Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Outras galáxias muito distantes (7)

João Campos, 18.01.18

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Esta é a última das sugestões de galáxias a descobrir na literatura e na banda desenhada. Pelo menos, por agora.

 

Ody-C Vol01 Cover.jpg

 Ody-C

Uma odisseia no feminino

 

Esta curta série de sugestões de leitura de space opera começou na banda desenhada, pelo que me parece muito adequado concluí-la também com banda desenhada. E com uma não menos sofisticada: se Saga inova pela forma como pega nos elementos clássicos do género e os recombina numa narrativa moderna e arrojada, já Ody-C recupera uma das mais clássicas histórias da cultura ocidental - a Odisseia de Homero -, dá-lhe uma nova perspectiva pela alteração do género de praticamente todas as personagens, e transporta-a para um futuro espacial e psicadélico narrado por Matt Fraction e ilustrado de forma assombrosa por Christian Ward.

 

Seria talvez simples reduzir Ody-C a uma versão gender-bent da Odysseia - aliás, seria porventura simples para os autores limitarem-se a essa ideia original. É certo que são exploradas algumas das passagens mais icónicas da Odisseia, como o encontro com Polifemo ou a visita a Éolo, mas Fraction e Ward levam mais longe as atribulações de Ulisses, Menelau e Agamemnon, aqui Odyssia, Ene e Gamem, uma vez terminada a guerra centenária contra Troiia-VII. Se alguns mitos são simplesmente adaptados, outros são transformados com vista à criação de um universo ficcional próprio - e as viagens de regresso das três rainhas-guerreiras, perante a oposição de um panteão liderado por Zeus que vê nas proezas marciais das três combatente e no saque de Troiia-VII um desafio ao seu poder, combinam de forma tão elegante como surpreendente as inspirações clássicas (homéricas e não só) com alguns elementos tradicionais da space opera numa narrativa moderna. 

 

Ody-c vol 01 page.png

 

Fraction opta por narrar esta odisseia de forma pouco convencional, aludindo ao poema épico original com um texto breve e minimalista tanto na descrição como no diálogo - é uma opção porventura estranha para alguns leitores, mas que se revela muito eficaz no modo como se funde à ilustração tão inventiva como psicadélica de Ward, cheia de cores e de formas improváveis. Folhear as páginas dos fascículos ou dos paperbacks é uma experiência singular, que não remete para a tradição dos comics norte-americanos mas antes para algumas bandas desenhadas europeias; e se à primeira vista é impossível não reparar na arte de Christian Ward, uma leitura mais atenta revela a forma hábil com que pega nas ideias que as palavras de Matt Fraction evocam para recriar com absoluta originalidade personagens que todos já vimos vezes sem conta em inúmeras narrações dos mitos da Grécia Antiga. 

 

Pelo tom e pelo estilo muito próprios, é possível que Ody-C não seja uma banda desenhada para todos os leitores - as críticas tendem a polarizar-se entre quem não consegue entrar na história pela forma como esta é narrada e entre quem se maravilha a cada página pela forma imaginativa como uma história tão contada pode ser reinventada com tanta originalidade e com tanto arrojo conceptual e artístico. Pesoalmente, coloco-me no segundo grupo: das bandas desenhadas que comecei a ler em 2017, Ody-C estará sem dúvida entre as melhores. Merece uma oportunidade, e deixa uma garantia: goste-se ou não, não se lhe ficará indiferente. 

Outras galáxias muito distantes (6)

João Campos, 11.01.18

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

 

Ancillary Justice_Cover (01).jpg

Ancillary Justice

A irrelevância do género

 

Como penúltima sugestão de leitura nesta série sobre a space opera moderna deixo um dos livros mais falados nos círculos da ficção científica literária dos últimos anos: Ancillary Justice, o romance de estreia da norte-americana Ann Leckie que em 2013 conquistou críticos, leitores, e praticamente todos os prémios relevantes do género. E fê-lo com uma mistura muito bem sucedida de alguns dos mais convencionais elementos narrativos que associamos à space opera - impérios galácticos, alienígenas, inteligências artificiais, aventuras em planetas exóticos - com reflexões pertintenes sobre a natureza humana e sobre um tema muito em voga: a identidade de género. 

