Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Pensamento da semana

Pedro Correia, 24.12.23

Um pouco por toda a parte, neste mundo de múltiplas indignações plasmadas nas redes ditas sociais, vivemos numa atmosfera de guerra civil de baixa intensidade. Que vê em cada palavra de bondade um sinal de fraqueza. Que faz de cada tribuna uma trincheira de rancor. Que imagina um inimigo oculto em cada divergência. Que transforma cada opinião discordante em casus belli. Que esmaga cada tese contrária com a fúria de um combatente apostado em não recolher prisioneiros nem respeitar convenções de Genebra.

Disto nada há a esperar de bom. Sobretudo para os jovens que se formam neste caldo de cultura marcado pela intolerância mais primária e pelo maniqueísmo mais rasteiro.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Gente apaixonada por máquinas

Pedro Correia, 30.04.23

Notável entrevista de Noah Chomsky ao suplemento Ípsilon, do jornal Público (entrevistado por Ivo Neto e Karla Pequenino). Tema dominante: a inteligência artificial. O pensador norte-americano adverte: hoje há pessoas que se apaixonam por máquinas. Gente nascida após 1997, os chamados "nativos digitais". Gente deste XXI - o século em que a máquina, tendencialmente perfeita, supera de vez o homem, imperfeito por definição. 

«Porque é que uma criança de três anos fala com os seus brinquedos? Algo nestas tecnologias lembra a nossa infância e todos podemos ser apanhados nisso», assinala Chomsky. Na sua perspectiva, proibir não é solução. Nunca é. «Podemos levar as pessoas a compreender o que a inteligência artifical é e não é. Acabar com a euforia e olhar para a realidade como ela é. Basicamente, é como qualquer outra ideologia ou doutrina. (...) Não há maneira de a impedir, não vai acabar nem desaparecer. Pode educar-se a população para compreender como realmente são as coisas.»

Sempre estimulante, concordemos ou discordemos dele. Com lúcidos 94 anos.

Aeroporto da Portela

jpt, 19.04.23

20230417_070031 (4).jpg

Estou no "check-in" do aeroporto na Portela de Sacavém (ao qual puseram o nome de um militar hitleriano). Uma bicha enorme e imóvel. Não quero ler os jornais desportivos, devido ao meu Sporting. Por isso acorro ao meu WhatsApp: um primo enviou-me uma foto do Marcelo na mesquita a fingir que reza! Fujo dali. Chego ao FB: nos murais da imprensa loas à artista doutorada que "descobriu Fanon", obituário do fotógrafo que "descobriu a beleza dos corpos negros" (!). Meu palavrão matinal e olhos em alvo. E são estes, porque assim, que notam as duas grandes pinturas publicitárias que monopolizam a sala: em Lisboa a Vodafone coloca uns dizeres ingleses que mimetizam a já velha campanha de Obama. E coloca sete retratos: um amoroso jovem casal (de negros), um amoroso pai com seu radiante filho às cavalitas (negros), um amoroso casal de reformados (que no Brasil serão ditos "pardos", sob algum apoio de acção afirmativa, e daí o seu ar feliz, recompensado, apesar da idade e evidentes achaques). E um branco - o retrato de Pistorius, o assassino sul-africano! 

E este asco passa. Neste ambiente intelectualmente patético até será elogiado. Murmuro mais uns palavrões. A ver se a bicha anda, para que possa intervalar disto.

Trocar o real pelo digital

Não há democracia verdadeira sem comércio de bairro

Pedro Correia, 03.04.23

UberEats_Glovo.jpg

 

A relação cada vez mais desumanizada das pessoas com o espaço onde moram, sobretudo nas grandes cidades, acentua-se à medida que nelas proliferam os estafetas para todo-o-serviço. Gente que vem de fora, muitas vezes oriunda das periferias mais precárias de Bombaim, Calcutá, Daca, Catmandu ou Carachi, assegura a relação entre o comércio e os domicílios burgueses que por cá vão restando. A pandemia afugentou muitos de nós das ruas - alguns, mais velhos ou mais propensos à solidão, encerram-se quase como reclusos nos domicílios. Enquanto o pequeno comércio de bairro, tantas vezes pedra angular das relações de proximidade, encerra a um ritmo galopante neste país em que todos os dias há 14 restaurantes a fechar de vez

