Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Quanto a técnica desumaniza

Pedro Correia, 26.07.24

Paradoxos do progresso: um miúdo de seis anos já domina hoje os rudimentos de um computador mas é incapaz de algumas das mais simples operações manuais - atar os cordões de um sapato, por exemplo. Muitas crianças estão totalmente à vontade perante um teclado digital, mas revelam dificuldades crescentes na escrita manual: a caligrafia vai-se deteriorando à medida que a máquina impera.

Um adolescente japonês gaba-se de só ter amigos virtuais e de namorar há dois anos com uma jovem que apenas conhece via computador. E já chegou ao ponto de confessar que nem pretende conhecê-la pessoalmente para não estragar uma relação que considera "perfeita".

Ganhamos certamente muito com este predomínio da técnica sobre o homem. Mas devemos deixar que seja ela a servir-nos em vez de nos deixarmos escravizar e desumanizar por ela.

Novilíngua

Pedro Correia, 28.06.24

apropriação cultural   elefante na sala   pacto de agressão   grande capital   banho de multidão   tecido produtivo   processo de empobrecimento   instrumentos de dominação  minoria étnica  acto eleitoral  novo ciclo  valores de abril  fadiga fiscal  segundo resgate  tratado orçamental   política de direita   capitalismo selvagem   dívida soberana   lucros colossais   défice democrático  responsabilidade orçamental  assento parlamentar  programa cautelar  direitos reprodutivos  alargamento a leste   estado social   fundos europeus   ganhos de produtividade   crescimento zero   valor acrescentado   factor produtivo   alternativa de esquerda   bloco central   processo decisório   interesses dos trabalhadores   economia paralela   emergência financeira   estado da arte   procedimento concursal   arco da governação   novos desafios   parceiros sociais   direitos adquiridos  terceira via  faixa etária  almofada orçamental  crescimento sustentável  paraíso fiscal  indispensável clarificação  socialismo científico  causas fracturantes  heteropatriarcado tóxico   tarefa hercúlea   fonte próxima   novo paradigma   reforma estrutural   zona de conforto  democracia iliberal   janela de oportunidade   murro na mesa   a todos e a todas

Pensamento da semana

Pedro Correia, 24.12.23

Um pouco por toda a parte, neste mundo de múltiplas indignações plasmadas nas redes ditas sociais, vivemos numa atmosfera de guerra civil de baixa intensidade. Que vê em cada palavra de bondade um sinal de fraqueza. Que faz de cada tribuna uma trincheira de rancor. Que imagina um inimigo oculto em cada divergência. Que transforma cada opinião discordante em casus belli. Que esmaga cada tese contrária com a fúria de um combatente apostado em não recolher prisioneiros nem respeitar convenções de Genebra.

Disto nada há a esperar de bom. Sobretudo para os jovens que se formam neste caldo de cultura marcado pela intolerância mais primária e pelo maniqueísmo mais rasteiro.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Gente apaixonada por máquinas

Pedro Correia, 30.04.23

Notável entrevista de Noah Chomsky ao suplemento Ípsilon, do jornal Público (entrevistado por Ivo Neto e Karla Pequenino). Tema dominante: a inteligência artificial. O pensador norte-americano adverte: hoje há pessoas que se apaixonam por máquinas. Gente nascida após 1997, os chamados "nativos digitais". Gente deste XXI - o século em que a máquina, tendencialmente perfeita, supera de vez o homem, imperfeito por definição. 

«Porque é que uma criança de três anos fala com os seus brinquedos? Algo nestas tecnologias lembra a nossa infância e todos podemos ser apanhados nisso», assinala Chomsky. Na sua perspectiva, proibir não é solução. Nunca é. «Podemos levar as pessoas a compreender o que a inteligência artifical é e não é. Acabar com a euforia e olhar para a realidade como ela é. Basicamente, é como qualquer outra ideologia ou doutrina. (...) Não há maneira de a impedir, não vai acabar nem desaparecer. Pode educar-se a população para compreender como realmente são as coisas.»

Sempre estimulante, concordemos ou discordemos dele. Com lúcidos 94 anos.

