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Delito de Opinião

O fim dos fundos*

José Meireles Graça, 14.10.22

O caso Ana Abrunhosa já arrefeceu e não admira – todos as semanas há uma historieta suspeita nova em que o dinheiro do contribuinte leva os tratos de polé inevitáveis quando a opinião pública julga que o dinheiro do Estado não é o dele. Há dias a escandaleira foi o caso dos 50 BMWs que a TAP nacionalizada nossa queria alugar para benefício da administração e de directores, rasgo empresarial entretanto pateticamente revertido.

São casos diferentes: no primeiro há uma evidente iniciativa oportunista para apanhar o comboio dos fundos; no segundo uma medida corrente de gestão para engordar salários de forma menos fiscalmente penalizadora, surpreendente na medida em que a quantidade de administradores e directores é aparentemente prodigiosa, além de, dada a condição de empresa falida, não se perceber a prodigalidade. Ambas são consequência do Estado predador e socialista, no primeiro caso porque se toma como aceitável que agências governamentais decidam que empresários devem ser abençoados com dádivas e favores, no segundo porque há muito que, à boleia do suposto interesse nacional de uma transportadora de bandeira, se enterraram incontáveis (ou contáveis: a conta, parece, já vai em 3,2 mil milhões) verbas numa empresa gerida tradicionalmente por gurus do asneirol. A solução provavelmente meritória que o governo Passos Coelho tinha engendrado foi revertida pelo actual, um crime impune e, se aceitarmos como natural e filho de pais anónimos o nível de prejuízos acumulados, então o pormenor dos BMWs é apenas cómico.

Deixemos o caso TAP, e vamos ao bem mais grave dos subsídios.

No meu percurso como industrial tive processos aprovados e reprovados, e não é impossível que, em a ocasião o recomendando, venha a apresentar novas candidaturas. Sei portanto duas ou três coisas sobre o assunto.

A primeira é que jamais uma agência aprovou um bom investimento por o ser: quem isso decide é o mercado e o mérito do gestor e da organização, e a antecipação da reacção dele não está ao alcance das luzes dos técnicos, que se limitam a avaliar o mérito da candidatura em si, isto é, a sua adequação teórica aos fins que o poder político pretende atingir com o espargir de fundos. Estes fins não são sempre os mesmos, cada novo programa pretende corresponder à visão que um economista, ou um grupo deles, tem do que deve ser um futuro róseo, e por isso ou privilegia a criação de postos de trabalho, ou a substituição de importações, ou o aumento de exportações, ou a criação de marcas, ou o fomento da formação profissional ou da inovação e criatividade, ou a promoção da igualdade entre sexos (que no linguajar de várias seitas se designa por igualdade de género), ou a defesa do ambiente, ou parte destas e ainda de muitas outras coisas, sem esquecer um par de botas.

A segunda é que jamais se tem conhecimento dos motivos reais pelos quais a candidatura xis foi aprovada e a ípsilon não, salvo a remissão para uma frase qualquer, ou um conjunto delas, significando nada.

A terceira é que nunca são feitos estudos avaliando convincentemente o mérito, pelos resultados ao fim de um certo número de anos, dos projectos aprovados. Não é que tais estudos fossem de grande utilidade: o estudo sério, isto é, a comparação entre o benefício para o país do investimento induzido pela munificência estatal para certas empresas, e o que resultaria de apoios transversais traduzidos por uma fiscalidade que não fosse predatória, e de legislação que não peasse a liberdade de gestão – não pode ser feito porque a segunda hipótese não existe.

Quem, de visita a uma casa, vir um rato que se passeia na sala de estar, deduzirá, se for burro, que aquela casa tem um rato; e, se for sensato, que tem ratos. Com a corrupção é igual: desde que a mecânica infernal dos subsídios foi criada, isto é, desde a adesão à CEE, sobe ao proscénio volta e meia um caso que é, ou parece, de corrupção. Há quem julgue que dos 130 mil milhões de Euros que desde então já aqui aportaram, sob a forma de dádiva, os casos conhecidos, uma pitança escassa, são os que houve. Quem isso entende não pode ter opiniões sentado porque o par de asas que tem nas costas o atrapalha. Que haja milhões que podem ser dados ou negados por decisões administrativas e que esse processo possa ser, mesmo remotamente, transparente, requer fé – socialista. E esta é a quarta coisa.