Dominam as "grandes plataformas" impessoais, sem rosto nem nome, manobradas do estrangeiro. Instauram um mandamento dos novos tempos: tudo deve processar-se por via digital. O que era outrora cenário distópico torna-se realidade. E muitos de nós somos coniventes, talvez convictos de que embarcamos na última carruagem de um admirável mundo novo. O mundo em que um paquistanês sem identidade, igual a qualquer outro, acaba por ser um dos nossos raros pontos de contacto com a rua.

 

Não vejo "progresso" algum nisto: só vislumbro retrocesso. Proletarização da sociedade, precarização dos laços humanos, troca do real que agrega pelo digital que segrega.

Daí aplaudir quem rema contra a corrente. Pessoas como o Henrique Raposo, que escreve estas admiráveis linhas na mais recente edição do Expresso:

«O declínio do comércio local não é apenas um problema do Excel da economia e do Estado, é um problema social no sentido mais profundo da palavra "social": o que está em causa é a própria ideia de sociedade que é feita no dia-a-dia na rua. Se compram tudo online, as pessoas estão a matar-se enquanto "vizinhos" da rua, estão a definir-se apenas como "consumidores" do mercado e como "contribuintes" do Estado. Eu não vivo nem do mercado nem no Estado, dois meros instrumentos; eu vivo na minha rua. Quando valorizam apenas o comércio online ou as grandes superfícies comerciais, essas naves espaciais que sugam a energia das cidades, a cultura e a política do nosso tempo estão mesmo a matar o velho conceito de bairro. E sem o bairro tocquevilliano não há democracia nem na América nem na Europa. Ou seja, a desmaterialização do comércio também é a desmaterialização da democracia. Ruas sem lojas e cafés de pequenos proprietários são ruas inseguras, para começar, e tristes, para acabar. Ou não se pode falar com os vizinhos porque há medo ou porque há uma enorme aridez e solidão.»

Assino por baixo.

Pagar 150 euros por colchão

Pedro Correia, 06.02.23

estafetas.jpg

 

Há uns tempos, levantou-se um coro geral de indignação, entre as bempensâncias lisboetas, contra as condições infra-humanas em que viviam imigrantes contratados para a apanha de frutos vermelhos nas estufas de Odemira. Aproveitou-se a ocasião para debitar a ladainha do costume, inflamada de indignação moral. 

Lamento que muitas dessas almas cândidas e benfazejas (e grandes consumidoras de frutos vermelhos, óptimos para a saúde) se indignem mais depressa com aquilo que se passa a 200 quilómetros de distância enquanto fingem não reparar no que se passa na própria cidade onde residem. Aqueles imigrantes de Odemira, apesar de tudo, vivem em melhores condições do que estes estafetas que a todo o momento distribuem refeições ao domicílio dos mesmos lisboetas tão arrepiados com as degradantes condições no Alentejo profundo. 

O trágico incêndio ocorrido neste fim-de-semana na Mouraria, provocando dois mortos e 14 feridos (incluindo quatro crianças) demonstra o que é a realidade actual nesta Lisboa impante de modernidade e efervescente de "consciência social": imigrantes asiáticos amontoados num cubículo desse bairro.

Foi na Mouraria, mas podia ter sido noutro local. Anjos, Intendente, Arroios - numa vasta cintura em torno do centro histórico da cidade. Em casos como este, que se multiplicam como cogumelos: prédio insolvente, resgatado por um banco, que leiloa fracções a estrangeiros ligados a redes de exploração de trabalho quase escravo. Cada um destes desgraçados paga 150 euros - não por apartamento, nem por quarto, nem por cama, mas por colchão amontoado junto a tantos outros.

Neste rés-do-chão vegetavam 22 seres humanos. Esses, que não merecem um sopro de indignação da parte das tais vozes indignadinhas que incentivam a existência destas redes - e das plataformas digitais que delas se aproveitam - cada vez que pedem comidinha ao domicílio. Sem perceberem sequer a relação entre uma coisa e outra. 