 

Nesse sentido, é possível vermos em Ancillary Justice uma continuação lógica da desconstrução da identidade e dos papéis de género que Ursula K. Le Guin (é inevitável: regressamos sempre a ela) desenvolveu no longínquo ano de 1968: em The Left Hand of Darkness Le Guin imagina no planeta remoto de Gethen uma civilização onde os seres humanos são efectivamente andróginos (simplifico), cujas características sexuais fluídas fazem com que as diferenças de género que conhecemos não tenham lugar. Leckie, admita-se, não chega a ir tão longe como Le Guin na imaginação de fisiologias alternativos e de ritos sociais elaborados. A pergunta que coloca, sendo bem mais simples do que as questões e os problemas que o contacto do terráquio Genly Ai com os seres humanos de Gethen suscitam, nem por isso é menos intrigante: se numa sociedade não existem diferenças práticas entre géneros, faz sentido manter uma pré-determinação masculina na linguagem? Para descobrir a resposta, Leckie desenvolveu toda uma trama na qual apenas se conhece o género de uma das personagens numa referência fugaz, colocando todos os pronomes e todos os indicadores linguísticos de género no feminino.

 

O resultado é uma experiência invulgar de leitura que coloca em evidência as ideias pré-concebidas dos leitores, sejam conscientes ou inconscientes, sobre pos papéis de género: o conhecimento de algo tão elementar como o género de uma personagem influencia de forma decisiva o modo como lemos essa personagem. A ausência de algo tão elementar torna a leitura algo desorientante no início - sabemos que a protagonista, Breq, tem de facto um corpo feminino, mas o facto de não sabermos isso de qualquer outra personagem induz a um jogo constante de adivinhação pelos maneirismos e pelas atitudes. No entanto, mais interessante do que descobrir a resposta é perceber que a resposta não tem qualquer relevância ou significado - que aquelas personagens são importantes pelas suas acções e pelas suas palavras, e não por características biológicas pré-determinadas. 

 

Só por isto, a leitura de Ancillary Justice seria sempre um exercício intrigante e pertinente, mas poder-se-ia argumentar que este exercício, por interessante que possa ser, não chega para fazer um bom livro. Leckie sabia-o bem, e por isso apresentou-o não pela teoria mas pela prática, enquandrando-o numa aventura ritmada e conceptualmente estimulante. Breq, outrora uma inteligência artificial multifacetada ao comando da nave militar Justice of Toren, viu-se traída e destruída, reduzida a um derradeiro corpo biológico - e durante anos procura recuperar toda a informação sobre o que aconteceu nos últimos dias da Justice of Toren, para se vingar de quem a destruiu a si e eliminou as suas tripulantes. Convenhamos: naves espaciais há muitas na ficção científica, mas poucas foram aquelas que assumiram o protagonismo das suas histórias...

 

A história de Breq/Justice of Toren tem continuidade - ao romance inaugural de 2013 seguiram-se Ancillary SwordAncillary Mercy, em 2014 e 2015. Sabendo que a surpresa do primeiro livro se esbate nas sequelas, Leckie encaminha a trama para caminhos menos percorridos no género. Mas os leitores que não se queiram comprometer com uma série mais vasta ficam muito bem servidos só com Ancillary Justice - a sua narrativa funciona de forma autónoma, a experiência de leitura é inesquecível e, no contexto das conversas da actualidade, será difícil encontrar na ficção científica literária algum livro mais pertinente. 

Outras galáxias muito distantes (5)

João Campos, 04.01.18

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

 

Hyperion_Cover (01).jpg

 Hyperion / The Fall of Hyperion

Chaucer e Keats no espaço

 

Ao contrário do que se possa pensar, a produção literária da ficção científica na década de 80 não se resumiu ao neo-noir tecnológico do cyberpunk (por mais vasta que tenha sido a sombra de Neuromancer). Na sombra das especulações cibernéticas de William Gibson, Bruce Sterling e Pat Cadigan a vetusta space opera ia sendo recuperada e reinventada, com títulos como The Snow Queen de Joan D. VingeDownbelow Station de C.J. Cherryh (ambos premiados com o prémio Hugo em 1981 e 1982 respectivamente), e com o início de sagas que marcaram o género, como a Culture de Iain M. Banks ou a Vorkosigan Saga de Lois McMaster Bujold. Mas é já na transição dos anos 80 para a década de 90 que foi publicado um dos textos mais ambiciosos e bem conseguidos que o género já conheceu: o díptico HyperionThe Fall of Hyperion, do norte-americano Dan Simmons.

