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Delito de Opinião

Indignações estratégicas

jpt, 26.10.24

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["A TVM a reportar tumultos em Portugal e não fala do caos nos arredores de Maputo"]

O processo eleitoral moçambicano tem sido complexo. Com assassinatos. A seguir ao anúncio dos resultados houve manifestações de repúdio em várias cidades, fazendo temer a disseminação de violência, o que felizmente não aconteceu, pelo menos em grande escala. Recebi imensas mensagens no frenesim comunicacional destes últimos dias - reduzido desde ontem, pois o Estado bloqueou os "dados móveis" para acesso à internet (fazendo lembrar quando há 14 anos bloqueou as comunicações telefónicas mais populares, aquando de tumultos em Maputo). Entretanto vários amigos, moçambicanos e portugueses, enviaram-me esta mensagem (foto e legenda): no telejornal do canal estatal (TVM) foram noticiados os "desacatos" na Grande Lisboa enquanto se calava qualquer referência à turbulência acontecida nesse dia naquele país. O controlo da imprensa estatal é coisa típica, não monopólio  moçambicano. Mas não deixa de ser notável.

Ontem assinei uma petição pública, avessa aos deputados André Ventura e Pedro Pinto, autores de declarações inadmissíveis sobre estes motins nas cercanias de Lisboa. Não sou adepto, nada mesmo, da criminalização de deputados por declarações de teor político, fazê-lo arrisca ser um destapar da caixa de Pandora. Mas abstenho-me agora desse princípio, associando-me a uma manifestação de repúdio diante de uma verdadeira abjecção - o deputado Pinto chegou a apelar que os agentes "atirem para matar". Em última análise, é a própria polícia que não merece tamanho disparate! E também sabendo, como o disse Sérgio Sousa Pinto, que os deputados nunca abdicarão da imunidade parlamentar.

Sobre a real situação securitária em Portugal nada sei, como escrevi há pouco. Mas sobre estes tumultos actuais concordo com o que ouvi ontem de Ângelo Correia na CNN (num programa de comentariado com Marques de Almeida, Sá Lopes e Sousa Pinto, que ontem descobri aquando em zapping) - o que me provocou um "ó diabo, eu a concordar com o Ângelo Correia?!" Ou seja, esta problemática não é apenas securitária. E não posso discordar mais da jornalista Sá Lopes, a qual reproduz uma ignorância generalizada na auto-reclamada "esquerda", essa que reduz as preocupações securitárias a meras "bandeiras da direita". Denotando como é espantosa e veemente a capacidade de intelectuais e jornalistas em nada aprenderem com as realidades circunvizinhas.

Enfim, apesar de desconfortável com a iniciativa criminalizadora de deputados, tendo recebido de uma queridíssima amiga (cherchez la femme, sempre) a petição, li-a e assinei-a, juntando-me a cerca de 70 000 outros (no momento em que escrevo o postal). É óbvio que a associação a uma iniciativa colectiva implica sempre a suspensão de alguns critérios próprios, o inflamar de alguns pruridos. Mas, e repito-me, o grunhismo dos deputados CHEGA é tamanho que a coceira se justifica.

Explicito dois desses focos de inflamação, para que se perceba o quanto me irritaram as declarações de Pinto e Ventura, pois só tamanha abjecção me faria "juntar", mesmo que modestamente, a tais pessoas num rol de assinaturas. A petição é encimada por um vasto rol de "primeiros signatários". Nele consta o nome do socialista Porfírio Silva, um político de execrável indignidade - foi ele que veio clamar que Passos Coelho usava a doença da sua mulher para colher dividendos políticos. É incompreensível como outros ainda lhe dão crédito para ser "alguém" na vida política e/ou de cidadania. 

O outro caso é mais significativo. Eu defendo que os estrangeiros, residentes ou não, podem manifestar-se sobre a vida política portuguesa. Mas fico a menear a cabeça, com indignação (nada estratégica, friso), quando vejo o angolano José Eduardo Agualusa a surgir como um dos "primeiros signatários" desta petição política sobre Portugal. Sabendo-o sempre em calmaria pública no Moçambique onde reside. E agora surgindo em declarações públicas suportando o bloco social no poder, invectivando o candidato Mondlane - mesmo depois da comitiva deste ter sido baleada pelas forças policiais. Compreendo esse silêncio sobre o país que habita. Grosso modo foi o meu - ainda que não radical -, na modéstia de qualquer repercussão que pudesse ter, pois sempre me dizendo meteco. Mas se isso compreendo também interpreto a sua adesão actual, enquanto segue plácido diante da violência estatal sistémica, de inúmeras declarações abrasivas, do rumo nacional, feito de coisas tao mais graves do que isto que se passa em Lisboa. Sobre as quais nada... assina

Por isso, e independentemente das nacionalidades de cada um, percebo como é necessário um grande desplante para que o autor surja agora com posicionamentos políticos em Portugal. Num rumo - que se quer "premiável" - feito de indignações estratégicas.

Ou, dito de outra forma, Agualusa é tal e qual a TVM. 

A ferro e fogo.

Luís Menezes Leitão, 23.10.24

O Estado tem duas funções fundamentais: assegurar a Justiça e a Segurança. Portugal está a falhar clamorosamente nessas duas funções.

Em relação à Justiça, a mesma está completamente bloqueada, assistindo-se agora ao triste espectáculo de o julgamento do processo mais fundamental do regime ter o seu início mais de dez anos depois dos factos, com o principal arguido com a doença de Alzheimer e com o Tribunal a ouvir depoimentos gravados de testemunhas mortas há anos. Alguém há-de explicar como é que se exerce o contraditório, essencial a qualquer defesa, nestas condições. Em qualquer caso, a Justiça fica completamente descredibilizada.

Como se isso não bastasse, os subúrbios de Lisboa estão a ferro e fogo, com revoltas, distúrbios, autocarros incendiados, e ataques a pessoas e bens, sem que a polícia se mostre minimamente capaz de restaurar a ordem pública. Os cidadãos sentem-se por isso ameaçados, enquanto o discurso oficial continua a proclamar que Portugal é dos países mais seguros do mundo.

A população paga impostos para ver os seus direitos assegurados e poder dormir descansada. Se Portugal não consegue assegurar as duas funções fundamentais do Estado, está a transformar-se num Estado falhado. Exigem-se explicações urgentes das autoridades sobre o que se está a passar no nosso país.

A Assembleia da República e o policiamento comunitário

jpt, 09.10.24

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1. Fervilha o Whatsapp com o reenvio desta recomendação exarada pela Assembleia da República para que se alterem os processos de recrutamento de agentes da PSP e da GNR: mais pano para mangas para aqueles que "dizem o que é preciso ser dito", e que "ninguém tem coragem para dizer"...

Esta (de facto) propaganda parlamentar articular-se-á com a polémica em curso sobre o putativo aumento da criminalidade. É certo que Portugal é um país muito seguro. Mas muitos reclamam sobre a degenerescência actual dessa situação. Os números parecem indicar isso, ainda que estas estatísticas (como tantas outras) sejam sempre discutíveis, e discutidas... O governo, e outros, negam essa realidade, situando-a apenas na crescente sensação de insegurança subjectiva.

2. Não nego a hipótese da actual decadência da efectiva segurança pública (ainda que aqui nos Olivais tudo decorra na paz do Senhor...). Mas talvez muito deste debate público se origine na tal sensação de "insegurança subjectiva". Não creio que esta se deva à "imprensa", como muitos dizem - pois a atracção pelo tópico "criminalidade" é algo antigo na comunicação social. Porventura será alimentada pelas recentes (e legítimas) demonstrações de incómodo laboral efectuadas pelas polícias. E pelo eco (legítimo, ainda que um pouco "aproveitador") que o CHEGA foi fazendo disso.

