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Delito de Opinião

Quando se troca a táctica pela estratégia

Paulo Sousa, 09.02.24

Era uma vez uns inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que ao cometerem um crime de homicídio no aeroporto deixaram um ministro embaraçado. Dizem que já havia vontade de reformular os serviços, mas, tacticamente, entendeu-se que a extinção do SEF seria uma boa válvula de escape. Sempre que o primeiro-ministro, ou ministro, fossem confrontados com a inexplicável demora na tomada de uma posição sobre o crime ocorrido, entenda-se que rolassem cabeças, o fim do referido organismo seria a forma de baralhar para dar de novo, evitando assim os pingos da chuva. O beneplácito da imprensa faria o resto.

Entenderam então distribuir as competências deste Serviço por diversos organismos públicos, sem outro critério que não fosse o “parece-me que”. Como alguns agentes do então já extinto SEF tinham uma remuneração superior aos da Polícia Judiciária, órgão policial onde alguns foram colocados, o governo decidiu aumentar toda a PJ. Nessa data, a demissão de António Costa já tinha ocorrido, havia eleições à vista e não há nada como um generoso aumento salarial antes de eleições.

O resto da história, a escusa do governo em alargar o referido aumento às restantes forças policias (com a desculpa da demissão de António Costa que não impediu o aumento da PJ) e os protestos que se seguiram, são mais recentes e, à primeira vista, nada têm a ver com o crime ocorrido no aeroporto.

Esporadicamente fala-se na fusão da GNR e PSP, mas isso é um tema muito delicado que obriga a mexer nas patentes dos oficiais, assim como a acertos salariais entre as duas forças. Se tivesse havido uma visão reformista no governo talvez esta história pudesse ter começado pelo fim, sendo que o crime nunca deveria ter acontecido.

Os imigrantes

Paulo Sousa, 30.01.24

O nosso companheiro José Meireles Graça trouxe aqui ontem um assunto pertinente e que realmente merece ser debatido com seriedade.

Salto rapidamente a parte em que tenho de dizer, e digo por o sinto, que é bem-vindo quem vier por bem. Mas antes desta ideia, existe uma outra mais abrangente e não menos válida, que costumo resumir por “nem sempre, nem nunca”, querendo nestes termos dizer que em tudo temos de procurar um equilíbrio.

A falta de bebés é uma sentença que condicionará irremediavelmente as gerações futuras. Uma das consequências deste inverno demográfico é a sustentabilidade da segurança social, que não sendo pouco importante, é apenas uma das suas muitas consequências. A diversidade social que resulta dos imigrantes que chegam, os emigrantes que não conseguimos reter é uma outra lavra, irá alterar a nossa sociedade nas próximas décadas. Confesso que gosto de diversidade, mas sei bem que a natureza humana nos muniu de vários sistemas de defesa, de entre os quais um que, perante o desconhecido, nos retrai. A génese de bichos gregários que durante dezenas de milhares de anos nos ajudou a sobreviver num mundo pejado de ameaças, faz disparar um alerta sempre que encontramos um indígena oriundo de outra tribo. Sem novidade.

Ouvi há dias um viajante dizer que quando começou a acumular países, encantava-se com as diferenças culturais em que tropeçava, mas com o tempo passou a procurar aquilo que sente ter em comum com aqueles com quem se cruza. Dizia ele, que depois disso, e perante tanto em comum que o bicho humano tem em cada região do mundo, passou a saborear muito mais cada quilómetro percorrido.

Dito isto, recebermos cinco mil imigrantes é diferente de recebermos cinquenta mil, e muito diferente de recebermos quinhentos mil. Dizem que o melting pot norte-americano é um dos factores por detrás do sucesso dos EUA na sua afirmação enquanto potência maior dos nossos tempos. Mas dizer isto não é suficiente. O Brasil é também um melting pot e, embora prenhe de recursos naturais, não foi tão bem-sucedido, nem um pouco mais ou menos. Poderia para aqui trazer muitas explicações para essa diferença, mas podemos simplificar a explicação com a forma diferente como estes dois países lidaram com aquilo que designamos como “estado de direito”. A igualdade de tratamento perante a lei, pressupõe instituições sólidas e capazes de esvaziar os impulsos dos que se sentem poderosos e privilegiados perante os mais simples ou indigentes. Isso existe nos EUA e nunca se comparou com o que existe no Brasil. E, perguntará quem me lê, o que é que isto tem a ver com o assunto do postal? Tem a ver na medida em que a serenidade com que a chegada de toda esta gente de diferentes latitudes ao nosso rectângulo, irá depender da solidez das nossas instituições. E isso, sabendo nós o que a casa gasta, não me deixa entusiasmado.