(Se isto é assim, por que razão recorri, e encaro a hipótese de recorrer, a apoios? É porque a missão do empresário não é ser reformador social, mas sim fazer o que pode com os recursos que existem, para satisfazer o que o mercado pede da forma que melhor garanta o resultado da empresa. Se amanhã os poderes públicos decidirem que os apoios só serão dados a quem evidencie capacidade para fazer o pino, o ginásio local da variedade Pilates terá ganho um novo cliente.)

E então, o caso Abrunhosa, que é o motivo deste texto? Pelo que li na imprensa, e outro conhecimento não tenho, é um caso com indícios de corrupção, da variedade que é impossível de provar. Mas o argumento da chorosa ministra de que seria absurdo penalizar os familiares de governantes, negando-lhes apoios unicamente em razão dos seus laços, por ser uma inadmissível discriminação, é bom. E a correcção da obscuridade da lei, referida num parecer da PGR, é uma falsa solução porque não há nenhuma, absolutamente nenhuma, forma de garantir que as decisões inquinadas de favor não são possíveis. É um erro clássico: sempre que há casos, ou suspeitas, alteram-se os procedimentos, tornando-os mais burocráticos; e inventam-se maneiras de curto-circuitar moscambilhas. O que serve apenas para induzir a adopção de procedimentos que contornem os obstáculos. O incentivo para lançar mão de dinheiro sem dono é demasiado grande, a sociedade pobreta, o funcionário mal pago, o empresário imaginativo e a tradição cultural uma de corrupção – Portugal não é calvinista.

Solução? Acabar com os subsídios: o Estado não sabe quais são as empresas, e os projectos, que têm e não futuro; quem são os bons empresários; o que são boas práticas de gestão; e qual, da enorme panóplia de visões dos gurus da economia e da gestão, é a menos má.

Vai acontecer? Não. O mecanismo interessa à burocracia europeia porque representa poder, garantindo-lhe lugares dourados; às várias nacionais pelas mesmas razões, ainda que com menos benefícios porque o cidadão os conhece melhor; aos políticos porque lhes permite ter os meios para julgar (os suficientemente idiotas para acreditar nisso) que engenheiram o futuro e os cínicos para não terem a mão cheia de nada; aos empresários porque, sabendo quanto a porta do sucesso é estreita, sonham arranjar um postigo por onde se enfiem; à opinião pública porque, ao contrário do dito, é possível enganar toda a gente o tempo todo; e à publicada porque o subsídio é notícia e a sua ausência não.

Resta o interesse público. Mas esse não pertence a um grupo definido de pessoas, logo não tem quem o defenda.

* Publicado no Observador

Cristina Ferreira a saltitar de televisão paga por todos nós

Pedro Correia, 21.07.20

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Há dois meses, o Governo anunciou a distribuição de um pacote financeiro destinado a apoiar grupos privados de comunicação social em forma de publicidade institucional. Os dois grupos mais apoiados foram a Impresa (da SIC) e a Media Capital (da TVI), que embolsaram praticamente sete milhões do total do bolo, avaliado em 11,2 milhões de euros. Em fatias quase iguais: a Impresa encaixou 3,5 milhões deste financiamento, ficando a Media Capital com 3,3 milhões.

Cada uma gere a verba como bem entende, sem obrigações acrescidas de serviço público. A TVI, imitando os clubes de futebol durante o mercado de transferências, não demorou a usar este dinheiro extra para atrair Cristina Ferreira com um salário milionário e um lugar no Conselho de Administração da empresa, trazendo-a de volta a Queluz de Baixo e causando um rombo à SIC, sua principal concorrente. E promete continuar a fazer uso imoderado deste subsídio governamental: aproveitou para contratar ao exterior dois novos responsáveis pela informação (sem deixar de indemnizar o director cessante, seguramente) e agora até acena com um salário de um milhão de euros a José Rodrigues dos Santos para o tirar da RTP.

 

Tudo isto em tempo de grave crise sanitária, social e financeira, quando faltam recursos para o essencial. «É quase uma afronta o valor pago aos enfermeiros [8 euros por hora] na pandemia», como sublinhava Odília Neves, enfermeira-coordenadora das urgências e cuidados intensivos no Centro Hospitalar Lisboa Central, em entrevista à mais recente edição do Expresso.

