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Delito de Opinião

O bidé machista

José Meireles Graça, 15.09.24

No percurso, que há muito não fazia, para Ponte de Lima, parei numa área de serviço. É daquelas que têm, nas instalações sanitárias, um anunciado novo conceito.

Já o conhecia, de algumas áreas a caminho de Lisboa, e preparei-me portanto para ouvir o chilreio de passarinhos enquanto tratasse do assunto entre mãos que lá me levara.

Mas nada, se lá estivesse outro caramelo ainda poderia ouvir algum ruído, de resto dispensável, mas nem vivalma, graças a Deus.

Comentei que, se não há passarinhos, ficava sem perceber em que consistia o conceito, e foi-me dito que as sanitas têm descarga automática – uma pessoa levanta-se e imediatamente se abre uma catarata de águas higiénicas.

Gostei de saber, e perguntei se havia bidés. Que não senhor, não havia.

Quer dizer que, no velho conceito, a ausência de bidés se explicava pela atávica ignorância do cidadão comum, tradicionalmente porco, e que por isso julga que aquela louça sanitária só serve para mulheres, confiando ele num papel que, segundo uma lenda persistente, é higiénico.

Mas não. No novo é igual.

Costumes

José Meireles Graça, 23.05.24
Saí para fumar um cigarro ao sol. Na paragem da camioneta, a poucos metros, a moça estava de auriculares e um telemóvel, afastado uns 20 cm. Bem disposta, via-se-lhe um sorriso de dentes cavalares com diastemas - nada que um bom dentista não consertasse se ela tivesse meios, caso em que ficaria bonita. E dizia tranquilamente: Quero que tu te fodas. O que respondeu o caramelo não sei, mas ela acrescentou com louvável serenidade: Vai p'ra puta que te pariu. E eu regressei ao interior, um pouco entristecido por este incidente funesto, mas a sobremesa esperava. Era toucinho do céu, se alguém quer saber.

O grande paradoxo das sociedades

beatriz j a, 07.02.22

Penso que foi Proust quem disse que não podendo mudar as pessoas entretemo-nos a mudar as instituições. Ele refere-se à natureza das pessoas, nomeadamente no que respeita à sua relação com o poder, mas a verdade é que também é difícil mudar as instituições. É que para mudar as instituições é necessário que as pessoas mudem, pois as mesmas pessoas, com a mesma natureza de apetência de poder, não produzem instituições diferentes. Pelo contrário, trabalham para a manutenção do seu poder. Veja-se como o PS já rasgou a proposta de tornar a nossa democracia mais representativa através da mudança da lei eleitoral. Só porque pode. E esse é o paradoxo. O poder gera mais vontade de poder e não vontade de mudar as instituições no sentido de maior justiça.

Por conseguinte, o que vemos quando olhamos para trás é que as grandes mudanças das instituições que mudam as sociedades são, por norma, precedidas de grandes acontecimentos catastróficos -geralmente guerras- onde quem mais sofre são os inocentes sem poder. É após esses acontecimentos que as pessoas mudam: ganham consciência das consequências das injustiças, da ganância de poder, da pobreza, da acumulação obscena de riqueza de uns à custa de outros, etc. e, durante um tempo agregam esforços e mudam, de facto, as instituições (quando isso acontece, porque também existem os casos de grandes guerras e revoluções produzirem mudanças institucionais piores, mais injustas). Depois, com o tempo, esquecem e deixam as instituições entrar de novo em decadência. Quase todos querem a paz mas poucos evitam as guerras. E parece que não saímos deste ciclo. A UE é uma grande aventura de tentativa de quebrar o ciclo, mas as forças de entropia são muito grandes: nacionalismos, populismos, intenções hegemónicas. 

Amigos de aluguer

Ana CB, 21.01.22

Li num artigo que em Tóquio é possível alugar amigos. Ou seja, pagar a alguém para ser nosso amigo durante umas horas. Os “amigos de aluguer” entrevistados contam as histórias mais variadas, desde serem contratados para passarem por familiares de uma noiva, posarem para selfies no Instagram, fingirem ser um namorado ou namorada, ou serem apenas correspondentes por email. No entanto, a grande maioria das pessoas que os contratam apenas querem companhia: para ver TV, ir às compras, ou simplesmente conversar.

Para quem trabalha nesta área, a motivação não parece ser o dinheiro – o valor que recebem por hora não é assim tão alto quanto isso (sobretudo num país caro como é o Japão), e a procura destes serviços é sempre incerta. Há quem diga que é o desejo de ajudar quem precisa de algumas horas de conforto emocional, ou quem o faça para quebrar a rotina de um emprego estável mas algo monótono. Alugar a nossa amizade a estranhos em troca de dinheiro parece estar algures entre um passatempo e a prestação de cuidados paliativos.

O que é que isso diz de uma cidade como Tóquio, tida como superdesenvolvida e onde há lugar para todas as excentricidades? E o que é que diz sobre a sociedade japonesa, que é supostamente tão correcta e amigável? A explicação dada no artigo é que no Japão, o importante é a fachada, o exterior impecável, a aparência de que está tudo bem. As pessoas não estão habituadas a mostrar o seu lado mais vulnerável, têm dificuldade em abrir-se com os outros. Não se tocam. Não exprimem as suas emoções. Psicologicamente, não estão bem, mas não partilham o que sentem, e não procuram ajuda – porque há um estoicismo, transversal a toda a cultura japonesa, que faz com que se vejam obrigados a aguentar tudo sem darem parte de fracos. Nas redes sociais podem até mostrar uma vida feliz, alegre e preenchida, mas muitas vezes tudo não passa de uma mentira.

