Sujar as mãos e lavar a alma
É o melhor programa sobre gastronomia que tenho visto em televisão desde há muitos anos. Passa na SIC, às sextas-feiras, integrado no Jornal da Noite - seguindo a lógica corrente de integrar programas dentro do principal bloco informativo do dia, que padece de gigantismo incontrolável. Disso não tem culpa o Ricardo Dias Felner, autor deste espaço de divulgação que contrasta com as habituais rubricas sobre comidas, bebidas e dormidas - autênticas "publi-reportagens" camufladas de jornalismo a exaltar o magnífico e fenomenal e caríssimo hotel X ou restaurante Y, a preços obscenos para a carteira do cidadão comum.
Conheci o Ricardo das lides jornalísticas. Era um talentoso repórter político, com pena acutilante e óbvia qualidade de escrita. Estou à vontade para elogiá-lo, pois trabalhávamos em jornais concorrentes. Um dia ele cansou-se do jornalismo político - ou talvez essa incómoda modalidade de jornalismo se tenha cansado dele - e decidiu especializar-se em gastronomia. Mas não toca de ouvido, como aqueles que peroram sobre culinária sem saber estrelar um ovo.
É preciso conhecer bem aquilo de que se fala para fazer um programa exigente como este seu O Homem que Comia Tudo. Fala-nos de uma Lisboa ainda oculta aos olhos de quase todos nós. A Lisboa globalista que atrai gente de todas as parcelas do planeta e as integra numa amálgama caótica mas harmoniosa. A velha capital portuguesa enriquece com estes novos contributos. Também no paladar. E é isto que o Ricardo partilha, com a abertura de espírito inscrita no próprio título do programa. Sem dogmas culinários, sem tabus, sem preconceitos.
Vale a pena ir com ele a estes restaurantes fora dos circuitos em voga. Podem ser simples tascos onde é garantido que se come bem - até sem necessidade de talheres. Comida diferente, sim, mas sempre recomendável. Do Brasil, de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique, da China, do Japão, do Nepal, de Goa. Muitas vezes comida crioula, arraçada, com aquele toque de mestiçagem herdado dos descobrimentos portugueses, notáveis também por isto: levaram sabores daqui, a bordo de cascas de noz, e trouxeram sabores de lá. Sendo lá quase o mundo inteiro.
«Comida de festa, para sujar as mãos e lavar a alma.» Eis uma das definições do Ricardo, neste caso em louvor da comida mexicana - ela igualmente já com redutos gastronómicos em Lisboa que funcionam como genuínas legações diplomáticas. Porque nada aproxima tanto os povos como aquilo que comemos.
Também por isto, O Homem que Comia Tudo presta serviço público. Mesmo sem passar na RTP.