Coisas nossas que me soltam memórias (e lágrimas)
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Terreiro do Evangelistas, no Bom Jesus do Monte (Braga)
Vivi longe de Portugal em dois períodos e destinos diferentes. Totalizando 12 anos e meio.
À distância temporal, não tenho a menor dúvida em considerar que o balanço é largamente positivo. Falo por mim, mas creio falar por quase todos. Abrimos horizontes, conhecemos diferentes línguas e culturas, fazemos novas amizades, ganhamos arcaboiço para enfrentar o inesperado.
E sobretudo - gostaria de sublinhar isto - saímos de uma atmosfera social que demasiadas vezes nos empurra para baixo. Refiro-me ao desânimo, ao desalento, à mentalidade do não-vale-a-pena, à convicção de que tudo só muda para pior, às certezas de que todos os esforços são inúteis. À atmosfera de crise permanente, do queixume como senha de identidade, da insistência em ver o copo meio vazio mesmo quando está cheio porque o resto da tribo também o vê assim.
Enquanto estive fora, na maior época de "vacas gordas" em Portugal, quando cá vinha de férias só ouvia falar em crise. Crise do jornalismo, da televisão, do teatro, do cinema, do comércio, da cultura, da indústria, da economia, das finanças, da política. Como sucedia dez anos antes, como continuou a ser dez anos depois (já com as vacas bem magras, quase esqueléticas).
Encontrei as mesmas pessoas nos mesmos bares, sentadas nas mesmas cadeiras, com as mesmas conversas, dizendo mal de tudo e de todos. Uma década depois.
Disso não tive saudades. Nem voltaria a ter se emigrasse de novo.
Falta-nos mentalidade mais positiva, algo que muitas vezes só adquirimos quando saímos, quando vivemos em países de brumas e regressamos com saudades do sol.
A Tia Adelaide, que Deus tem em descanso há quase duas décadas, morava com o segundo marido numa casa antiga. O Tio Marcelino depois de praticar religiosamente o seu desporto favorito, dormir duas ou três horas diárias de modo a recuperar energias gastas a fazer laboriosamente o menos possível, acedia de bom grado aos pedidos que a esposa gentilmente lhe ordenava e bricolava pela casa de modo a que a mesma se assemelhasse cada vez mais àquele antiquário que a Tia Adelaide adorava visitar na Rua de S. Bento.
Um quadrozinho por outro com qualidade, pinturas do Sr. Monteiro do atelier copiando os Mestres, ladeava com molduras com recortes de revistas e pósteres tauromáquicos onde pontuava o nome da estrela da família, o trisavô Manuel dos Touros.
Caixinhas de música, loiça chinesa, jarras, vasos, potes, um sem número de preciosidades com que o Senhor Doutor, alto dignitário de Portugal em Macau presenteava a Tia Adelaide pelos seus dotes de passajar roupa de tal modo que os infelizes buracos de cigarro se perdiam na magia da agulha e do dedal. A Tia Adelaide não teve filhos, por isso coleccionava pequenas peças do Bordalo num aparador envidraçado que mostrava a quem a visitasse, sem nunca permitir que um "seu menino" deixasse a sua mão. Podiam muito bem ser admirados de longe.
A casa da Tia Adelaide era alta e castiça, e não fora a falta dos fados e guitarradas bem poderia ter sido a inspiração de Alberto Janes para as célebres tabuinhas. Tinha uma escada estreitinha que levava a um sótão com uma banca de carpinteiro e novelos de aparas de madeira pelo chão, lugar mágico onde eu buscava e rebuscava, tentando encontrar os macaquinhos que o meu Avô afiançava que a sua irmã mais nova possuía no sótão, sem qualquer sombra de dúvida.
Escusado será dizer que os nunca encontrei.
As janelas, altas como portas, davam para o Jardim do Ultramar, separadas apenas por uma nesga de rua e um muro. Passava horas a atirar pão duro aos patos, a assistir a corridas e lutas pelos pedaços e a imaginar histórias mirabolantes, enquanto me deliciava com bolachas de agua e sal com colheradas generosas de doce de tomate.
O Tio Marcelino, dez anos mais velho, de 1900, como orgulhosamente apontava, partiu também dez anos mais cedo. A Tia Adelaide manteve-se ali, rija, enquanto as pernas lhe permitiram. Depois, com grande pesar de deixar o seu cantinho e os seus quadros de natureza viva, que se animavam mal abria as portadas, foi viver com familiares até chegar a sua hora.