Num país onde é normal ter um horário laboral diário de 10 horas e frequentemente o convívio se resume à família e aos colegas de trabalho – com o habitual distanciamento físico e emocional já firmemente incorporado nos hábitos sociais – sobra pouco espaço e tempo para construir amizades verdadeiras, e menos ainda duradouras. Num país que é tecnologicamente muito desenvolvido, culturalmente avançado (e esta é a explicação mais invocada para as reduzidas taxas de infecção e morte por covid-19 que o Japão tem mostrado), hiperprodutivo, politicamente estável e etnicamente homogéneo, esta incapacidade de ter e manter amigos parece coisa de ficção científica – e daquela mais pessimista.

Como latinos que somos (e optimista que sou), estou em crer que por cá a “moda” não irá pegar. Mas… este retraimento a que somos forçados há quase dois anos, somado à apetência cada vez maior pelos smartphones e à substituição de formas de entretenimento interactivas por quilómetros de scroll e horas passadas a jogar ou nas redes sociais, não são um bom indicador do que poderá ser o futuro próximo, sobretudo para as gerações mais jovens – que desconhecem o poder reconfortante das tardes à conversa com os amigos num qualquer café de bairro.

Voltar ao metro

Teresa Ribeiro, 27.08.21

Não guio. Como sempre estive convicta de que um dos principais focos de contágio da Covid é nos transportes públicos, defendi-me durante bastante tempo com um esquema de boleias que me resolveu o problema. Mas a dependência cansa e às tantas entendi que já era tempo de regressar à normalidade, até porque tenho um horário flexível, que me permite evitar as horas de ponta.

Quando voltei ao metro, a minha curiosidade concentrou-se no comportamento dos utentes. E constatei mais uma vez que somos um povo obediente e ordeiro. A maioria, quando há espaço que chegue, preocupa-se com o afastamento e usa máscara. Mas claro que há excepções. Em poucas semanas vi gente ao molho, sem necessidade. Magotes a concentrarem-se escusadamente junto às portas, muito antes de o metro entrar nas estações, pessoas sem máscara por estarem a beber, ou a comer, ou porque sim. Tanto que se fala na importância do distanciamento social e muitos, sem pensarem duas vezes, sentam-se nos bancos que ficam costas com costas, de modo a quase tocarem na cabeça uns dos outros.

Nunca me apercebi tanto como agora de que há imensa gente que tem o vício de ocupar o tempo que gasta nas deslocações a falar ao telefone. Numa só carruagem é comum ver várias pessoas nesse trai-lai-lai e facilmente se percebe, porque muitas falam alto, que não se trata de telefonemas inadiáveis.

Não é preciso ser especialista em epidemiologia para perceber que o risco de contágio aumenta com este género de comportamentos, tão fáceis de corrigir. Tanto tempo que se tem gasto em televisão a entrevistar especialistas, tanto que nem os mais pacientes já  os conseguem ouvir, e ninguém se lembrou de encomendar uma campanha, feita de forma simples e divertida, que chame a atenção para a importância dos detalhes na prevenção do contágio?

Ontem não pude evitar um risinho amarelo quando entro numa estação e oiço em fundo a voz de uma funcionária avisar que "a linha verde está com perturbações". Hoje tive a certeza que a velha rotina se tinha instalado na minha vida quando ouvi ao chegar ao metro, a voz de uma funcionária a pedir "desculpa pelo incómodo causado", pois "o tempo de espera na linha azul" podia ser "superior ao normal". 

E claro, escadas rolantes avariadas também existem com fartura. Há coisas que nem com a pandemia mudam...

Ambiente de trabalho VII

Teresa Ribeiro, 29.07.21

As novas elites não dão ponto sem nó. Traçam o seu percurso, começando cedo a identificar que pessoas devem conhecer e em que circunstâncias. Preparam-se cuidando dos mais ínfimos detalhes, porque hoje o  que parece, é. Há soft skills que devem constar num currículo, porque são muito valorizadas nos tempos que correm, daí ser conveniente exercer atividades a partir das quais se possa tirar ilações sobre a qualidade do seu carácter ou capacidade de trabalho. 

Como bailarinas em pontas aprendem, depois, a andar em bicos de pés para serem notados por quem tem poder. E o que é, para esta nova geração, ter poder? Ter poder é ter influência. Ser conhecido e reconhecido. Mas este reconhecimento não tem necessariamente a ver com competência, conhecimento e muito menos experiência. Três atributos que a nova cultura do trabalho esvaziou ao introduzir no discurso um novo mantra: proactividade, competitividade e "gosto pelo desafio". Três magníficos eufemismos cuja elasticidade permite cobrir um vasto leque de perfis, desde os jovens com ambição que desejam legitimamente subir na vida, àqueles que antes se designavam por arrivistas: tractores que não olham a meios para "chegar lá". Não importa como, pois já ninguém quer saber.

"Estar lá" quer dizer que se ganhou a medalha olímpica da notoriedade, o novo oiro. Não por acaso chegou-se ao ponto de criar uma nova "profissão", a dos influencers. Ter poder é conhecer e ser conhecido por "toda a gente", sendo que "toda a gente" é a gente que tem uma importante rede de contactos. Trata-se de uma pescadinha de rabo na boca, círculo onde até se vende a mãe para entrar, pois os que ficam de fora são nada. Pertencem à massa indistinta dos que não "chegaram lá". Engenheiros, arquitectos, artistas, limpa chaminés, jornalistas, rapariguinhas do shopping, é indiferente. A todos é dispensado um tratamento indiferenciado que se verte, de resto, em salários absurdamente semelhantes.

