Em busca do acaso
A sequência de feriados desta semana abriu a possibilidade de realizar um projecto antigo que consistia em regressar, desta vez com um dos meus rebentos, a um dos lugares mágicos do nosso país, o Covão da Ametade, o berço do rio Zêzere.
Apesar das previsões meteorológicas não serem risonhas para o segundo dia, arriscámos sair de casa. Afinal de contas a chuva só mete medo a quem é feito de açúcar.
Assim, as tralhas das caminhadas em autonomia e das pernoitas na natureza foram recuperadas do pasto das aranhas. Com o pó sacudido e as botas calçadas, pusemo-nos ao caminho.
O trajecto começou em Manteigas. Seguimos pela na meia-encosta da vertente oeste do incrível vale glaciário. Dali a vista sobre o vale é soberba.
Quilómetro após quilómetro o trilho começa a degradar-se. As giestas são inúmeras, e aos poucos começamos a ter de lutar, metro a metro, contra estes obstáculos que preenchem toda a passagem. Como se isso não chegasse, a páginas tantas é o próprio caminho que deixa de merecer esse nome. Ali a linha do horizonte é composta por paredes íngremes onde não se consegue descortinar nenhuma passagem. Perante isso, recuamos.
Com o avançar da hora e com o fuso alimentar a badalar dentro de nós, decidimos que merecíamos um reforço positivo que consistiria numa transferência de carga da mochila para o estômago.
A paragem foi frutuosa e após o café final, já na lavagem do púcaro ali ao lado, num dos riachos ali omnipresentes, tive uma surpresa. Dentro do púcaro veio um pequeno insecto que desconhecia. Alguém me ajuda a identificar o bicho?
De maneira a não regressarmos a Manteigas, nem de subir ao planalto, o que nos iria atrasar na chegada ao local da pernoita, decidimos descer até à base do vale glaciário do Zêzere. Esta descida acabou por ser a passagem mais empolgante de todo o passeio, pois em pouco mais de duzentos metros de deslocação horizontal descemos duzentos metros verticais. As giestas, que antes nos tinham obstruído o avanço, foram aqui um ponto de apoio a que nos agarrámos para travar a descida. Com uns arranhões a mais e quase amarelos com tanto pólen, chegámos finalmente ao fundo do vale do rio ainda recém-nascido. Seguimos o trilho assinalado da Grande Rota do Zêzere em direcção à sua nascente. Foi por entre rebanhos e estábulos que fizemos estes quilómetros. A passagem vai estreitando e ficando mais sinuosa, aqui e ali enlameada, até que finalmente chegámos ao alcatrão e pouco depois ao destino planeado.
Visto de cima este covão encantado parece um coração. Montámos a tenda no seu ventrículo direito, ao lado de uma das churrasqueiras ali existentes. Quase sem darmos por isso já estávamos na conversa com três encantadores vizinhos, com quem partilhámos as horas que se seguiram. Além do serão partilhámos ainda vinho, chouriço assado, pão, queijo e maçãs de Alcobaça. À volta da fogueira confinada dentro da estrutura de betão, ainda falámos de ondas sísmicas, de navios bacalhoeiros, de vinho tinto, de excesso de carga nas mochilas, de leitão da Bairrada, de courgettes, de rugby, de auroras boreais, do Montenegro, de electrodomésticos Teka, e ainda de teclados de entrecosto, que além de um belo petisco são uma metáfora da vida, pois também neles sem ossos não há carne.
Importa relevar que os nossos vizinhos vinham de outra zona do país, de outra direcção e com um destino diferente. O facto de termos estado à mesma hora e no mesmo ventrículo do Covão foi uma absoluta coincidência. A sintonia nos interesses e o acerto de frequência no humor foi incrível.
Quando tivemos de nos recolher às tendas para pernoitar entendi que os quilómetros, os arranhões e as ameaças de bolhas nos pés daquele dia tinham tido o propósito de ali estarmos juntos durante aquelas horas. Lembrei-me de outros eventos noutras paragens, igualmente improváveis e igualmente preenchedores, que nos ficam na memória e nos fazem sentir uns felizardos.
Há uns anos, ao ler uma revista, tropecei numa citação de Plutarco, segundo quem o acaso é Deus quando viaja incógnito. Como é que a ciência e a razão explicam estes acasos?