Um casal atravessa um território sem fim em busca de um novo Éden. É um local intangível, como ambos perceberão tarde de mais.
«A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso», escreve Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) no mais inesquecível dos seus Contos Exemplares (Ed. Figueirinhas).
Intitula-se A Viagem e é uma longa parábola, de óbvia inspiração bíblica, sobre o sagrado dever de manter acesa a esperança mesmo nas condições mais adversas. Parábola que adquire a força de um mandamento: em tempo de trevas, há que demandar sempre um fio de luz.
«Bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditam!» As palavras de Jesus, citadas no Evangelho de João, podiam servir de epígrafe a esta história que Sophia considerou exemplar, pedindo meças às novelas de Cervantes: «Se bien lo miras no hay ninguna de quien no se pueda sacar um ejemplo.» Fá-lo com uma luminosa limpidez de estilo, inimitável em toda a literatura portuguesa.
«Perdemos tudo quanto encontramos» diz a anónima mulher do conto para o companheiro, tão confundido como ela com o misterioso desaparecimento do carro que lhes pertencia, da estrada onde circulavam, da casa que haviam visitado pouco antes, das próprias pessoas que iam encontrando nos imprevistos do caminho.
É literalmente uma viagem ao abismo. «Encontramos as coisas. Estão ali. Mas quando voltamos já desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou», espanta-se ainda a mulher nesta cruel metonímia de uma era de dissolução.
Surgidos em 1962, os Contos Exemplares foram um poderoso murro no estômago já crepuscular do salazarismo, esse «tempo de silêncio e de mordaça» que Sophia denunciou em verso no seu assombroso Livro Sexto, contemporâneo desta poesia em prosa na qual o então exilado bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, num notável prefácio, detecta justamente uma matriz «cristã e mesmo quase litúrgica», à revelia da «literatura que se quer situar fora da moral e dos valores».
Literatura moral, pois. Nem outra coisa seria de esperar desta católica que jamais renegou as suas obrigações de cidadania, antes e depois do 25 de Abril. «Do outro lado do abismo está com certeza alguém», cogitava, convicta, a singular heroína desta trágica viagem, sem vacilar na fé.
Em verso, também no Livro Sexto, Sophia disse praticamente o mesmo de outra maneira: «Sozinha caminhei no labirinto / Aproximei meu rosto do silêncio e da treva / Para buscar a luz dum dia limpo.»
Por mais sinuosa e estreita que seja a via, o percurso vale sempre a pena. O importante é partir, não é chegar.