As novas elites lideram, sem complexos, áreas que desconhecem, apoiadas na expertise dos profissionais que este novo sistema proletarizou. Mas formadas que foram na cultura narcísica do autoelogio e do elogio mútuo sustentada pelas redes, não resistem a deixar a sua marca de génio na gestão de pessoas e coisas, tomando por capricho decisões absurdas e irresponsáveis, ignorando os conselhos de quem sabe, só pelo prazer de mandar. É nisto que estamos, nas mais diversas áreas de actividade. Até dói.

Ambiente de trabalho VI

Teresa Ribeiro, 15.02.21

Tudo começou com a democratização do ensino. Algo que urgia, mas que esbarrou num mercado de trabalho impreparado. Num país sem investigação nem iniciativa empresarial nas mais diversas áreas, não havia lugar para muitos licenciados. Por isso no fim da linha tantos passaram a desembocar no desemprego, na emigração, ou na precariedade. A desvalorização do trabalho intelectual inicia-se assim, em meados dos anos 80, rumo à proletarização das mais diversas profissões, sobretudo na área de humanidades, mas não só.

Hoje é comum um empresário pagar mais à empregada que lhe limpa a casa do que aos licenciados que emprega no seu escritório. Isto porque as empregadas domésticas, ao contrário  destes novos proletários, beneficiam da lei da oferta e da procura. 

Com a crise pandémica esta vulnerabilidade aumentou. Sei de gente que esteve seriamente doente e que nunca parou de trabalhar. Isto de o trabalho intelectual poder ser feito à distância tem sido - para muitos doentes COVID e não só - uma dificuldade acrescida. Porque a entidade empregadora presume que em casa, mesmo doente, dá para ir trabalhando.

Esta pressão verifica-se sobretudo junto dos que trabalham em PME's. Como estas constituem, como se sabe, a esmagadora maioria do tecido empresarial português, estamos a falar de muita gente. De profissionais cujas equipas se resumem, tantas vezes, a eles próprios. Em cujas funções sabem ser insubstituíveis. Circunstância que não os beneficia, pelo contrário. Pois se não podem parar, se porventura um dia o fizerem, pode significar o fim de um contrato de trabalho.

Mas entre os profissionais que não podem trabalhar à distância também vejo muitos a arriscar todos os dias um possível contágio, porque aceitam trabalhar sem condições de segurança e o motivo é sempre o mesmo: a precariedade endémica que os faz ceder a cumplicidades que lhes são impostas, de forma abusiva, a bem dos interesses da empresa. E cedem porque estão na base da cadeia alimentar que há muito vive da exploração impudica do talento. Esse bem que tantos agora gostam de louvar mas que hipocritamente, no segredo dos seus escritórios, tratam como lixo.

Indignação e revolta

Pedro Correia, 17.12.20

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Num aeroporto chamado Humberto Delgado, assassinado por esbirros da polícia política de outrora, verdugos contemporâneos seviciaram e sovaram até à morte um homem chamado Ihor Homeniuk. Condenado a pena capital extrajudicial, em instalações do Estado português, pelo "crime" de querer entrar em Portugal. Precisamente num país que ainda se orgulha de ter sido um dos primeiros no mundo a abolir a pena de morte.

Indigna e revolta saber que nesse aeroporto com o nome do general sem medo existe uma alcateia à solta. E também um bando de hienas a proteger as bestas - umas e outras pagas por todos nós. Perante o inaceitável silêncio do Presidente da República, que se apressou a verter uma mensagem de condolências na sua página oficial à família de uma jovem falecida num desastre rodoviário enquanto ignorou durante nove meses a viúva e os filhos de Ihor Homeniuk.

Mas também indigna e revolta o tratamento post mortem atribuído ao assassinado pelo fluxo mediático dominante, que foi assobiando para o lado enquanto pôde. Com milhares de horas de emissão televisiva dedicadas a um putativo "reforço do Benfica" e silenciamento total do homicídio no aeroporto. Ihor Homeniuk é nome que a Wikipédia omite e os motores de busca na ocidental praia ignoram: um tal Cavani foi o mais procurado no Google pelos portugueses ao longo deste ano de pesadelo, o que diz quase tudo sobre a sociedade que temos.

Também indigna e revolta a hipocrisia cada vez mais selectiva das indignações em voga, à mercê não de louváveis impulsos humanitários mas de cartilhas ideológicas, discriminando vítimas em função de etnias, cor de pele e proveniência geográfica. Como se uns cadáveres fossem "mais iguais" que outros.

«Dê a pata, não seja mau»

Pedro Correia, 28.09.20

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Até há poucos anos, era padrão corrente o excesso de formalismo no modo como as pessoas se dirigiam umas às outras na televisão. Recordo uma entrevista conduzida por Judite Sousa na RTP em que a jornalista tratou cerca de trinta vezes o seu convidado por sôtor. Sem ninguém a ter advertido, antes ou depois, que duas vezes já é de mais.

De repente, passámos para o extremo oposto. Hoje quase toda a gente se trata por tu. Ontem à noite, uma dessas jovens certamente mal pagas mas com "bom visual" postas à frente da pantalha para apresentar alegados espaços informativos tratava por tu um convidado com idade para ser seu avô enquanto este resistia à tendência, tratando-a respeitosamente por você

São sinais dos tempos. Por óbvia importação da televisão americana, onde as formas de tratamento "igualitário" se tornaram de uso corrente, facilitadas pela inexistência de diferença entre tuvocê (you, em ambos os casos) no idioma inglês.

