No aeroporto de Lisboa foi assassinado sob tortura um ucraniano por funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
O caso não causou grande comoção. A vítima não era um preto, não chegou numa jangada podre, não era “exilado” político do Brasil ou da Hungria, não vinha fugida de uma das guerras do imperialismo, nem era um muçulmano perseguido pela intolerância de governos sobranceiros que não veem com bons olhos a religião da pás (de pás catrapás).
A falta de comoção pública é um libelo contra o povo das bandeiras, isto é, a esquerda das manifs; a malta dos hossanas à autoridade e às polícias, isto é, algumas personalidades de direita; a massa dos indignados nas redes, isto é, a gente das maiúsculas, pontos de exclamação e fúria proporcional à falta de gramática e de senso; e um insulto à memória de Ihor Homeniuk, que nem depois de morto merece atenção.
O Ministério Público tomou conta da ocorrência e acusou ontem três abnegados inspectores. O julgamento será o que tiver de ser e muitos dos colegas dos réus dirão talvez para os seus botões: Chiça, exageraram. Lá uns cascudos, de preferência sem deixar marcas, vá que não vá; agora morrer não, que grande galo!
Permito-me imaginar isto porque o assassínio nunca poderia ter lugar num ambiente onde o exercício da autoridade respeitosa e respeitável fosse a norma. O ministro da pasta, que calha no caso ser uma nulidade gordurenta e palavrosa, agitou-se muito e fez o mínimo: inquéritos e demissões. Mas não lhe ocorreu nem demitir o director nacional do serviço nem se demitir ele. Em Portugal o princípio da responsabilidade objectiva está consagrado na doutrina, mas em nenhum outro lugar: é longa a lista de responsáveis que não apenas não se deixam abater pelas desgraças que ocorrem sob a sua tutela mas que são inclusive reconduzidos, como aconteceu por exemplo com o lamentável Costa que presidiu à cegueira contumaz do Banco de Portugal, ou promovidos, como tinha acontecido com o seu antecessor, um desastre que hoje goza a tranquila reforma a que fez jus com uma carreira de dislates cá dentro, e obediência obsequiosa lá fora.
Num lar em Reguengos morreram 18(!) pessoas, e igualmente na maior paz pública: aquilo foi lá num depósito de velhos improdutivos, a cair da tripeça, e descobriu-se que a terra é um couto de politiqueiros para os quais Portugal é um torrãozinho de açúcar que dividem entre si. Que importa? Nada: a lamentável funcionária que nos entra em casa todos os dias, há meses, e que é autora de uma impressionante litania de asneiras, abusos, equívocos e normas sortidas ao quilo, para todas as pessoas e situações, onde a inconsciência se mistura com a incongruência e o desnorte, diz o quê?
Diz isto: Fez-se o melhor possível, com diligência e sacrifício. As famílias dos mortos deveriam, infere-se, estar gratas porque os velhos, a bem dizer, morreram devidamente supervisionados. E como a patroa que costuma estar sentada ao lado abanando em concordância a sua bem penteada cabeça lhe dá cobertura, Graça Freitas sente-se autorizada, em pleno Parlamento, a declarar que não é patriótico dizer que a nossa (a dela) informação não é boa. Ou seja, uma funcionária comprovadamente medíocre, que já deveria ter sido substituída há muito, dá aulas de nacionalismo, patriotismo e salazarismo serôdios. Venham-nos cá dizer que não é razoável substituir generais no meio das batalhas. Talvez não seja - excepto se forem sargentos.
Há algum fio condutor no meio disto tudo? Há, e é este: Fora das causas da indústria de causas o Estado não pode ser posto em causa. Porque o Estado somos nós todos e, portanto, o edifício social abala quando se põe em causa a sua superestrutura.
É em parte isso que explica a mudança de nomes para Autoridades disto e daquilo (o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras só não mudou porque se prestava a equívocos chamar àquilo Autoridade de Estrangeiros), as multas demenciais, as necessidades de licenciamento para um catálogo sempre crescente de actividades, os poderes absurdos de que dispõem os esbirros do Fisco ou os da ASAE, ou o reforço dos das administrações locais, que pontapeiam com perfeita impunidade o Estado de Direito (como tem sido recorrentemente demonstrado nas regiões autónomas). À boleia da Covid, esta diarreia autoritária atingiu o paroxismo: uma extraordinária e minuciosa colecção de normas para actos, incluindo comezinhos, incluindo privados, sem sombra de respeito nem por tradição, nem empresas, nem crianças, nem escolas, nem família, nem indivíduo, nem cidadão. Que este, tolhido de medo, subscreva este lixo ordenacional não muda nada: nunca nenhum regime teve falta de bufos, carrascos, maria-vai-com-as-outras, invejosos e gente pronta a engolir quanta tolice a quantidade adequada de propaganda ideológica lhe enfia pela garganta.
Claro que o Estado não somos todos nós; apenas quem lhe dá corpo sob a forma de leis e ordens, e reparte lugares, prebendas e benesses. E como, em democracia, há o risco de hoje serem uns e amanhã outros, convêm três coisas: uma é que haja um cuidada repartição de lugares de modo a que as mudanças não causem excessiva comoção – daí o que se passa nas CCDRs; outra é que a massa dos eleitores perpetue este estado de coisas, para o que é preciso contentar o maior número com migalhas, mesmo que o preço seja a estagnação – daí a progressividade dos impostos sobre o rendimento, a opacidade e rapacidade do sistema fiscal e a generalização do sistema de subsídios, a indivíduos e empresas, criando adequadas relações de dependência; e, finalmente, que haja uma barragem permanente de propaganda, com algumas vozes dissonantes se tiver de ser – daí os subsídios à comunicação social, as manobras para controlar televisões e o sucesso do monstro Covid, pouco eficiente a matar pessoas e muito liberdades.
De modo que receio que a morte de Ihor e a dos dezoito anónimos seja como a do soldado desconhecido: são danos colaterais, erros dos generais é que não foram com certeza.