Outro factor contribuirá para a tal "insegurança subjectiva", velho como o mundo, e nada nosso monopólio. Pois o recente surto imigratório faz medrar um desconforto face ao estrangeiro mais excêntrico, aos aportados menos parecidos com "turistas". É isso um erro de percepção: muita gente se arrepia, até cai num automático receio ali no metro ao ombrear com um uberista sikh ou trolha senegalês ou, já no restaurante, face a uma aparente vivandeira brasileira. Mas é uma reacção alienada - pois desconhecedora das verdadeiras condições de vida. Dado que as pessoas não se arrepiam aquando face a um qualquer facebuquista ou administrador não-executivo socialista, ou, pior ainda ("The horror, The horror"), se diante de um Medina ou uma Temido (nesta até votam em massa), gentes muito mais perigosas para a sua segurança pessoal, física e económica, actual e futura.

Também eu vou assim: há para aí um ano fui jantar com um bloguista do Delito de Opinião numa simpática esplanada em Alvalade. Cheguei antes e notei que ali estava Pedro Nuno Santos, então proto-chefe do PS. Resmunguei uns impropérios mudos e hesitei em telefonar ao amigo para mudarmos de sítio mas não o fiz, ele chegou e lá comemos, com gosto. Mas se no restaurante estivesse uma larga mesa advinda do "Chelas profundo", em obrigatório alarido, eu não teria hesitado no desvio comensal. Mesmo sabendo ser Santos muito mais perigoso para o parco futuro que me resta do que qualquer xunga vizinha...

3. Enfim, seja lá como for, é plausível a necessidade da melhoria nos formatos da acção policial, como até indicia a "recomendação" parlamentar. Não sabia o que é o "policiamento comunitário" - só conhecia a realidade em Moçambique, e presumi (acertadamente) que fosse algo diferente. Fui ler um texto da antropóloga Susana Durão. Do qual retirei tratar-se de uma dupla acepção: uma actuação policial mais interactiva com as populações; uma participação dos cidadãos no esforço de policiamento, sua planificação e enquadramento, talvez uma espécie de quase "cidadão-agente". O texto é de 2012, deixa entender que a via então em curso se centrava na acção dos agentes policiais. E vi ainda, muito em diagonal, o livro "Policiamento de Proximidade" do sociólogo Manuel Lisboa (que em tempos conheci quando cruzou Maputo) e Ana Lúcia Teixeira, também já com uma década. Enfim, de ambos os textos retirei que por cá se trata de um método de policiamento mais aproximado dos cidadãos, mais atento às preocupações destes. De certa forma é o "mais polícia na rua", mais segurança subjectiva e, porventura, objectiva. Algo que todos defenderão, tantos os que clamam a "desgraça" securitária actual como os que desta descrêem.

4. Assim o que esta "recomendação" parlamentar convoca não é o questionamento sobre a justeza do "policiamento comunitário". Mas a intervenção demonstra um pensamento pobre, e comprova ser já este pacificamente dominante, pois maioritário entre os partidos. Surgindo como se ungido pelas aparentes "boas causas" poucos criticam este rumo, esta crescente via do Estado em seccionar a população, postulando categorias sociais, instaurando-as nos censos e nas iniciativas estatais, promovendo quotas discriminatórias - agora até a elas apelando no recrutamento de agentes policiais. Tribalizando o país. Os partidos de esquerda anuem, claro - e os comunistas, principalmente os não-brejnevistas, pois esses mais atreitos ao "identitarismo", têm sempre a expectativa (utopia) de transformarem essas categorias-em-si em categorias-para-si ("comunidades-em-si" em "comunidades-para-si"), essa velha aspiração marxista de incrementar o conflito social para instaurar uma nova era. Também o PSD aprova - e nem supreendente é isso, consabido o rusticismo desse partido. Do póstumo CDS resta o jazigo. E surpreende-me nada ler sobre o que a IL diz disto (mas também, se calhar, não deveria esperar muito). E sobra o que sobra...

Esta tétrica mediocridade política portuguesa demonstra-se nos pormenores. Note-se na formulação da recomendação. Não apenas a utilização do termo "comunidades" - por mais habitual que seja hoje em dia, ainda custa não ver alguém dizê-lo impregnado do velho evolucionismo, da crença da passagem de grupos de solidariedade mecânica (rigorosa comunhão) para solidariedade orgânica (de complementariedade diversificada), da ascensão histórica de "comunidades" (simples) a "sociedades" (complexas). Entenda-se bem, "comunidades" é o actual sinónimo ideológico da velha "tribo", do cá esconso "clã", da racista "raça", do mais recente ademane "etnia". A crença, e a proposta, é que cada membro de cada uma dessa(s) "identidade(s)" tem características comuns, anseios comuns e "precisa" de políticas estatais específicas para o seu "grupo". Fazer ascender esta mediocridade à assinatura da 2ª figura do Estado apenas me convoca o desprezo.

Mas mais ainda, veja-se como escreve a AR e assina Aguiar Branco: "comunidades específicas" "incluindo" "pessoas LGBT+" - de que universo se está a falar, se nestes termos e se numa proposta destas? E "comunidades" (...) "migrantes" - quem as constitui? Açorianos vindos para o continente, os últimos alentejanos chegados às cercanias do Pinhal Novo? Ou seja, hipocritamente, a AR e o seu presidente Aguiar Branco querem elidir que falam de imigrantes. E há também as "comunidades" (...) "comunidades ciganas". Votámos em quem escreve assim? 

5. Para enfrentar esta tralha não tenho saberes suficientes nem talento particular ("engenho e arte", para citar o poeta que o agora colunista do "Público" esqueceu quando era ministro da Cultura). Apenas consigo resmungar, para isso convocando alguns sublinhados meus, leituras antigas. Há umas décadas Hannah Arendt bombardeou correctamente a boa consciência europeia, anunciando-lhe que a democracia e o universalismo de cidadania aposto na defesa dos direitos humanos, inexistia nas situações coloniais. Isso deu azo a críticas a esse universalismo - "republicano", diz-se em contextos mais francófonos. Depois outros apupos vieram à hipocrisia universalista dos "direitos humanos". Há quem os ancore num anticolonialismo. Esquecendo (ou fazendo por esquecer) que a crítica à defesa dos "direitos humanos", e seu concomitante universalismo, engrandeceu fundamentalmente por ter sido uma arma das ditaduras brejnevistas, grosso modo desde o Acordo de Helsínquia - já após o colonialismo, frise-se -, uma forma discursiva do comunismo combater as democracias.

O que se vive agora é o embate entre dois modelos de organização social, sempre vividos de forma algo ambígua. As sociedades ancoradas na laicidade, exemplificadas pela república francesa. Feita de cidadãos individuais - não que isso implique (como dizem os falsários detractores) que os cidadãos não tenham outras pertenças, mas sim que o Estado os considera por igual, sem mediadores, sem grupos  intermédios. E as sociedades ancoradas no secularismo, mais ligadas ao mundo anglo-saxónico, nas quais os Estados reconhecem categorias sociais intermédias de pertença e através dessas diferenciam os cidadãos, cujo maior exemplo actual radica nos EUA.

Por cá os defensores desta última opção - normalmente agentes ambicionando estabelecer-se como "intelectuais orgânicos" (e remunerados) dessas projectadas "comunidades-em-si" - criticam violentamente a falsidade e a injustiça do modelo universalista ("francês", para facilitar). E encontram - mesmo sendo de esquerdas radicais - virtudes no modelo particularista ("secular", "americano"), uma contradição ideológica absurda, na qual não reparam nem quando saem à rua gritando contra as desgraças americanas...