Os intelectos de fina espessura já andam a espalhar a magia que se esperava. Para eles este é um assunto sem matizes nem tonalidades. Mal o assunto é puxado, logo desatam a distribuir carimbos. Adoram seres humanos, desde que sejam estrangeiros, e odeiam os fascistas com a mesma intensidade com que desprezam o discurso de ódio. E a sua definição de fascista incluiu todos os aqueles que não aplaudem a sua cor partidária, passando pelo tipo que não faz pisca à saída das rotundas, até ao vizinho que tem um carro melhor que o dele. Como é linear o mundo dos simples!

Há uns anos, li algures (não sei se isso continua válido) que a Austrália criou um modelo que atribui pontos às diversas valências e capacidades aos estrangeiros requerentes de um visto de trabalho. Idade, formação académica, nível de inglês, estado de saúde e região de origem. Só quem reunisse mais de 100 pontos era autorizado a ali poder trabalhar. Uma coisa parecida cá no burgo seria inaceitável, mas teria impedido o aumento significativo de sem-abrigos que, segundo as notícias, está em curso em Lisboa.

Como disse no início, o assunto merece ser debatido com seriedade, mente aberta, sem sectarismos nem dedos em riste. Mas bem sabemos que isso não irá acontecer. Vai ser mais do mesmo, medidas avulsas, legislação a quente, debates de raspão e regados com emoções. A treta do costume, quem vier depois que feche a porta.

Aterrar na Portela

jpt, 13.06.22

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Mia Couto aterrou agora no aeroporto da Portela. E narra aqui, com "Indignação", a inaceitável experiência, horas de espera no controlo fronteiriço.
 
Desta situação eu retiro dois pontos. O primeiro é paliativo: se os serviços do SEF estão ali em colapso é óbvio que alguma instituição deveria estar em campo, ajudando os passageiros, minorando o desconforto, informando, distribuindo víveres, cadeiras, etc. A inexistência desse apoio é mesmo o pior. Pois crises há em todo o lado mas o desprezo pelos outros, "vientes", nem sempre vigora.
 
O segundo ponto é um desejo, mais estrutural. Este governo é recente e tem de arcar com o legado das incapacidades dos anteriores governantes. Tenhamos esperança, mas exigente, que a nova liderança resolva a contento esta grave incapacidade deste serviço público, que se arrasta já há anos.

Os méritos da comunicação social

João Pedro Pimenta, 22.12.20

Tenho lido por aí que só agora é que a comunicação social tem dado atenção ao caso Homenyuk, que durante nove meses não se ouviu nada, etc, etc. Lê-se isso nas redes sociais mas também de outras paragens inesperadas, como alguns jornalistas em guerra autofágica contra a própria classe. Nada mais injusto, nesta ocasião.

Pegando nas palavras de um dos responsáveis do que sucedeu, houve quem não ouvisse nada. Porque desde fins de Março que se conhecia o casos e os seus contornos, que se sabia que algo de muito errado se tinha passado com o ucraniano e os agentes do SEF, e tudo isto porque a comunicação social o divulgou. Se o caso não teve mais repercussões é porque as pessoas até agora tinham ligado pouco.