Haverá quem seja indiferente a tudo isto, aplaudindo vedetas como Cristina Ferreira, que volta a saltitar de televisão, desta vez à custa dos contribuintes. Eu não encolho os ombros nem calo a indignação: injectar dinheiro dos nossos impostos em empresas privadas de comunicação social para que estas contratem estrelas da pantalha a preço astronómico enquanto pagam salários cada vez mais residuais a quase todos quantos lá trabalham, é algo inaceitável. Com a bênção de um governo capaz de tudo em busca de propaganda.

Uma afronta, para usar a justa expressão de Odília Neves.

Festa na RTP

José Meireles Graça, 10.04.20

António Costa não percebe e acredito que, contra os seus hábitos, esteja a ser sincero: não percebe mesmo. A ideia de que não compete ao Estado sustentar artistas, oferecendo ao público aquilo a que o público pode aceder, se quiser, pagando do seu próprio bolso, não lhe ocorre. E menos ainda lhe passa pela cabeça que o Estado nunca oferece nada: o que gasta com uns deixa de gastar com outros; e não pode nunca dar sem cobrar primeiro ꟷ com juros, se for depois.

Dos artistas a inaugurar a série (Fernando Tordo, Marisa Liz, Ricardo Ribeiro e Rita Guerra) só conheço o primeiro, mas não foi pelo ardente desejo de não ouvir os seus gorjeios que assinei a petição para cancelar o deboche. Para isso bastava-me não ligar o canal ou canais onde ele tivesse lugar, coisa que aliás faço quase sempre que a música seja ligeira.

A simpática e desnorteada ministra da Cultura deve ter ficado varada com a reacção. Porém, uma petição que recolhe num dia mais de 20.000 assinaturas não a deveria impressionar por aí além se estivesse a fazer alguma coisa que coubesse dentro das atribuições do seu ministério e correspondesse a alguma política consistente de cultura.

Uma petição é uma manifestação na internet, que tem duas vantagens sobre as de rua: agrega quem dificilmente se daria ao trabalho de se misturar com os profissionais do ramo do berreiro; e diz claramente ao que vem, como as outras, mas explica porque vem.

Sucede que o artigo do Público para que remete o link acima abunda nas tradicionais queixas dos que ficaram de fora e na discussão dos critérios a que deve obedecer a distribuição de subsídios. Quaisquer que sejam os critérios, ou a falta deles, seja para pôr uns maganos a gemer a um microfone, para juntar uma troupe para realizar um filme que ninguém quer ver ou encenar uma peça a que ninguém quer assistir, para ajudar uns futuros génios a borrar umas telas, ou para desfear o espaço público com esculturas ou instalações de consagrados como Cabrita Reis, a quem sobra em lata e influência o que falta em talento, há sempre quem discorde.

Os que discordam acham que deviam ser eles os beneficiados, ou a seita deles. Compreendo os queixumes, de mais a mais agora que haverá artistas que estão a passar mal e a ver a vida a andar para trás; e, na verdade, não me incomodo excessivamente com a caridade pública de não os deixar morrer de fome.

Mas uma coisa é ocorrer a desvalidos; e outra, muito diferente, coonestar este negócio obsceno, que dura há demasiado tempo, de comprar o apoio da gente dita da cultura com o expediente de a sustentar com dinheiros públicos.

Entendamo-nos: o Estado gasta pouco com o ensino musical, na minha discutível opinião, mas isso é um assunto de educação, e logo doutra pasta; o mercado não sustenta, só por si, orquestras sinfónicas ou teatros, mas nem por isso os conservatórios ou os teatros nacionais devem ser encerrados, mas isso não tem directamente a ver com o passadio de A ou B.

O ideal seria que o ministério da cultura tratasse dos monumentos em ruínas, das bibliotecas sem condições, dos museus sem acervos que prestem, ou mal conservados, ou ocultos; e que, em suma, se tiver de apoiar a cultura, na ausência de outros mecenas que não a Gulbenkian, porque em Portugal até os ricos são pobres, subsidie organizações sólidas e com tradição segundo critérios objectivos compreensíveis, não circo para a populaça nem bodos para grupos de amigos muito lá de casa.

Duoquantos?

Rui Rocha, 29.01.13

Podem correr e saltar. Mas na grande trapalhada do pagamento de parte dos subsídios em duodécimos o legislador meteu a pata na poça. O subsídio de Natal férias a pagar em 2013 diz respeito às férias vencidas em 1 de Janeiro deste ano. Ora, o nº 3 do artigo 4º da Lei 11/2013 é bem claro:

O disposto nos números anteriores não se aplica a subsídios relativos a férias vencidas antes da entrada em vigor da presente lei que se encontrem por liquidar.