Lembraram-me hoje de ir espreitar a casa da Tia Adelaide.
De cara lavada e com plástica bem conseguida, brilha naquele filamento antes parelepípedos escuros, agora clara e alegre calçada, como uma relíquia que finalmente viu luz.
Não passou sem emoção é verdade, mas acredito que, gaiteira e divertida como ela só, a Tia Adelaide iria achar a casa um palácio.
Para mim foi revisitar o palácio da saudade.
Tenho saudades da Clara.
Fomos boas amigas, colegas, companheiras de carteira e até cúmplices durante o liceu.
O meu pai chamava-a de Clara Gema do Ovo e sabia que era a melhor influência que naquela altura poderia desejar para mim.
A Clara era o que agora se chamaria uma “croma". Mediana de altura, cheiinha e com uns óculos redondos e grandes, tinha sorriso fácil, uma mente brilhante e uma acuidade artística fora de série. Qualquer tarefa para a qual a Clara se propusesse tinha a garantia da excelência da execução e do primor da conclusão.
As miúdas populares ressentiam-se com a atenção que os professores dispensavam à Clara pelo seu admirável desempenho a todas as disciplinas, com notas a alternar entre os 16 e os 20 valores. Eu não era uma miúda popular. Também não era uma croma. Balançava agilmente entre umas e outras; nunca tomei posição, mas sentia-me bem mais confortável com os cromos do que com a superficialidade que a popularidade confere.
Como todas as adolescentes, a Clara amou com ardor. Desenvolveu uma paixão platónica pelo grego Demis Roussos, exacerbada por uma possível falta de afecto paternal, de tal modo que lhe escrevia intermináveis cartas em tom de diário, contando cada segundo da sua vivência e do seu pensamento que não o abandonava nunca. Escrevia sempre que podia, em cadernos do liceu numerados que a acompanhavam para onde quer que fosse, aos quais acabei por perder a conta.
A Clara trazia consigo recortes de notícias, posters, tudo o que a imprensa nacional e estrangeira pré-revolução era autorizada a disponibilizar ao público jovem em Portugal. O meu primo Dietmar trabalhava na altura na editora da Revista Bravo e arranjava-nos muitas revistas com vários pósteres estupendos (cheguei a forrar a parede do meu quarto com pósteres, alguns de tamanho natural, como foi o caso do Alice Cooper e também do Mark Spitz, com as suas sete medalhas de ouro), muitos deles do Demis Roussos. Pelo liceu era normal ouvir o trautear de “We Shall Dance". Aos poucos conseguiu coleccionar-lhe toda a discografia. E assim a Clara era feliz.
Um belo dia em que levei para o liceu os meus fantoches feitos com colheres de pau, lã e restos de tecidos das costuras da minha mãe, nem sei bem a que propósito, prometi que lhe faria um Demis Roussous em pano, costurando o Titã lírico em escala reduzida, com um “colosso" bem microscópico. Foi uma risota pegada, mas nunca imaginou a Clara que eu cumprisse o prometido.
Foto do Google
Ahhh!! Que saudades do pernil de porco estaladiço servido em cama de sauerkraut e batata assada, com que te lambuzaste até mais não, acompanhado de colossais litradas de cerveja, trazida para as grandes mesas corridas em potentes púcaras de vidro grosso com uma pega de lado, pesadas,luzidias, douradas, prontas a serem erguidas sem esforço qual martelo do Deus do trovão, e dentro da tua boca, deixar escorrer suavemente para a garganta saboreando, contemplando mil prazeres...
Ahhh! Que saudades das intermináveis filas paras os WCs (a cerva assim o impunha) onde muita piquena e tanto homem de barba grossa não conseguiam aguentar a espera, e poças amarelas salpicavam o chão do recinto aqui e ali, secando ao ar frio e saturado de lúpulo, um odor que misturado ao das Bratwurst e da couve azeda era acre, enjoativo, fedorento.
Ahhh!!! Que saudades de sentires o vomitado do vizinho de trás, quente, nojento, repugnante, atingir-te como um jacto de visco fétido no teu cabelo, no teu pescoço, dentro da tua roupa, a escorrer pelas tuas costas.
Ahh!! Que saudades de teres finalmente uma sanita só para ti e olhares para ela e teres vontade de fugir a sete pés e de ir mi… urinar atrás duma tenda qualquer.
