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Delito de Opinião

Vanguarda suíça ou o Draghi dos Cantões

José António Abreu, 16.01.15

O Banco Central da Suíça deixou ontem de defender a cotação do franco em relação ao euro, que desde 2011 mantinha em torno de 1,2. O franco valorizou quase 20%. Há três possíveis explicações para esta decisão:

 

1. Num país onde muitas vozes se opõem a políticas de estímulos financeiros (e onde até já se fez um referendo questionando os suíços acerca da conveniência do banco central reforçar as reservas de ouro), o Draghi dos Cantões pretendeu validar a posição mantida nos últimos anos (durante os quais comprou Eigers, Matterhorns e Jungfraus de euros com francos fresquinhos), mostrando aos cépticos quais as consequências de deixar os mercados funcionar livremente (atitude que, refira-se, muito desagradou a vários agentes dos mercados). Como tudo não passa de uma brincadeirinha (esta hipótese pressupõe que os banqueiros centrais têm sentido lúdico mas convém despachar a teoria da conspiração logo no início), deverão ser anunciadas medidas em sentido contrário a muito breve prazo.

 

2. Sabendo que o BCE vai iniciar um programa de compra de dívida, o Draghi dos Cantões (a minha inércia impede-me de lhe pesquisar o nome) decidiu que o esforço necessário para continuar a assegurar a cotação do franco era suicidário e abandonou o barco dos que acreditam que os estímulos financeiros vão resultar, aceitando as perdas a curto e médio prazo para os sectores exportadores da economia suíça.

 

3. Prevendo que o BCE não possa – ou, apesar de todos os soundbites em sentido inverso, não queira – iniciar o programa de compra de dívida, o Draghi dos Cantões (que, aposto, não fala cantonês) antecipou a subsequente queda do euro para, permitindo agora uma valorização do franco, conseguir que, apenas por acção dos mercados, ele acabe o processo com uma cotação não demasiado penalizadora para as exportações suíças.

 

No caso de qualquer uma das duas últimas hipóteses ser a verdadeira, a mensagem do Draghi dos Cantões é tão cristalina como pingentes de gelo em chalé alpino: o esquema de Ponzi com que tantos bancos centrais andam entretidos não funciona e tem de acabar. Esperemos que ele seja apenas um suíço pessimista.

Ouro alpino

José António Abreu, 02.12.14

Num fim-de-semana marcado por um congresso partidário onde se evocaram as vítimas de violência de género (por que não as de pedofilia, começando talvez pelas da Casa Pia?) mas se evitou cuidadosamente evocar um ex-líder, é compreensível que raros órgãos de comunicação social tenham prestado atenção ao facto de os suíços estarem a deslocar-se mais uma vez às urnas para responder a três questões em referendo. As duas primeiras versavam temas habituais: maiores restrições à imigração  e eliminação de benefícios fiscais para residentes estrangeiros sem ocupação lucrativa. A terceira, porém, justifica menção especial. Perguntava-se aos helvéticos se o banco central deveria ser obrigado a repatriar o ouro que mantém nas instalações da Reserva Federal americana (seguindo o exemplo da Holanda) e a manter pelo menos 20% dos activos nesse material. Como nos restantes casos, o «não» venceu. Ainda assim, e para além de ser gratificante constatar que existem países onde temas aparentemente herméticos são alvo de discussão pública e votação popular, é sintomático que se comecem a perceber os riscos ligados a todo o lixo que os bancos centrais têm vindo a introduzir nos seus balanços. Sendo que o BCE parece estar apenas a começar.