6. "Lá fora" já alguns falaram sobre isto. Restrinjo-me a alguns dos tais meus sublinhados. Por exemplo,  Zizek escreveu em 2004 (usando o termo "multiculturalismo" que desde então foi acriticamente criticado pelos "sábios" da moda): "O multiculturalismo é (...) a forma ideal deste capitalismo planetário, a atitude que, de uma espécie de posição global vazia, trata cada cultura local à maneira do colono que lida com uma população colonizada - como "indígenas" cujos costumes devem ser cautelosamente estudados e "respeitados" (...) é uma forma de racismo denegada, invertida, auto-referencial, um "racismo com distância", respeita a identidade do Outro, concebendo-o como uma comunidade "autêntica" fechada sobre si mesma..." (Elogio da Intolerância, Relógio d'Água, 78). O antropólogo francês Jean-Loup Amselle - que não é um lepenista - disse "En participant a l'élaboration d'un modéle d'une France multiculturelle, les partisans comme les adversaires du métissage ont en commun de vouloir faire exister ces groupes en tant que tels, faisant de leur nomination une partie intégrante de leur devenir (...) La multiplication par l'État des ethnies au sein de la société française ne résoudra aucunement le racisme, elle metra au contraire en relief les tares du modèle français d'assimilation qui, on l'a vu, repose sur une base raciologique. Car ce n'est pas le modèle républicain qui s'oppose à la résolution du racisme dans notre pays, ce sont les insuffisances mêmes, son incapacité à être républicain jusqu'au bout, c'est-à-dire universel, qui l'empêchent d'exercer pleinement son devoir de hospitalité et équité.(Lógiques Métisses, Payot, 1990, x-xi). E "Mais étrangement (...) la place de l'universalisme n'est occupée aujourd'hui que par une puissance déclinante - la France républicaine - de sorte que cette dernière a toutes les caractéristiques d'une curiosité culturelle alors que l'Empire multiculturel américain peut se présenter sous les traits d'une puissance universaliste. C'est en effet au nome de l'universalisation da la différence et en tant que strucutures d'accueil de toutes les singularités qu'une puissance globale comme les États-Unis peut faire valoir sa legitimité et prétendre au leadership mondial." (L'Occident Décroché, Stock, 2008, 36-37). Etc.

Em Portugal, por cá? Os políticos pensam e escrevem como se vê. Na imprensa os colunistas preenchem .... colunas. Nas ciências sociais há os... socialistas (e maçónicos) e ainda os bloquistas. E os que esperam, anseiam, pelos subsídios. Como ser incómodo? E nisso vai plácida esta deriva, este "comboio descendente", "todos à gargalhada", em busca da etnia ou raça de cada um...

Adenda: para os não francófonos deixo tradução dos excertos (não venham os habituais resmungões protestar com a sua qualidade, pois são via Deep L.): 

1. Ao participarem na elaboração de um modelo de França multicultural, os partidários e os opositores da mestiçagem têm em comum o desejo de fazer existir estes grupos enquanto tais, fazendo da sua nomeação parte integrante do seu futuro (...) A multiplicação pelo Estado dos grupos étnicos no seio da sociedade francesa não resolverá de modo algum o racismo; pelo contrário, porá em evidência os defeitos do modelo francês de assimilação que, como vimos, assenta numa base racial. Com efeito, não é o modelo republicano que impede a resolução do racismo no nosso país; são as suas insuficiências, a sua incapacidade de ser republicano até ao fim, isto é, universal, que o impedem de exercer plenamente o seu dever de hospitalidade e de equidade.

2. Mas, estranhamente (...), o lugar do universalismo é hoje ocupado apenas por uma potência em declínio - a França republicana -, pelo que esta última tem todas as caraterísticas de uma curiosidade cultural, enquanto o império multicultural americano pode apresentar-se sob a forma de uma potência universalista. De facto, é em nome da universalização da diferença, e como estruturas que acolhem todas as singularidades, que uma potência global como os Estados Unidos pode afirmar a sua legitimidade e reivindicar a liderança mundial.

 

A manifestação das Forças de Segurança

Diogo Noivo, 21.11.19

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Por dever de um ofício passado, dialoguei e negociei diariamente com os sindicatos da PSP e com as associações profissionais da GNR ao longo de quase três anos. Terminadas essas funções, o respeito que tinha pelas Forças de Segurança transformou-se em profunda admiração.

Sei que muitas das reivindicações que estão na base da manifestação de hoje são inteiramente justificadas. Falta de material e de equipamento, postos e esquadras em condições deploráveis, e insuficiência de efectivo em algumas zonas do país são queixas com basto fundamento. Sei também que nenhum governo português terá capacidade financeira para colmatar os problemas existentes, uma dificuldade muito agravada pela calamitosa gestão do actual Executivo na área da Administração Interna.

Dito isto, há quatro aspectos que têm sido convenientemente esquecidos pelas estruturas sindicais e que, salvo raríssimas excepções, a comunicação social não percebe (honra seja feita ao Diário de Notícias, que por sistema aborda os temas relacionados com as Forças de Segurança com a atenção e profundidade devidas).

 

1. Carreiras e remunerações. Ao longo de décadas, os sucessivos governos – de esquerda e de direita – foram incapazes de aumentar os salários na PSP e na GNR de forma estruturada porque isso implicaria redesenhar por completo a organização de carreiras e de categorias profissionais, uma caixa de pandora que ninguém quer abrir. Em compensação, criaram-se subsídios e foi-se aumentando o seu valor – subsídio de patrulha, subsídio de operações especiais, subsídio de binómio cinotécnico, subsídio de fardamento, etc. Em resultado, entre 20% e 50% da remuneração mensal de um elemento das Forças de Segurança depende de subsídios, que são variáveis, o que faz com que uma parte importante dos polícias e dos militares da GNR não saibam ao certo quanto ganham por mês. Em síntese, em vez se de pensar as remunerações de maneira racional e sustentável, optou-se por ir colocando remendos. A alteração deste estado de coisas é onerosa, mexe com interesses corporativos e, por isso, conta com a firme oposição de sindicatos e associações profissionais. Porém, se nenhum governo tiver a coragem de mexer neste aspecto, o problema continuará a agravar-se.

 

2. O valor político dos subsídios. Na época em que trabalhei no MAI, e apesar do programa de assistência financeira ao qual Portugal se encontrava sujeito, foi possível aumentar o subsídio de fardamento em 100%, passando de 25€ mensais para 50€. Este complemento salarial tem duas particularidades: está isento de tributação fiscal; e, não obstante se designar “de fardamento”, pode ser usado para qualquer fim, sendo por isso parte do salário. Na altura, foi proposto aos representantes sindicais a alternativa de ser o Estado a fornecer o fardamento, o que naturalmente implicaria o fim do dito subsídio. Sem surpresa, os sindicatos não aceitaram a proposta, entre outras razões porque a manutenção de subsídios lhes permite afirmar que o salário de muitos polícias ronda os 700€ (esquecendo-se de referir que este valor é o salário base) e, dessa forma, conseguir a simpatia da opinião pública para mais reivindicações.

 

3. A falta de efectivos. Há zonas do país onde faltam profissionais. Por outro lado, os poucos que estão ao serviço têm mais de 45 anos de idade. É a mais absoluta das verdades. Contudo, esquecem-se habilmente os sindicatos e as associações profissionais que parte do problema se deve à alocação de recursos humanos, em particular aos milhares de elementos da PSP e militares da GNR que se encontram em funções de apoio operacional (vulgo ‘funções administrativas’ ou 'de secretaria'). São funções cobiçadas, desde logo porque, em regra, decorrem em horário de expediente, não implicando por isso a realização de turnos penosos. Os representantes sindicais não o referem porque têm associados a desempenhar funções de apoio operacional, que obviamente desejam manter. Uma melhor alocação de recursos não resolverá a falta de pessoal – até porque há funções administrativas que só podem ser realizadas por gente da PSP e da GNR –, mas ajudaria bastante a mitigar o problema.