Em lugar de bater sempre na imprensa, que tantas vezes e ao contrário do que se passou agora não cumpre as suas funções, seria bom pensar que talvez as redes sociais não sejam assim tão informativas ou eficazes. Afinal de contas, soube-se disto em fins de Março, quando a pandemia tinha repentinamente surgido e estava tudo em casa. Lembro-me aliás de ter sido o primeiro caso que não o covid-19 a abrir os noticiários em muitos dias. E não foram com certeza os "jornalistas" de smartphone que divulgaram a situação. Algumas pessoas ligaram mais, de certa forma para se libertar do totalitarismo informativo covidiano, mas outras pouco terão ligado. Até agora, quando a viúva do pobre Homenyuk disse "odiar Portugal"(e poderemos nós censurá-la, por muito que nos custe?). Através da comunicação social, claro.

Por isso, culpe-se o SEF, a ANA, o governo que só agora é que resolveu dar uma compensação à família, o ministro Cabrita, o presidente ou outros, mas deixem de se atirar à comunicação social. Há imensas razões e oportunidades para criticá-la. Eu próprio já o fiz, aqui no Delito. Mas ao menos, e ao contrário do que acontece com inumeras páginas manhosas da net, que atraem sempre alguns discípulos hipnotizados, os artigos vêm sempre assinados e podemos saber quem foram os seus autores. Aqui é manifestamente injusto que assaquem as culpas à CS, porque é graças a esta que sabemos os contornos do caso.

Ihor Homeniuk

José Meireles Graça, 17.12.20

Rui Rio foi, durante o consulado de ruptura de Passos Coelho, a reserva do PSD para os tempos da concórdia. Um clássico: O PSD sempre teve oposição interna, sem grande peso até ao dia em que passa para o leme, quando o antigo poder, de peso, passa a não ter muito.

No PS é igual: todo ele é hoje geringoncista, excepto a parte que não é (Seguro, Sérgio Sousa Pinto e outros próceres. Sócrates também, se aquele percalço que há-de ser julgado numa das próximas décadas não o tivesse remetido para as catacumbas da opinião).

Os centristas num e noutro partido podiam trocar de lugares se, por razões circunstanciais, não tivessem calhado em clubes diferentes, e se em questões fracturantes (isto é, as de engenharia social) não se distinguissem por vezes por estarem irremediavelmente à esquerda uns, e fatalmente à direita outros.

Rio sempre achou que o país precisa de reformas. Tal como Passos Coelho, que por isso em determinada altura defendeu a revisão da Constituição mas rapidamente concluiu que o PS não serve para nenhuma reforma que valha a pena, e deixou cair qualquer perspectiva de entendimento.

Rio não deixou. Tendo estabelecido boas relações com Costa quando eram ambos regedores, respectivamente do Porto e Lisboa, meteu na cabeça a ideia de que Costa podia ser o parceiro para a regionalização, uma revolução perigosa pela qual tem grande estimação, reformas da Justiça, sobre a qual tem opiniões sumárias, e gestão da economia, na versão cavaquista, muito diferente no seu socialismo doutoral do socialismo rasteiro e clientelar de Costa e da sua legião de carreiristas e intervencionistas sortidos, incluindo nas madraças da Academia. Onde há aliás várias escolas, que se dividem ferozmente no grau e maneiras de espoliar o contribuinte, ensinar os empreendedores a empreender, os investidores a investir, os gestores a gerir e os cidadãos a pensar sobre ciências económicas, aquela parte da alquimia que consiste num conjunto de tretas cujos autores com elas ganham a vida.

Pois o bom do Rio aplicou as suas luzes ao assassinato de Ihor Homeniuk. E, inevitavelmente, não percebeu o que está em causa. Julga o santo homem que a tortura e o assassinato foram “uma situação concreta que aconteceu e que não revela necessariamente uma deficiência no serviço do SEF. Revela uma deficiência naquele caso concreto”. E sobre o ministro responsável por aldrabices, o silêncio, o arrastar de pés, a prodigiosa inépcia funcional, diz esta coisa extraordinária: “É inegável que não geriu bem este tema mas se tem ou não condições, isso é da estrita responsabilidade do primeiro-ministro”. Ou seja: se Costa, na sua insindicável superioridade, achar que o amigo imprestável serve para nos pastorear na pasta da Administração Interna, ele, que a imprensa designa como líder da oposição, não tem nada a dizer.