Da minha falta de produtividade ao terceiro homem, passando pelos buracos do queijo suíço

José António Abreu, 26.10.12

Adaptando mais uma frase imortal (para além de certíssima e to the point) do Ministro Vítor Gaspar, vem existindo um enorme desvio entre o número de posts que eu gostaria de produzir e o número que os meus dedos efectivamente alinhavam. Os motivos são fáceis de explicar: como as coisas andam, temo só conseguir repetir-me e, talvez mais importante, já nada me surpreende ou incomoda. Aliás, para ser sincero, nos últimos meses apenas as surpresas alheias mantinham capacidade para me surpreender. Agora nem isso. Um exemplo: anteontem ouvi o presidente da União das Misericórdias afirmar que encontrou um português trabalhando num café da Suíça que lhe disse ganhar mais do que o Presidente Cavaco Silva (certamente merece-o), concluindo daí que é preciso confrontar os responsáveis europeus sobre aquilo que a Troika está a impôr a Portugal, e já nem revirei os olhos. Não parece passar pela cabeça de tão insigne personagem, atarefado a ajudar os pobrezinhos, metido num fato de corte impecável, sentado num carro alemão de muitas dezenas de milhares de euros, auferindo provavelmente também ele um salário mais elevado do que o do Presidente da República (quiçá do que o do empregado do café; a propósito: estaria na Suíça em serviço?), como, de resto, não passa pela cabeça de tantos outros, entre os quais muitos ex-governantes cá do burgo, que os países onde um empregado de café ganha milhares de euros por mês fizeram por atingir esse nível de vida no passado e fazem hoje por mantê-lo. Não deve ser preciso explicar por que é tanto dinheiro entra na Suíça mas, para se perceber a diferença, talvez seja conveniente avançar meia dúzia de razões. Desde logo, estabilidade e cumprimento de regras. Depois (inspirar fundo): equipamento industrial, medicamentos, relógios, chocolates, bolachas, cereais de pequeno-almoço, queijos, canivetes, serviços financeiros, turismo; tudo áreas onde, por mérito próprio, os suíços são expoentes de qualidade e prestígio, não precisando de concorrer apenas com base no factor preço. É isto que lhes permite terem o nível de vida que têm; que lhes permite auferirem os tais salários e disporem de auto-estradas baratas e de mais túneis do que... enfim, do que um queijo suíço. Nós não temos economia para tal e nunca estivemos perto de a construir. Só achámos (pelos vistos, ainda achamos) ter direito aos benefícios que lhe estão associados. Uma espécie de direito divino ao que outros conquistaram através do trabalho e da competência. Com esta mentalidade, pode alguém levar-nos a sério? E, honestamente, ainda valerá a pena clamar contra isto? Não mudámos ao longo de séculos, também não vai ser agora. Vou mas é dar descanso aos dedos.

 

P.S.: Claro que, como dizia Harry Lime n'O Terceiro Homem (numa adenda de Orson Welles ao argumento original de Graham Greene), em Itália, durante três décadas sob os Bórgia, houve morte e terror mas surgiram Michelangelo, Leonardo Da Vinci e o Renascimento; na Suíça, em quinhentos anos de paz e democracia, chegou-se ao relógio de cuco. Se as coisas continuarem a piorar (Otelo, talvez a revolução não seja afinal má ideia), podemos sempre manter esperanças de que, no futuro, esta seja vista como uma das mais brilhantes épocas da arte portuguesa. Mas atenção: também neste campo a concorrência é feroz e, com a octogenária D. Cecilia, Espanha já nos leva avanço.

 

(Imagem obtida aqui.)

 

Notas de viagem (1/5: Zermatt)

José António Abreu, 28.06.11

Preâmbulo

Estou de volta (estejam à vontade para festejar porque, por muito que goste de vocês – especialmente de ti; sim, tu, com o Toshiba cor-de-rosa –, não serei eu a fazê-lo). Tendo rabiscado umas quantas notas que não cheguei a publicar, vou desfazer-me delas durante os próximos dias. Depois talvez comece a prestar atenção ao novo governo. Ou não: estados de graça não combinam comigo.