 

4. O aparecimento Movimento Zero. Criado há não muito tempo por profissionais da PSP e da GNR, não tem liderança nem porta-vozes. É aquilo a que agora se chama ‘movimento inorgânico’. Teme-se que nas suas fileiras haja gente de extrema-direita e indivíduos apostados em desestabilizar as Forças de Segurança.

Em Julho deste ano, membros do Movimento Zero viraram as costas ao Ministro da Administração Interna e, mais grave, ao Director Nacional da PSP numa cerimónia pública. Julgo que foi a primeira vez que tal aconteceu. Dada a natureza hierárquica das Forças de Segurança e o espírito de corpo que as caracteriza, foi um gesto muito sério. A classe política – governo e partidos da oposição – foi incapaz de perceber a seriedade do acontecimento. Salvo honrosas excepções, a comunicação social noticiou o sucedido com a mesma atenção com que informa sobre a ocorrência de um acidente rodoviário.

Não sei o que é o Movimento Zero nem quem o conduz. É o resultado da profunda insatisfação que existe nas Forças de Segurança, agravada pelo alheamento do actual governo. Mas, não menos importante, é fruto da ineficácia dos sindicatos e das associações profissionais: até há bem pouco tempo, a PSP tinha 12 sindicatos e a GNR pelo menos cinco, mas juntos não representavam metade do efectivo. Não me surpreende que tenham sido ultrapassados por um grupo sem rosto que ninguém controla. O inenarrável André Ventura e o PNR tentam apanhar boleia do Movimento, no qual suspeito que têm apoiantes. Mas aposto que o Movimento Zero não se deixará capturar por interesses partidários, com tudo de bom e de mau que daí resulta.

 

São muitos os problemas em causa, alguns complexos e antigos. Por incapacidade dos vários governos e por resistência dos sindicatos e associações profissionais, o que eram pequenas dificuldades transformou-se em desafios graves e prementes. Porque não vejo quem seja capaz de inverter a marcha, creio que a manifestação de hoje é apenas o início de algo que veio para ficar.

Estado, violência e racismo

Diogo Noivo, 24.01.19

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O sucedido no Bairro da Jamaica suscitou a esperada polémica e abriu caminho ao habitual debate entre visões securitárias e a defesa de justiça social. Como demonstrado por vários estudos empíricos e, no caso português, pelos sucessivos Relatórios Anuais de Segurança Interna, não é possível estabelecer uma relação de causalidade directa entre precariedade económica e violência. De resto, estabelecer essa relação redunda num argumento manifestamente insultuoso segundo o qual onde há um pobre há um potencial criminoso. É verdade que a marginalização social (muito mais do que a económica) favorece a eclosão de episódios de violência e de vandalismo, mas não os causa nem os explica. A ausência do Estado – nos planos político, social e de segurança de pessoas e bens – é muito mais relevante enquanto factor explicativo.

O fim dos bairros degradados onde as condições de vida são muitas vezes infra-humanas justifica-se com o respeito pela dignidade das pessoas e com a promoção de um Estado que ofereça igualdade de oportunidades, mas não com o combate à criminalidade. E a propósito de ordem pública, importa recordar que as Forças de Segurança são instrumentos da autoridade do Estado de Direito Democrático, são fiscalizadas e controladas, estando evidentemente vinculadas à lei. Como tal, qualquer comparação da PSP (ou da GNR) a instituições próprias de outros regimes é estapafúrdia.

Tão ou mais disparatada é a acusação de racismo feita à PSP.  Primeiro, o vídeo que circulou nas redes sociais e na imprensa revela a reacção das Forças de Segurança a um incidente táctico-policial, omitindo o momento que a antecedeu, razão pela qual o bom-senso e o sentido de responsabilidade recomendam prudência nos comentários. Segundo, admitindo que houve excesso de violência por parte da PSP, o que não é evidente, nada indicia que tal excesso tenha um móbil racista. E terceiro, arguir que a polícia enquanto instituição respira uma cultura racista enferma dos mesmos males que as teses que atribuem comportamentos criminais a determinadas etnias ou grupos sociais.

Chegamos, pois, às declarações de Mamadou Ba, dirigente da ONG SOS Racismo e assessor parlamentar do Bloco de Esquerda. Além de incendiárias, as declarações de Ba são infundadas e não se coadunam com as responsabilidades políticas que tem. O Bloco, sempre tão zeloso da decência moral na política, devia ser claro e demonstrar que não alinha com discursos que desgastam a confiança dos cidadãos nas instituições. Isto é, deve fazer precisamente o contrário daquilo que fez.

Desleixo ou desinteresse

Alexandre Guerra, 14.11.17

Vinte e três Estados-membro da UE assinaram ontem a notificação conjunta para a instituição da Cooperação Estruturada Permanente (PESCO), um passo muito importante na tua almejada política de Segurança e Defesa europeia comum e pela qual Portugal se tem batido. Mas, com bastante surpresa, constatou-se que o nosso País não esteve no grupo fundador, ainda por cima sendo este um instrumento previsto pelo Tratado de Lisboa. É certo que se pode juntar mais tarde e que para já estamos apenas a falar de uma notificação, mas a verdade é que para a História, Portugal não esteve no grupo da frente, rompendo com a boa tradição da diplomacia portuguesa, de ter sabido sempre posicionar-se na vanguarda do projecto europeu. E que ilações se pode tirar disto? Das duas uma: ou desleixo nacional, por não se terem cumprido uns prazos quaisquer (segundo as justificações do próprio chefe da diplomacia nacional), ou desinteresse. Em qualquer dos casos, é lamentável que a diplomacia portuguesa, historicamente sempre de grande qualidade, desta vez não tenha percebido onde Portugal devia estar.

Fim da linha

Diogo Noivo, 17.10.17

O Secretário de Estado da Administração Interna disse que não podemos esperar pelos bombeiros: “Têm de ser as próprias comunidades a ser proactivas e não ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver os problemas. Temos de nos autoproteger”. Traduzindo para português corrente, amanhem-se.

Já a Ministra da Administração Interna foi mais uma vez uma cornucópia de inanidades sem freio. Avisou o país de que “as comunidades têm de ser tornar mais resilientes às catástrofes”. Portanto, poucas lamúrias. Aliás, nada como a própria para dar o exemplo: “Para mim seria mais fácil, pessoalmente, ir-me embora e ter as férias que não tive.”

O Primeiro-Ministro podia salvar a honra do convento – ou pelo menos tentar -, mas decidiu amarrar-se politicamente ao quadro de miséria. Logo de manhã, perante uma pergunta incómoda de uma jornalista, pediu que não lhe provocassem o riso. Lamentavelmente, o cenário não era propício à galhofa, mas António Costa parece que teve opinião diferente. Depois, partiu para um aviso à navegação do povo português: habituem-se porque isto vai acontecer novamente. E não há “soluções mágicas” – talvez existam soluções técnicas e políticas, embora sobre estas o Primeiro-Ministro nada tenha dito. Não satisfeito, o Primeiro-Ministro colocou a cereja no topo do bolo quando, “naturalmente”, garantiu que a sua Ministra da Administração Interna tem condições para se manter no lugar, e classificou como infantis aqueles que pedem a demissão de Constança Urbano de Sousa.

 

Entretanto, à medida que o dia avançava, a área ardida crescia e o número de mortos aumentava. O Primeiro-Ministro anuncia então ao país que falará às 20 horas. Criada a expectativa, a António Costa pediam-se mínimos olímpicos: (i) distanciar-se da sucessão de indecências ditas por ele e pelos seus colegas de Governo; (ii) pedir desculpa ao país porque, afinal, é missão inalienável do Estado garantir a segurança de pessoas e bens e já vamos em 100 mortos num espaço de 4 meses.