 

O título soará familiar a quem conhecer a poesia de Keats - e, de facto, o poeta romântico é uma presença constante na trama que Simmons tece num futuro no qual a Humanidade alcançou a Singularidade e expandiu-se por inúmeros planetas da galáxia com a ajuda das inteligências artificiais conhecidas como Technocore (serei intencionalmente vago em alguns momentos - é difícil falar destes dois livros revelar demasiado). Mas essa expansão não foi pacífica - e, de facto, no momento em que a trama arranca a Humanidade prepara-se para a guerra com os enigmáticos Ousters. Nas vésperas dessa guerra, sete peregrinos são seleccionados para fazer a derradeira peregrinação a Hyperion, um planeta remoto e que não teria nada de extraordinário se não possuísse duas coisas únicas: as lendárias "Time Tombs", um conjunto de monumentos localizados num vale onde o tempo se desloca do futuro para o passado, e o seu guardião, o não menos lendário Shrike, uma monstruosidade bio-mecânica feita de metal e coberto de espinhos. Reza a lenda que o Shrike responderá à questão de um dos peregrinos, e matará os restantes...

 

Os sete peregrinos não se conhecem, nem sabem por que motivo foram seleccionados, mas cada um tem um motivo para estar naquele lugar naquele momento - e Simmons evoca Chaucer para construir em Hyperion um mosaico fascinante ao estilo dos célebres Canterbury Tales. Cada peregrino (excepto um) contará a sua história individual durante a longa viagem até às Time Tombs de Hyperion, formando um vasto puzzle do qual o Shrike será uma peça fundamental. Simmons, porém, leva mais longe a ideia do mosaico, desenvolvendo cada história de forma muito particular em termos temáticos. Um dos peregrinos narra uma história de horror; outro, um conto de ficção científica militar a aludir a Starship Troopers. Há um drama familiar, uma intriga política, uma aventura cyberpunk e até uma história época que abarca vários séculos e várias etapas da expansão da Humanidade pelas estrelas. Hyperion não terá sido o primeiro romance de ficção científica a empregar uma estrutura narrativa em mosaico, mas poucos o terão feito com a mesma ambição e com o mesmo engenho, conseguindo mostrar múltiplas facetas do género enquanto desenvolve uma trama intensa com o arrojo conceptual que faz parte da matriz da space opera.

 

Se Hyperion olha para o passado separado das várias personagens para contextualizar o presente da trama, The Fall of Hyperion encarrega-se de desenvolver essa trama - de forma inevitavelmente mais linear, é certo, mas nem por isso menos interessante. Cada uma das histórias do primeiro volume suscitou mais perguntas do que respostas, e cabe a esta segunda parte explorar o destino dos peregrinos e da sua visita ao Shrike. Simmons faz esta exploração com mestria, polvilhando-a de referências literárias e religiosas que convidam à releitura, sem nunca perder de vista a história que pretende contar. O resultado é aquela que será talvez a minha obra preferida dentro do género: um par de livros excepcionais tanto para os leitores mais experientes como para quem ainda não se aventurou na ficção científica. 

Outras galáxias muito distantes (4)

João Campos, 28.12.17

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

use_of_weapons_by_iain_m_banks.jpg

 

The Culture

A utopia ambígua*

 

Se considerarmos a distância a que a Humanidade se encontra de estabelecer uma presença permanente e relevante fora do planeta Terra, será porventura inevitável que qualquer noção de civilização de escala galáctica ganhe contornos utópicos. O que não impediu a ficção científica, nas suas várias vertentes, de imaginar um sem-número de impérios e de sociedades interestelares, quase sempre povoadas por aventureiros destemidos e alienígenas exóticos, mais ou menos hostis. Ainda assim, e por mais anos-luz que estes impérios abarquem, a maioria das sociedades galácticas clássicas permanece estranhamente semelhante aos paradigmas políticos, económicos e sociais da Terra: as mesmas estruturas de poder, os mesmos problemas económicos, as mesmas classes sociais. Em suma, os mesmos problemas de sempre. Talvez por isso a Culture de Iain M. Banks continue a ser tão relevante.