Sucede que o SEF não é um serviço impoluto onde um azar infeliz um dia pousou; é um coio de malfeitorias, umas conhecidas e outras que se adivinham, conforme se pode ver, por exemplo, aqui.

Para o peditório indecoroso da extinção do SEF e da reorganização das polícias e suas competências dou nada. Porque o caldo de cultura que naquele serviço desembocou neste caso extremo não desaparece pela mágica de o dissolver numa organização maior. Pelo contrário: a reorganização obscurece a necessidade de uma severíssima inspecção, identificando os Rambos que por lá haja, os invisuais, os coniventes, os procedimentos ilegais, as práticas intoleráveis. Varrendo a testada, que é o mínimo que um país que se reclame de Estado de Direito pode e deve fazer. E depois polícias há várias, e é melhor deixá-las assim: a amálgama só pode resultar em corpos especializados unificados num comando único, o que quer dizer demasiado poder em poucas mãos. É uma receita duvidosa para a eficiência, e segura para o abuso.

Uma nota final: Acredito na boa-fé de Rio, que é da mesma natureza da que o leva tenazmente a confiar em Costa. Só pode ser por se tratar de um homem inteligente que tinha necessidade de o ser bastante mais para conseguir ver o óbvio.

Brandos Costumes

Cristina Torrão, 17.12.20

“Métodos que levaram à morte de Ihor não são caso isolado”, alerta Amnistia Internacional.
A dire(c)tora de Investigação e Advocacia da Amnistia Internacional Portugal conta ao JE que existe um “problema sistémico” e “um padrão de abusos dentro” das estruturas do SEF. “Há muitos anos que existem relatos de uso de força excessiva, agressões e maus-tratos”, denuncia.

Existe um comportamento padrão de abusos dentro das estruturas das forças de segurança e, por outro, um sentimento de impunidade que dá a alguns maus agentes a confiança de torturar e assassinar uma pessoa sem temer consequências”.

De um modo geral, a representante da Amnistia Internacional argumenta que a tragédia diz-nos que “não estamos plenamente num Estado de direito e que ainda há muito trabalho a fazer para sermos uma sociedade verdadeiramente respeitadora dos direitos humanos de todos os cidadãos, sem exce(p)ção”.

Maria Lapa deixa por isso um alerta: “é preciso vontade política para resolver os problemas de forma duradoura e não apenas apresentar soluções rápidas para apaziguar a opinião pública enquanto dura a polémica e o mediatismo”.

 

Por todo o Facebook existem milhares de imigrantes brasileiros, angolanos, venezuelanos, ucranianos, agrupados em comunidades virtuais. Lá dentro abundam as reclamações, as sugestões e o medo.
Sobretudo o medo. Falam de racismo, xenofobia e até de agressões, mas a maioria não se sente à vontade para revelar o nome publicamente.

No espaço havia duas áreas, “a nossa e outra secção em que estavam somente pessoas negras”, revela Antónia. “Quando perguntamos o porquê de isso acontecer, o agente respondeu: ‘Vocês não querem ser tratados como eles são, não é…”.

Eles até batiam em alguns. Homens principalmente. Torturavam-nos para dizerem as coisas.

Quanto a Pablo, Gilcimar alega contornos preocupantes e fala em “ameaças físicas” que provocaram medo e, inclusive, despoletaram uma situação de incontinência urinária no jovem de 23 anos.

 

E pensar que vivemos num país pertencente à União Europeia, um país não-racista, respeitador dos Direitos Humanos...

Oksana Homeniuk

José Meireles Graça, 09.12.20

O ministro da Administração Interna tem uma relação doentia com aparelhos eléctricos: Ficou célebre uma disputa de um microfone com o então Secretário de Estado dos Assuntos fiscais (incidentalmente uma personagem abominável, o que para a economia do episódio e deste artigo não releva), e agora fica o país pasmado com um botão de pânico a instalar nos 18 quartos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, conforme estabelecido numa Portaria que o indescritível Cabrita assinou.

A função do botão é a seguinte: no caso de uma vítima não estar, por indesculpável descuido, algemada, e conseguir nele carregar debaixo de uma saraivada de pancadas, outros inspectores e seguranças serão alertados para o efeito, presume-se, de ajudarem os seus colegas a disciplinar o imigrante refractário, nomeadamente com pontapés e caneladas.

