Os miseráveis do micro-poder
Num destes fins-de-semana fui passar umas horas à praia fluvial dos Olhos de Água. É ali que nasce o Rio Alviela que desde há muitas décadas faz parte do sistema que fornece água à grande Lisboa. O seu centro de ciência Viva, o Carsoscópio, é um daqueles investimentos apenas possíveis graças aos fundos europeus, que lamentavelmente tem poucos visitantes mas que vale muito a pena conhecer.
O assunto do post é, no entanto, outro.
Graças às medidas anti-Covid, a lotação da praia fluvial é controlada para evitar grandes aglomerações de pessoas. Todos sabemos que temos de fazer a nossa parte e o público é sensível ao que está em causa e segue as instruções.
A entrada do perímetro é controlada por uma empresa de segurança. Quando entramos (éramos quatro) quem estava de serviço era uma senhora que respondeu com um sorriso aos nossos bons-dias. Reparamos que tinha um contador mecânico na mão que pressionou quatro vezes à nossa passagem.
Algum tempo depois, quando saímos, a fila para entrar já tinha umas dezenas de metros. O turno tinha mudado e a senhora já não estava lá. O sol estava a pino e mesmo assim tudo funcionava ordeiramente.
Como é inevitável, a saída do nosso grupo fez sorrir os quatro primeiros da fila. Era um casal com dois filhos menores. Quando cruzamos a barreira ouvimos o segurança dizer: “Podem entrar três pessoas!”
Olhamos uns para os outros e depois para a família que, também eles incrédulos, ficaram a olhar uns para os outros e para o segurança. Será que ele se tinha enganado a contar quantos tinham saído? Se estavam a sair quatro pessoas, porque é que só podiam entrar três? Qual deles iria ter de continuar a esperar?
Olhei para trás e vi que dentro daquela escura e transpirada farda de segurança estava um reles bastardo, com um ar satisfeito a usufruir do seu micro-poder. Estava a trabalhar no fim-de-semana mas tinha forma de incomodar quem podia ir usufruir umas horas em família.
O perfil sociológico em que este comportamento de encaixa é transversal à humanidade. Não é um exclusivo nacional. Apesar disso é mais visível em algumas sociedades, até pela forma como se organizam e pelos seus traços culturais. As regras anti-Covid prestam-se a alimentar estes tipo de egos.
O chefe do procedimento e do micro-procedimento é também uma figura que se encaixa sem esforço numa ordem autoritária ou totalitária.
No julgamento de Nuremberga, onde os réus eram acusados de terem feito parte da máquina nazi que exterminava pessoas, justificaram-se dizendo que apenas cumpriam ordens e que o que faziam era apenas contar pessoas, ou distribuir roupa ou servir refeições. A máquina nazi desmontou os seus crimes em pequenas tarefas inócuas em que apenas poucos seriam levados a tomar uma atitude de repulsa perante as aberrações em que estavam envolvidos.
Muita gente encontra conforto ao assumir a plena responsabilidade por um micro-cosmos de poucas varáveis. No resto da sua existência são apenas mais uma figura anónima, cumprem normas, pagam impostos, respondem a um cumprimento, por vezes até com um sorriso, mas os carimbos dispostos naquela secretária são o seu império. As portas que um carimbo, se for colorido ainda melhor, pode abrir dependem da sua vontade e disposição. No resto da suas vidinhas são subjugados pelos demais actores, é a esposa ou o marido que são autoritários, infiéis até, é o chefe arrogante, são os políticos corruptos e as leis invasivas da individualidade e injustas. Sobre isso não podem fazer nada. Mas ali são eles que têm a raquete do trânsito.
Já todos nos cruzamos com pessoas destas que exercem com jactância este miserável micro-poder a que, se confrontados a tal, justificariam como sendo apenas profissionalismo.
Pode ser um pacato continuo escolar que tem o asseio dos WC à sua responsabilidade, como pode ser um guarda de um campo de concentração que meticulosamente apenas agrupa por idades quem lá entra.
Chamo-lhes os miseráveis do micro-poder, e miseráveis apenas por oposição à grandeza das pessoas que atrás de si deixam um legado positivo para as gerações vindouras.