Não me perguntem porquê mas o Matterhorn fascina-me. Há um ano passei uma semana e tal na Suíça mas não tive oportunidade de chegar tão a Sul. Por isso este ano conduzi de Milão até Zermatt, passando pelo lago Como, pelo Ticino e pelo vale de Domodossola, em grande medida para o ver. A minha opinião sobre a Suíça continua a ser extremamente positiva e não, o Federer nada tem a ver com o assunto – ou talvez apenas um pouco mas não mais do que o chocolate. A circunstância de ter nascido junto ao sopé da Serra da Estrela poderá ser mais relevante (acredito que há uma espécie de genética do local de nascença) mas, acima de tudo, gosto na Suíça da mistura de natureza agreste com civilização. E do facto de as temperaturas raramente atingirem valores excessivos (o meu cérebro entra em default quando os termómetros sobem dos vinte e cinco graus). Claro que em férias também não convém que esteja muito frio nem que chova nem que a paisagem se encontre por trás de um manto de neblina. Felizmente, apanhei um tempo espectacular. Tão espectacular que apenas o topo do Matterhorn se manteve permanentemente encoberto. Juro que aprecio a ironia. Seja como for, o resto mais do que justificou a deslocação. E sempre posso fazer novo desvio para o ver quando for, sei lá, à Sicília.

Em Zermatt não circulam veículos com motor de combustão interna. Os automóveis têm de ser deixados em Täsch, a cerca de cinco quilómetros e meio. A partir daí, usa-se o comboio. Os hotéis de Zermatt enviam pequenos veículos eléctricos à estação recolher hóspedes e bagagem. São veículos curiosos, paralelepípedos toscos com rodas. O condutor do veículo do hotel Mirabeau (o buffet de pequeno-almoço tem pães e bolos sublimes) usa uma plaquinha com o nome “Jorge”. É português. Explica que se encontra em Zermatt há cerca de quatro anos e que está longe de ser o único português ali. Ouviu dizer – não sabe se é verdade – que são perto de três mil ou quarenta por cento da população. Sei que há muitos portugueses na Suíça mas ainda assim fico surpreendido. Rapidamente constato que os números de Jorge não devem andar longe da realidade. No hotel, um Avelino leva a bagagem até ao quarto. Mal regressado à rua, cruzo-me com um homem vestindo uma camisola do Futebol Clube do Porto. Grupos passam a falar em português. Crianças com trotinetes gritam em português. No dia seguinte, a funcionária de uma loja, rapariga louríssima, explica em português que, não sendo portuguesa, como tem amigas que o são já consegue falar a língua. Digo-lhe que a fala muito bem (é verdade). Torna-se simultaneamente gratificante e desconfortável estar rodeado de tantos portugueses. Gratificante porque, apesar de me encontrar no coração dos Alpes, é como se não se estivesse verdadeiramente num lugar estranho. Desconfortável porque sinto ter usurpado um poder que não condiz comigo: tão português como os restantes, por que diabo gozo do privilégio de ser turista? Mas ei – isto sou eu. Felizmente muitas pessoas não têm pruridos deste género (desconfio que algumas até gostarão de poder sentir-se superiores) e, de qualquer modo, questões existenciais não devem dissuadir quem quer que seja de ir até Zermatt ou qualquer outro ponto da Suíça. Aliás, vai-se a ver e é por serem confeccionados por portugueses que os pães e os bolos são tão bons.

