Por dever de um ofício passado, dialoguei e negociei diariamente com os sindicatos da PSP e com as associações profissionais da GNR ao longo de quase três anos. Terminadas essas funções, o respeito que tinha pelas Forças de Segurança transformou-se em profunda admiração.
Sei que muitas das reivindicações que estão na base da manifestação de hoje são inteiramente justificadas. Falta de material e de equipamento, postos e esquadras em condições deploráveis, e insuficiência de efectivo em algumas zonas do país são queixas com basto fundamento. Sei também que nenhum governo português terá capacidade financeira para colmatar os problemas existentes, uma dificuldade muito agravada pela calamitosa gestão do actual Executivo na área da Administração Interna.
Dito isto, há quatro aspectos que têm sido convenientemente esquecidos pelas estruturas sindicais e que, salvo raríssimas excepções, a comunicação social não percebe (honra seja feita ao Diário de Notícias, que por sistema aborda os temas relacionados com as Forças de Segurança com a atenção e profundidade devidas).
1. Carreiras e remunerações. Ao longo de décadas, os sucessivos governos – de esquerda e de direita – foram incapazes de aumentar os salários na PSP e na GNR de forma estruturada porque isso implicaria redesenhar por completo a organização de carreiras e de categorias profissionais, uma caixa de pandora que ninguém quer abrir. Em compensação, criaram-se subsídios e foi-se aumentando o seu valor – subsídio de patrulha, subsídio de operações especiais, subsídio de binómio cinotécnico, subsídio de fardamento, etc. Em resultado, entre 20% e 50% da remuneração mensal de um elemento das Forças de Segurança depende de subsídios, que são variáveis, o que faz com que uma parte importante dos polícias e dos militares da GNR não saibam ao certo quanto ganham por mês. Em síntese, em vez se de pensar as remunerações de maneira racional e sustentável, optou-se por ir colocando remendos. A alteração deste estado de coisas é onerosa, mexe com interesses corporativos e, por isso, conta com a firme oposição de sindicatos e associações profissionais. Porém, se nenhum governo tiver a coragem de mexer neste aspecto, o problema continuará a agravar-se.
2. O valor político dos subsídios. Na época em que trabalhei no MAI, e apesar do programa de assistência financeira ao qual Portugal se encontrava sujeito, foi possível aumentar o subsídio de fardamento em 100%, passando de 25€ mensais para 50€. Este complemento salarial tem duas particularidades: está isento de tributação fiscal; e, não obstante se designar “de fardamento”, pode ser usado para qualquer fim, sendo por isso parte do salário. Na altura, foi proposto aos representantes sindicais a alternativa de ser o Estado a fornecer o fardamento, o que naturalmente implicaria o fim do dito subsídio. Sem surpresa, os sindicatos não aceitaram a proposta, entre outras razões porque a manutenção de subsídios lhes permite afirmar que o salário de muitos polícias ronda os 700€ (esquecendo-se de referir que este valor é o salário base) e, dessa forma, conseguir a simpatia da opinião pública para mais reivindicações.
3. A falta de efectivos. Há zonas do país onde faltam profissionais. Por outro lado, os poucos que estão ao serviço têm mais de 45 anos de idade. É a mais absoluta das verdades. Contudo, esquecem-se habilmente os sindicatos e as associações profissionais que parte do problema se deve à alocação de recursos humanos, em particular aos milhares de elementos da PSP e militares da GNR que se encontram em funções de apoio operacional (vulgo ‘funções administrativas’ ou 'de secretaria'). São funções cobiçadas, desde logo porque, em regra, decorrem em horário de expediente, não implicando por isso a realização de turnos penosos. Os representantes sindicais não o referem porque têm associados a desempenhar funções de apoio operacional, que obviamente desejam manter. Uma melhor alocação de recursos não resolverá a falta de pessoal – até porque há funções administrativas que só podem ser realizadas por gente da PSP e da GNR –, mas ajudaria bastante a mitigar o problema.
4. O aparecimento Movimento Zero. Criado há não muito tempo por profissionais da PSP e da GNR, não tem liderança nem porta-vozes. É aquilo a que agora se chama ‘movimento inorgânico’. Teme-se que nas suas fileiras haja gente de extrema-direita e indivíduos apostados em desestabilizar as Forças de Segurança.
Em Julho deste ano, membros do Movimento Zero viraram as costas ao Ministro da Administração Interna e, mais grave, ao Director Nacional da PSP numa cerimónia pública. Julgo que foi a primeira vez que tal aconteceu. Dada a natureza hierárquica das Forças de Segurança e o espírito de corpo que as caracteriza, foi um gesto muito sério. A classe política – governo e partidos da oposição – foi incapaz de perceber a seriedade do acontecimento. Salvo honrosas excepções, a comunicação social noticiou o sucedido com a mesma atenção com que informa sobre a ocorrência de um acidente rodoviário.
Não sei o que é o Movimento Zero nem quem o conduz. É o resultado da profunda insatisfação que existe nas Forças de Segurança, agravada pelo alheamento do actual governo. Mas, não menos importante, é fruto da ineficácia dos sindicatos e das associações profissionais: até há bem pouco tempo, a PSP tinha 12 sindicatos e a GNR pelo menos cinco, mas juntos não representavam metade do efectivo. Não me surpreende que tenham sido ultrapassados por um grupo sem rosto que ninguém controla. O inenarrável André Ventura e o PNR tentam apanhar boleia do Movimento, no qual suspeito que têm apoiantes. Mas aposto que o Movimento Zero não se deixará capturar por interesses partidários, com tudo de bom e de mau que daí resulta.
São muitos os problemas em causa, alguns complexos e antigos. Por incapacidade dos vários governos e por resistência dos sindicatos e associações profissionais, o que eram pequenas dificuldades transformou-se em desafios graves e prementes. Porque não vejo quem seja capaz de inverter a marcha, creio que a manifestação de hoje é apenas o início de algo que veio para ficar.