Esta ideia delirante é o que a cabeça ministerial produziu para pôr um penso band-aid no escândalo do assassinato, a par da demissão (“a seu pedido”, como convém a funcionários de mérito que tiveram a infelicidade de alguma coisa correr menos bem - assassinatos, atropelos aos direitos humanos e abusos sortidos - nos serviços que proficientemente dirigem), a par de uma reestruturação que vai ser coordenada pelos Diretores Nacionais Adjuntos José Luís do Rosário Barão, que assume a função de Diretor em regime de suplência, e Fernando Parreiral da Silva.

A reestruturação consiste na "separação orgânica muito clara entre as funções policiais e as funções administrativas de autorização e documentação de imigrantes", isto é, a burocracia fica separada dos assassinatos propriamente ditos – não se pode parar o progresso.

Cristina Gatões vai, de castigo, ser exilada para Londres, com o miserável estipêndio de 12.000 euros mensais, segundo se diz aqui, a fim de prevenir a comunidade portuguesa expatriada sobre o que a espera se quiser regressar; e gente de muita fé acha que o novo Director (suplente), um boy do PS com uma extensa carreira  que calhou estar ali à mão, é a pessoa certa para remodelar seja o que for.

Oksana Homenyuk, a mulher do ucraniano assassinado, entrevistada pela SicN, diz que “sente ódio de cada vez que ouve a palavra Portugal".

Não te acompanho completamente, Oksana, porque é o meu país. Mas lá que sinto nojo – sinto.

Ihor Homeniuk

José Meireles Graça, 05.12.20

Gente de muito mais cachet do que eu tem-se recentemente ocupado do caso Ihor Homeniuk: Garcia Pereira, aqui, Daniel Oliveira aqui ou Luís Aguiar-Conraria aqui.

Estes e outros. E à medida que o novelo se vai desenrolando vai-se percebendo que o SEF é uma organização criminosa e que o assassinato chegou à opinião pública porque uma vítima teve o atrevimento de morrer e porque umas quantas, poucas, pessoas não quiseram encobrir.

Como se isto fosse pouco, a procuradora Paula Alexandra de Melo de Menezes Soares, que se ocupa do caso, veio insultar objectivamente a família da vítima sacudindo a água do capote do Estado com a argumentação de que "a causa de pedir daquela pretensão civil não é a prática do crime descrito na acusação, mas antes a violação dos deveres funcionais que fundamentarão eventual responsabilidade extracontratual do Estado”. A consequência desta interpretação seria então que para demandar o Estado com esse fundamento seria necessário instaurar uma ação cível autónoma etc. etc.

Dito de outro modo: a família escolheu mal o advogado, este não conhece o caminho das pedras. E as coisas até poderiam ser assim se não tivéssemos a razoável suspeita de que outros advogados e magistrados terão entendimento diferente, o que significa que as opiniões sobre o guichet do Estado onde se apresenta a reclamação são mais importantes do que a própria. Que nas repartições do Estado tenha de ser assim por razões funcionais pode por vezes entender-se; que num caso destes sequer se levante este problema é atitude que nem qualifico.

O lamentável ministro da pasta poderia intervir, decidindo pagar o que é exigido ao Estado e levando a sua decisão ao Parlamento, que decerto a cobriria (faço a justiça aos parlamentares, com excepção talvez do polícia à civil Ventura, de imaginar que outra não seria a decisão), em vez de ir para lá balbuciar histórias mal contadas;  e ao Parlamento não ficaria mal ocupar-se deste caso, num intervalo dos votos de pesar pela morte dos génios do semestre. Assim como o presidente da República, tão lesto a babujar com amplexos os populares que o vão reeleger, deveria por uma vez encarnar não a vergonha que não temos mas a que deveríamos ter, com o recebimento da família enlutada.

Não vai suceder: seria preciso um clamor da opinião pública, e esse está reservado para os problemas da Cristina Ferreira e os desaires da Selecção.