O sorriso do são bernardo

José António Abreu, 19.06.11
Em Gronergrat, no Sul da Suíça, a 3089 metros de altitude, recordo-me de como, em Milão, na Pinoteca Ambrosiana, um quadro de um velho e um cão me chamara a atenção. Apropriadamente, chamava-se (bom, chama-se, que ainda lá deve estar) Vecchio com cane. Trata-se de um pequeno óleo sobre tela de 45 por 54 centímetros, pintado por Domenico Induno (1815-1870), alguém que permanece quase desconhecido para mim, visto nem a informação na Pinoteca nem a internet terem sido de grande utilidade. Há na Ambrosiana obras de gente muito mais famosa, como Botticelli, Raffaello, Tiziano, Caravaggio, Da Vinci ou Jan Brueghel, o Velho, defronte das quais se é forçado a parar quase religiosamente, nem que seja para depois se poder dizer tê-las visto. Ainda assim, se apreciei muitas das obras destes mestres (La Madonna del Padiglione, de Boticelli ou umas fantásticas Allegoria dell'acqua e Allegoria del fuoco, de Jan Brueghel, por exemplo) não deixei de ficar durante um par de minutos em frente à pequena tela de Induno. É uma situação simples, sem grande carga alegórica, mas qualquer coisa me fez parar. Lembrei-me, meio a despropósito, de um conto de Tchékhov em que um velho se tenta livrar de um cão e de um cavalo por (como ele, no fundo), estarem velhos e só lhe darem despesa. Mas o conto de Tchékhov tem um final triste e nada neste quadro indica que o homem planeia desfazer-se do cão. Parece haver cumplicidade entre ambos: o homem olha o cão com ar de bonomia enquanto este come, decidido mas sem urgência. É como se o velho tivesse acabado de chegar a casa (a forma como está vestido sugere-o) e tivesse ido imediatamente alimentar o cão. Como se vê-lo comer fosse a coisa que mais prazer lhe dá. Claro que não lhe deve ser fácil alimentá-lo – o velho tem aparência de pobre e o cão, um são bernardo, é enorme, deve comer bastante. Ao escolher um cão tão grande e ao pintar cão e velho nesta pose e não noutra, Induno só podia estar a tentar dizer-nos algo sobre as dificuldades e a força da relação entre ambos.

 

Lembro-me do quadro e deste confuso processo mental na Suíça, a 3089 metros de altitude, porque na pequena estação onde o comboio de cremalheira larga os turistas há um fotógrafo que tenta convencer as pessoas a posarem junto a um par de são bernardos. Os cães, com o barrilzinho típico (como o do quadro, afinal) são belíssimos e têm um ar pachorrento. Apetece fazer-lhes festas. Mas de repente um desata a correr e abocanha uma mochila pousada no chão. Sacode-a energicamente de um lado para o outro. Um rapaz – o dono da mochila – solta um grito, corre para o cão, agarra-lhe a trela e puxa. O são bernardo pára de sacudir a mochila, roda a cabeça, olha para o rapaz e sorri (eu sei, eu sei, mas «sorrir» é de longe o termo que melhor descreve a expressão do animal). Sorri como se comprovasse mais uma vez como os humanos são tontos. Depois volta a dedicar a atenção à mochila, tentando enfiar o focinho lá dentro, enquanto o rapaz puxa com mais força. É apenas quando o fotógrafo acorre que o são bernardo percebe não ir conseguir chegar à sanduíche ou ao que quer que seja de apetitoso que o rapaz transporta dentro da mochila (relembre-se que uma das características da raça é um olfacto apuradíssimo, que lhes permitia cheirar pessoas enterradas na neve) e desiste. Sim, penso então, lembrando-me do quadro da Pinoteca, por bem alimentado que pareça estar, um são bernardo tem de ser um cão de muito alimento. Mas é também um cão de boa índole. Perdida a sanduíche, aquele reassume sem protestos o seu papel de apoio à criação de recordações turísticas.

Horas depois, regressando a Itália, conduzo em direcção ao Col du Grand-Saint-Bernard e pondero seguir pela histórica passagem, subir ao local do mosteiro onde os monges criaram a raça há cerca de trezentos anos. Mas é tarde, ameaça escurecer. Opto pelo túnel de quase seis quilómetros inaugurado em 1964. Enquanto o percorro, e por muito ilógico que seja, não consigo evitar a sensação de que, ao evitar o esforço, estou de alguma forma a trair os simpáticos mastodontes helvéticos. A ser um bocadinho o velho do Tchékhov.