 

Acho muito bem que se desengravate a linguagem. Andámos demasiado tempo amarrados a pompas retóricas, em parte relacionadas com supostos graus académicos de que se usava e abusava nas formas de tratamento verbal. Hoje nem no Parlamento se emprega a antiga excelência, salvo para uso sarcástico. 

Mas há o risco de cair no exagero contrário. Reparem, uma vez mais, no que sucede nas televisões: quase todos os intervenientes num debate ou numa entrevista se tratam hoje pelo nome próprio. Como se fossem velhos conhecidos e estivessem a dialogar em ameno convívio nos sofás lá de casa. Também aqui por óbvio mimetismo dos EUA.

Já temos o "Presidente Marcelo", as bloquistas Catarina e Marisa, o comunista Jerónimo e até o cê-dê-esse Chicão. Nisto o partido fundado por Freitas do Amaral e Amaro da Costa tornou-se precursor: não tarda muito, teremos a proliferação dos diminutivos (embora Chicão pretenda ser aumentativo). Uma vez mais, seguindo o exemplo dos States, onde já houve um presidente chamado Jimmy e outro chamado Bill - que assinavam assim até em documentos oficiais. Não custa vaticinar que também por cá surgirão um Jaiminho ou um Gui na caça ao voto.

 

Enquanto isto sucede, inversamente, a forma de tratamento dos animais torna-se mais solene, grave e reverente. Verifico isso agora com frequência, quando caminho nas ruas do meu bairro. Não faltam damas e cavalheiros a tratar por você os cães que levam a passear, o que para mim constitui novidade absoluta. Nunca tinha ouvido nada semelhante, nem na Lisboa mais snobe.

«Sente-se aí, dê a pata, não seja mau, mostre como é bonito.» São exemplos de frases que vou escutando, reveladoras da fulgurante ascensão canídea na hierarquia urbana deste nosso século XXI. Por vezes atrevo-me pensar que anda tudo um bocado às avessas. Mas é capaz de ser defeito meu, por absoluta incapacidade de acompanhar a marcha imparável do progresso. 

Como qualquer de nós, vou-me adaptando. Há dias, pedi ao canário: «Canta para mim, Caruso.» Mas logo emendei: «Cante para mim.» E ele cantou.

No mercado

Teresa Ribeiro, 04.04.20

Desloco-me ao mercado a uma sexta-feira para evitar o movimento dos sábados e deparo-me com o movimento dos sábados a uma sexta-feira. Não há como evitar os outros. As ruas estão desertas, mas é um engano. Entre portas continua a viver-se em comunidade, porque a vida está, desde há muito, organizada assim.

Mas há diferenças. Agora a mole divide-se entre temerosos e temerários. Aqueles que usam máscara identificam-se logo, tal como acontecia nos tempos em que havia futebol e seguiam para o estádio de cachecol e bandeirinha. Mas os adeptos da equipa adversária, apesar de não usarem distintivos, também se revelam sem qualquer subtileza. São os que ostentam olímpico desrespeito pelas novas normas sociais. Falam, movimentam-se, com alarde. Os mais afoitos ainda arriscam apertos de mão.

Na zona da peixaria, a banca mais popular do mercado continua com movimento e Rosa, que a dirige com mão de ferro, também faz questão de mostrar de que fibra é feita. Entra e sai da banca, escolhe o peixe com desembaraço, e não se inibe quando reconhece entre os seus habitués gente da sua equipa. Ei-la, toda sorrisos, a dois palmos de um cliente a quem trata por doutor. Pequena, franzina, à frente de uma equipa de homens, talvez descendentes de pescadores, aprendeu há muito que entre os seus, o respeito conquista-se à força de coragem para desafiar os elementos. Ele, quem sabe, convenceu-se de que a distância de classe o vai preservar, como sempre, de tudo.

Em louvor da sociedade

Pedro Correia, 21.03.20

Tenho ouvido, por estes dias, loas imensas ao Estado. O mesmo Estado, convém salientar, de que faz parte a directora-geral da Saúde, que a 15 de Janeiro declarava com todas as letras: «Não há uma grande probabilidade de um vírus deste chegar a Portugal.»

O mesmo Estado, convém não esquecer, de que faz parte uma ministra da Agricultura entretanto desaparecida em combate e que a 5 de Fevereiro - quando já havia 490 mortos e mais de 24.500 infectados na China - se ufanava perante a hipótese de o coronavírus poder vir a ter «consequências bastante positivas» para as exportações portuguesas.

 

Julgo ser tempo de elogiar não o Estado mas a sociedade. A que não precisou dos ditames estatais - incluindo a inédita declaração do estado de emergência a nível nacional, com a suspensão de direitos fundamentais - para se organizar e reagir à doença galopante.

Às empresas, aos clubes, aos ginásios, às colectividades, às igrejas (incluindo a supressão de missas e outras celebrações de culto).

Aos responsáveis da rede escolar privada que foram encerrando antes de um patético Conselho Nacional de Saúde, que ninguém conhecia, ter vindo a público, já no dia 11 de Março, recomendar que os estabelecimentos de ensino e os museu permanecessem abertos - precisamente na véspera de a Organização Mundial de Saúde proclamar o coronavírus como pandemia e de o Governo ordenar o encerramento de todas as escolas, mostrando a inutilidade daquele órgão de consulta criado sabe-se lá para quê.