As ilustres personalidades acima reclamam a demissão dos responsáveis envolvidos, incluindo o ministro, e mencionam o caldo de cultura que tornou este crime possível; e Garcia Pereira lembra, a propósito de abusos policiais, a exigência por cumprir de obrigação da visível identificação de todos os agentes policiais.

(O Chega! achou a ocasião boa para apresentar um projecto de lei para proibir, punindo com pena de prisão, a captura e difusão de imagens ou vídeos de atuação policial. André Ventura não tem propriamente escolhas seguras sobre coisa alguma, salvo oferecer no supermercado das ideias políticas produtos para os quais haja procura que esteja por satisfazer. Este, o do atropelo de conquistas da civilização em nome da segurança, recomendaria que deixasse de se apresentar de fato e gravata e passasse a andar de capuz e botas cardadas. Tem juízo, André: há guerras que as pessoas decentes não devem travar, e agradar à escumalha pode ser um exercício rendoso mas não é para cavalheiros.)

Resta que a morte de Ihor Homeniuk é um caso extremo, mas tratá-lo como se fosse apenas um incidente lamentável num quadro geralmente aceitável é uma ingenuidade. Uma pessoa que estimo e admiro dizia há dias: “… os polícias só são notícia quando erram, como aconteceu na esquadra de Alfragide. Caso contrário, por exemplo quando são atraídos a emboscadas, resta-lhes o Correio da Manhã e umas notícias breves para que os fact check possam garantir que se abordou o assunto”.

Dizia mal, não porque a comunicação social não tenha agendas nem seja tendenciosa – tem e é – mas porque o abuso dos poderes do Estado é uma ofensa civilizacional e as dificuldades no desempenho de missões de segurança uma fatalidade. Que justifica um estatuto especial, incluindo remuneratório, mas não poderes não sindicados que se possam traduzir em abusos.

Poderes não sindicados tem-nos também, em parte, o Ministério Público, e deles não tem feito bom uso: basta lembrar o caso Sócrates, um monumento à inoperância e ao falhanço, a tal ponto que não é certo que venha a ser julgado com a maior parte dos seus antigos eleitores ainda vivos; e têm-nos as polícias, a AT, a ASAE, os agentes de execução e inúmeros outros serviços públicos que todos os dias cometem pequenos e grandes abusos que nunca chegam à opinião pública porque há a cultura difusa do respeitinho, a ideia deletéria de que esse é um preço que é preciso pagar em nome de bens maiores e a triste realidade da impunidade.

A impunidade é a pedra de toque: um homem morreu e isso será sancionado, mas quantas centenas ou milhares foram vítimas de atropelos menores que nunca ninguém conheceu? A AT aparece às vezes nas notícias porque praticou uma qualquer barbaridade que lesou centenas de contribuintes, ou por um ou outro caso escandaloso que um jornalista se lembrou de trombetear, mas quantos funcionários foram castigados por obrigarem a ir para tribunal contribuintes cujo caso é igual ao de outros que já obtiveram ganho de causa, ou por liquidarem empresas viáveis com acusações delirantes? O polícia que abusa porque está mal disposto ou vê demasiados filmes americanos, e que foi objecto de queixa, quantas vezes foi investigado? E os responsáveis (chefes disto e daquilo, directores-gerais, comandantes, ministros, e todos os que têm atribuições de direcção e são pagos pelo contribuinte), quantas vezes decidiram zangar-se com os seus subordinados, a benefício dos estranhos a quem deveriam servir, que não são os mesmos que estão sob a sua alçada?

É na maneira como se encara o abusozinho anódino que está a chave. Porque, ao contrário do que diz o bordão, quem pode o menos acaba por poder o mais.

Ihor Homeniuk

José Meireles Graça, 16.11.20

Sobre Ihor Homeniuk, o não-preto, não-imigrante de balsa, não-refugiado, não-cigano, não-muçulmano, disse o que, a meu ver, convinha. E, a certo ponto, preopinava:

“Em Portugal o princípio da responsabilidade objectiva está consagrado na doutrina, mas em nenhum outro lugar: é longa a lista de responsáveis que não apenas não se deixam abater pelas desgraças que ocorrem sob a sua tutela mas que são inclusive reconduzidos, como aconteceu por exemplo com o lamentável Costa que presidiu à cegueira contumaz do Banco de Portugal, ou promovidos, como tinha acontecido com o seu antecessor, um desastre que hoje goza a tranquila reforma a que fez jus com uma carreira de dislates cá dentro, e obediência obsequiosa lá fora”.

