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Delito de Opinião

No centenário de Sophia

Pedro Correia, 08.11.19

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(Novembro de 1919 - Julho de 2004)

 

ESTA GENTE

 

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

 

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

 

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

 

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

 

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

 

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen (Geografia, 1967)

Poetisa, pitonisa

Pedro Correia, 20.03.19

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Eis-me em Lagos. E a caminho da Meia Praia, num final de Inverno que mais parece início de Verão, deparo com esta placa. Homenageando justamente uma das maiores escritoras portuguesas de todos os tempos. E também justamente aqui, pois Sophia está profundamente ligada a Lagos, onde compôs alguns dos seus mais belos poemas.

Gosto desta homenagem. E gosto também que a placa toponímica a designe por "poetisa", reabilitando assim este belo substantivo feminino agora escorraçado do discurso cultural dominante, que designa homens e mulheres pela palavra poeta, na reiterada tentativa - que em certos casos deriva para obsessão ideológica - de esbater diferenças de género. 

Há palavras que me tocam muito. Uma delas é precisamente poetisa - que rima com pitonisa. Agrada-me vê-la exposta a quem passa, nesta Rua Sophia de Mello Breyner Andresen, em Lagos. Onde hoje vejo «a luz mais que pura sobre a terra seca», como a autora do Livro Sexto escreveu, aqui bem perto, há mais de meio século. 

Penso rápido (21)

Pedro Correia, 10.07.14

Sophia de Mello Breyner Andresen anda a ser editada em acordês. Há quem se indigne justamente com estas liberalidades. Eu sou um dos indignados.

Argumentam alguns, procurando defender o indefensável, que se lemos hoje Camões ou Camilo com ortografias diferentes das originais a mesma lógica devia aplicar-se à autora dos Contos Exemplares.

Mas são casos diferentes.
Sophia - assim e não Sofia, pois os nomes não se escrevem à la carte, no âmbito das "facultatividades" previstas no "desacordo ortográfico" - militou contra o AO 90. Não passou ao lado da questão: pelo contrário, tomou partido. Com a mesma firmeza revelada antes do 25 de Abril, no combate à ditadura salazarista, e nos tempos revolucionários, contra a ameaça de novas ditaduras em Portugal.
É uma profunda desonestidade intelectual editar os textos de Sophia em acordês, aproveitando o facto de já não se encontrar entre nós. Mais que isso: é um ultraje à sua memória.

Falta de respeito

Sérgio de Almeida Correia, 04.07.14

O Expresso, semanário que muito prezo, anuncia a republicação integral de um texto que Sophia escreveu para aquele jornal nos idos de 1975. Por "republicação integral" eu entendo a republicação de uma obra na sua versão original, tal qual como conheceu a vida. Mas a primeira coisa que reparo é que na anunciada republicação aparece escrito "ato de criação", "ato de liberdade", "abstrata", "mundo atual", "25 de abril", "atividade"...

Que eu saiba, Sophia nunca escreveu nos termos do Novo Acordo Ortográfico. Nunca lhe foi perguntado se queria escrever nos termos do "acordês". E considero uma barbaridade reescrever ou republicar textos à luz desse documento profundamente demagógico. Não se respeita a integralidade do texto original, não se respeita a verdade histórica e manipula-se o texto em termos políticos e culturais.

Como nesse texto também se escreveu "a demagogia é a arte de ensinar um povo a não pensar". Espero que não se atrevam a fazer o mesmo aos textos de Vasco Graça Moura que daqui a uns anos resolvam "republicar".