Aeroporto da Portela

jpt, 19.04.23

20230417_070031 (4).jpg

Estou no "check-in" do aeroporto na Portela de Sacavém (ao qual puseram o nome de um militar hitleriano). Uma bicha enorme e imóvel. Não quero ler os jornais desportivos, devido ao meu Sporting. Por isso acorro ao meu WhatsApp: um primo enviou-me uma foto do Marcelo na mesquita a fingir que reza! Fujo dali. Chego ao FB: nos murais da imprensa loas à artista doutorada que "descobriu Fanon", obituário do fotógrafo que "descobriu a beleza dos corpos negros" (!). Meu palavrão matinal e olhos em alvo. E são estes, porque assim, que notam as duas grandes pinturas publicitárias que monopolizam a sala: em Lisboa a Vodafone coloca uns dizeres ingleses que mimetizam a já velha campanha de Obama. E coloca sete retratos: um amoroso jovem casal (de negros), um amoroso pai com seu radiante filho às cavalitas (negros), um amoroso casal de reformados (que no Brasil serão ditos "pardos", sob algum apoio de acção afirmativa, e daí o seu ar feliz, recompensado, apesar da idade e evidentes achaques). E um branco - o retrato de Pistorius, o assassino sul-africano! 

E este asco passa. Neste ambiente intelectualmente patético até será elogiado. Murmuro mais uns palavrões. A ver se a bicha anda, para que possa intervalar disto.

Trocar o real pelo digital

Não há democracia verdadeira sem comércio de bairro

Pedro Correia, 03.04.23

UberEats_Glovo.jpg

 

A relação cada vez mais desumanizada das pessoas com o espaço onde moram, sobretudo nas grandes cidades, acentua-se à medida que nelas proliferam os estafetas para todo-o-serviço. Gente que vem de fora, muitas vezes oriunda das periferias mais precárias de Bombaim, Calcutá, Daca, Catmandu ou Carachi, assegura a relação entre o comércio e os domicílios burgueses que por cá vão restando. A pandemia afugentou muitos de nós das ruas - alguns, mais velhos ou mais propensos à solidão, encerram-se quase como reclusos nos domicílios. Enquanto o pequeno comércio de bairro, tantas vezes pedra angular das relações de proximidade, encerra a um ritmo galopante neste país em que todos os dias há 14 restaurantes a fechar de vez

Dominam as "grandes plataformas" impessoais, sem rosto nem nome, manobradas do estrangeiro. Instauram um mandamento dos novos tempos: tudo deve processar-se por via digital. O que era outrora cenário distópico torna-se realidade. E muitos de nós somos coniventes, talvez convictos de que embarcamos na última carruagem de um admirável mundo novo. O mundo em que um paquistanês sem identidade, igual a qualquer outro, acaba por ser um dos nossos raros pontos de contacto com a rua.

 

Não vejo "progresso" algum nisto: só vislumbro retrocesso. Proletarização da sociedade, precarização dos laços humanos, troca do real que agrega pelo digital que segrega.

Daí aplaudir quem rema contra a corrente. Pessoas como o Henrique Raposo, que escreve estas admiráveis linhas na mais recente edição do Expresso:

«O declínio do comércio local não é apenas um problema do Excel da economia e do Estado, é um problema social no sentido mais profundo da palavra "social": o que está em causa é a própria ideia de sociedade que é feita no dia-a-dia na rua. Se compram tudo online, as pessoas estão a matar-se enquanto "vizinhos" da rua, estão a definir-se apenas como "consumidores" do mercado e como "contribuintes" do Estado. Eu não vivo nem do mercado nem no Estado, dois meros instrumentos; eu vivo na minha rua. Quando valorizam apenas o comércio online ou as grandes superfícies comerciais, essas naves espaciais que sugam a energia das cidades, a cultura e a política do nosso tempo estão mesmo a matar o velho conceito de bairro. E sem o bairro tocquevilliano não há democracia nem na América nem na Europa. Ou seja, a desmaterialização do comércio também é a desmaterialização da democracia. Ruas sem lojas e cafés de pequenos proprietários são ruas inseguras, para começar, e tristes, para acabar. Ou não se pode falar com os vizinhos porque há medo ou porque há uma enorme aridez e solidão.»

Assino por baixo.

Pagar 150 euros por colchão

Pedro Correia, 06.02.23

estafetas.jpg

 

Há uns tempos, levantou-se um coro geral de indignação, entre as bempensâncias lisboetas, contra as condições infra-humanas em que viviam imigrantes contratados para a apanha de frutos vermelhos nas estufas de Odemira. Aproveitou-se a ocasião para debitar a ladainha do costume, inflamada de indignação moral. 

Lamento que muitas dessas almas cândidas e benfazejas (e grandes consumidoras de frutos vermelhos, óptimos para a saúde) se indignem mais depressa com aquilo que se passa a 200 quilómetros de distância enquanto fingem não reparar no que se passa na própria cidade onde residem. Aqueles imigrantes de Odemira, apesar de tudo, vivem em melhores condições do que estes estafetas que a todo o momento distribuem refeições ao domicílio dos mesmos lisboetas tão arrepiados com as degradantes condições no Alentejo profundo. 