 

Apetece-me, portanto, elogiar a sociedade. Onde se integram agricultores, assistentes de bordo, auxiliares de saúde, bancários, bioquímicos, bombeiros, caixas de supermercado, camionistas, carteiros, cientistas, comerciantes, controladores aéreos, cozinheiras, cuidadoras, distribuidores, educadoras de infância, empregadas de limpeza, enfermeiras, estivadores, farmacêuticas, ferroviários, informáticos, jornalistas, maquinistas, médicos, merceeiros, motoristas, operadores de máquinas, operários, padeiros, pastores, pescadores, pilotos, professores, psicólogos, revendedores, seguranças, taxistas, técnicos de informática, veterinárias, vigilantes, voluntários.

Gente que trabalha por vezes sem rede, sem horário, sem "direitos adquiridos", sem pedir nada em troca, sem a perspectiva de poder ter emprego no mês seguinte.

Gente como vós, gente como qualquer de nós. 

Estaremos simplesmente a ficar velhos?

João André, 27.02.20

Uma das coisas que mais me fascinam são os textos pessimistas. Não falo de textos como os do falecido Vasco Pulido Valente, que apesar de invariavelmente pessimista, tinha esse pessimismo como resultado de um pensamento apurado e meticuloso. Eu discordava frequentemente dele e não me agradava a acidez dele, mas o seu brio intelectual era quase sempre inatacável.

Quando falo de pessimismo, falo daquele que, na maioria das vezes, assume de forma directa ou indirecta um cunho de "no meu tempo..." ou "já não se fazem como antes", ou até de "os tempos mudaram muito". Esta última instância é normal: os tempos de facto mudaram muito. Temos a Indústria 4.0  - ou a 4ª revolução industrial, mas hoje em dia (cá estamos) as coisas só são levadas a sério com um ".0" algures no nome. Temos Internet. Temos redes sociais. Temos internacionalizações e viagens facilitadas. Temos notícias na ponta dos dedos com uma velocidade e variedade incomparável na história humana (mesmo quando a precisão e a minúcia sofrem). As mudanças são muitas, mas são essencialmente tecnológicas ou derivadas de tecnologia.

Só que não são novas. Um dos tipos de textos que mais gosto de ler na The Economist são aqueles que traçam paralelos das queixas presentes com as do passado. É frequente esses textos fazerem referência a alterações (jornais, cafés, comunicações, automóveis, etc) especialmente do final do século XIX e notarem as preocupações que tais alterações induziam nessa altura. Por vezes os textos começam com excertos de (por exemplo) 1895  e nós somos levados a pensar que se escreve sobre algum caso actual. O texto do Sérgio, sem fazer juízos específicos sobre ele, lembra-me isso. Leio-o e, dos temas que acompanho, concordo em traços gerais. Pergunto-me no entanto se tal texto, com uma ou outra modificação, não poderia ter sido escrito em 1950, ou 1920 ou 1880.

Lembro-me com frequência de quando a RTP1 e RTP2 eram as únicas televisões e os telejornais não excediam a meia hora (que a seguir vinha a novela e depois o filme). Não vou queixar-me da qualidade da informação, mas antes de como hoje temos informação sobre tudo e mais alguma coisa. Se um homem matar a mulher em Cabeça Gorda no Alentejo, teremos em algumas horas directos do local, com os repórteres a repetirem as mesmas coisas de hora a hora e a dizer o estado do tempo só para encher chouriços. Em 1991, esse assassinato seria provavelmente ignorado, dado que não se podia enviar o repórter lá e isso só seria um problema se sequer se soubesse de tal caso. A realidade é que há hoje muito mais abundância de notícias e, com a natureza humana inalterada, "if it bleeds it leads", as notícias más serão sempre amplificadas nos noticiários e nas nossas mentes.

Estamos melhor hoje ou antes? Pessoalmente não creio que haja demasiada diferença, mas prefiro saber de mais um caso de violência doméstica, de insegurança rodoviária em Abrantes ou de falta de cuidados médicos em Sátão. Com essa informação sempre se pode exigir alguma coisa. De outra forma ficamos no nosso "vamos andando".

Há lados maus? Claro que sim, isso é inevitável. No entanto penso que, levando tudo em conta, o mundo continua, como sempre terá continuado desde há séculos, dois passos à frente e um atrás, a melhorar e a progredir. Teremos umas pestilências, guerras, fomes e mortes pelo caminho? Por algum motivo já vêm desde o Novo Testamento. São parte da natureza humana.

Por isso, mais que um regredir dos tempos, creio mais num avançar dos anos de quem profere (proferimos) estas palavras. Não é o mundo que está pior, mais perigoso ou mais feio. Creio que somos nós que estamos mais velhos. E o Restelo não está (pelo menos para mim) aqui nada perto.

Conservadores e progressistas

Alexandre Guerra, 19.02.20

O “caso” Terry Shiavo espoletou um dos maiores embates ideológicos dos últimos anos nos Estados Unidos, no âmbito das chamadas questões fracturantes, provocando um feroz debate entre conservadores e progressistas. Foi há quinze anos e desde então, que me recorde, nenhum outro assunto fracturante voltou a inflamar e a dividir a sociedade norte-americana daquela maneira.

O tema começou por assumir contornos privados, com a decisão de Michael Shiavo, marido de Terry, uma paciente que estava num estado vegetativo há 15 anos (mas não em coma), em deixá-la morrer naturalmente, tendo para isso que ser retirado o tubo através do qual se ia inserindo no seu organismo os líquidos necessários para a sua sobrevivência. Para Michael tratava-se de uma questão de dignidade da sua mulher, face a uma situação que os médicos consideravam já não ter retorno. No entanto, rapidamente esta questão extravasou para a esfera pública, até porque os pais de Terry se opunham à decisão de Michael, com quem disputavam legalmente há vários anos esta questão.