Três sinais do nosso tempo

Pedro Correia, 17.11.22

Trás-os-Montes by amaricanos

Pedro Correia, 03.11.22

20221103_113953.jpg

 

Cheguei a pensar que Trás-os-Montes era um dos últimos redutos da portugalidade. Verifico que estava enganado: já não é. Confirmei há dias, consultando uma peça laudatória de um caderno semanal no Público escrito em parte por jornalistas que comem e dormem à borla nos restaurantes e hotéis que recomendam.

Este chamou-me a atenção pelo nome. Fica em Valpaços, belo concelho transmontano, mas mandou a língua portuguesa às urtigas, adoptando um nome importado da terra do Tio Sam. Intitula-se Olive Nature Hotel & Spa, vejam lá. A "amaricanice" aguda já se instalou junto à vetusta Serra da Nogueira.

«Uma proposta ancorada numa envolvente tranquila e na valorização do azeite», enaltece o Público na prosa lambida que caracteriza o suplemento. Recomendando, para relaxar, massagens no "Olive Spa by Dona Adelaide" - assim crismado, neste insólito crioulo luso-"amaricano". Para condizer com o nome do hotel.

Fixei o preço das massagens. Podem ser Aromas Campestres: 75 minutos pela módica quantia de 110 euros. Ou a Sensações do Campo: hora e meia a quem possa e queira esportular 240 euros. Coisa fina.

Preço médio das refeições: 35 euros. Quem optar pelo menu degustação, larga 55 euros. E se o repasto envolver "wine pairing" - esclarece ainda o Público - a conta sobe para 75 euros. O nome no idioma de Donald Trump deve pesar na factura.

Com tanta "amaricanice", até espanta que os preços não estejam em dólares. Trás-os-Montes ainda acaba travestido em Behind the Mountains. Já faltou mais.

Filho da pauta

Pedro Correia, 30.09.22

O meu "telefone inteligente" parece afectado pelo vírus da correcção política. Cada vez que escrevo "puta", muda-me para "pauta". Com rigor de madre superiora em convento de carmelitas.

A censura neopuritana ataca em força nos instrumentos digitais. Limando e limpando todas as expressões falocêntricas do heteropatriarcado.

Mas não desisto: continuo a dar-lhe luta.

O «canibalismo cultural» e os neo-racistas

Pedro Correia, 09.08.22

XavierMobile.webp

Andamos a copiar o pior dos norte-americanos em quase tudo. Já cá chegou uma coisa a que chamam «apropriação cultural», importada de lá. Como ficou patente nas disparatadas mas duríssimas críticas feitas a uma actriz portuguesa alegadamente «não negra» por se ter atrevido a fazer um penteado que deve ser exclusivo de «pessoas negras» como marca «identitária». 

Reivindicar a perpetuação de estereótipos associados em exclusivo a determinados segmentos éticos é uma forma repugnante de neo-racismo, acolhida com simpatia por intelectuais da ocidental praia. «Uma cultura, historicamente suprimida e minorizada, tem seus elementos roubados e seus sentidos apagados pela cultura que sempre a dominou», perora uma dessas sumidades, em português macarrónico. Dando putativa caução académica a quem combate a suposta «canibalização cultural». 

Uma alegada «não negra» com rastas pratica, portanto, «canibalismo cultural». A Portugal estas coisas chegam sempre com algum atraso: há dois anos, uma ex-ministra sueca foi acusada disso pela turba ululante que fala em cultura sem fazer a menor ideia do significado de tal palavra.

É caso para perguntar se este fluxo neo-racista funciona nos dois sentidos. Gerando também brados de indignação contra «pessoas negras» que usem madeixas loiras. Como o senhor que surge nesta fotografia só a título de exemplo.

Penso rápido (99)

Pedro Correia, 14.07.22

Há cada vez menos gente capaz de ver um jogo de futebol do princípio ao fim. Por manifesta - e cada vez mais preocupante - incapacidade de concentração. Incapacidade mental e motora.