 

Não é que Banks rejeite o antropomorfismo tradicional das space operas - optou, sim, por extrapolá-lo na melhor tradição da ficção científica, interrogando-se sobre como seria uma sociedade cujo domínio científico e tecnológico a libertasse das limitações do mundo que conhecemos. Eis que surge a Culture, um vasto território espacial (seria impreciso designá-lo por impérioreino, ou qualquer outra designação territorial humana) governado por inteligências artificiais (Minds) tão benevolentes como matreiras, e dotadas de um sentido de humor peculiar. As Minds convivem com uma humanidade profundamente alterada pelas possibilidades infinitas abertas pela ciência, e integrada numa sociedade que não conhece o conceito de escassez. Assim, cada indivíduo é livre de se dedicar aos seus gostos pessoais como bem entender (não existe trabalho no sentido habitual do termo, e não existindo leis escritas, as normas assentam num contrato social implícito) e de viver onde quiser - num planeta, num vasto anel orbital ao estilo de Ringworld, numa esfera de Dyson, ou até num dos tremendos Global Systems Vehicles.

 

Como é bom de ver, uma sociedade idílica e hedonista parece um péssimo cenário para uma space opera rocambolesca, dada a inexistência de um conflito de sirva de motor narrativo. Não por acaso, as tramas que Banks explora não se centram tanto no dia-a-dia dos cidadãos no centro da Culture, mas nos intercâmbios que esta estabelece com a sua vizinhança galáctica - e é aqui que entram os elementos do Contact, o corpo diplomático da Culture, e as Special Circumstances, que na prática funciona como uma agência de espionagem e inteligência para intervenções mais ou menos subtis entre outros povos. É, portanto, na orla da Culture que Banks coloca a acção das suas histórias - nas histórias dos agentes das Special Circumstances, nos contactos estabelecidos entre civilizações tão distintas, na diplomacia necessária e nos conflitos inevitáveis. Mas também nos seus inimigos - a título de exemplo, o protagonista de Consider Phlebas é um mercenário contratado por uma civilização em guerra declarada com as Minds. E é essa abordagem que dá a Banks um ponto de vista único para a civilização que ele próprio concebeu. Através das suas persoangens e das odisseias em que as coloca, consegue mostras as engrenagens da sua utopia galáctica enquanto questiona os seus princípios basilares e a justiça das suas acções.

 

Mais do que uma série literária, a Culture é um universo ficcional desenvolvido entre 1987 e 2012 em nove romances e uma colectânea de contos. A ordem de leitura não será por isso relevante - Use of Weapons, o livro cuja capa ilustra este texto, é o terceiro romance da Culture publicado, e será uma introdução perfeita. Mas por notáveis que sejam os seus textos - e são -, aqui estamos perante um dos casos em que o cliché de o todo ser maior do que a soma das suas partes se revela verdadeiro: mais do que um ou dois livros, o legado de Banks para a space opera moderna reside na forma como pegou nas aventuras frenéticas que fizeram escola no género e as extrapolou com uma criatividade e um arrojo conceptual ímpares, mostrando que há vida para além dos impérios galácticos de outros tempos. E - seria inevitável referi-lo - reside ainda na nomenclatura bem humorada das Minds: não é todos os dias que podemos ler uma aventura espacial cujas naves têm nomes como No More Mr. Nice Guy, Unfortunate Conflict of Evidence, ou Just Another Victim of the Ambient Morality (entre muitos outros). Infelizmente, a morte prematura de Iain M. Banks em 2013 colocou um fim abrupto às suas histórias - mas as que cá deixou mantém toda a sua imaginação e pertinência.

 

*E sim, antes que alguém pergunte, sei que o subtítulo foi "pedido" à Ursula K. Le Guin.

