Dois textos
Por vezes acontece-me isto. Vou lendo blogues assinalados na barra lateral do DELITO, uns puxam-me para outros e acabo por me demorar mais tempo do que o previsto. Bom sinal. E um desmentido vivo de que «a escrita blogosférica não interessa, é chata, maçadora, ninguém quer saber», como argumentam alguns viciados em certas redes onde o que mais importa é disparar primeiro e pensar depois.
Contra esta corrente, recomendo dois textos blogosféricos de recente data.
O primeiro, no Duas ou Três Coisas, intitula-se "Saudades do tio Filipe" - talvez paráfrase de "Saudades para Dona Genciana", um dos melhores contos desse extraordinário escritor que foi José Rodrigues Miguéis. É prosa de blogue, sim, mas também texto literário. Em estrito rigor, será crónica. Bastariam no entanto uns toques estilísticos para se situar no inequívoco patamar do conto. E dos bons.
Aliás muitos textos de Francisco Seixas da Costa são já contos, sem necessidade de aval académico. Assim li este, assim o recomendo. Com os seus laivos de romance oitocentista, centrado na família - o mais fascinante dos temas.
O segundo vem no blogue Causa Nossa. Vital Moreira evoca um seu ilustre contemporâneo como estudante na Universidade de Coimbra: Francisco Lucas Pires (1944-1998). Navegavam já em campos políticos opostos nessa década que antecedeu o 25 de Abril: um seria deputado comunista e voltaria a São Bento integrado na bancada do PS, embora não como militante inscrito; o outro chegaria a presidente do CDS, partido de que se desligou anos antes de ingressar no PSD. Mas mantiveram laços do antigo companheirismo coimbrão.
O constitucionalista é pouco dado a notas de pendor confessional. Daí o redobrado interesse deste apontamento memorialístico, surgido a propósito da novíssima biografia de Lucas Pires, escrita por Nuno Gonçalo Poças. «Tive a sorte de o acompanhar não poucas vezes, depois do quartel, à casa que Teresa, sua mulher, tinha arrendado em Óbidos, em longos repastos e fértil discussão política», lembra Vital Moreira, sob o título "Um singular serviço militar".
Dois textos muito diferentes, mas ambos merecem leitura. Aproveitamos bem o tempo, aprendemos alguma coisa com os autores, abrimos horizontes temporais. E também por isto: escutamos vozes singulares, que não se dissolvem no anonimato nem gravitam na nebulosa amálgama do "colectivo". Enorme diferença em relação a tantos outros.