Apercebo-me, em grau crescente, que entre os mais jovens - mas não só - se troca a visão integral do jogo, mesmo da equipa de que se dizem adeptos, pelo resumo de três minutos já servido para esse efeito nas redes e nas televisões.

Isto verifica-se ao vivo, no próprio estádio. Enquanto o jogo decorre, ali à nossa frente, uma parcela cada vez maior de "espectadores" passa o tempo a mirar o teclado do dispositivo móvel. Preferindo olhar em vez de ver. Preferindo olhar em segunda mão. Como se a imagem electrónica fosse mais verdadeira do que a imagem real.

Sobre a estalada de Will Smith

jpt, 28.03.22

guerra psicológica.jpg

Este Savancosinus é o soldado romano a quem foram reconhecidas capacidades intelectuais adequadas a especialista da então pioneira "guerra psicológica", uma invenção de Tullius Detritus, o arguto "enviado especial" de César à "aldeia irredutível".
 
É o verdadeiro ancestral de todos estes "opinadores" internéticos, alguns deles profissionais intelectuais - universitários e quadros-, um ou outro quase-"influencer", até políticos de carreira ou ambição, que botam hoje algo incomodados, quase-nada, pouco ou até mesmo muito, com uma estalada que um actor norte-americano deu num colega. E que antes, durante este último mês, têm vindo, de forma mais ou menos redonda, a botar "contextualizando", "compreendendo", "matizando", "explicando" a invasão russa da Ucrânia.
 
Contrariamente ao que se possa pensar não há outros motivos, são apenas savancosinus... Uns grunhos.

Macro, micro

Pedro Correia, 16.02.22

As redes sociais funcionam com surtos virais de pequenas e micro indignações. Alguém sopra uma coisa via telemóvel, o sopro salta para o twitter ou o facebook -- e é quanto basta para se assemelhar a ignição de fogo pronta a incendiar a pradaria mas que afinal se limita a chamuscar uns canteiros. Mal as chamas irrompem num determinado local, logo outro foco se propaga noutro sítio com o mesmo grau de aparente intensidade do anterior e com a mesma duração média, que raramente ultrapassa a extensão dos dias úteis. Até porque o domingo se fez para o descanso.

E assim sucessivamente. Tudo macro indignado. Até à micro indignação seguinte.

A glamorização dos assassinos

Pedro Correia, 03.05.21

Robert-Mitchum-The-Night-of-the-Hunter.jpg

 

Se há coisa que me repugna, entre os péssimos hábitos que começam a instalar-se na indústria mediática portuguesa, é a glamorização dos assassinos. 

Não há crime mais repugnante e hediondo sem que os protagonistas mereçam todos os holofotes jornalísticos, com ampla revelação dos seus nomes e rostos. Agora tornou-se moda picar fotografias nas redes sociais - e eis, portanto, as imagens de duas mulheres que assassinaram um homem, desmembraram o corpo e andaram a espalhar pedaços do cadáver por todo o Algarve difundidas com poses suaves e requintadas. Imitando actrizes de cinema, imortalizadas em jornais e televisões.

Mulheres, repito. Mas nas notícias recebem tratamento adocicado: chamam-lhes "jovens" enquanto repetem uma vez e outra os nomes, como se fosse gente íntima cá da casa. Algumas notícias emprestam até uma aura romântica à coisa, sublinhando que as criminosas andavam muito apaixonadas. Possuídas pelo fogo que arde sem se ver.

 

Um youtuber que "espanca namorada até à morte em directo por dinheiro" vê a sua foto estampada nos jornais, com nome associado. Foto de rede social, não da polícia: tem ares de artista em voga, não faltará quem o ache simpático. É "jovem" também, sublinham as notícias. Matar a namorada em directo talvez seja um inócuo pecadilho de juventude. E ela - sabe-se lá - pôs a jeito...

Um dia destes o assassino vai ao "confesso-me", num programa de telelixo qualquer, e obtém absolvição do respeitável público ali reunido. Também em directo. 

E siga o baile: este espectáculo alimenta-se de sessões contínuas.