O trágico incêndio ocorrido neste fim-de-semana na Mouraria, provocando dois mortos e 14 feridos (incluindo quatro crianças) demonstra o que é a realidade actual nesta Lisboa impante de modernidade e efervescente de "consciência social": imigrantes asiáticos amontoados num cubículo desse bairro.

Foi na Mouraria, mas podia ter sido noutro local. Anjos, Intendente, Arroios - numa vasta cintura em torno do centro histórico da cidade. Em casos como este, que se multiplicam como cogumelos: prédio insolvente, resgatado por um banco, que leiloa fracções a estrangeiros ligados a redes de exploração de trabalho quase escravo. Cada um destes desgraçados paga 150 euros - não por apartamento, nem por quarto, nem por cama, mas por colchão amontoado junto a tantos outros.

Neste rés-do-chão vegetavam 22 seres humanos. Esses, que não merecem um sopro de indignação da parte das tais vozes indignadinhas que incentivam a existência destas redes - e das plataformas digitais que delas se aproveitam - cada vez que pedem comidinha ao domicílio. Sem perceberem sequer a relação entre uma coisa e outra. 

Três sinais do nosso tempo

Pedro Correia, 17.11.22

Trás-os-Montes by amaricanos

Pedro Correia, 03.11.22

20221103_113953.jpg

 

Cheguei a pensar que Trás-os-Montes era um dos últimos redutos da portugalidade. Verifico que estava enganado: já não é. Confirmei há dias, consultando uma peça laudatória de um caderno semanal no Público escrito em parte por jornalistas que comem e dormem à borla nos restaurantes e hotéis que recomendam.

Este chamou-me a atenção pelo nome. Fica em Valpaços, belo concelho transmontano, mas mandou a língua portuguesa às urtigas, adoptando um nome importado da terra do Tio Sam. Intitula-se Olive Nature Hotel & Spa, vejam lá. A "amaricanice" aguda já se instalou junto à vetusta Serra da Nogueira.

«Uma proposta ancorada numa envolvente tranquila e na valorização do azeite», enaltece o Público na prosa lambida que caracteriza o suplemento. Recomendando, para relaxar, massagens no "Olive Spa by Dona Adelaide" - assim crismado, neste insólito crioulo luso-"amaricano". Para condizer com o nome do hotel.

Fixei o preço das massagens. Podem ser Aromas Campestres: 75 minutos pela módica quantia de 110 euros. Ou a Sensações do Campo: hora e meia a quem possa e queira esportular 240 euros. Coisa fina.

Preço médio das refeições: 35 euros. Quem optar pelo menu degustação, larga 55 euros. E se o repasto envolver "wine pairing" - esclarece ainda o Público - a conta sobe para 75 euros. O nome no idioma de Donald Trump deve pesar na factura.

Com tanta "amaricanice", até espanta que os preços não estejam em dólares. Trás-os-Montes ainda acaba travestido em Behind the Mountains. Já faltou mais.

Filho da pauta

Pedro Correia, 30.09.22

O meu "telefone inteligente" parece afectado pelo vírus da correcção política. Cada vez que escrevo "puta", muda-me para "pauta". Com rigor de madre superiora em convento de carmelitas.

A censura neopuritana ataca em força nos instrumentos digitais. Limando e limpando todas as expressões falocêntricas do heteropatriarcado.

Mas não desisto: continuo a dar-lhe luta.

O «canibalismo cultural» e os neo-racistas

Pedro Correia, 09.08.22

XavierMobile.webp

Andamos a copiar o pior dos norte-americanos em quase tudo. Já cá chegou uma coisa a que chamam «apropriação cultural», importada de lá. Como ficou patente nas disparatadas mas duríssimas críticas feitas a uma actriz portuguesa alegadamente «não negra» por se ter atrevido a fazer um penteado que deve ser exclusivo de «pessoas negras» como marca «identitária». 

Reivindicar a perpetuação de estereótipos associados em exclusivo a determinados segmentos éticos é uma forma repugnante de neo-racismo, acolhida com simpatia por intelectuais da ocidental praia. «Uma cultura, historicamente suprimida e minorizada, tem seus elementos roubados e seus sentidos apagados pela cultura que sempre a dominou», perora uma dessas sumidades, em português macarrónico. Dando putativa caução académica a quem combate a suposta «canibalização cultural». 

Uma alegada «não negra» com rastas pratica, portanto, «canibalismo cultural». A Portugal estas coisas chegam sempre com algum atraso: há dois anos, uma ex-ministra sueca foi acusada disso pela turba ululante que fala em cultura sem fazer a menor ideia do significado de tal palavra.