Sophia

Sérgio de Almeida Correia, 03.07.14

"Da política nem falo. Ou melhor falo. É uma política dominada pela exterioridade, pela vaidade e pela leviandade machista. (...) Graças a Deus sou mulher e por isso não sinto necessidade de triunfo de carreira. Aliás penso que um artista não deve ser governo, mas sim influenciar os governantes." Março, 1978, in Sophia de Mello Breyner & Jorge de Sena, Correspondência 1959-1978

 

Os mesmos que a colocaram no Panteão são os mesmíssimos que recebem e acolhem Obiang em Lisboa e que o acolherão em Díli, de braços abertos, no dia 23 de Julho. Não sei que escreveria ela a contar ao seu amigo Jorge de Sena se soubesse disto e depois ouvisse Cavaco Silva dizer o que disse, logo ele que confundindo a função com os gostos pessoais recusou estar no funeral do único Nobel da literatura português, coisa por que ela tanto lutou. Relendo o que Sophia escreveu é caso para dizer que a hipocrisia e a desfaçatez não conhecem limites em Portugal. E fazem escola.

Ainda a loucura panteanista que assolou o país (se Assunção Esteves inventa palavras também posso fazer o mesmo)

Ana Vidal, 11.01.14

Que Sophia merece o Panteão, acho que nem se discute. Pergunto-me é quais serão afinal os critérios de selecção, e sobretudo fico aparvalhada com esta forma de dar notícias... como se ela estivesse em competição com o Eusébio para ver quem chega lá primeiro. Este país ensandeceu de vez??

 

(Para já não falar no crescente analfabetismo dos jornalistas. Quando a TSF escreve, assume e assina por baixo a palavra "transladada", acho que está tudo dito.)

 

Actualização: afinal as palavras "trasladação" e "transladação" são sinónimos, ambas estão correctas. Agradeço aos comentadores que fizeram a correcção. Sempre a aprender.

Grandes contos (2): Sophia

Pedro Correia, 22.01.11

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Um casal atravessa um território sem fim em busca de um novo Éden. É um local intangível, como ambos perceberão tarde de mais.
«A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso», escreve Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) no mais inesquecível dos seus Contos Exemplares (Ed. Figueirinhas).

Intitula-se A Viagem e é uma longa parábola, de óbvia inspiração bíblica, sobre o sagrado dever de manter acesa a esperança mesmo nas condições mais adversas. Parábola que adquire a força de um mandamento: em tempo de trevas, há que demandar sempre um fio de luz.


«Bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditam!» As palavras de Jesus, citadas no Evangelho de João, podiam servir de epígrafe a esta história que Sophia considerou exemplar, pedindo meças às novelas de Cervantes: «Se bien lo miras no hay ninguna de quien no se pueda sacar um ejemplo.» Fá-lo com uma luminosa limpidez de estilo, inimitável em toda a literatura portuguesa.
«Perdemos tudo quanto encontramos» diz a anónima mulher do conto para o companheiro, tão confundido como ela com o misterioso desaparecimento do carro que lhes pertencia, da estrada onde circulavam, da casa que haviam visitado pouco antes, das próprias pessoas que iam encontrando nos imprevistos do caminho.

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É literalmente uma viagem ao abismo. «Encontramos as coisas. Estão ali. Mas quando voltamos já desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou», espanta-se ainda a mulher nesta cruel metonímia de uma era de dissolução.

Surgidos em 1962, os Contos Exemplares foram um poderoso murro no estômago já crepuscular do salazarismo, esse «tempo de silêncio e de mordaça» que Sophia denunciou em verso no seu assombroso Livro Sexto, contemporâneo desta poesia em prosa na qual o então exilado bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, num notável prefácio, detecta justamente uma matriz «cristã e mesmo quase litúrgica», à revelia da «literatura que se quer situar fora da moral e dos valores».


Literatura moral, pois. Nem outra coisa seria de esperar desta católica que jamais renegou as suas obrigações de cidadania, antes e depois do 25 de Abril. «Do outro lado do abismo está com certeza alguém», cogitava, convicta, a singular heroína desta trágica viagem, sem vacilar na fé.
Em verso, também no Livro Sexto, Sophia disse praticamente o mesmo de outra maneira: «Sozinha caminhei no labirinto / Aproximei meu rosto do silêncio e da treva / Para buscar a luz dum dia limpo.»
Por mais sinuosa e estreita que seja a via, o percurso vale sempre a pena. O importante é partir, não é chegar.