1. Fervilha o Whatsapp com o reenvio desta recomendação exarada pela Assembleia da República para que se alterem os processos de recrutamento de agentes da PSP e da GNR: mais pano para mangas para aqueles que "dizem o que é preciso ser dito", e que "ninguém tem coragem para dizer"...
Esta (de facto) propaganda parlamentar articular-se-á com a polémica em curso sobre o putativo aumento da criminalidade. É certo que Portugal é um país muito seguro. Mas muitos reclamam sobre a degenerescência actual dessa situação. Os números parecem indicar isso, ainda que estas estatísticas (como tantas outras) sejam sempre discutíveis, e discutidas... O governo, e outros, negam essa realidade, situando-a apenas na crescente sensação de insegurança subjectiva.
2. Não nego a hipótese da actual decadência da efectiva segurança pública (ainda que aqui nos Olivais tudo decorra na paz do Senhor...). Mas talvez muito deste debate público se origine na tal sensação de "insegurança subjectiva". Não creio que esta se deva à "imprensa", como muitos dizem - pois a atracção pelo tópico "criminalidade" é algo antigo na comunicação social. Porventura será alimentada pelas recentes (e legítimas) demonstrações de incómodo laboral efectuadas pelas polícias. E pelo eco (legítimo, ainda que um pouco "aproveitador") que o CHEGA foi fazendo disso.
Outro factor contribuirá para a tal "insegurança subjectiva", velho como o mundo, e nada nosso monopólio. Pois o recente surto imigratório faz medrar um desconforto face ao estrangeiro mais excêntrico, aos aportados menos parecidos com "turistas". É isso um erro de percepção: muita gente se arrepia, até cai num automático receio ali no metro ao ombrear com um uberista sikh ou trolha senegalês ou, já no restaurante, face a uma aparente vivandeira brasileira. Mas é uma reacção alienada - pois desconhecedora das verdadeiras condições de vida. Dado que as pessoas não se arrepiam aquando face a um qualquer facebuquista ou administrador não-executivo socialista, ou, pior ainda ("The horror, The horror"), se diante de um Medina ou uma Temido (nesta até votam em massa), gentes muito mais perigosas para a sua segurança pessoal, física e económica, actual e futura.
Também eu vou assim: há para aí um ano fui jantar com um bloguista do Delito de Opinião numa simpática esplanada em Alvalade. Cheguei antes e notei que ali estava Pedro Nuno Santos, então proto-chefe do PS. Resmunguei uns impropérios mudos e hesitei em telefonar ao amigo para mudarmos de sítio mas não o fiz, ele chegou e lá comemos, com gosto. Mas se no restaurante estivesse uma larga mesa advinda do "Chelas profundo", em obrigatório alarido, eu não teria hesitado no desvio comensal. Mesmo sabendo ser Santos muito mais perigoso para o parco futuro que me resta do que qualquer xunga vizinha...
3. Enfim, seja lá como for, é plausível a necessidade da melhoria nos formatos da acção policial, como até indicia a "recomendação" parlamentar. Não sabia o que é o "policiamento comunitário" - só conhecia a realidade em Moçambique, e presumi (acertadamente) que fosse algo diferente. Fui ler um texto da antropóloga Susana Durão. Do qual retirei tratar-se de uma dupla acepção: uma actuação policial mais interactiva com as populações; uma participação dos cidadãos no esforço de policiamento, sua planificação e enquadramento, talvez uma espécie de quase "cidadão-agente". O texto é de 2012, deixa entender que a via então em curso se centrava na acção dos agentes policiais. E vi ainda, muito em diagonal, o livro "Policiamento de Proximidade" do sociólogo Manuel Lisboa (que em tempos conheci quando cruzou Maputo) e Ana Lúcia Teixeira, também já com uma década. Enfim, de ambos os textos retirei que por cá se trata de um método de policiamento mais aproximado dos cidadãos, mais atento às preocupações destes. De certa forma é o "mais polícia na rua", mais segurança subjectiva e, porventura, objectiva. Algo que todos defenderão, tantos os que clamam a "desgraça" securitária actual como os que desta descrêem.