Quando a 18 de Março de 2005 foi retirado o tubo que garantia a vida de Terry, rapidamente o poder político interveio. O Congresso americano, na altura dominado maioritariamente pelos republicanos, subscreveu uma lei especial proposta pelo então Presidente George W. Bush, na qual se exigia que o tubo fosse recolocado e se atribuísse aos pais a guarda legal da filha. Enquanto Terry se ia lentamente entregando à morte, a América mergulhava nesta discussão. A clivagem foi evidente e na arena política, em termos gerais, republicanos e democratas defenderam posições contrárias. Era sobretudo o combate dos combates entre conservadores e progressistas.

Os conservadores recusavam-se a aceitar o acto de Michael e Terry porque, em última instância, poderia colocar em causa um modelo de sociedade ao qual estavam acomodados e que, apesar de tudo, no seu entendimento, funcionava em relativa harmonia. […] Esta posição identificava-se, de certa maneira, com uma política conservadora no sentido sociológico da palavra. Ordem e estabilidade são os dois conceitos basilares do espírito conservador e assim a “política conservadora advoga a permanência de uma ordem político-social quer histórica quer eterna e não reconhece a possibilidade de um regime novo e melhor que os do passado, pretextando que os caracteres fundamentais das sociedades são sempre os mesmos, sejam quais forem as épocas”. […]

Por outro lado, os progressistas estavam receptivos à descoberta de algo novo, resultante das liberdades individuais, e dispostos a aceitar as respectivas consequências sociais, desde que estas se apresentassem como benéficas para a Humanidade. Na verdade, estes viam no gesto de Michael e Terry a ideia de um progresso contínuo e ascendente da Humanidade. Na linguagem restrita da Sociologia ou da Ciência Política, “o progressismo tanto se pode opor ao marxismo como ao conservadorismo”. Do mesmo modo que um “reformista pode ser dito progressista na medida em que defenda um melhoramento progressivo do sistema sócio-político”. Veja-se, por exemplo, a definição que Raymond Aron atribui à política progressista: “A que se recusa a afirmar exclusivamente quer o fim quer a constância da História, admitindo as transformações, irregulares mas indefinidas, em direcção a um termo situado no horizonte, ele próprio justificado por princípios abstractos.” 

No caso concreto da Terry Shiavo, os conservadores seguiram a linha de pensamento tradicional, recusando qualquer prática consciente de privação da vida de um ser humano, mesmo que este esteja condenado a um estado vegetativo até ao fim dos seus dias. No campo democrata, ia-se criticando a intervenção política e legislativa nesta matéria, sublinhando que se estava perante uma clara interferência do poder do Estado na esfera privada. Os congressistas democratas sustentaram ainda que o Congresso não podia fazer o papel de médico ou de Deus, além de que estava a ir contra as decisões dos tribunais. E a verdade é que quase três semanas depois de Bush ter apresentado a sua lei, um tribunal federal considerou-a inconstitucional. A 31 de Março, os pais de Terry anunciavam a morte da filha.

Este caso tinha chegado ao fim, mas as consequências políticas perpetuaram-se. Como, aliás, escrevia na altura o correspondente da BBC em Washington: “The death of Terri Schiavo this week has not ended America's painful ethical and political debate over individuals' right to die.” Mas, o problema vai mais longe e Justin Webb acrescentava: The founding fathers, with a wisdom which truly does echo down the ages, decided that there would be a separation of powers. General laws would be made by politicians representing the people, but then interpreted and applied by judges. The reason is simple, to limit the power of government to interfere in any individuals life.”

Ora, este princípio aplica-se não apenas ao caso Terry Shiavo, mas a todos os temas fracturantes que possam emergir na sociedade, neste caso a americana, mas em qualquer outra. Então em última instância serão os tribunais a regular os processos de ruptura? Em princípio sim, se se estiver a falar num Estado de Direito. Porém, o poder político e os grupos de pressão tentarão sempre instrumentalizar o debate, de acordo com a sua doutrina. É lógico assumir que Governo e oposição se digladiem na defesa das suas ideologias, o que se reflectirá na produção legislativa.

Poder-se-á então afirmar que todos os democratas são progressistas e todos os republicanos são conservadores? Que a esquerda é mais progressista e a direita mais conservadora? Certamente que não. Mas é possível estabelecer um modelo ideológico característico para cada um daqueles campos político-partidários. Os conservadores tendem a enquadrar as questões partidárias no campo da moral e da ética e, como tal, são menos tolerantes a determinados desvios nos princípios basilares. Além de que são menos permissivos a fenómenos ocasionais que possam colocar em causa os valores da harmonia familiar e social. Por outro lado, as correntes progressistas tendem a observar o fenómeno social e humano sob a perspectiva positiva e científica, evitando reflectir sobre as eventuais consequências negativas, neste caso sociais ou morais e, até mesmo, políticas. Aceitam de forma natural o avanço científico e social.

Artigo adaptado de um excerto do livro “A Política e o Homem Pós-Humano – Novas biotecnologias e as células estaminais embrionárias: ruptura no pensamento político” (GUERRA, Alexandre [Lisboa, Alêtheia Editores, 2016])

Agitação no pântano

Pedro Correia, 18.02.20

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Estádio Nacional, 18 de Maio de 1996

 

Moussa Marega, com um gesto veemente, fez agitar o pântano. Atingiu o limite da paciência, encheu o saco e disse "basta". As imagens que o mostram a abandonar o Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, estão a dar justamente a volta ao mundo. Num grito de revolta contra o racismo. E contra a violência no futebol, que começa por ser violência verbal antes de resvalar para a violência física.

