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Os dias continuaram a passar. Hoje já será a Missa de Sétimo Dia, mas não será seguramente por esta celebração que se regressará à normalidade. Os rituais podem ter o valor que lhes quiserem atribuir, neste caso, para mim, não passará disso mesmo. Cumprir um ritual. Para a minha memória será impossível voltar a haver uma vida normal.
A morte é desde sempre e em quaisquer circunstâncias um momento difícil para todos aqueles cuja vida se escora numa relação saudável com os outros. A quebra de um elo numa dessas relações, por muito suave que se vá processando, terá sempre um momento de ruptura inevitável. Não mais se poderá restabelecer, remediar.
A separação é irreversível. Do outro lado já não vem qualquer resposta. Apenas um silêncio dilacerante. Não há mortes fáceis, não há preparação possível, apesar de poder admitir que para alguns a conformação construída na fé e a esperança na Ressurreição possam amenizar a dor, dando-lhes o conforto necessário para aceitarem essa fatalidade.
Eu sei que terei sempre a memória, a recordação do seu sorriso sempre sereno, da candura do seu olhar, da infinita bondade de cada gesto seu, do seu desprendimento da materialidade das coisas. Sobretudo da ternura que transmitia a todos que com ela contactavam, quaisquer que fossem as circunstâncias.
Mas nada, rigorosamente nada alivia a imensidão da dor, ou é capaz de diminuir a profundidade da fenda que se abre e por onde nos vemos desesperadamente cair, apenas sentindo a vertigem do vazio, sabendo que não há regresso e que por aqui teremos de continuar, quantas vezes percorrendo caminhos que diariamente vão perdendo sentido. Até que também chegue a nossa vez.
É nestes momentos que as minhas dúvidas aumentam. De certa forma é-me inconcebível que o genial Criador, que a tudo deu forma, equilíbrio e sentido, colocando-nos nesta ínfima parte que habitamos de um Universo incomensurável, tenha resolvido o problema da morte sem curar da dor.
Para os crentes, que como ela consagram a vida aos outros, a partida é apenas o início de um outro percurso que os conduzirá à Eternidade, a um mundo paradisíaco e libertador, onde o Senhor os acolherá. Compreendo por isso mesmo que para esses, a perspectiva em que foram criados e educados os prepare e os faça aceitar a sua própria partida com esperança. Não sei se será mesmo assim; não me custa acreditar que sim. Nunca conheci ninguém que racionalmente tivesse estado do outro lado e que regressasse para me contar. Para me fazer acreditar. Para que eu pudesse ter uma outra fé.
Mas isso ainda será o menos. Só ao desconhecido é possível dar o benefício da dúvida, e por aí não tenho problemas em aceitar a visão de quem, como ela, tão convictamente, acreditava. Muito mais difícil será poder aceitar a existência desse Deus misericordioso perante o sofrimento inaudito, perante a dor dos que ficam. Como aquele que agora ali fica, aos 101 anos, perguntando-me "e agora o que vai ser de mim", ao fim de quase sessenta anos de amor, amizade, apoio mútuo, companheirismo. Como se eu estivesse em condições de lhe dizer alguma coisa, de lhe dar resposta às inquietações que o assolam.
De uma forma ou de outra todos sentimos a dor nas mais variadas circunstâncias desta vida que nos deram, e por onde vamos seguindo com maior ou menor dificuldade. Levamos a vida convencidos, e a convencermo-nos e aos outros, de que a dor é uma espécie de onda que vai e vem, e que de uma forma ou de outra acabará por passar. Bastará esperar. Esperar não custa, ouço dizer.
A mim, a dor custou-me sempre imenso. E nunca passou. E se não passou antes, pior seria agora. Eu já temia o dia de hoje.
Gostava que fosse de outro modo. Por mais que me esforce não consigo. Não se trata de um problema de fé quando se está perante uma evidência. Talvez se eu fosse um ateu convicto, não daqueles que fingem ser e acabam rezando às escondidas quando começa a relampejar, me fosse mais fácil perceber as coisas. Aceitar a dor, conformar-me com a partida de quem tanto amei e venerei em vida, de quem tanto deu, muito para lá dos limites do imaginável, não só a mim, a todos. Muitos deles desconhecidos.