4. Assim o que esta "recomendação" parlamentar convoca não é o questionamento sobre a justeza do "policiamento comunitário". Mas a intervenção demonstra um pensamento pobre, e comprova ser já este pacificamente dominante, pois maioritário entre os partidos. Surgindo como se ungido pelas aparentes "boas causas" poucos criticam este rumo, esta crescente via do Estado em seccionar a população, postulando categorias sociais, instaurando-as nos censos e nas iniciativas estatais, promovendo quotas discriminatórias - agora até a elas apelando no recrutamento de agentes policiais. Tribalizando o país. Os partidos de esquerda anuem, claro - e os comunistas, principalmente os não-brejnevistas, pois esses mais atreitos ao "identitarismo", têm sempre a expectativa (utopia) de transformarem essas categorias-em-si em categorias-para-si ("comunidades-em-si" em "comunidades-para-si"), essa velha aspiração marxista de incrementar o conflito social para instaurar uma nova era. Também o PSD aprova - e nem supreendente é isso, consabido o rusticismo desse partido. Do póstumo CDS resta o jazigo. E surpreende-me nada ler sobre o que a IL diz disto (mas também, se calhar, não deveria esperar muito). E sobra o que sobra...
Esta tétrica mediocridade política portuguesa demonstra-se nos pormenores. Note-se na formulação da recomendação. Não apenas a utilização do termo "comunidades" - por mais habitual que seja hoje em dia, ainda custa não ver alguém dizê-lo impregnado do velho evolucionismo, da crença da passagem de grupos de solidariedade mecânica (rigorosa comunhão) para solidariedade orgânica (de complementariedade diversificada), da ascensão histórica de "comunidades" (simples) a "sociedades" (complexas). Entenda-se bem, "comunidades" é o actual sinónimo ideológico da velha "tribo", do cá esconso "clã", da racista "raça", do mais recente ademane "etnia". A crença, e a proposta, é que cada membro de cada uma dessa(s) "identidade(s)" tem características comuns, anseios comuns e "precisa" de políticas estatais específicas para o seu "grupo". Fazer ascender esta mediocridade à assinatura da 2ª figura do Estado apenas me convoca o desprezo.
Mas mais ainda, veja-se como escreve a AR e assina Aguiar Branco: "comunidades específicas" "incluindo" "pessoas LGBT+" - de que universo se está a falar, se nestes termos e se numa proposta destas? E "comunidades" (...) "migrantes" - quem as constitui? Açorianos vindos para o continente, os últimos alentejanos chegados às cercanias do Pinhal Novo? Ou seja, hipocritamente, a AR e o seu presidente Aguiar Branco querem elidir que falam de imigrantes. E há também as "comunidades" (...) "comunidades ciganas". Votámos em quem escreve assim?
5. Para enfrentar esta tralha não tenho saberes suficientes nem talento particular ("engenho e arte", para citar o poeta que o agora colunista do "Público" esqueceu quando era ministro da Cultura). Apenas consigo resmungar, para isso convocando alguns sublinhados meus, leituras antigas. Há umas décadas Hannah Arendt bombardeou correctamente a boa consciência europeia, anunciando-lhe que a democracia e o universalismo de cidadania aposto na defesa dos direitos humanos, inexistia nas situações coloniais. Isso deu azo a críticas a esse universalismo - "republicano", diz-se em contextos mais francófonos. Depois outros apupos vieram à hipocrisia universalista dos "direitos humanos". Há quem os ancore num anticolonialismo. Esquecendo (ou fazendo por esquecer) que a crítica à defesa dos "direitos humanos", e seu concomitante universalismo, engrandeceu fundamentalmente por ter sido uma arma das ditaduras brejnevistas, grosso modo desde o Acordo de Helsínquia - já após o colonialismo, frise-se -, uma forma discursiva do comunismo combater as democracias.
O que se vive agora é o embate entre dois modelos de organização social, sempre vividos de forma algo ambígua. As sociedades ancoradas na laicidade, exemplificadas pela república francesa. Feita de cidadãos individuais - não que isso implique (como dizem os falsários detractores) que os cidadãos não tenham outras pertenças, mas sim que o Estado os considera por igual, sem mediadores, sem grupos intermédios. E as sociedades ancoradas no secularismo, mais ligadas ao mundo anglo-saxónico, nas quais os Estados reconhecem categorias sociais intermédias de pertença e através dessas diferenciam os cidadãos, cujo maior exemplo actual radica nos EUA.