Outras galáxias muito distantes (3)

João Campos, 21.12.17

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

 

the-centauri-device.jpg

 The Centauri Device

Sem heróis ou vilões

 

Em 1974 estávamos ainda a três anos da estreia de Star Wars e já longe da época dourada do género nos anos 50, do sucesso da série original de Star Trek nos anos 60, e do entusiasmo pelo espaço que as missões norte-americanas e soviéticas tinham trazido pouco tempo antes. Na ficção científica literária, persistiam ainda os ecos da "New Wave" que no final da década de 60 trouxera para o género um experimentalismo estilístico, narrativo e temático que até então fora escasso. Não surpreende, portanto, que também as fórmulas testadas da space opera, com os seus heróis ousados, vilões impiedosos, rebeldes com coração de ouro e aventuras em proporções quase mitológicas, tenham sido colocadas em causa por alguns autores. Um deles foi o britânico M. John Harrison, com um livro notável, ainda que imperfeito: The Centauri Device

 

O propósito de Harrison foi declarado: a desconstrução dos elementos basilares da space opera, como o herói faz a narrativa progredir e que que serve para o leitor nele se projectar, um universo compreensível e reconhecível para os seres humanos, e, na sua essência, antropocêntrico. Assim, o protagonista, John Truck, não é um herói predestinado a salvar a galáxia, mas um camionista espacial vagamente indiferente ao que o rodeia; a humanidade expandiu-se para o espaço e projectou até lá as suas piores tendências e atitudes; e, no vazio interestelar, toda a sorte de bizarrias humanas e pós-humanas floresceu. Inevitavelmente, surge o clássico macguffin - o tal Centauri Device do título -, entram em jogo várias facções políticas em conflito por ele, e emerge por fim Truck, ligado ao tal macguffin por um detalhe que escapa ao seu controlo. 

 

Uma narrativa mais convencional traçaria uma linha clara entre bonsmaus, lançaria Truck na demanda pelo bem, colocaria alguns obstáculos no seu percurso, e resolveria a coisa de forma mais ou menos satisfatória. Harrison, porém, nunca quis ser convencional, e em momento algum posiciona o seu protagonista como herói ou escapa para a desconstrução fácil pela via do anti-herói. Truck não quer salvar o mundo ou lixar o mundo; quer apenas que o mundo o deixe em paz. As várias facções em conflito não são maniqueístas - cada uma delas reclama a sua causa como justa, e em nome dessa causa estão dispostas a todo o tipo de atrocidades. E o mundo onde se movimentam está muito longe dos universos limpos, estilizados e optimistas de outras histórias; é, sim, um universo sujo, caótico e, na melhor das hipóteses, indiferente.

 

Apesar da sua prosa excepcional, de várias passagens memoráveis e de um desenlace atrevido, The Centauri Device estará longe de ser uma das melhores space operas que podemos ler hoje em dia - o próprio Harrison considera-o o pior livro que já escreveu (o que talvez diga muito dos seus romances posteriores). Mas a sua importância não pode ser desprezada, e é por isso que o trago aqui: o seu exercício de desconstrução não só demonstrou quão gastas estavam as fórmulas clássicas do género, como lançou as sementes para o seu ressurgimento, uma década mais tarde. Dito de outra forma: é muito provável que sem a pedrada no charco que foi The Centauri Device não tivessem surgido autores como Iain M. Banks, Alastair Reynolds ou Ken MacLeod, entre muitos outros que modernizaram a vetusta space opera e a trouxeram para o século XXI. Qualquer leitor que queira explorar estes temas terá inevitavelmente de passar por este livro. E decerto não dará a viagem por perdida. 

Outras galáxias muito distantes (2)

João Campos, 18.12.17

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

 

the snow queen.jpg

The Snow Queen

Space Opera no feminino

 

The Snow Queen, de Joan D. Vinge, é um caso curioso: foi publicado em 1980, no mesmo ano da estreia de The Empire Strikes Back, venceu o prémio Hugo para melhor romance no ano seguinte, gerou duas sequelas e uma prequela... e, trinta anos volvidos, numa época de pleno ressurgimento da space opera na literatura, na banda desenhada e nos meios audiovisuais, e quando o debate sobre as mulheres e o feminismo na ficção científica se tornou mais pertinente do que nunca, este livro, em tempos descrito como um "Star Wars feminista", está praticamente esquecido.