O triunfo do ódio e da iliteracia

Pedro Correia, 14.04.21

pigs-in-mud.jpg

 

Na ânsia quase desesperada de amealhar cliques, que permitam a certos títulos continuar a subsistir no limiar da sobrevivência, a imprensa em linha continua a reproduzir injúrias e calúnias de todo o tipo. Ainda agora verifiquei isso, a propósito da morte súbita de Jorge Coelho.

Vocabulário obsceno, em diversos sentidos da expressão, foi não apenas admitido mas tolerado (se não mesmo incentivado) nas caixas de comentários dessas publicações. 

Insultos carregados de ódio pessoal ou ideológico que no DELITO DE OPINIÃO, por exemplo, vão de imediato parar ao ecoponto, ali são divulgados e ficam perpetuados na nuvem digital.

Interrogo-me se é esse o género de leitores que tais periódicos querem captar. Interrogo-me se para os responsáveis desses jornais valerá mesmo tudo para atrair e reproduzir tal lixo. Questiono-me ainda se as injúrias os visassem a eles teriam idêntica compreensão e tolerância.

E já nem me refiro apenas à linguagem caluniosa. Refiro-me também aos mais inconcebíveis erros de ortografia, que transformam a língua portuguesa numa abjecta caricatura de si própria: também ficam perpetuados, talvez para a eternidade, nessas caixas de comentários de jornais que volta e meia publicam sisudos editoriais em defesa da cultura - e desse "bem cultural" maior que é o nosso idioma, património comum de quase 300 milhões de pessoas

 

Não reproduzo aqui as injúrias, como é óbvio. Mas reproduzirei alguns dos mais primários e boçais erros ortográficos que li só numa dessas caixas de comentários de um desses jornais, supostamente de grande circulação. Para que se perceba melhor como estes títulos se demitem da sua função essencial - até reconhecida por lei - de preservação e valorização da língua portuguesa:

«Pás a sua alma...»

«... muito cordeal...»

«... acto de degnidade...»

«... falar nele nos mídea...»

«... intelectualemente honesta...»

«... desça em pás...»

«... estado portugues...»

«... sofreu 3 banca rotas económicas...»

«...quando se não vêm qualidades...»

«porque è cuando morre um pobre ninguem fala...»

 

O outro falava no triunfo dos porcos. Nós assistimos, impávidos, ao triunfo do ódio e ao triunfo da iliteracia. Todos os dias, a toda a hora, nos locais mais insuspeitos. Supostamente geridos por gente letrada que supostamente recebe ordens para acolher todo o lumpen e todo o lixo.

O direito ao nome do assassinado

Pedro Correia, 16.12.20

transferir.jpg

 

Qualquer indivíduo alvo de violência policial num país como os EUA - e nem precisa de ser espancado e deixado esvair-se até à morte, em arrepiante sessão de tortura - é logo tratado nos media portugueses como alguém com nome e apelido, como se fosse figura do nosso convívio. Há até manifestações públicas, convocadas por redes sociais, enchendo ruas e praças em período de "confinamento", como no início de Junho sucedeu com o norte-americano George Floyd em várias cidades do País. O combate ao racismo sobrepôs-se ao combate ao coronavírus.

Dois meses antes desse crime cometido em Minneapolis, um ucraniano tinha sido violentamente agredido, torturado e enfim assassinado à pancada em Lisboa por presumíveis "servidores públicos", pagos com o dinheiro de todos nós, num departamento oficial supostamente regido por normas de legalidade, transparência, urbanidade e cidadania. No fundo, a tal "ética republicana" com que alguns enchem a boca.

Ao contrário do que ocorreu no continente americano, este crime - que terá contado com cumplicidades várias, numa teia muito mais abrangente do que a do reduto inicial de esbirros homicidas - não comoveu ninguém. Nenhuma manifestação foi convocada, apesar dos óbvios contornos xenófobos do assassínio, nenhuma organização trombeteou em exaltada defesa dos direitos humanos selvaticamente violentados por funcionários públicos. As notícias foram esparsas, acolhidas entre bocejos. Como se toda a indignação doméstica se esgotasse nos protestos por crimes policiais cometidos além-fronteiras.