Estava, é claro, a falar do ministro da administração interna, “uma nulidade gordurenta e palavrosa”, e da directora do Serviço Nacional de Estrangeiros e Fronteiras.

Esta senhora (que, aliás, ao ter estado calada até agora deu de si as melhores indicações) vem, quando questionada sobre se tinha posto o lugar à disposição do ministro da Administração Interna, que tutela o SEF, ou se tinha pensado demitir-se, dizer o seguinte:

"Não. É uma responsabilidade à qual eu não podia fugir. Por muito duro que seja o momento com que tive que lidar, abandonar não adiantaria nada e não iria introduzir nenhuma mudança positiva, que eu achava que era possível introduzir para que este trágico e hediondo acontecimento não seja nunca esquecido e nos catapulte para garantir que nenhum Ihor volta a sofrer o que este cidadão ucraniano sofreu nas instalações do SEF."

Ou seja: sob sua direcção, três patifes assassinaram sob tortura, no desempenho de funções públicas e por causa delas, um homem; não o poderiam ter feito se a cultura do serviço e do lugar não criasse o ambiente para estas coisas serem possíveis e naturais; e o responsável máximo descobre agora que é necessário introduzir uma “mudança positiva”, e julga-se a pessoa indicada para a produzir.

Julga mal. Porque se é preciso morrer uma pessoa para os responsáveis descobrirem o que fazer para evitar assassínios no desempenho das funções, isso significa que sofre de indesculpável ignorância. E nem preciso conhecer a senhora, ou o serviço, ou a gente deplorável que lá trabalha (que me perdoem as excepções: há sempre flores no meio do entulho) para imaginar a miríade de pequenos abusos que criam o caldo de cultura para os grandes. Cristina Gatões percebe isto? Se percebesse, tinha-se demitido.

Ihor Homeniuk

José Meireles Graça, 01.10.20

No aeroporto de Lisboa foi assassinado sob tortura um ucraniano por funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

O caso não causou grande comoção. A vítima não era um preto, não chegou numa jangada podre, não era “exilado” político do Brasil ou da Hungria, não vinha fugida de uma das guerras do imperialismo, nem era um muçulmano perseguido pela intolerância de governos sobranceiros que não veem com bons olhos a religião da pás (de pás catrapás).

A falta de comoção pública é um libelo contra o povo das bandeiras, isto é, a esquerda das manifs; a malta dos hossanas à autoridade e às polícias, isto é, algumas personalidades de direita; a massa dos indignados nas redes, isto é, a gente das maiúsculas, pontos de exclamação e fúria proporcional à falta de gramática e de senso; e um insulto à memória de Ihor Homeniuk, que nem depois de morto merece atenção.

O Ministério Público tomou conta da ocorrência e acusou ontem três abnegados inspectores. O julgamento será o que tiver de ser e muitos dos colegas dos réus dirão talvez para os seus botões: Chiça, exageraram. Lá uns cascudos, de preferência sem deixar marcas, vá que não vá; agora morrer não, que grande galo!

Permito-me imaginar isto porque o assassínio nunca poderia ter lugar num ambiente onde o exercício da autoridade respeitosa e respeitável fosse a norma. O ministro da pasta, que calha no caso ser uma nulidade gordurenta e palavrosa, agitou-se muito e fez o mínimo: inquéritos e demissões. Mas não lhe ocorreu nem demitir o director nacional do serviço nem se demitir ele. Em Portugal o princípio da responsabilidade objectiva está consagrado na doutrina, mas em nenhum outro lugar: é longa a lista de responsáveis que não apenas não se deixam abater pelas desgraças que ocorrem sob a sua tutela mas que são inclusive reconduzidos, como aconteceu por exemplo com o lamentável Costa que presidiu à cegueira contumaz do Banco de Portugal, ou promovidos, como tinha acontecido com o seu antecessor, um desastre que hoje goza a tranquila reforma a que fez jus com uma carreira de dislates cá dentro, e obediência obsequiosa lá fora.