Que sirva de exemplo para muitos outros - tenham a cor de pele que tiverem. Inclusive para aqueles que, em certos estádios e em certos pavilhões, imitam o som do very light que matou um adepto de futebol numa bancada do Estádio Nacional, com o filho menor - então com nove anos - a presenciar tão macabra cena, em plena final da Taça de Portugal.

Jamais esqueceremos a data: 18 de Maio de 1996. Chamava-se Rui Mendes, esse malogrado adepto de futebol. Que era também adepto do Sporting.

 

Vergonhosamente, a tal final continuou a disputar-se como se nada fosse, sem que o jogo fosse interrompido.

Vergonhosamente, o som desse very light continua a ser replicado por irmãos de emblema do assassino. O que é outra forma de continuar a matar Rui Mendes, quase um quarto de século depois.

Sem que ninguém rasgue as vestes. Sem que nenhuma alma sensível solte um brado de indignação.

 

Publicado também aqui.

O negro é bom porque é negro.

Catarina Duarte, 27.11.19

Se, para além de mulher, eu fosse negra, e se, devido ao meu trabalho e dedicação, eu conseguisse alcançar um lugar de destaque na nossa sociedade, nada me poderia deixar mais triste do que a injustiça de associarem o meu mérito ao meu género ou à minha cor da pele.

Fala-se imenso da importância, em sociedade, de se forçar determinados comportamentos para que eles depois saiam de forma natural. Um exemplo disso é a definição de quotas nas empresas, impondo a contratação de mulheres ou de negros, com as quais eu não concordo pois, e falando sobre as quotas em particular, mais não são do que formas de discriminar e de valorizar algo que não tem que ser valorizado – deve ser motivo de igualdade e não de desigualdade.

Para além disso, não acho piada relevar características óbvias de determinada pessoa, quando se fala em determinados feitos ou posições, como se essas características definissem essa mesma pessoa: é a primeira mulher negra a fazer aquilo; quantas mulheres tens como ministras? Claro que é importante falar disso!; é a primeira vez que se contrata um gago para aquele cargo; já viste que até se contratou um homossexual?.

No meu mundo e, agora com algum conhecimento de causa, até posso dizer “na minha casa”, devíamos educar pela igualdade e não pela diferença e, na igualdade, não há espaço para valorizar determinado acontecimento associando-o a uma característica pessoal outrora alvo de dedos apontados.

Quando o fazemos, ainda que com a melhor das intenções, estamos a dar um mau exemplo, estamos a dizer, a quem pretendemos educar, que essas características nos ajudam a atingir objectivos, que são pontos fundamentais para a nossa progressão. Podemos estar, no limite, a valorizá-las tanto que as colocamos acima do que é realmente importante e, na maior parte dos casos, o importante mesmo é o trabalho, o mérito e o trabalho e o mérito. Não falamos de homens, de mulheres, de pessoas negras, brancas, gordas, magras, homossexuais, bissexuais ou transsexuais. Falamos de trabalho e mérito.

Posto isto, se somos pela justiça e pela igualdade, temos mesmo que continuar a valorizar aquilo que menos depende de nós, como as nossas características inatas e físicas, em vez de valorizarmos o trabalho e o mérito, que, em última análise, é aquilo que realmente nos define?

Cheeese!

Teresa Ribeiro, 30.08.19

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Muito antes das redes sociais, que nos empurram para uma noção de felicidade mais concorrencial, já nos fotografávamos a sorrir. Há puristas que consideram mentirosas essas fotos sociais e de família, mas eu fui sempre benevolente em relação à questão. Se fotografar é parar o tempo, então é natural que se deseje ter dele o ângulo mais favorável.

Nunca valorizei tanto as mentirosas fotos de família como quando comecei a perder as pessoas que me faziam mais falta. A minha família, como tantas famílias normais, era disfuncional, mas o que preciso reter dela são as imagens que mais combinam com as minhas saudades e essas, são as felizes.

O reflexo de fotografar tudo o que mexe, 365 dias no ano, que veio com os telemóveis, retirou, de alguma forma, estatuto às fotografias. São muitas, demasiadas, acumulam-se, anulam-se, esquecem-se demasiado depressa. É pena. O tempo não gira com mais vagar só porque somos vorazes a fixá-lo. Mas o hábito de mentir para a fotografia mantém-se incólume. A velha necessidade de recriar os momentos que vivemos e de sorrir, sorrir sempre. 

Rebolar na lama

João André, 14.02.19

«Nunca lutes com um porco na lama. Ficas sujo e o porco gosta»

Esta frase vem-me frequentemente à cabeça quando leio caixas de comentários (aqui ou noutros locais, especialmente Facebook). A quantidade de pessoas que pululam nas mesmas para fazer avançar as suas agendas anti-liberais, quando não mesmo fascistas (a níveis diferentes) é elevada e, mais importante, são extremamente activas. São pessoas que ou compram quaisquer teorias, por mais disparatadas que sejam, desde que se oponham ao establishment e recusam quaisquer provas ou dados ou lógica que lhes desmontem a argumentação. Nisto caem as conspirações anti-semitas, negacionistas das alterações climáticas, anti-migração, liberais extremistas, antivaxxers, extremistas raciais (habitualmente brancos) ou culturais (habitualmente judaico-cristãos europeus e brancos e embora também os haja árabes e islamistas, não andam nas mesmas caixas).