 

Pior: a vítima não teve sequer direito ao nome. Casado, pai de dois filhos, trabalhador que procurava encontrar em Portugal o sustento que lhe era negado no país de origem, Ihor Homeniuk acabou alvo de novo crime, desta vez de carácter político, social e mediático: o crime da omissão.

Tratado como anónimo, nas semanas e nos meses que se seguiram ao seu brutal homicídio, pelos militantes da indignação selectiva.

Tratado com impiedosa indiferença pelos poderes públicos - designadamente pelo Governo, que só há cinco dias se lembrou de dirigir uma carta de condolências à viúva e de a indemnizar pela trasladação do cadáver há muito efectuada, e pelo Presidente da República, por uma vez recolhido ao silêncio precisamente numa situação em teria sido imperioso escutar uma palavra sua. Aqui Marcelo Rebelo de Sousa foi o último a falar, quando devia ter sido um dos primeiros.

 

Ihor Homeniuk não tem verbete na Wikipédia, não viu o rosto reproduzido em T-shirts, não leva ninguém a proclamar que "todas as vidas contam" - seja qual for a cor dos cabelos do agredido e violentado, seja qual for a pigmentação da sua pele. E raros são os que escrevem ou pronunciam o seu nome, ao contrário do que aqui fizeram o José Teixeira a 2 de Junho, expressando uma indignação que na altura tornaria redundantes outros textos de teor semelhante, ou o José Meireles Graça a 1 de Outubro, muito antes de os justiceiros de turno acordarem para o facto nas pantalhas cá da terra.

Ontem mesmo, na comissão parlamentar convocada para debater este crime na presença do ainda titular da pasta da Administração Interna, o nome de Ihor Homeniuk raras vezes foi pronunciado: vários deputados, quando muito, acederam em designá-lo por «cidadão ucraniano». E ficaram-se por aí.

 

Já me insurgi no DELITO contra a glória póstuma dos assassinos, que transforma qualquer celerado numa espécie de pop star em televisões e jornais. Já clamei contra os mecanismos comunicacionais, que em horas de barbárie surgem mais preocupados em desvendar o "rosto humano" dos homicidas do que em evocar as vítimas dos seus actos. Hoje venho reivindicar o mais elementar e singelo mandamento humano: o direito a sermos tratados pelo nosso nome, sem sermos reduzidos a uma etnia, uma profissão, uma nacionalidade, um emblema, uma afinidade tribal.

O  homem assassinado a 12 de Março nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no Aeroporto Humberto Delgado (cruel ironia, tão repugnante crime ter ocorrido num local assim baptizado) chamava-se Ihor Homeniuk.

É pelo nome que esta malograda vítima do Estado português deve ser conhecida - e não de qualquer outra maneira.

E se Joe Biden usasse bigode?

Pedro Correia, 09.12.20

c13192fd7cf0fe03b5575b653f63c217e50e75bf8723f455cd

 

Há 110 anos, o inquilino da Casa Branca era um republicano de grande corpulência e bigodes farfalhudos chamado William Howard Taft. A imagem dele, vista pelos olhos actuais, é totalmente anacrónica: Taft (na foto em baixo) foi o último presidente dos EUA a poupar nas lâminas de barbear.

Os 18 líderes norte-americanos que se seguiram, de Woodrow Wilson a Donald Trump, apresentaram-se aos eleitores de face escanhoada. Barba, pêra ou um prosaico bigode ficaram desde então arredados do número 1700 da avenida Pensilvânia, em Washington.

Com o atraso sempre habitual nestas coisas, os políticos europeus adoptaram a moda americana. Desde logo no Reino Unido, onde o rei Jorge V, falecido em 1936, foi o último monarca a usar barba, outrora um indispensável adereço da aristocracia britânica. Os filhos que lhe sucederam, Eduardo VIII e Jorge VI, disseram adeus aos pêlos faciais: patilhas, cavanhaques ou bigodes retorcidos tornaram-se símbolos de outros tempos, associados a vultos oitocentistas como Otto von Bismarck e Giuseppe Garibaldi.

