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Delito de Opinião

Recompensa pela desilusão

Paulo Sousa, 16.01.21

A voz rouca do motor bicilíndrico quase que gritou quando enrolei o punho do acelerador. Em poucos metros já rolava velozmente numa sequência de curvas pela Estrada da Beira a fora. O sol estava esplendoroso, incidia de viés, sem perturbar a visibilidade, afinando quase ao máximo a intensidade das cores. O efeito pendular invertido da chamada força centrífuga, mudando de direção em cada curva, combinado com a velocidade e contrariado pela resistência aerodinâmica, era inebriante. Seria difícil melhorar aqueles instantes.

De repente tive a sensação que estava a conduzir na Capadócia, onde nunca estive.

Na primeira paragem, quando me apercebi, alguém tinha levado a mota. Como é que era possível? Adiei anos a aquisição daquela máquina. O acordo comigo próprio era que só o faria depois de ter os filhos criados. Pelo mesmo valor poderia adquirir um todo-terreno usado, talvez até um daqueles ingleses com uma personalidade vincada, e quando conseguisse inventar meia dúzia de horas livres, punha a malta toda lá dentro, subiríamos montes e atravessaríamos vaus com água até as rodas desaparecerem. Esse era o plano.

Como é que, depois de a ter, eu tinha deixado que alguém me levasse a mota?

 

Alguns instantes depois tomei consciência que estava apenas a sonhar.

Fonix! Ainda não foi desta que comprei a bike!

Que desespero! Que desapontamento!

 

E agora quem é que me compensa deste prejuízo?

Guardo esta frase de uma reportagem televisiva feita num inverno em que o repórter informava o país que em Dezembro estava frio. Serviço público, portanto.

Ao entrevistar uma senhora que se tinha espetado contra uma árvore depois de ter travado no alcatrão gelado, ela, indignadíssima, quase gritou aquela frase: “E agora quem é que me compensa deste prejuízo?” Aquilo soou-me como sendo um apelo a um subsídio qualquer, na senda do que é habitual ouvirmos após cada cheia ou vendaval.

Se achamos que cabe ao estado compensar-nos destes infortúnios, é porque frequentemente "eles" acabam por garantir que sim, que nos irão compensar. Se de facto o prometem e o fazem ou não, isso agora não interessa, mas na lógica aceite criou-se uma espécie de jurisprudência que obriga o estado a compensar-nos por azelhices, infortúnios e outras desgraças.

Na mesma lógica, quem é que me compensaria pela mota que me tinham roubado durante o meu sonho? É que não fazem ideia do meu desespero! Ficar apeado depois daquelas maravilhosas curvas era coisa para me fazer lembrar o Hulk quando começa a ficar verde, a dar murros no chão e a rasgar as vestes.

 

Isto é tudo um bocado ridículo. Os sonhos obedecem a regras que não entendemos. Relatar sonhos é enfadonho e por isso espero que me desculpem o abuso.

 

Antes de voltar a adormecer, dei por mim a reparar que o Estado já assume, e há muito, o dever de compensação pelos sonhos destruídos. O que é o Rendimento Social de Inserção senão uma compensação pela incapacidade do país em criar condições para que as pessoas se possam realizar, serem autónomas e felizes? Se a escola de quem pode pagar por um bom colégio é bem melhor que aquela destinada às classes médias e baixas, se a chamada escola pública não permite que os filhos dos pobres possam aspirar a coisa diferente, se a nossa titânica carga fiscal e o armagedão de regulamentos afasta os investidores internacionais para outras paragens, o que sobra para os pobres é viverem dependentes do RSI.

E o Estado, talvez sem dar por isso, o que faz mesmo é compensar esses cidadãos pela desilusão e esvaziamento que, com tanta regra, impediu que fossem evitados.

Somos os sonhos que temos?

Paulo Sousa, 01.02.20

A cena passa-se de noite numa viagem para sul rumo a Lisboa feita no início de mais um fim-de-semana.

A A8 foi sempre um troço propício a incidentes, e isso repetiu-se connosco. A meio de uma ultrapassagem, uma sombra repentina apareceu pela esquerda baixa e sacudiu toda a viatura levando a que todas a luzes vermelhas do painel de instrumentos se acendessem. Entendemos de imediato que tínhamos acabado de enviar um cão para junto do criador e que com ele tinha seguido o nosso radiador.

É vulgar dizer que os portugueses têm sempre sorte e por isso, afortunadamente, ainda conseguimos chegar à estação de serviço umas centenas de metros depois.

Ligamos à assistência em viagem e ficamos a aguardar pelo socorro. O reboque chegou e levou carro de regresso a casa. Nós insistimos para sul, de táxi.

Não fosse o taxista que nos calhou e teria sido apenas mais um episódio rodoviário.

A viagem ainda demorou mais de meia hora e no início desta segunda etapa esgotamos rapidamente a conversa de circunstância. Logo depois, e foi isso que tornou esta viagem memorável, o nosso choffeur de praça, como se dizia na minha infância, lamentou-se do seu ofício e começou a falar-nos da sua paixão.

Tinha trabalhado durante algum tempo numa loja de tintas e aí descoberto que afinar cores era o que mais gostava de fazer na vida.

Perguntou-nos a cor do nosso carro. Cinzento, disse-lhe. Mas de que marca? Epá, essa marca tem dois cinzentos diferentes. Desconhecia... está bem.

Soubemos que sabia de memória a proporção dos corantes necessários para a maior parte das cores do nosso dia-a-dia. O antigo tejadilho verde dos táxis tinha sido um quebra cabeças revelado apenas uns dias antes da loja onde trabalhava ter fechado. Mas havia muitas mais. O laranja da Galp era diferente do do PSD, o verde da BP e o do SCP ficavam a quilómetros de distância e o preto dos táxis antigos era diferente do preto dos carros funerários. A cor dos táxis modernos era fácil de afinar e depressiva de ver. Quando conduzia durante a manhã entretinha-se a imaginar como afinaria, minuto após minuto, hora após hora, as mudanças da cor do céu. À tarde continuava a folhear mentalmente as páginas do pantone e mantinha o exercício até ao pôr do sol. E mesmo no breu da noite, em cada cruzamento, encontrava novos desafios.