Ahh!! Que saudades de gastares dois pacotes de lenços de papel, não deixares nem unzinho para o fim e teres ficado naquele momento em que puxaste a cuequinha para cima com a clara ideia do que é ser-se incontinente.
Ahhh!! Que saudades, as de te sentires um odre de cerveja a rebentar pelas costuras e decidires ver a cidade bem do alto da grande roda! Qualquer perito forense teria um field day a colher infindas amostras de ADN de múltiplos dadores, anónimos, mas com a característica comum de estarem todos a cair de bêbados e bem acima do limite de álcool permitido por qualquer lei.
Ahhh!! Que saudades, as de contribuíres para a fluidez do chão da cabine que subia subia e rolava rolava, e de não teres qualquer tipo de lembrança da magnífica vista panorâmica sobre a cidade e o recinto da feira da festa.
Ahhh!! Que saudades de decidires "yodelar" como uma maluca "Ho-la-la-ee-ay-Ho-la-la-ee-ay", dares saltinhos ridículos e palmadas nas pernas, vá lá saber-se porquê...
Ahhh!! Que saudades de desatares aos gritos feito uma histérica quando dois teutões, pesados e cabeçudos, decidiram iniciar uma peleja com canecas de cerveja vazias.
Ahhh!! Que saudades de, bem tarde na noite, saíres do recinto e descobrires que te tinham rebocado o carro...
Ahhh!! Que saudades dos Polizei que te obrigaram a ficar na esquadra enquanto os teus familiares foram levantar o carro ao parque dos rebocados ...
Ahhh!! Que saudades de os teres mandado para todos os lados que te lembraste com a certeza cobarde de que te não entendiam...
Ahhh!! Que saudades de poderes fazer todas estas m%rdas sem caíres para o lado logo a seguir....
Ahhh!! Que saudades da autenticidade, ainda que afogada em birra da boa.
Foi num distante Setembro, numa Festa de Outubro... Ahhh!! Que saudades… !!
"O mais terrível é sentirmos a irreversibilidade do tempo. Que mesmo quando tudo se repete, já nada se repete, pela primeira vez. E que nós nos gastamos como borrachas na demorada corrosão das coisas. Um dia acordamos e já não é a primeira vez. A não ser quando a paixão nos diz que, nupcial e navegante, cada gesto de amor é sempre o primeiro."
A tia Mette sempre foi a nossa tia exótica. Dinamarquesa, casou com o meu tio Eduardo por duas vezes. Da primeira, de vestido branco, comprido, como manda a tradição. O cabelo curto e os dentes da frente ligeiramente encavalitados faziam adivinhar um espírito irreverente. Pelo menos nos anos sessenta de uma Lisboa onde as mulheres ainda andavam de saias e nem todas eram detentoras de carta de condução.
A tia Mette era para mim o cúmulo da sofisticação. Fumava longos cigarros SG gigante em pose de revista; à noite, na cozinha, segurava num copo de vinho de pé alto e brindava em dinamarquês com o meu tio e, sobretudo, conduzia o seu citroen com as mãos na parte de dentro do volante.
A sua casa combinava o melhor gosto das tradições portuguesas, com móveis de madeira nórdica, maciça, e algumas referências de pintura taitiana do seu bisavô – o pintor Paul Gauguin.
No Natal, ao contrário das árvores com bolas de todas as cores e fitas estridentes que povoavam as nossas casas, em casa da tia Mette havia sempre decorações de um bom gosto inédito. Claro que hoje sabemos que eram compradas no Ikea de Copenhaga, mas na altura sabíamos lá o que era o Ikea.
Como o aniversário de um dos meus primos é a 31 de Dezembro, passávamos sempre lá o ano em família. Os adultos à mesa, com talheres de um dourado baço a combinar com o serviço de loiça egípcio da minha avó, e nós, a miudagem, a correr pela casa, fazendo razias à árvore de Natal com velas verdadeiras acesas. Nem sei como nunca nos imolámos inadvertidamente.
Um dia, quando eu tinha uns doze anos, os meus tios desentenderam-se e a tia Mette pegou nos três filhos e em meia dúzia de malotes e rumou à Dinamarca.
Tive um desgosto tremendo e durante muitos anos lembrava-me desta tia com uma imensa saudade.