 

7313962_aA0Ki.jpeg

Apesar de tudo, o bigode resistiu mais tempo no Reino Unido. O último chefe do Governo a usá-lo foi Harold Macmillan, um conservador que abandonou o poder em 1963. Seis anos depois, os franceses viam partir do palácio do Eliseu o general Charles de Gaulle, último chefe do Estado gaulês militar, último chefe do Estado gaulês com bigode.

Mais finos ou mais exuberantes, os bigodes estiveram associados ao poder totalitário. Talvez isto explique o facto de todos os líderes políticos subsequentes a Hitler e Estaline, na Alemanha e na Rússia, terem optado pela lâmina de barbear. Foi logo assim com o primeiro chanceler alemão do pós-guerra, Konrad Adenauer (1949), e com o homem que em 1953 substituiu Estaline no Kremlin, Nikita Krutchov. E assim tem sido com todos os outros de então para cá, mais à esquerda ou mais à direita.

 

Hoje seria quase impensável um político obeso e de grandes bigodes, como Taft (1857-1930), vencer uma eleição presidencial ou legislativa. Embora esta seja a regra, há sempre uma excepção que a confirma: José María Aznar, um homem de baixa estatura e farfalhudo bigode, foi primeiro-ministro em Espanha entre 1996 e 2004. Isto apesar de a pilosidade infranasal estar associada à longa ditadura do país vizinho: Francisco Franco e outros destacados membros da sua ditadura ostentavam bigode.

Hoje as ditaduras estão fora de moda. E os bigodes também. Até na América Latina, onde outrora pontificavam tiranos como Trujillo, Stroessner, Videla e Pinochet (que usavam bigode). Ninguém gosta de ser associado a elas, ainda que de forma subliminar. Excepto os déspotas venezuelano e nicaraguense, Nicolás Maduro e Daniel Ortega, que de algum modo confirmam a regra. Ou, no continente europeu, o ditador da Bielorrússia, Aleksandr Lukachenko.

O próprio Aznar - que passou a viajar com frequência aos EUA - rendeu-se, dizendo adeus ao bigode. De Taft aos nossos dias foi uma longa caminhada.

 

Portugal: de D. Pedro a Santana Lopes

 

Em Portugal, o último chefe do Estado com bigodaça foi o marechal Óscar Carmona, falecido em 1951. Todos os dirigentes militares da ditadura instalada em 28 de Maio de 1926 – como Gomes da Costa, Mendes Cabeçadas e o próprio Carmona – ostentavam esse enfeite facial.

A moda vinha de trás: os últimos reis portugueses, de D. Pedro IV a D. Manuel II, usavam um bigode bem característico da dinastia de Bragança. E entre os sete presidentes da breve I República (1910-26), apenas o almirante João Canto e Castro, inquilino de Belém durante alguns meses, de 1918 a 1919, tinha a cara barbeada. Tal como viria a suceder com todos os presidentes e primeiros-ministros pós-25 de Abril.

António Guterres chegou a usar um típico bigode mexicano e Pedro Santana Lopes, nos seus verdes anos, gostava de aparecer de barba. Mas ambos se apresentaram de face escanhoada quando chegaram ao poder.

Em política, o que parece é.

Penso rápido (98)

Pedro Correia, 26.11.20

Demasiadas pessoas passam um ano sem ler um livro, seja de que género for. Há gente que se gaba até de nunca ter aberto um livro desde os bancos escolares. Há indivíduos que nunca folheiam sequer uma revista, excepto nas salas de espera dos consultórios médicos. Muitos eleitores presumem andar informados e esclarecidos passando ao lado de conteúdos certificados pela deontologia jornalística: preferem imaginar o que se passa espreitando tuítes da trincheira mais próxima, vídeos acéfalos na Rede ou o primeiro boato que lhes é remetido através de compinchas no WhatsApp. 

Alguém que jamais trocaria o cirurgião pelo curandeiro, o hotel pela pensão manhosa ou o produto de qualidade pela quinquilharia do chinês prefere "informar-se" recorrendo às versões digitais da intriguista do prédio, do bisbilhoteiro do bairro ou do tasqueiro fala-barato.

Quando se fala na degradação da cidadania, não podemos culpar só os políticos. Há que começar a apontar o dedo a quem anda desinformado e ainda se orgulha disso.