É certo que o artigo 11º faz retroagir a produção de efeitos a 1 de Janeiro. Mas se os efeitos são estabelecidos com carácter retroactivo, a entrada em vigor está fixada (artigo 12º) para o dia seguinte ao da publicação (isto é, para 29 de Janeiro). E é expressamente para a entrada em vigor que o referido nº 3 do artigo 4º remete. 

 

Aliás, a propósito de trapalhadas, e deixando esse lapso de parte, é bem possível que a consequência do diploma seja a de introduzir involuntariamente não dois, mas três regimes alternativos de pagamento dos subsídios. É que, se não me engano, nada impede que um trabalhador comunique à entidade patronal que pretende continuar a receber apenas 1 dos subsídios por inteiro, no momento "normalmente" previsto para o efeito. Teríamos assim o sistema anterior com pagamento por inteiro nas alturas "normais", o sistema de pagamento de 50% dos dois subsídios em duodécimos e ainda a possibilidade de receber um dos subsídios por inteiro, de uma só vez, e 50% do outro em duodécimos. Perante tudo isto, talvez esteja na altura de rever a presunção de que o legislador sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Com esta é que vos lixei

Rui Rocha, 08.01.13

No princípio, parecia fácil. De um subsídio repartido e posto à disposição dos trabalhadores em doze prestações de igual valor e com periodicidade mensal diz-se que é pago em duodécimos, certo? Depois, a coisa complicou-se um nadinha. Se de um subsídio repartido em doze vezes se diz que é pago em duodécimos, o que é que se diz de meio subsídio pago em doze vezes? Vamos, que a descrição da coisa já implicava um nível de raciocínio matemático abstracto que não se encontra na bancada parlamentar do PS e uma proficiência na utilização da língua que não está ao alcance do próprio secretário-geral do  PSD. Agora, aqui chegados, digam-me lá como é que se traduz com rigor matemático e em português escorreito o exercício de dividir meio subsídio em doze partes iguais e de o pagar em onze meses? Vá, digam lá...

Da moralização

João Campos, 22.11.11

De acordo com esta notícia do Jornal de Negócios, o PS propõe, no contexto das medidas de austeridade (e da busca desesperada por uma alternativa ao corte de um dos dois subsídios), medidas de moralização para os políticos. E que propõe Seguro? Simples: As viaturas do Estado para uso particular devem passar a ser contabilizadas para efeitos de IRS. Assim de repente não sei que efeito tal medida teria nas contas públicas, mas é impossível não ver que o secretário-geral do PS perdeu uma boa oportunidade de ficar calado. Se propusesse que as viaturas do Estado devem ser usadas única e exclusivamente para fins de Estado, e jamais para fins particulares, aplaudiria. Mas isso, como é bom de ver, seria pedir muito.

Aos defensores da equidade

Ana Margarida Craveiro, 08.11.11

Têm surgido bastantes, dos lados mais improváveis. Clamam que é injusto, que os privados também deveriam "pagar a crise". Hoje, queria só recordar a esses paladinos da equidade que há quem receba a recibos verdes, doze meses por ano (isto quer dizer que não há cá lugar a subsídios), e tem de pagar uma tal de sobretaxa extraordinária. No caso dos restantes mortais, essa taxa é aplicada sobre o subsídio de Natal. No caso dos desgraçados a recibos verdes, já que não têm o referido subsídio, é aplicada sobre os restantes rendimentos (os tais doze meses que o ano tem). Nessa altura, ninguém se lembrou da equidade, não foi? 

E você, prefere empobrecer em 12 ou em 14 prestações por ano?

Rui Rocha, 28.10.11

Se um dia um desconhecido pretender cortar-lhe o salário, temporariamente ou de forma definitiva (hipótese meramente académica, claro), pelo valor correspondente aos subsídios de Natal e de férias, prefere não o receber em:

 

a) 12 prestações;

b) 14 prestações;

c) é igual, porra, estou bem lixado de uma forma ou de outra.

 

Responda de forma honesta pois, ao que parece, o presente e o futuro de Portugal dependem desta importantíssima questão.