Passaram-se uma catrefada de anos e um dia fiquei a saber que o tio Eduardo e a tia Mette se iam casar outra vez. Parece que foram jantar fora um dia e que ela, arisca, lhe terá perguntado se ele queria ser seu amante. Reza a história que ele terá respondido que sim, mas só se ela se casasse com ele.
De maneira que foi assim que a tia voltou às nossas vidas. Um par de décadas mais velha, com mais meia dúzia de quilos, mas sempre com um sorriso e um piscar de olho que nos fazia saber o quanto gostava de nós.
Viveu em Portugal os últimos quinze ou vinte anos da sua vida, feliz, sempre de porta aberta para receber com pratos exóticos esta família que também era a sua.
Um dia, a dormir, chamaram-na do céu e lá foi ela, deixando-nos a nós outra vez cheios de saudades.
Lembrei-me disto tudo a propósito de uns enfeites de Natal que comprei no outro dia, iguaizinhos aos que ela costumava ter. Não sei se agora está no céu a evangelizar o Menino Jesus sobre a importância do sentido de humor, ou se só vive nos interstícios dos nossos corações mas, seja como for, desejo-lhe um Natal de arromba.
"Se nestas condições objectivamente favoráveis o Partido não alcançou nenhum dos objectivos políticos imediatos ao seu alcance - aumento substancial da votação nas listas do Partido e eleição de uma representação parlamentar - tal fica unicamente a dever-se à incompetência, oportunismo e anticomunismo primário do secretário-geral do Partido e dos quatro membros do comité permanente do comité central, que tudo fizeram para sabotar a aplicação do comunismo, do marxismo-leninismo, dos métodos de trabalho, do programa político e da linha de massas que sempre caracterizaram a vida e luta do Partido."
Deste o tempo de Durão Barroso que não via se via nada assim. Agora é que isto vai animar. O PS que ponha os olhos neles.
Longa vida ao camarada Espártaco! Rua com os sabotadores!
A Isabel já o disse, mas não faz mal reafirmar: a falta que faz. Hoje faria anos. Resta-nos o que nos deixou.
Faria hoje 44 anos.
Todos nós o tratávamos assim.
O Senhor Comandante, era sabido, gostava de doces e de contar as suas histórias.
Dizia ser um marinheiro que, afinal, acabara a ser piloto. Foi para a Marinha para não irritar a mãe, ela que não o queria lá no alto, a voar. Ele, já sabendo que podia ser piloto da Marinha, trocou-lhe as voltas.
As histórias são muitas: a vida fez-se com cinco filhos, nove netos, dois bisnetos. E foi uma vida com altos e baixos mas bonita. Não se pode dizer de outra forma.
Depois um Verão terrível, o senhor Comandante despediu-se, prometendo não morrer no dia do aniversário de um dos bisnetos ou da mulher. Morreu no meio. Os sentimentos são sempre contraditórios e é difícil ver a morte com bons olhos.
Vivemos, imediatamente depois da sua morte, momentos extraordinários: os primos juntaram-se para um almoço e discutiram tudo, a importância de manter a família unida, as receitas para a consoada e ainda a existência de som no espaço (parece que não há, dizem os meus primos!).
O meu filho mais novo salvou o natal inventando um personagem estranho chamado Dipak que falava inglês com sotaque e todos nos rimos e abraçámos. As minhas primas, de um lado, fizeram um livro com as fotografias e as histórias e textos do avô com design gráfico da mais nova. Todos nos ligámos ao Facebook, todos tentamos ir ao mural uns dos outros de quando em vez e colocar uma mensagem. Porque uns vivem no Algarve, outros em Inglaterra, porque o tempo tem voltas e revoltas. Hoje, o senhor comandante faria anos. Nós, os netos e bisnetos, tal como os filhos, brindamos com saudade. Mas com alegria. Por tudo isto, aprendi que se pode olhar a morte nos olhos e sorrir. Levemente.
Ontem, um dia tão triste, o director do JN escreveu na última página que aquela coluna em cinza, com a fotografia de Manuel António Pina no topo, não será ocupada por ninguém. De todos os gestos no âmbito dos jornais este foi o mais comovente. Defendi o mesmo face ao espaço que Eduardo Prado Coelho ocupou dez anos no jornal Público, ninguém quis saber. Manuel António Pina escrevia no JN há 30 anos. Ainda bem que há respeito, amor e, claro, saudade.