 

E a descrição tem algum mérito, mesmo sendo o esquecimento tão injusto. Para todos os efeitos, The Snow Queen terá talvez sido uma das últimas space operas relevantes desenvolvida com os moldes mais ou menos tradicionais das histórias épicas de outros tempos: tal como George Lucas, Vinge foi beber à "jornada do herói" de Joseph Campbell e aplicou a teoria a uma galáxia distante povoada por civilizações fascinantes e repleta de mitos de uma época dourada antiga, quase lendária. É muito possível, porém, que as semelhanças terminem aí. Se por um lado a sua grande influência narrativa não residiu nos westerns norte-americanos mas no conto clássico de Hans Christian Andersen, por outro lado The Snow Queen não tem qualquer ambiguidade no seu género: ao contrário de Star WarsThe Snow Queen é assumidamente ficção científica, com um rigor inatacável na construção do seu universo ficcional: o planeta Tiamat, onde decorre a maior parte da trama, não se resume a um único cenário com um clima uniforme: possui climas variados e regiões distintas, dos inúmeros arquipélagos tropicais do hemisfério Sul ao continente montanhoso e gelado do Norte. E os vários elementos científicos e tecnológicos que são apresentados estão longe de ser meros adereços, sendo fundamentais para a narrativa e ilustrando na perfeição a célebre máxima de Arthur C. Clarke: qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.

 

E, claro, há a questão feminista. Vinge até pode ter seguido, mesmo que em traços largos, a lição de Campbell, mas optou por escrever antes a jornada de uma heroína, Moon, cujo percurso a levará inevitavelmente ao confronto com Arienrhod, a Rainha de Gelo do título, monarca absoluta de Tiamat durante o inverno de 150 anos que as mecânicas orbitais do planeta impõem aos povos que nele habitam (estes detalhes nunca são irrelevantes aqui). E se podemos encontrar na Moon das primeiras páginas o arquétipo do jovem inocente que cresceu num lugar remoto sem fazer ideia de quão longe o destino a levará, já em Arienrhod está presente uma ambiguidade rara em romances e personagens desta natureza: em muitos momentos parece uma vilã convencional na ambição e na corrupção, mas Vinge escreve-a com maior profundidade, e os seus objectivos em momento algum são tão simples como aparentam. A Moon e a Arienrhod juntam-se personagens como Jerusha, uma inspectora policial num mundo maioritariamente masculino, ou Gundhalinu, um jovem inspector cuja classe social das suas origens contrasta com o seu destacamento em Tiamat. E muitas outras, num elenco vasto para  o qual a diversidade - de género, de cor da pele, de estratos sociais e de orientações sexuais - não serve apenas para preencher uma qualquer quota (é possível que o tema não tivesse no início dos anos 80 a pertinência que tem hoje), mas para tornar a civilização composta pelos vários mundos apresentados mais verosímil. Não deixa de ser interessante notar que algo tão evidente tenha demorado tanto tempo a ser interiorizado por um género no qual a construção de mundos assume tanta importância.

 

The Snow Queen foi o primeiro livro de ficção científica que li, algures entre 2001 e 2002 - e, à época, recuperou não só o meu gosto pela leitura como me fez descobrir um género que julgava praticamente exclusivo do cinema, da televisão e de alguma banda desenhada. E é curioso notar como contribuiu de forma acidental para a minha resposta adversa ao hype em redor de The Force Awakens há dois anos. O marketing da Disney, sintonizado com o zeitgeist, vendeu bem o seu peixe: temos agora uma mulher como protagonista e um stormtrooper afro-americano! Para o universo criado por Lucas isto talvez tenha sido uma novidade (e a representação é sempre salutar, acrescente-se), mas um leitor mais atento ao género não terá deixado de reparar que lhe serviam comida requentada. Eu reparei: muito antes da Rey de Daisy Ridley e do Finn de John Boyega (ambos excelentes, note-se) já me tinha maravilhado havia muito com a determinação de Moon e com o carácter de Gundhalinu (cujo papel secundário no primeiro livro se tornou principal nos seguintes). Afinal, a diversidade não chegou às galáxias distantes só no século XXI. 

Outras galáxias muito distantes (1)

João Campos, 14.12.17

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

 

saga book one.jpg

 Saga

Uma odisseia familiar

 

Não seria incorrecto se descrevesse Saga como um cruzamento entre a space fantasy de Star Wars numa versão para adultos e a tragédia familiar de Romeu & Julieta. De facto, a a trama escrita por Brian K. Vaughan e ilustrada por Fiona Staples tem lugar num universo ficcional onde naves espaciais convivem sem dissonância com formas de magia e de misticismo, e toda a acção decorre do amor improvável entre dois soldados de facções inimigas num conflito de dimensões galácticas. Mas, não sendo incorrecta, esta descrição pecará por ser demasiado redutora: as semelhanças tanto com a série de filmes iniciada por George Lucas como com a tragédia escrita por Shakespeare terminam logo nas primeiras páginas da banda desenhada com o nascimento de Hazel, filha da relação proibida entre Alana, nativa do planeta Landfall, e Marko, oriundo da lua de Wreath. Perseguida por ambas as facções e pelos vários grupos a elas associados, a recém-formada família enceta uma fuga pela galáxia, procurando proporcionar a Hazel uma infância tão normal quanto possível - e por normal entende-se aqui um foguetão-árvore enquanto casa, uma babysitter fantasma, amizades incertas e inimigos determinados. 