Mas não. Tudo como d’antes, quartel-general em Abrantes. Na sua comunicação ao país, o Primeiro-Ministro limitou-se a repetir o que tinha dito depois do incêndio em Pedrógão. Não há consequências, não há lições, não há pedidos de desculpas. Por outras palavras, é favor circular porque não há nada de novo ou de relevante para ver. Por vontade própria, António Costa fica irremediavelmente amarrado à tragédia dos incêndios de 2017 e à inépcia que o próprio escolheu para tutelar o Ministério da Administração Interna.

A autoridade do Governo em matéria de segurança interna acabou ontem à noite.

Ludibriar os portugueses

Pedro Correia, 18.07.17

 

Uma excelente peça da SIC, inserida ontem no Jornal da Noite, honrou as melhores tradições da estação televisiva que se prepara para festejar um quarto de século de existência. Esta peça jornalística relata com minúcia toda a fita do tempo da tragédia de Pedrógão Grande, demonstrando sem margem para dúvida que as comunicações entraram ali em colapso, tornando ineficaz toda a estrutura da protecção civil.

Sabendo-se agora tudo isto, torna-se não só chocante mas até insultuosa esta pretensa mensagem de tranquilidade que na noite da tragédia o secretário de Estado da Administração Interna – com a ministra ainda ausente do local – dirigiu aos portugueses em geral e à população de Pedrógão em particular: «Houve falhas momentâneas de comunicação mas que foram restabelecidas. O SIRESP [Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal] está a funcionar com bastante regularidade e bastante bem.»

 

Tudo falso nesta declaração. As falhas nunca foram apenas momentâneas, a comunicação não fora restabelecida e o apagão das ligações mantinha-se no preciso momento em que Jorge Gomes falava assim ao País. O SIRESP – que revelou deficiências desde o início, como esta reportagem de Ana Leal, da TVI, já deixava evidente em 2014 – não funcionava “com bastante regularidade e bastante bem”: não funcionava, ponto final.

Este alerta não evitou que a 17 de Maio, um mês exacto antes de eclodir o drama de Pedrógão Grande, Jorge Gomes, depondo numa audição na comissão parlamentar de Agricultura e Mar, tenha ludibriado os cidadãos, tranquilizando-os com estas palavras que os factos não tardariam a desmentir: «Quero transmitir aos portugueses que temos um dispositivo capaz, devidamente estruturado e organizado, no qual temos plena e total confiança, para fazer frente ao período mais crítico dos incêndios florestais» (minuto 8 deste vídeo); «O País tem um dispositivo integrado, competente, forte e mobilizado para defender a floresta, o património e a vida dos portugueses.» (10' 30'' do vídeo).

 

Pior que tudo isto, ainda pior que manter-se sem censura política um membro do Governo em manifesta fuga à verdade num momento tão traumático, é termos hoje a certeza de estarmos perante uma deficiência estrutural gravíssima, com efeitos potencialmente tão irreparáveis como os ocorridos em Pedrógão.

É um problema tão alarmante que por estes dias voltou a estar em foco no grande fogo florestal de Alijó, levando o presidente da câmara local a apontar sem rodeios para novas falhas neste sistema onde o Estado português enterra 40 milhões de euros por ano: «Estive duas horas sentado só a ouvir e apercebi-me que a comunicação falha: não sabemos exactamente onde está posicionada cada equipa, onde está a arder. Às tantas, só recorrendo aos telemóveis é que se consegue comunicar.»

Como escreve o Manuel Carvalho na edição de hoje do Público, «o que torna a história de Alijó num caso ainda mais absurdo e inaceitável é que, sem ser necessário recorrer a comissões de inquérito independentes, podemos desde já suspeitar que as operações de combate foram marcadas pelo desnorte, pela incompetência e, uma vez mais, pela falha criminosa desse sistema delinquente chamado SIRESP».

 

O secretário de Estado ainda em funções teve agora ao menos a sensatez de permanecer calado.

A barbárie é a barbárie: breves reflexões sobre o terrorismo

Pedro Correia, 24.05.17

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 Paris, Novembro de 2015

(foto: Charles Platieu, Reuters)

 

1

O terrorismo jiadista combate-se como se combateu o terrorismo extremista na Itália e na Alemanha, na década de 70. Combate-se como se combateu o terrorismo da ETA, como se combateu o terrorismo do IRA.

Como?

Com serviços de informações competentes e organizados em rede, infiltrados nas organizações terroristas e dotados de meios efectivos para desarticulá-las. Quebrando-lhes as células dirigentes, os circuitos informáticos e as vias de abastecimento de armas e munições. E utilizando dissidentes e terroristas arrependidos nessas operações.

Não é preciso inventar a pólvora. A pólvora já foi inventada há milhares de anos.

 

2

Alguns tudólogos com lugar cativo no espaço mediático teimam em "perceber" o "porquê de o serem [assassinos], o que os levou a isso". Estes raciocínios sempre me conduzem àqueles judeus que tentaram "perceber" as motivações dos nazis entre 1933 e 1939. Alguns desses judeus contemporizaram com a barbárie, deixaram que lhes saqueassem lojas e confiscassem propriedades enquanto procuravam mostrar-se bons cidadãos alemães: muitos escutavam Wagner e exibiam orgulhosamente as condecorações obtidas em combate na I Guerra Mundial em defesa do império germânico.

Acabaram nos campos de extermínio e nas câmaras de gás tal como os outros, os que não tinham tentado "perceber" o que levava as hordas hitlerianas a comportarem-se como bestas sanguinárias.

 

3

Rejeito as teses deterministas. Acredito firmemente no livre arbítrio e na responsabilidade individual: ninguém é criminoso antes de praticar um crime.
Mas não recorro a eufemismos para qualificar actos criminosos.
Lamentavelmente, quando ocorre um atentado terrorista, logo surge gente a considerar que os assassinos são vítimas. Da economia, da crise, da sociedade, da discriminação, do capitalismo, do aquecimento global, do planeta Terra, do sistema solar.
Isto para mim é inaceitável.
Um crime é um crime. A barbárie é a barbárie - tenha a cor ideológica que tiver, idolatre os deuses que idolatrar. Ponto final.

 

4

A ladainha da "destruição do Iraque", invocada por sistema quando ocorrem atentados terroristas na Europa, equivale a dizer que as vítimas inocentes destes atentados "estavam mesmo a pedi-las".
Equivale também a considerar vítimas os assassinos. Coitados, argumentam os arautos de tal tese, eles estão apenas a vingar o que os malandros dos ocidentais fizeram ao Iraque.
Essa é a lógica hitleriana do olho por olho, dente por dente. Hitler conquistou metade da Europa, espezinhando-a e escravizando-a, para vingar as humilhações sofridas pela Alemanha no Tratado de Versalhes. Alegava ele. E muitos concordaram.
Quando começamos a chamar vítimas aos assassinos os nossos padrões éticos invertem-se. O passo seguinte, nesta rota descendente, será chamar criminosos às vítimas verdadeiras.

 

5

É um absurdo incorporar um homicida numa categoria étnica, religiosa ou cultural, fixando-o neste rótulo.
Há assassinos em todos os quadrantes, em todas as etnias, em todas as classes sociais.
Este princípio não é de via única. É tão absurdo dizer ou escrever que "os muçulmanos professam uma ideologia assassina" como fazer proclamações genéricas de sentido inverso: "os ocidentais são culpados de terem explorado populações noutros continentes e estão a pagar pelo que fizeram" ou "os americanos foram lançar bombas ao Iraque e agora recebem o troco".