Com eles não há discussão. Há apenas gritos e rejeição de toda e qualquer argumentação que lhes negue as opiniões. E preciso rejeitar ciência? Faça-se. É necessário demonizar outros povos ou culturas? Vamos a isso. Relativizar sofrimentos ou riscos? Fácil. Mentir? Uma constante.

Na Europa vemos cada vez mais disso. Salvini é neste momento o mais destacado representante na forma como está a controlar completamente o seu parceiro-fantoche de coligação e toma atitudes que estão contra qualquer decência. Orban na Hungria parece querer fazer avançar tudo o que lhe convenha, mesmo que tenha que avançar conspirações anti-semitas, obrigar trabalhadores a ficar no trabalho sem salário, proibir a entrada de imigrantes que nem sequer o almejam, dar contratos e proteger subsídios da família e amigos. Na Polónia Kaczyński tenta seguir o conceito Orban. Na Turquia Erdogan caminha para a ditadura usando o espantalho Güllen. Fora da Europa, na Venezuela felizmente o ditador é incompetente (sem Cuba já teria deaparecido). Nos EUA Trump continua a denegrir toda e qualquer pessoa que discorde dele (até tenta levar Bezos para a lama referindo-se à sua vida privada). No Brasil Bolsonaro agita o espantalho inexistente da ameaça do comunismo. O casos surgem quase todos os dias.

E depois temos os trolls deles. Muitos deles serão pagos, outros simplesmente idiotas úteis. Veremos nos próximos meses o resultado das suas acções nas eleições europeias.

Não conheço a solução. Sei que entrar nessas discussões é inútil. Regulação para evitar a propagação de falsidades nas redes sociais (ou caixas de comentários de media) seria útil, mas não suficiente. Discutir como lidar com o uso de mentiras em campanhas eleitorais seria boa ideia. Não falo de promessas que niguém irá cumprir (não há inocentes nesse aspecto), antes do uso de mentiras óbvias. Entretanto, o melhor seria evitar dar-lhes um megafone maior que o que têm. Ignorar esta suinidade não resolve o problema, mas não piora e não suja mais ninguém.

No pasa nada

Teresa Ribeiro, 06.02.19

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Falta cerca de um mês para o Dia Internacional da Mulher, o dia em que todos os jornais falam dos problemas da condição feminina, desde a discriminação no trabalho à violência doméstica e no entanto quando passei de manhã pela banca dos jornais (ainda gosto de consultar as primeiras páginas assim, ao vivo e a cores), que vi eu? 

Manchete do i - "Já morreram mais mulheres, proporcionalmente, em Portugal do que no Brasil"

Manchete do JN: "Só num ano Estado apoiou 18 órfãos de violência doméstica (maioria dos casos são de crianças que viram a mãe morta pelo pai)

Manchete do Público: "Violência doméstica - 85% dos casos não resultam em acusação (no caso do duplo homicídio do Seixal, MP abriu inquérito apenas por coacção e ameaça)

Pois, houve mais um crime, particularmente chocante, daí esta concertação noticiosa. O Correio da Manhã, no seu estilo inconfundível, publica: "Monstro estrangula filha com as mãos (violência doméstica levou mãe da bebé a pedir ajuda à PSP)

Leio estas manchetes e penso nas negacionistas do "Not Me" (nome que eu agora inventei por oposição ao #MeToo), que tomam a sua experiência pessoal pelo todo afirmando que não se passa nada. Bem sei que a discussão há um ano acendeu-se por causa de uma situação muito menos dramática, a do assédio. Mas faz sentido separar os dois fenómenos? No país onde se mata mulheres que se farta o assédio não existe? E já agora, juntando outro tema que também é caro às negacionistas: a discriminação no trabalho, também é falácia?

A sério?

 

Ambiente de trabalho IV

Teresa Ribeiro, 22.01.19

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Fala-se muito dos millenials, a nova geração que está a dar dores de cabeça aos empregadores por ser muito exigente, independente, e difícil de reter. Dizem que mudam de emprego como quem muda de camisa, que preferem não trabalhar a ser mal pagos e que valorizam o work-life-balance, ou seja, não estão dispostos a deixar-se consumir por cargas horárias excessivas. Desenvolver carreira numa determinada área já não é, para muitos deles, um objectivo. Quais camaleões, estão preparados para mudar de rumo a todo o momento, desde que tal resulte em maior qualidade de vida.

Ressentidos, muitos empregadores chamam-lhes egoístas e mimados. Acusam-nos de terem sido educados por pais que lhes deram tudo, algo que os transformou em seres desprovidos do mais leve espírito de sacrifício. 

A perspectiva dos monstrinhos egoístas é diferente. Queixam-se de serem alvo, por sistema, de propostas miseráveis, que fazem tábua rasa dos anos de formação académica que consumiram a preparar-se para ter uma boa vida. Dizem também que os salários que lhes propõem não asseguram autonomia. Olham para o mercado de trabalho e percebem que é o salve-se quem puder. Conforme o seu contexto e características pessoais, uns aprendem a competir sem ética, outros desistem e enveredam por uma adolescência sem termo (são os tão comentados nem/nem, que não trabalham nem estudam), outros ainda apostam num modo de vida alternativo, baseado no improviso, trabalho intermitente e estilo de vida frugal.

O que não se diz é que estes meninos relapsos não nasceram de geração espontânea. Na verdade millenials e empregadores são faces da mesma moeda. A cara e a coroa, o verso e o reverso desta nova cultura do trabalho.

Uns não existiriam sem os outros.