Subsídios e outros quejandos

Ana Margarida Craveiro, 24.10.11

A propósito das subvenções e subsídios dos políticos, tenho lido por aí muita coisa. Dos discursos mais radicais do "eles são todos uns ladrões" ao "isso é subjugar a lei à ditadura do vox populi", passando pelo mais sensato "a política tem de ser recompensada, senão os bons fogem", já ouvi um pouco de tudo. Parece que agora até Aguiar Branco recusou o subsídio de alojamento, apesar de não ter casa em Lisboa. O ordenado que aufere permite-lhe arrendar uma casa, e portanto prescinde dessa ajuda. De todos os casos mencionados, tanto em relação à subvenção vitalícia como aos subsídios de alojamento, ninguém estava em violação da lei. Políticos e ex-políticos usufruíam de uma benesse permitida por lei. A benesse tem por justificação o reconhecimento da importância dos serviços ao Estado, sem que o político em questão saia prejudicado.

Como estamos cansados de saber, os tempos mudaram. Se antes o dinheiro parecia esticar, e o Orçamento do Estado chegava a todo o lado, agora temos uma peça de roupa tamanho S a ser desfeita por um corpo XXL. Os contribuintes sentem isso diariamente, e os beneficiários do sistema social também. Todos sofrem. Apesar dos cortes salariais que sofreu, a classe política ainda vive bastante acima do português médio. É natural e desejável que assim seja, por uma questão de independência. Mas é em tempos destes que a legitimidade é testada no terreno, e não chega a justificação de que a lei permite. É que, meus amigos, a lei também permitia um 13.º e um 14.º mês de salários, e esses já foram cortados. Os políticos têm a obrigação de dar o exemplo, bem para além da legalidade, para evitar perder a legitimidade. E não, isto não é uma demagogia, ou populismo do pior. É a simples constatação de que fica mal usufruir dessas benesses ao mesmo tempo que fazem cortes a quem ganha 600 ou 700 euros por mês. E, já dizia o provérbio, à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecê-lo. O carácter, a idoneidade moral e a noção de justiça provam-se nestes tempos. Felizmente, ainda há quem esteja a passar com distinção o desafio (ao contrário de outros).

Troikos e baldroikos, o velho programa do novo governo e outras coisas igualmente extraordinárias. E um par de botas

Rui Rocha, 30.06.11

Os troikos apresentaram o velho programa do seu novo governo. Os baldroikos oscilaram entre a sensatez de Maria de Belém Roseira e a desfaçatez dos aspirantes a substituir o Coiso. O tiroliroliro Asiss fala de injustiça. O tiroliroló Seguro está chocado. Já deviam saber que o destino dos indignados é acampar. Se possível, para os lados da Subornne (o meu francês não está grande coisa). Em Paris. Diz-se que o Coiso vai para lá estudar com uma bolsa. A nossa. Enquanto os cães ladram, a caravana atasca-se. Voltando ao balde de água fria, o debate do velho programa do novo governo trouxe coisas realmente extraordinárias. O imposto arremessado sobre o subsídio de natal constitui um momento importante que importa sublinhar. Desde logo, diz que é único. Justiça lhe seja feita, que não engana ninguém. Em 2012 já não haverá subsídio de natal sobre o qual lançar imposto. Graças ao imposto e a outros carnavais, hoje é o dia em que a classe média portuguesa acaba e entra definitivamente nas trevas da idade média. Nestas coisas há sempre aspectos positivos. Na classe média, acabaram os casamentos por interesse. Estes recém-empobrecidos farão  o que sempre fizeram os velhos pobres. Na falta de dinheiro, resta-lhes unirem-se por amor. Outro aspecto de relevo é consagração do princípio do pagador pagador. Pagaremos impostos como se não houvesse amanhã. E amanhã pagaremos taxas demolidoras por todos os serviços que o Estado nos for obrigado a emprestar. O debate revelou ainda que fizemos uma boa opção nas eleições de 5 de Junho. Esta gente é mais séria. Falo sem ponta de ironia. Estes serão capazes de dizer as mentiras necessárias olhos nos olhos. Já não é pouca coisa. E o ministro das finanças, com a sua voz compassada, é o homem ideal para fazer o elogio fúnebre do país. Sim, porque importa dizê-lo. O desfecho final de tudo isto será um de vários. É, temos alternativas. É escolher entre defaults, reestruturações de dívida, saída do Euro e desvalorização da moeda, corte drástico nos salários ou sermos adoptados e subsidiados eternamente pela mãe Europa (em alemão adopção diz-se eurobonds). Uma palavra ainda para a versão portuguesa do e-coli. É um Bacílio. Horta. E uma alusão incontornável ao par de botas. São de defunto. Mas, morremos sem as ditas calçadas. Já as tínhamos hipotecado ao BES.