 

6

A vida humana para mim tem valor absoluto em qualquer lado. Em Paris como na Síria. Em Bruxelas como no Paquistão. Sou incapaz de alimentar duas teses sobre o assunto em função das coordenadas geográficas.

A minha posição é clara: não quero "compreender" os terroristas. Que armam meninos na Libéria e os transformam em carne para canhão. Ou que usam meninas na Nigéria como bombas humanas. Ou que investem com demencial fúria apocalíptica contra crianças e adolescentes, como ainda há dois dias aconteceu em Manchester.
Nem conseguiria, mesmo que quisesse.

A OCDE, as polícias e uma ajuda ao Governo

Diogo Noivo, 07.02.17

Mais um relatório incómodo de uma organização internacional. A OCDE, em relatório apresentado ontem, suscita sérias reservas sobre a estratégia do Governo português – e sobre o seu irritante optimismo, acrescento eu. Mário Centeno já veio dizer umas coisas, e digo ‘coisas’ porque a intervenção do Ministro das Finanças soou mais a birra do que a exposição de argumentos válidos. Enfim, o Governo tem uma bota para descalçar. Aqui, no DELITO, damos uma ajuda. Em vez de se perder com profissões de fé sobre as contas públicas, que só convencem os convertidos, o Governo deve focar-se num disparate defendido pela OCDE: Portugal tem polícias a mais. Esta sim é uma conclusão fácil de invalidar.
A conclusão da OCDE a respeito das polícias portuguesas tem dois problemas. Em primeiro lugar, não é claro que tipo de corpos de polícia são contabilizados. Mas ficamos com a impressão que se compara o que não é comparável. Vejamos os casos de Portugal e de Espanha. Portugal tem apenas duas forças de segurança, a PSP e a GNR. Espanha também conta com duas forças de segurança nacionais, a Policia Nacional e a Guardia Civil, mas dispõe ainda de forças de segurança regionais - por exemplo, a Ertzaintza (País Basco) ou os Mossos d'Esquadra (Catalunha). Se o País Basco e a Catalunha têm forças de segurança próprias, o esforço de alocação de efectivos pedido às polícias nacionais nestas regiões é inferior do que em países onde as forças de segurança nacionais são obrigadas a cobrir na íntegra e sozinhas todo o território de um país, sem o apoio de forças locais com competências para garantir a segurança e a ordem pública. Logo, comparar Portugal e Espanha tendo apenas em conta as respectivas polícias nacionais constitui um erro clamoroso.
Em segundo lugar, importa saber se analisar o número de polícias em função da população faz algum sentido. Olhemos, por exemplo, para o Alentejo. É provavelmente a região da Europa onde o número de polícias per capita é mais elevado, mas onde o número de polícias por quilómetro quadrado será dos mais baixos no continente. Em matéria de segurança, a cobertura de território, mesmo que com baixa densidade populacional, é crucial porque o vazio de forças de segurança pode constituir um incentivo à prática de determinados crimes (fabrico de estupefacientes, crime organizado, etc). Mas a OCDE, tanto quanto é possível perceber, apenas equaciona o factor demográfico. Asneira da grossa. Coisa diferente é saber se não teremos demasiado polícias alocados a funções designadas como "não operacionais" (administrativas, de apoio logístico, e outras semelhantes), mas disso a OCDE não fala.
E cá está, duas razões para o Governo e a maioria que o apoia desfazerem um relatório incómodo, embora recorrendo a argumentos devidamente fundamentados e que ecoem para lá da jihad liderada por João Galamba.

Mais inseguros e menos livres

Pedro Correia, 23.03.16

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A chacina que ontem enlutou Bruxelas, numa nova série de atentados meticulosamente preparados por extremistas islâmicos que provocaram pelo menos 31 mortos e 250 feridos, força-nos desde logo a emitir uma palavra de pesar pelas vítimas. Pessoas inocentes que estavam no local errado à hora errada.

Podia ser eu, que escrevo estas linhas.

Podia ser qualquer de vós.

 

No entanto, como o João e o Diogo já sublinharam, por maior que seja o nosso pesar há que resistir à tentação de apelar desde já ao reforço das medidas securitárias, destinadas a transformar o continente europeu numa ilha-fortaleza.

É evidente que a segurança não pode ser menosprezada. Isto implica combater alguns tabus, nomeadamente o menosprezo que a esquerda radical no seu vozear demagógico dedica aos serviços de informações, vitais para prevenir atentados terroristas em larga escala.

Mas o combate ao terrorismo não pode servir de pretexto para novas restrições às liberdades que custaram tanto a erguer nesta Europa durante séculos dilacerada por massacres e guerras.

 

A troca de parcelas destas liberdades pela segurança total - sempre ilusória, sempre inalcançável - constitui um falso dilema. Porque a segurança, tal como a concebemos nas democracias liberais, é inseparavel da liberdade.

Um mundo cada vez menos livre é também um mundo cada vez mais inseguro.

A defesa da normalidade

Diogo Noivo, 22.03.16

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A morte chegou entre as 7h37 e as 7h41 da manhã. Em plena hora de ponta, os assassinos detonaram 10 dos 13 engenhos explosivos colocados em 12 carruagens de 4 comboios. Há avaliações que estimam o custo mínimo directo dos danos produzidos em cerca de €211 milhões. Porém, nada foi mais impressionante do que o estrago contabilizado em sangue: 191 mortos e mais de 1800 feridos. Na sua maioria, as vítimas cumpriam a rotina de entrar na cidade para ir trabalhar. Refiro-me evidentemente aos atentados de 11 de Março de 2004, em Madrid, cujo 12º aniversário se assinalou este mês. Creio ser ainda o atentado mais devastador ocorrido na Europa Ocidental – superado em vítimas mortais apenas pelo atentado de Lockerbie, em Dezembro de 1988, com 270 mortos.


Choraram-se os mortos, cuidaram-se os feridos, apoiou-se o luto das famílias e até foram tiradas consequências políticas (se justa ou injustamente é um assunto que, embora interessante, pouco importa agora). Não houve marchas onde Chefes de Estado e de Governo se atropelaram para aparecer na fotografia. Não houve tão pouco movimentos e ondas de indignação do tipo Je Suis. Sobretudo, não houve estados de excepção de razoabilidade dúbia, não houve cessação de liberdades fundamentais, nem derivas legislativas securitárias. Habituada à chaga terrorista, Espanha combateu a barbárie sendo irredutível na defesa da normalidade democrática.


Como escrevi em tempos aqui no DELITO, é objectivo declarado de todas as organizações terroristas forçar o Estado a abdicar da sua superioridade política e moral. Por outras palavras, um dos propósitos da acção terrorista é o de obrigar o Estado visado a prescindir dos valores e procedimentos nos quais se funda e, dessa forma, faze-lo descer ao nível de quem comete actos terroristas. Se a ameaça terrorista constitui um perigo que não pode ser desvalorizado, também a forma como as sociedades e os Estados democráticos respondem à ameaça representa um desafio que não se deve prestar a ligeirezas nem a bravatas.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 04.09.14

«As potências ocidentais não podem deixar de fazer tudo o que devem para impedir que a Ucrânia se torne pela força membro da União Euroasiática de Putin. A próxima cimeira da NATO é uma boa altura para se avaliar a decisão ocidental, que também é uma decisão portuguesa. Em 1976, o ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo de Mário Soares, José Medeiros Ferreira, explicou que a fronteira de segurança da democracia portuguesa era em Berlim. Talvez seja necessário repetir que a fronteira da segurança portuguesa é em Talin, Riga ou Vílnius, para pôr no devido lugar a santa aliança entre os nostálgicos dos velhos impérios.»

