Meia dúzia de notas
1. Não abordei até agora o caso da falta de pagamento das contribuições devidas por Passos Coelho à Segurança Social entre 1999 e 2004 porque não vejo razões para defender quem não cumpre as suas obrigações nem para atacar quem, apesar de tudo, incorreu no que classifico como um delito menor, partilhado por muitos milhares de portugueses (desconhecendo a obrigação, eu próprio andei uns meses sem pagar as contribuições em 1993/94 e conheço várias pessoas que fizeram o mesmo, uma das quais durante dois anos - sem que nenhuma tenha sido alertada para a falha pelos serviços da Segurança Social).
2. Não, não é necessário ter um passado impoluto para, sendo governante, exigir um módico de cumprimento aos restantes cidadãos - até porque ninguém o tem. É necessário assumir os erros cometidos e mostrar que se aprendeu algo com eles. A reacção de Passos, atabalhoada, revela uma de duas coisas: ou está convencido de que reacções sinceras, não preparadas por spin doctors, o beneficiam (até por contraponto às contínuas encenações do primeiro-ministro que o antecedeu) ou necessita de despedir os spin doctors actuais e arranjar outros (melhores; muito, muito melhores). A reacção pública aconselha a segunda via.
3. Que muitas almas tenham visto na defesa de Passos Coelho uma alusão a Sócrates é normal. Que, por Sócrates estar preso, Passos estivesse impedido de afirmar nunca ter usado o cargo para benefício pessoal seria aberrante. Passos terá culpas pela situação em que se encontra mas não pelo facto do Ministério Público estar precisamente a acusar Sócrates de usar o cargo para, beneficiando empresas, ganhar milhões.
4. A discussão tem pelo menos dois méritos que ultrapassam a simples questão dos actos passados de um cidadão que chegou a primeiro-ministro. Um deles é permitir um princípio de debate em torno da hemorragia legislativa nacional (que potencia falhas e litígios), bem como da relação dos serviços do Estado com os cidadãos (antes, errática e autoritária; hoje, assertiva e autoritária). Que o governo apenas tenha executado mudanças superficiais nestas áreas (redução dos escalões do IRS, reforma do IRC, corte de subsídios) deveria dar azo a crítica. É, porém, necessário reconhecer que nem o aperto orçamental dos últimos anos nem a circunstância de, durante eles, ter ficado provado ser apenas constitucional aumentar taxas e impostos propicia abertura para tentar uma relação mais adulta com os cidadãos.
5. O outro mérito é invalidar o argumento de que há uma relação directa entre os descontos que se fazem e a pensão que se recebe, expresso frequentemente na ideia de que «a minha pensão não pode ser cortada porque o dinheiro é meu». Se assim fosse, ninguém para além do próprio seria penalizado pela falha de Passos Coelho e ela seria vista como pouco grave. Fica pois assumido que a lógica da Segurança Social não é particularmente diferente da que rege o sistema fiscal: as pessoas são forçadas a contribuir por razões comunitárias e até distributivas (se não entre escalões sociais, pelo menos entre as gerações no activo - sem garantias quanto aos valores que receberão - e as não activas - que beneficiam mais do esforço das activas do que da contribuição efectivamente realizada). É uma noção importante, a manter presente quando se voltar a discutir a reforma do sistema - e o Tribunal Constitucional tiver de se pronunciar sobre o assunto.
6. Finalmente, desejo exprimir solidariedade para com o PS. Não deve ser fácil ter o líder na prisão.