Por cá os defensores desta última opção - normalmente agentes ambicionando estabelecer-se como "intelectuais orgânicos" (e remunerados) dessas projectadas "comunidades-em-si" - criticam violentamente a falsidade e a injustiça do modelo universalista ("francês", para facilitar). E encontram - mesmo sendo de esquerdas radicais - virtudes no modelo particularista ("secular", "americano"), uma contradição ideológica absurda, na qual não reparam nem quando saem à rua gritando contra as desgraças americanas...
6. "Lá fora" já alguns falaram sobre isto. Restrinjo-me a alguns dos tais meus sublinhados. Por exemplo, Zizek escreveu em 2004 (usando o termo "multiculturalismo" que desde então foi acriticamente criticado pelos "sábios" da moda): "O multiculturalismo é (...) a forma ideal deste capitalismo planetário, a atitude que, de uma espécie de posição global vazia, trata cada cultura local à maneira do colono que lida com uma população colonizada - como "indígenas" cujos costumes devem ser cautelosamente estudados e "respeitados" (...) é uma forma de racismo denegada, invertida, auto-referencial, um "racismo com distância", respeita a identidade do Outro, concebendo-o como uma comunidade "autêntica" fechada sobre si mesma..." (Elogio da Intolerância, Relógio d'Água, 78). O antropólogo francês Jean-Loup Amselle - que não é um lepenista - disse "En participant a l'élaboration d'un modéle d'une France multiculturelle, les partisans comme les adversaires du métissage ont en commun de vouloir faire exister ces groupes en tant que tels, faisant de leur nomination une partie intégrante de leur devenir (...) La multiplication par l'État des ethnies au sein de la société française ne résoudra aucunement le racisme, elle metra au contraire en relief les tares du modèle français d'assimilation qui, on l'a vu, repose sur une base raciologique. Car ce n'est pas le modèle républicain qui s'oppose à la résolution du racisme dans notre pays, ce sont les insuffisances mêmes, son incapacité à être républicain jusqu'au bout, c'est-à-dire universel, qui l'empêchent d'exercer pleinement son devoir de hospitalité et équité." (Lógiques Métisses, Payot, 1990, x-xi). E "Mais étrangement (...) la place de l'universalisme n'est occupée aujourd'hui que par une puissance déclinante - la France républicaine - de sorte que cette dernière a toutes les caractéristiques d'une curiosité culturelle alors que l'Empire multiculturel américain peut se présenter sous les traits d'une puissance universaliste. C'est en effet au nome de l'universalisation da la différence et en tant que strucutures d'accueil de toutes les singularités qu'une puissance globale comme les États-Unis peut faire valoir sa legitimité et prétendre au leadership mondial." (L'Occident Décroché, Stock, 2008, 36-37). Etc.
Em Portugal, por cá? Os políticos pensam e escrevem como se vê. Na imprensa os colunistas preenchem .... colunas. Nas ciências sociais há os... socialistas (e maçónicos) e ainda os bloquistas. E os que esperam, anseiam, pelos subsídios. Como ser incómodo? E nisso vai plácida esta deriva, este "comboio descendente", "todos à gargalhada", em busca da etnia ou raça de cada um...
Adenda: para os não francófonos deixo tradução dos excertos (não venham os habituais resmungões protestar com a sua qualidade, pois são via Deep L.):
1. Ao participarem na elaboração de um modelo de França multicultural, os partidários e os opositores da mestiçagem têm em comum o desejo de fazer existir estes grupos enquanto tais, fazendo da sua nomeação parte integrante do seu futuro (...) A multiplicação pelo Estado dos grupos étnicos no seio da sociedade francesa não resolverá de modo algum o racismo; pelo contrário, porá em evidência os defeitos do modelo francês de assimilação que, como vimos, assenta numa base racial. Com efeito, não é o modelo republicano que impede a resolução do racismo no nosso país; são as suas insuficiências, a sua incapacidade de ser republicano até ao fim, isto é, universal, que o impedem de exercer plenamente o seu dever de hospitalidade e de equidade.
2. Mas, estranhamente (...), o lugar do universalismo é hoje ocupado apenas por uma potência em declínio - a França republicana -, pelo que esta última tem todas as caraterísticas de uma curiosidade cultural, enquanto o império multicultural americano pode apresentar-se sob a forma de uma potência universalista. De facto, é em nome da universalização da diferença, e como estruturas que acolhem todas as singularidades, que uma potência global como os Estados Unidos pode afirmar a sua legitimidade e reivindicar a liderança mundial.