Num lar em Reguengos morreram 18(!) pessoas, e igualmente na maior paz pública: aquilo foi lá num depósito de velhos improdutivos, a cair da tripeça, e descobriu-se que a terra é um couto de politiqueiros para os quais Portugal é um torrãozinho de açúcar que dividem entre si. Que importa? Nada: a lamentável funcionária que nos entra em casa todos os dias, há meses, e que é autora de uma impressionante litania de asneiras, abusos, equívocos e normas sortidas ao quilo, para todas as pessoas e situações, onde a inconsciência se mistura com a incongruência e o desnorte, diz o quê?

Diz isto: Fez-se o melhor possível, com diligência e sacrifício. As famílias dos mortos deveriam, infere-se, estar gratas porque os velhos, a bem dizer, morreram devidamente supervisionados. E como a patroa que costuma estar sentada ao lado abanando em concordância a sua bem penteada cabeça lhe dá cobertura, Graça Freitas sente-se autorizada, em pleno Parlamento, a declarar que não é patriótico dizer que a nossa (a dela) informação não é boa. Ou seja, uma funcionária comprovadamente medíocre, que já deveria ter sido substituída há muito, dá aulas de nacionalismo, patriotismo e salazarismo serôdios. Venham-nos cá dizer que não é razoável substituir generais no meio das batalhas. Talvez não seja - excepto se forem sargentos.

Há algum fio condutor no meio disto tudo? Há, e é este: Fora das causas da indústria de causas o Estado não pode ser posto em causa. Porque o Estado somos nós todos e, portanto, o edifício social abala quando se põe em causa a sua superestrutura.

É em parte isso que explica a mudança de nomes para Autoridades disto e daquilo (o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras só não mudou porque se prestava a equívocos chamar àquilo Autoridade de Estrangeiros), as multas demenciais, as necessidades de licenciamento para um catálogo sempre crescente de actividades, os poderes absurdos de que dispõem os esbirros do Fisco ou os da ASAE, ou o reforço dos das administrações locais, que pontapeiam com perfeita impunidade o Estado de Direito (como tem sido recorrentemente demonstrado nas regiões autónomas). À boleia da Covid, esta diarreia autoritária atingiu o paroxismo: uma extraordinária e minuciosa colecção de normas para actos, incluindo comezinhos, incluindo privados, sem sombra de respeito nem por tradição, nem empresas, nem crianças, nem escolas, nem família, nem indivíduo, nem cidadão. Que este, tolhido de medo, subscreva este lixo ordenacional não muda nada: nunca nenhum regime teve falta de bufos, carrascos, maria-vai-com-as-outras, invejosos e gente pronta a engolir quanta tolice a quantidade adequada de propaganda ideológica lhe enfia pela garganta.

Claro que o Estado não somos todos nós; apenas quem lhe dá corpo sob a forma de leis e ordens, e reparte lugares, prebendas e benesses. E como, em democracia, há o risco de hoje serem uns e amanhã outros, convêm três coisas: uma é que haja um cuidada repartição de lugares de modo a que as mudanças não causem excessiva comoção – daí o que se passa nas CCDRs; outra é que a massa dos eleitores perpetue este estado de coisas, para o que é preciso contentar o maior número com migalhas, mesmo que o preço seja a estagnação – daí a progressividade dos impostos sobre o rendimento, a opacidade e rapacidade do sistema fiscal e a generalização do sistema de subsídios, a indivíduos e empresas, criando adequadas relações de dependência; e, finalmente, que haja uma barragem permanente de propaganda, com algumas vozes dissonantes se tiver de ser – daí os subsídios à comunicação social, as manobras para controlar televisões e o sucesso do monstro Covid, pouco eficiente a matar pessoas e muito liberdades.

De modo que receio que a morte de Ihor e a dos dezoito anónimos seja como a do soldado desconhecido: são danos colaterais, erros dos generais é que não foram com certeza.