Carlos Gaspar, no Público

Republicanizar

Sérgio de Almeida Correia, 11.04.14

"Muitos dos arrebatamentos emocionais da sociedade têm a ver com o facto de as pessoas terem medo, um medo mais relacionado com a desprotecção económica à esquerda e mais com a perda de identidade à direita, embora tudo isto se misture dando lugar a sentimentos de difícil interpretação e gestão. Neste mundo já não são eficazes as seguranças que só funcionam em espaços fechados mas as pessoas têm direito a um resguardo semelhante nas novas condições. Enquanto a política não for capaz de proporcionar uma segurança equivalente, as sociedades terão motivos para confiar nas promessas impossíveis de cumprir do populismo." - Daniel Innerarity, Público, 11/04/2014

 

Neste pequeno trecho que transcrevo, o filósofo basco Daniel Innerarity (Bilbao, 1959) sintetiza de forma magistral qual o grande problema da política contemporânea. A política, e os políticos, já que esta é feita por homens, é incapaz de proporcionar segurança aos cidadãos, o que na perspectiva daquele conduz ao acolhimento da mensagem populista. Para o caso é indiferente que esta seja proveniente daquilo a que se convencionou tradicionalmente designar por direita ou por esquerda.

Se nos detivermos cinco minutos a pensar no que distingue uma democracia representativa, um Estado de direito democrático, de uma ditadura ou de modelos autoritários musculados, rapidamente chegaremos a uma conclusão: as democracias são normalmente previsíveis, as ditaduras e os estados autoritários naturalmente imprevisíveis.

Não que nestes últimos não exista lei e ordem, como apregoava o velho Salazar, se via na Espanha franquista, na Itália mussoliniana ou no Terceiro Reich, ou mais recentemente na descaracterizada Rússia de Putin. Mas porque a previsibilidade das democracias e das suas regras não se funda apenas na exigência formal da produção e publicação do texto legislativo ou do regulamento, mas no rigor da sua interpretação e execução, na previsibilidade da sanção, na garantia da clareza na aplicação do direito, na cominação da sanção, na equitativa distribuição dos deveres e dos sacrifícios e no exercício e protecção dos direitos.

A estabilidade e segurança conferida por uma democracia exigente e rigorosa reflecte-se em tudo isso, mas igualmente na forma como o poder é exercido, como o parlamento assume a sua função legislativa e fiscalizadora da acção do executivo, na forma como o poder se distribui entre as diversas instituições, no modo como os checks and balances se articulam, na actividade dos tribunais e na acção das polícias. E, acima de tudo, na transparência com que tudo isso é feito, isto é, no acesso que todos e cada um têm ao acesso à informação, ao conhecimento dos processos e à certeza de que pela sua acção externa não só lhes é permitido acompanhá-los como orientar a sua acção fazendo uso de mecanismos ao alcance de todos.

Proporcionar segurança numa democracia implica ter actores em quem se possa confiar, cuja mensagem seja clara, directa, de imediata percepção pelos destinatários. As "promessas impossíveis de cumprir do populismo" passam também por aqui. E a este propósito, alguns trabalhos que têm sido feitos dando conta da forma como a Frente Nacional da família Le Pen cresceu e atingiu os históricos resultados das últimas municipais francesas, são de leitura aconselhável para que se perceba como aquele que deveria ser o discurso próprio das democracias se transformou no discurso da Frente Nacional e do "Campus Bleu Marine". Convirá não esquecer que nas listas da Frente Nacional se candidatou muita gente vinda de diversos quadrantes à sua esquerda, de um alto quadro da Comissão Europeia a dissidentes da UDF e do RPR, sem esquecer dissidentes de esquerda como Valérie Laupies, esta última candidata em Taracon (Bouches-du-Rhône), eleita para o comité central e conselheira regional da Frente Nacional em 2010, actual conselheira de Marine Le Pen para os assuntos da educação. Mais grave foi que a transumância não se limitou às pessoas. Hoje, em França, a Frente Nacional surge mesmo, paradoxalmente, como herdeira dos valores republicanos que as forças tradicionais, designadamente à esquerda, desde sempre se reclamaram exclusivas e fiéis depositárias, ainda que para isso tenha sido necessário deturpar a mensagem e vestir o discurso de uma roupagem nova - recorrendo a modernas técnicas de marketing e comunicação e à distribuição de kits de formação do militante frentista - ou disfarçar o passado militarista de alguns dirigentes.

Os cidadãos-eleitores não podem ser criticados por essas mudanças, salvo na parte em que o desastre da afirmação política das democracias nos tempos actuais, de que constituiu sintoma pertinente o declínio da participação nas democracias consolidadas e nos partidos, em muito se ficou a dever ao crescimento da sua própria apatia.

Veio isto a propósito do texto de Innerarity como podia vir a propósito de "o problema é deles", manifestação de paroquialismo vinda de onde menos se espera, ou da dupla indignidade do comportamento do poder político em matéria tão sensível como é a da transparência da tributação e da necessidade dos contribuintes destinatários serem esclarecidos por quem decide sobre as regras que lhes são aplicáveis sem terem de se sujeitar a atitudes de banditismo fiscal, tornadas corriqueiras por força de um aberrante comportamento político de tipo liliputiano por parte dos responsáveis em matéria fiscal e respectivos executores. A insegurança residirá na política, nos caminhos que esta prosseguiu nos anos recentes, sem que, todavia, nesta se esgote. A adequação formal das regras não constitui o princípio e o fim da segurança. Esta será apenas um caminho para atingir os fins superiores da actividade política. Por isso é que, quanto a estes, mais do que apontar o dedo aos cidadãos e aos eleitores que escolhem o caminho "mais fácil" do voto "populista", importaria, agora que passam 40 anos sobre o 25 de Abril e se cumpre o centenário da morte desse mito da cidadania que foi Jean Jaurès, republicanizar a democracia, tornando-a possível, oferecendo um modo de ser e de estar que contrarie em cada dia que passa a deprimente e cada vez mais insuportável falta de estatura, de dimensão ética, moral e política de quem diariamente decide sobre as vidas dos seus semelhantes sem olhar para o que está por trás, nem para as consequências dos seus actos, cumprindo agendas e roteiros dignos de moluscos destituídos de vontade.

Tornar a democracia possível é torná-la segura, afastando-a da imprevisibilidade típica da gestão dos incompetentes, do autoritarismo de caserna e da arbitrariedade das ditaduras. Tornar a democracia segura é, além do mais, humanizá-la, coisa que não poderá ser feita por autómatos políticos cujo único credo é a conquista do poder e a sua manutenção para garantir o alimento do lumpen dependente que os venera e serve.

Compromisso entre segurança e liberdade

João André, 17.06.13

Nas democracias costuma haver a figura de imunidade parlamentar. Tanto quanto julgo saber, e apesar das diferenças entre sistemas, esta serve para proteger os deputados de consequências das suas acções em exercício das suas funções. Quando as acções são julgadas como potencialmente criminosas, os paralmentos podem então levantar essa imunidade para permitir o julgamento. Penso que, no essencial, será este o conceito.

 

Lembrei-me da imunidade parlamentar quando li este artigo do José Vítor Malheiros no Público acerca do PRISM (o programa secreto de recolha de metadados telefónicos e electrónicos). E porque razão me lembrei dele? Porque o princípio é o mesmo: o cidadão/deputado é à partida considerado como não sendo criminoso.

 

Não irei debater a famosa questão de quem "guarda os guardiões". Essa questão é essencialmente filosófica e política. Penso apenas no princípio civilizacional da liberdade: como se pode defender uma liberdade quando a mesma é violada? Do meu ponto de vista isso não é possível. O essencial numa sociedade é que os seus cidadãos possam agir sem constrangimentos, independentemente das suas preferências. Um acto que é perfeitamente aceite por um indivíduo pode não o ser por outro. A possibilidade de verificar esse acto retira a liberdade a quem o queira praticar.

