotaque germânico. Neste livro-testamento lega-nos seis ensaios sobre estadistas que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Nixon, Anwar Sadate, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher. Estudos de valor desigual, mas todos ajudam a reflectir sobre o exercício do poder. Só o fascinante retrato do general De Gaulle já valeria a obra.
A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (Guerra & Paz). Um dos melhores livros sobre os actuais ditames da correcção política, transformada em moda demencial. Impondo severas censuras um pouco por toda a parte deste mundo a que nos habituámos a considerar livre. A liberdade de outrora tornou-se vigiada. Os exemplos abundam, sobretudo nos meios universitários, aqui dissecados com minúcia e sarcasmo. "A Religião Woke", com o seu cortejo de dogmas, abala até os próprios fundamentos do conhecimento científico. Decreta novos comportamentos, nova linguagem e até novo pensamento. Resultado: sabedoria em regressão e um catálogo de tabus cada vez mais vasto.
RÚSSIA - REVOLUÇÃO E GUERRA CIVIL 1917-1921, de Anthony Beevor (Bertrand). Um clássico instantâneo que nos faz viajar ao estertor da monarquia russa, à fugaz revolução democrática de Fevereiro de 1917 e à posterior insurreição vermelha liderada por Lenine que anunciava ventos de liberdade mas instaurou o mais longo despotismo do século XX. O "primeiro Estado proletário da história" viria a mergulhar os povos da emergente União Soviética num inverno totalitário que parecia não ter fim. Beever, prestigiado historiador britânico especializado em temas militares, guia-nos ao jeito de um thriller neste trilho que não desvenda só o passado: serve também de sério aviso para o futuro.