Animais
(créditos: daqui)
Confesso que ainda estou chocado.
Nos últimos dias tenho pensado muitas vezes no que aconteceu. E só de pensar imagino-me a contorcer-me e a sentir o sofrimento atroz que foi infligido a um homem, preso, que condenado à pena capital em 1988 assistiu 34 anos depois ao falhanço, com sequelas, da primeira tentativa para a sua execução, cuja macabra concretização só ocorreu há alguns dias.
Da primeira vez, em Novembro de 2022, o desgraçado estivera durante quatro horas amarrado a uma maca para ser depois devolvido à sua cela devido à manifesta incompetência dos seus carrascos, incapazes de encontrarem uma veia adequada para lhe injectarem o líquido letal antes de expirar o prazo para execução da sentença de morte.
A opção, desta vez, passou por fazer do preso uma cobaia e matá-lo por asfixia usando uma máscara para onde foi bombeado nitrogénio. Fazendo-o respirar o gás e sofrer até que a asfixia fosse completa, de modo que pudesse viver cada segundo de agonia a plenos pulmões. Com outros a assistir ao espectáculo do sofrimento, como se este fosse uma espécie de justiça divina carregando em si a reconciliação e a esperança.
É óbvio que quando um dos carniceiros que faz de Solicitor General do Alabama diz que o processo escolhido foi “o menos doloroso e mais humano que se conhece”, LaCour só mostra porque não passa de um primitivo saído do largo esgoto do trumpismo, com vasto cadastro em matéria de direitos humanos, que justifica a barbárie em pleno século XXI e os procedimentos macabros de execução do prisioneiro usando uma linguagem só compreensível para si e para cafres de igual linhagem.
Estranho, em particular, nesta miséria global em que vivemos e não conhece fronteiras, que tantas organizações devotadas à protecção e ao bem-estar animal não se tenham insurgido e manifestado em todo o lado e a toda a hora, com a mesma veemência com que o fazem contra as touradas, perante aquilo a que assistimos no Alabama, continuando todos sentados no conforto dos seus gabinetes, enquanto tomam um cafezinho e discutem a emergência climática com o vizinho que está de comando na mão a regular a temperatura do ar-condicionado ou a fazer zapping para ver as diatribes dos ignaros que por aí se dedicam a invadir museus e a destruir património que pertence à memória de todos os povos, pensando que com isso arregimentam adeptos para a sua causa.
Tirando uma ou outra peça nos noticiários, um artigo nos jornais e as tomadas de posição de algumas organizações de defesa dos direitos humanos, esta selvajaria, que remete os EUA e a Humanidade para um estado pré-animalesco, onde desprovidos de tudo, de intelecto, da mais leve racionalidade ou de qualquer sentimento conhecido, nos dedicamos à grotesca exterminação da nossa própria espécie, infligindo o maior sofrimento possível ao condenado, sem qualquer ponta de compaixão ou remorso, aconteceu sem que as nações que se consideram civilizadas se levantassem em uníssono a condenar o sucedido.
Ignorou-se a imposição de sanções, como tantas outras vezes se faz por questões menores, a começar pela União Europeia, e esqueceram-se de colocar os carniceiros numa qualquer lista de pessoas a evitar, impedindo-as de viajar e entrar em países terceiros, sujeitando-as internacionalmente a perseguição criminal.
Como se LaCour ou os executores do homicídio de Kenneth Smith fossem melhor que os projectistas da "Solução Final", os funcionários de Treblinka ou de Auschwitz-Birkenau, os suicidas do Hamas, os seus sósias da IDF, os carniceiros putinescos, a escória fardada do Mianmar, os talibãs afegãos, ou tantos outros vermes que andam por aí à solta sem que nada lhes aconteça.
Sim, porque se mais não se ouviu da parte dos defensores e das organizações protectoras dos direitos dos animais, não terá sido por falta de vontade, de meios ou de megafone, mas antes porque a preocupação com os maus-tratos às galinhas ou aos bovinos, inteiramente devida, certamente terá uma qualquer outra dimensão, inatingível para mim, que a torna incompatível com a protecção da nossa própria espécie e os remete ao silêncio.
Uma democracia que se preze, um Estado de direito, um país que queira ser visto pelos outros como civilizado e desenvolvido, não pode continuar a conviver com a pena de morte como se fosse uma qualquer teocracia fundamentalista ou uma dessas autocracias "democráticas" da Ásia. Muito menos permitindo execuções com o grau de sadismo imposto ao condenado do Alabama.
É em momentos como o que correu nos EUA que sinto verdadeiro asco por alguns dos meus semelhantes; como se não fossemos todos da mesma espécie, não tivéssemos direito a respirar o mesmo ar, numa espécie de sentimento misto de desprezo e revolta que com todas as forças procuro combater, para não ser como eles, e que jamais conseguirei compreender.
Antes o regresso à guilhotina, ao tiro na nuca ou ao pelotão de fuzilamento.