 

Imaginem-se duas situações.

 

1. Indivíduo A é verdadeiramente frustrado. Odeia o chefe, tem questões pessoais mal resolvidas, se calhar bebe uns copos a mais. Todos conhecemos gente assim, certo? Imaginemos que, um dia, furioso por uma coisa ou outra, manda um e-mail a um amigo onde escreve "Estou a pensar em comprar adubo para fazer uma bomba e rebentar com o Parlamento. Na Net encontram-se receitas para isso". no dia seguinte não se lembra sequer da estupidez (ou lembra-se mas, aliviado, nem liga à palermice). Dois dias depois aparece-lhe a polícia em casa, algema-o e leva-o por uns tempos para interrogatório, mais ou menos suave.

 

2. Indivíduo A quer um dia cometer um acto terrorista e planeia tudo nesse sentido. Vai cometê-lo se deixado em paz. Para manter a fachada estabelece uma relação normal com colegas, vizinhos e amigos. Um deles é um amigo (assumamos que existem ligações pessoais entre eles) que vai recebendo uns e-mails com piadas ou anedotas, tudo inócuo. Todos os dias os recebe. Também combinam para se encontrar com regularidade e costumam ligar um ao outro aproximadamente à mesma hora do mesmo dia da semana, todas as semanas. Tudo inocente. Um dia, o amigo é detido pela polícia por ligações a um conhecido terrorista.

 

Será isto correcto? Parece-me (a mim) evidente que não. Os metadados podem ser mal interpretados. Se existirem dados reais de comunicação, também. Não há capacidade em termos de pessoal para fazer uma investigação correcta. Os programas que monitorem a comunicação podem ser facilmente enganados (nos dois sentidos). A única solução é a de dar liberdade aos cidadãos sabendo que disso decorrem riscos para a segurança. É o compromisso. Prefiro esse à alternativa.

Posso esperar sentada e o 'big brother' protege-me

Laura Ramos, 08.11.11

Pode esperar sentada - dizia-me o agente do comando distrital da PSP, no seu jeito rústico-polido. Eram quase 8 da noite e fazia um  frio de quebrar ossos no moderno átrio da entrada onde ele recebia os demandantes, aparentemente imbuído do papel de anfitrião magnânimo na distribuição dos seus confortos.
Olho em volta e vejo vários gabinetes modernos, envidraçados, mas apenas um ocupado.
Declaro: - Venho participar um roubo, onde posso ser atendida? - Ali, naquele colega, apontava ele.  Havia 6 pessoas sentadas. Perguntei se não havia mais ninguém disponível para receber participações.  
- Mais ninguém
.
Entretanto, entravam e saiam agentes, cumprimentavam o comparsa, passavam. Uns seguramente a sair do plantão. Outros a render a guarda. Mas reforços administrativos... nem vê-los.
O recepcionista era boa gente. Meio incomodado e vendo-me infernizada depois de 2 cigarros na noite crua, pergunta-me ao que venho.
- O meu carro foi assaltado. Partiram o vidro de trás e surripiaram o que puderam, ate à bagageira foram. À porta do sítio onde trabalho, nas barbas de 2 reis de Portugal e debaixo dos badalos da cabra mais famosa do país. Ainda não estou  em mim, é inacreditável, o senhor não concorda? - Pois é (condoído) isto está cada vez pior...  Devia era ter chamado uma brigada ao local, assim não esperava tanto. - Mas vou ter de esperar muito? - Está a ver, para além da pessoa que lá está dentro, são estas três e depois aquelas duas - Ah, estão em grupo, menos mau. - É, mas sabe que isso não adianta, antes pelo contrário. Quantos mais ao mesmo tempo, pior.

Isto devia ser como nas urgência hospitalares, pensei eu. Entrava o queixoso e mais ninguém.
Lá dentro, o 'ouvidor ' esmifra-se entre as armadilhas do teclado e as do linguajar autêntico dos depoentes.
Perguntei se não havia formulários para uma pré-participação, onde descrevesse os factos, o local, a hora, a identificação... - Está a ver? Depois era só validar e completar, adiantava muito serviço! Não precisa, não precisa. É falar clarinho e às vezes, com sorte, aquilo já lá tem quase tudo na máquina... – Mas quase tudo, como? (pergunto) – Está meio feito, percebe?
Às dez da noite, ainda decorria a audição dos segundos demandantes da fila.
Posso esperar sentada, posso...

Passava das onze horas quando fui atendida. Urbano e desenvolto, o inquiridor começa:  – Nome?  Identifico-me. - Muito bem, mora então na Rua… (e debita o meu endereço). - E o seu número de telemóvel ainda é este? (e debita). Eu, abismada: - Então os senhores  agora trabalham em rede? Sorriu: - Vamos tentando, vamos tentando. - E qual a participação? - Roubo. – Tem a certeza que é roubo, não será antes um furto? (clássica exibição). - Sei perfeitamente o que digo, trata-se de um roubo de bens que estavam dentro do meu automóvel.

- Está a falar do XX-DO-XX? (e debita a matrícula). - Marca tal, ano tal? Só me falta a cor… dizia, com ar deliciado. Eu, estupefacta: - Sim, é isso mesmo, mas o ano não é esse. – Ah-ah! solta, exultante. - Esta aqui eles falham sempre, o ano nunca vem certo!

E pronto. Afinal, eu não estava muitos anos à frente daquela administração, esta é que estava muito para além do que eu poderia imaginar...

Descritos os factos  - que doravante farão parte integrante do meu ficheiro da 'aldeia global'- foi só reler, assinar a participação e a notificação da acção de indemnização, guardar a cópia. E sair. Tudo em menos de meia hora.

Estamos assim: Dá-me a tua vida privada, dar-te-ei a minha segurança. E menos tempo de espera, claro: é a desburocratização.

Jantei praticamente à meia-noite. E apeteceu-me perguntar ao 'big brother' se era servido. Coitado, deve ter uma vida difícil.

Um grosseiro atentado à liberdade

Pedro Correia, 29.08.11

A comprovada violação do sigilo das comunicações escritas e telefónicas à margem da lei pelos serviços de informações, no Verão de 2010, foi um dos factos mais graves registados em Portugal nos últimos anos. Viola vários direitos constitucionais, compromete irremediavelmente a relação de um jornalista com as suas fontes e constitui um atentado inadmissível à liberdade de informação.

Exige-se um esclarecimento rápido e cabal de tudo quanto sucedeu. E, em consequência, a punição exemplar dos protagonistas destas ilegalidades, inaceitáveis num país democrático - incluindo o elemento da operadora telefónica que terá colaborado com o SIED neste caso, em que apenas imperou a "lei" do mais forte, como em qualquer república das bananas.

O Nuno Simas, jornalista prestigiado com quem trabalhei durante anos, merece uma palavra de solidariedade e apreço. De alguma forma, e por vias sinuosas, esta grosseira violação de alguns dos seus direitos básicos enquanto cidadão representa o maior prémio ao seu mérito profissional.

De caminho, apetece perguntar o que andam a fazer os responsáveis da Comissão Nacional de Protecção de Dados e sobretudo do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações. Se não têm poderes ou capacidade para detectar um caso destes, mais vale reconhecerem tal evidência e darem lugar a outros.

Novo modelo de mobilidade para a Polícia de Segurança Pública

Rui Rocha, 01.03.11

Afinal, não há problema que o Ministro Rui Pereira não consiga resolver. Depois de completamente esclarecidos  assuntos como a utilização do cartão de eleitor/cartão de cidadão nas últimas Presidencias, as divergências dos cadernos eleitorais e a compra dos blindados, Rui Pereira também encontrou uma solução que permite aos agentes da PSP manterem total mobilidade mesmo perante a falta de combustível.