É caso para perguntar se este fluxo neo-racista funciona nos dois sentidos. Gerando também brados de indignação contra «pessoas negras» que usem madeixas loiras. Como o senhor que surge nesta fotografia só a título de exemplo.

Penso rápido (99)

Pedro Correia, 14.07.22

Há cada vez menos gente capaz de ver um jogo de futebol do princípio ao fim. Por manifesta - e cada vez mais preocupante - incapacidade de concentração. Incapacidade mental e motora.

Apercebo-me, em grau crescente, que entre os mais jovens - mas não só - se troca a visão integral do jogo, mesmo da equipa de que se dizem adeptos, pelo resumo de três minutos já servido para esse efeito nas redes e nas televisões.

Isto verifica-se ao vivo, no próprio estádio. Enquanto o jogo decorre, ali à nossa frente, uma parcela cada vez maior de "espectadores" passa o tempo a mirar o teclado do dispositivo móvel. Preferindo olhar em vez de ver. Preferindo olhar em segunda mão. Como se a imagem electrónica fosse mais verdadeira do que a imagem real.

Sobre a estalada de Will Smith

jpt, 28.03.22

guerra psicológica.jpg

Este Savancosinus é o soldado romano a quem foram reconhecidas capacidades intelectuais adequadas a especialista da então pioneira "guerra psicológica", uma invenção de Tullius Detritus, o arguto "enviado especial" de César à "aldeia irredutível".
 
É o verdadeiro ancestral de todos estes "opinadores" internéticos, alguns deles profissionais intelectuais - universitários e quadros-, um ou outro quase-"influencer", até políticos de carreira ou ambição, que botam hoje algo incomodados, quase-nada, pouco ou até mesmo muito, com uma estalada que um actor norte-americano deu num colega. E que antes, durante este último mês, têm vindo, de forma mais ou menos redonda, a botar "contextualizando", "compreendendo", "matizando", "explicando" a invasão russa da Ucrânia.
 
Contrariamente ao que se possa pensar não há outros motivos, são apenas savancosinus... Uns grunhos.

Macro, micro

Pedro Correia, 16.02.22

As redes sociais funcionam com surtos virais de pequenas e micro indignações. Alguém sopra uma coisa via telemóvel, o sopro salta para o twitter ou o facebook -- e é quanto basta para se assemelhar a ignição de fogo pronta a incendiar a pradaria mas que afinal se limita a chamuscar uns canteiros. Mal as chamas irrompem num determinado local, logo outro foco se propaga noutro sítio com o mesmo grau de aparente intensidade do anterior e com a mesma duração média, que raramente ultrapassa a extensão dos dias úteis. Até porque o domingo se fez para o descanso.

E assim sucessivamente. Tudo macro indignado. Até à micro indignação seguinte.

A glamorização dos assassinos

Pedro Correia, 03.05.21

Robert-Mitchum-The-Night-of-the-Hunter.jpg

 

Se há coisa que me repugna, entre os péssimos hábitos que começam a instalar-se na indústria mediática portuguesa, é a glamorização dos assassinos. 

Não há crime mais repugnante e hediondo sem que os protagonistas mereçam todos os holofotes jornalísticos, com ampla revelação dos seus nomes e rostos. Agora tornou-se moda picar fotografias nas redes sociais - e eis, portanto, as imagens de duas mulheres que assassinaram um homem, desmembraram o corpo e andaram a espalhar pedaços do cadáver por todo o Algarve difundidas com poses suaves e requintadas. Imitando actrizes de cinema, imortalizadas em jornais e televisões.

Mulheres, repito. Mas nas notícias recebem tratamento adocicado: chamam-lhes "jovens" enquanto repetem uma vez e outra os nomes, como se fosse gente íntima cá da casa. Algumas notícias emprestam até uma aura romântica à coisa, sublinhando que as criminosas andavam muito apaixonadas. Possuídas pelo fogo que arde sem se ver.

 

Um youtuber que "espanca namorada até à morte em directo por dinheiro" vê a sua foto estampada nos jornais, com nome associado. Foto de rede social, não da polícia: tem ares de artista em voga, não faltará quem o ache simpático. É "jovem" também, sublinham as notícias. Matar a namorada em directo talvez seja um inócuo pecadilho de juventude. E ela - sabe-se lá - pôs a jeito...

Um dia destes o assassino vai ao "confesso-me", num programa de telelixo qualquer, e obtém absolvição do respeitável público ali reunido. Também em directo. 

E siga o baile: este espectáculo alimenta-se de sessões contínuas.