Os sem-abrigo
Não é que seja novidade mas na zona em que estadeei uns dias, em Alcântara, há uma quantidade prodigiosa de sem-abrigo e drogados. Um vi eu a preparar-se para a noite erigindo uma paliçada de cartão por trás da qual ficava a enxerga e um cobertor e, pelo aspecto, talvez fosse dos que acumulam as duas condições. E numa avenida de grande intensidade de tráfego veem-se tendas improvisadas circundadas de lixo, no meio do qual circulam seres barbudos e cadavéricos, na indiferença geral.
Não faltam análises para explicar a existência destas categorias de pessoas, típica de grandes e médias cidades (toxicodependência, preço dos arrendamentos, desemprego, famílias reduzidas à nuclear ou nem isso, portanto sem rede de apoio, e um longo etc.). Periodicamente algum político propõe-se remediar a tragédia – o inevitável Marcelo, em tempos, prometeu “fazer de tudo” para diminuir o número destes deserdados da sorte, que parece ter crescido 78% nos últimos 4 anos. Deve porém ter sido muitíssimo parco em tais esforços porque o problema não cessa de se agravar.
Há porém uma solução fácil: basta instaurar um regime comunista que este se encarregará de mobilizar estes cidadãos para centros de trabalho e acolhimento, por exemplo em Vinhais e na Amareleja, desaparecendo das estatísticas, dos olhares indiferentes ou consternados dos concidadãos e, nuns casos irrecuperáveis, do número dos vivos. Isto para não falar daqueles expedientes em que são encaixados em casas com um numero excessivo de quartos para os antigos donos, que passam a acoitar-se irmãmente nos que sobram.
Regimes comunistas, porém, ninguém quer; e pelo contrário onde ainda existem basta o poder aliviar a pressão para hordas de trabalhadores insatisfeitos darem à sola para países capitalistas. Destes a Meca são os EUA, onde precisamente os sem abrigo, ou com abrigo em parques de roulottes, são legião.
Quer dizer que o problema não é fácil de resolver: nem a larga família tradicional será restaurada, nem as crises de desemprego serão sempre evitáveis, nem haverá habitações a preços acessíveis tão cedo ou nunca, nem muito menos o número de drogados diminuirá, nem o trabalho nos campos existe para garantir um mínimo de subsistência, salvo para imigrantes anónimos, nem as redes de auxílio aos necessitados bastam, nem as promessas de políticos valem muito mais do que o cuspo produzido a emiti-las, nem, nem.
Em lado nenhum onde o problema exista foi satisfatoriamente resolvido. E as soluções ensaiadas (o combate ao tráfico de droga, que a encarece incentivando os crimes associados e a criação de redes criminosas especializadas, investimentos públicos massivos na habitação que atraem desvalidos de outras paragens e pessoas que não têm o mesmo grau de necessidade, prorrogação de subsídios que incentivam o desemprego profissional, etc. etc.) são apenas pensos para chagas supuradas.
Pode bem ser que solução permanente não exista, até onde a vista alcança.
Sucede porém que, para lá da caridade cristã e dos bordões sobre a dignidade mínima da condição humana, e da estúpida e egoísta reflexão de que isto são eles, não somos nós, pelo menos os drogados têm o que merecem, o pobre diabo que se ajeita no umbral de uma porta para passar a noite debaixo de um cobertor emporcalhado ofende, ou deveria ofender, aquele mínimo de solidariedade que o PAN, e a turba acéfala que o apoia, dedica a cães e gatos.
De modo que a tragédia que socialmente não pode ser resolvida talvez possa ser atenuada. Não com programas de desperdício e corrupção, não com discursos empolgados, não com soluções políticas que querem fazer passar de contrabando modelos repugnantes de engenharia social, mas com ajudas eficazes e interesseiras.
Existem em alguns aeroportos cabines dormitórios para alugar. São amovíveis e não há razão para pensar que não são económicas e que não poderiam, adaptadas para resistir a intempéries e vandalizações, ser colocadas em quantidades apreciáveis em lugares públicos. Quem sabe se, pintadas com os logotipos de empresas que investem milhões em publicidade, não poderiam custar nada aos poderes públicos, e portanto ao contribuinte?
Há, é claro, problemas logísticos e de implantação de índole vária, e de alguma forma a polícia teria de estar a par, sem paternalismos espúrios, para evitar abusos e depredações. Nada que a boa-vontade e a imaginação não resolvam.
Não faltam soluções grandiosas para resolver o problema que não resolvem coisa alguma. Um módico de humildade na abordagem teria talvez, pelo menos, o mérito de quem, como eu, acha que beber champanhe não tira nada a quem não tem mais do que água ou uma cerveja morna, saber que a miséria, ao menos, não tem frio.