Há muito que me resignara à ausência daquele bolo de S. Vicente que só ela sabia fazer, dos brownies genuínos, elásticos, quase espalmados, do seu arroz doce ou do pudim de pão. Nada disso era importante à medida que a sentia mais cansada. Não se lhe ouvia uma queixa, um lamento, um ai. Raramente lhe vi uma lágrima disfarçada escorrer pelo canto do olho.
Sentia-se-lhe sempre a tristeza, a desilusão, a decepção profunda perante a partida de alguém querido, que para ela eram todos, nas mais inesperadas circunstâncias, mas logo depois se refugiava resignada na sua própria dor e na devoção a Santo António. Até quando, apesar do esforço vão, repetia movimentos labiais tentando articular algumas palavras, para acabar ingloriamente por desistir sem que nós a compreendêssemos, uma vez conformada à sua sorte, ainda assim sempre feliz, sorrindo, quando nos via chegar. Porque tinha de ser assim, porque o Senhor sabia quando era chegada a hora de cada um, e a nós, simples terrenos e fiéis, só havia que aceitar. E continuar.
E ela continuou, a vida toda, sempre fazendo o que sempre soube quando as faculdades e as forças começaram a trair-lhe as rotinas. A mostrar aquele sorriso imensamente acolhedor, espalhando a ternura de sempre a quem chegava, fosse a quem diariamente cuidava dela, a quem arribasse para a visitar, ou a quem de muito longe lhe quisesse dizer algumas palavras através de um telemóvel, como tantas vezes eu fazia dos lugares longínquos para onde ia na minha ânsia de correr mundo. Sorriso aberto, são, quando via os filhos, os netos ou os sobrinhos chegarem, os amigos dela e os dos filhos, por vezes ainda meros conhecidos, semicerrando os olhos quando eu entrava e a beijava, para logo depois os abrir num largo, intenso, mas sempre sereno olhar de satisfação e permanente agradecimento, como se estivesse sempre em dívida para com o bem que lhe faziam. Como se ela precisasse de alguma vez agradecer alguma coisa nesta vida. Mostrando em todos os momentos uma razão para a generosidade, para a silenciosa bondade dos gestos que nos aproximam e nos confortam.
Tudo isso agora acabou. Quem cá fica e teve o privilégio de conhecê-la e de com ela conviver em todos os caminhos e lugares que percorreu recordá-la-á por aquele misto de doçura, ingenuidade e bondade que nos desarmava, penetrava e dilacerava ao fazer-nos ver a grandeza do seu altruísmo, da sua entrega generosa e permanente, mesmo quando nos recriminava por algo que disséramos ou que em seu entender ficara por fazer.
Dei-lhe sempre tudo o que pude, incapaz de poder retribuir-lhe o tanto que me proporcionou, e que tantas vezes me encheu a alma, me emocionou, me fez sentir o quanto me deu para me fazer sorrir, me confortar.
Quando hoje olho para trás e vejo o seu legado sinto-me imensamente pequenino. Como quando me abraçava e aconchegava junto a si. E de outro modo não poderia ser. Porque foi assim a vida toda. Até no momento em que a perdi. Há dias.
Talvez seja, então, essa a razão para que só me venham à cabeça as palavras de Borges, ainda mais quando choro confrontado com o inconformismo da sua ausência e a dimensão de uma dor de que esse vosso Deus se esqueceu de cuidar no momento da Criação.
Só a simplicidade da palavra do imortal Borges pode trazer um módico de justiça à sua memória. Depois de tudo o que recordo e vivi, da Mélita, minha Mãe, como tão bem o Drummond me recordou e confortou pela generosidade do Pedro, direi tão só o que um dia o grande Borges escreveu sobre a sua querida Buenos Aires: “tenho-a por tão eterna como o ar e como a água”.
Porque eternos também foram, e continuarão a ser, até ao dia em que a mim também me levarem, quem sabe se para ao pé dela, os abraços que a Mélita me deu.