 

Autores menos experientes (talentosos) começariam a história pelo infodump clássico para estabelecer as origens do conflito, as facções, o alastrar da guerra, os protagonistas. Vaughan, porém, não perde tempo com os clichés do costume: Hazel nasce, Alana e Marko estão em fuga, e todo aquele universo abre-se perante o leitor numa trama especialmente bem urdida, onde o frenesim da perseguição se alterna com pequenos momentos familiares. Quem apreciar as aventuras espaciais pela acção sentir-se-á em casa nas páginas de Saga, mesmo que nelas não abundem os intensos combates de naves que tanto sucesso fizeram (fazem) no cinema: a história segue sempre a bom ritmo, as peripécias e as reviravoltas sucedem-se sem perder de vista as persongens complexas e ambíguas que a atravessam. Mas Saga é mais do que a aventura: por entre as peripécias galácticas de Alana, Marko e Hazel, Vaughan vai tecendo algumas reflexões sobre a diferença e o preconceito, sobre a futilidade da guerra e os fantasmas que esta deixa, e sobre questões familiares raramente abordadas na tradição dos comics norte-americanos. Ou, pelo menos, raramente abordadas de forma simultaneamente aventureira e intimista.

Saga-2-Pg-10.jpg

À mestria narrativa de Vaughan junta-se a ilustração assombrosa de Fiona Staples, repleta de vivacidade, a alternar entre os planos mais vastos e os momentos mais intimistas sem nunca perder o pé. Os seus alienígenas são expressivos, diversos e fascinantes, parte integrante da trama em curso e não apenas um cenário glorificado para meia dúzia de cenas - alguns, como o "Lying Cat", já conquistaram o seu lugar no imaginário da cultura popular contemporânea. Prova viva de que a banda desenhada não é apenas um mero texto ilustrado mas uma simbiose entre a palavra e a imagem, a arte de Staples dá toda uma nova dimensão à trama, conferindo a todo aquele universo uma cor sem paralelo. E mais do que isso: uma sensualidade rara neste formato. Disse no início do texto que Saga seria algo como "Star Wars para adultos", e não me referia apenas à profundidade e à pertinência do texto e da mensagem de Vaughan mas também ao arrojo do desenho de Staples, sem tabus e em momento algum gratuito ou desnecessário. A capa da primeira edição, que ilustra este texto, é disso um óptimo exemplo, e gerou a sua dose de polémica à data de publicação (mesmo estando longe de ser uma imagem explícita, ou mesmo a imagem mais explícita desta banda desenhada).

 

Com o primeiro capítulo publicado pela Image Comics em 2012, Saga encontra-se ainda em publicação - se formos contabilizar as colectâneas em paperback, está actualmente no sétimo volume, com oitavo a ter publicação prevista para o início de Janeiro próximo. Felizmente, vivemos uma pequena época de ouro para a banda desenhada em Portugal (algo que não acontece com a literatura deste género), tanto em edições nacionais como nas edições traduzidas, e Saga está a ser publicada por cá pela G Floy Studios em boas edições e bom preço. Seja no original ou em português, é-me impossível recomendá-la mais: no que à space opera contemporânea (ou space fantasy, se quisermos ser picuinhas com a terminologia) diz respeito, Saga é uma obra ímpar.

 

(Para os leitores que possam querer uma sugestão de banda desenhada nestes temas, mas menos atrevida, que sirva de prenda de Natal para os mais novos, recomendo Valérian, que a reboque do filme que estreou no Verão até está a ser reeditada por cá: é um clássico, é divertida, e ainda que aqui e ali esteja algo datada, em alguns aspectos continua à frente do seu tempo. Saga, sendo extraordinária, não é de todo uma banda desenhada para crianças)