Há trabalhos académicos a que falta a fluidez e a capacidade narrativa do bom jornalismo. E há textos jornalísticos a que falta o rigor e o aprofundamento temático que costumamos associar à investigação académica. O ideal é que rigor e fluidez de escrita surjam em simultâneo, embora isto suceda muito menos vezes do que se imagina.
Joana Reis, jornalista de política da TVI e doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica, supera este duplo desafio com assinalável sucesso num ensaio sobre a figura de Humberto Delgado centrado na campanha presidencial de 1958 sob o título Uma Campanha Americana. Arguta definição de um momento irrepetível na política portuguesa, quando a aparente solidez do salazarismo foi abalada até aos alicerces por uma figura que servira o regime nas três décadas anteriores.
Humberto Delgado fora um dos tenentes do 28 de Maio, pioneiro da Força Aérea portuguesa, o mais jovem general do seu tempo e um salazarista devoto. O fundador do Estado Novo confiou-lhe missões importantes e delicadas, como a negociação com Londres para a cedência da pista das Lajes, nos Açores, às forças aliadas em plena guerra mundial e a criação da TAP no ano em que o conflito bélico terminou. A troca de correspondência entre ambos revela uma relação próxima e até de relativa cumplicidade ao longo dos anos, com Salazar no papel de confidente das frequentes queixas do irrequieto oficial-general, em tudo oposto à deliberada placidez do ditador.
Por interesse próprio ou conveniência política, Salazar manteve Delgado longe do País durante os decisivos anos do pós-guerra. Primeiro no Canadá, onde representou Portugal na Organização da Aviação Civil Internacional, depois nos Estados Unidos, onde exerceu funções de adido militar e aeronáutico na nossa embaixada em Washington, membro do Comité de Representantes da NATO e chefe da missão militar nacional junto da Aliança Atlântica. Nessa década que decorreu entre 1947 e 1957, o antigo comissário-adjunto da Mocidade Portuguesa e ex-adjunto militar do Comando Geral da Legião Portuguesa alargou os horizontes políticos e converteu-se à democracia liberal. Esta metamorfose teria tradução prática no inesperado anúncio da sua candidatura à Presidência da República, em Abril de 1958 – a maior fenda jamais registada na muralha salazarista, que não voltou a ser a mesma.
28 dias na estrada
Joana Reis fez uma meticulosa investigação para sustentar a tese da “campanha americana” que dá título à obra. E fundamenta-a após ter passado em revista os discursos, as palestras e os apontamentos do general, as listas dos seus apoiantes em todas as regiões do País e até nas então chamadas províncias ultramarinas. Correspondência, relatórios, panfletos, artigos e recortes da imprensa portuguesa e estrangeira forneceram também base documental ao livro.
Salazar viria a chamar «génio da agitação» a Delgado, que virou o País do avesso nos 28 dias em que andou na estrada, ganhando o cognome de “General sem medo”. Nada comparável às anteriores campanhas da oposição, protagonizadas por vetustos militares que acabavam por desistir antes do escrutínio, alegando falta de condições políticas para chegar às urnas.
Uma Campanha Americana descreve em pormenor o contexto nacional e internacional da época, as complexas negociações de bastidores nas fileiras da oposição até o nome de Delgado se tornar consensual e a determinação do candidato para superar as infindáveis barreiras impostas pelo regime, incluindo a detenção de vários dos seus apoiantes às ordens da polícia política e a proibição do registo das acções de campanha na Emissora Nacional e na RTP. Ao ponto de não haver arquivos sonoros dos comícios captados por microfones jornalísticos e a única imagem televisiva do general, sem som, ser a do próprio momento em que votou, a 8 de Junho de 1958.
Campanha «de ar livre»
Mesmo com todas estas restrições, ele soube fazer a diferença. Enquanto o candidato oficial do regime, Américo Thomaz, se confinava a três sessões de esclarecimento à porta fechada no decurso da campanha, em Lisboa, Porto e Coimbra, Delgado percorria cidades em automóvel aberto ou de comboio, com paragens em diversas estações onde falava de modo espontâneo a quem acorria ao seu encontro.
Foi «uma campanha de ar livre, de estilo quase incendiário», como anota a autora, remetendo o leitor para a fonte de inspiração: as presidenciais norte-americanas de 1952 e 1956, protagonizadas com êxito pelo candidato republicano, Dwight Eisenhower – ele próprio um general. Delgado acompanhou estes processos eleitorais, enquanto residente nos Estados Unidos: foram momentos fundacionais do marketing político moderno, onde não faltavam banhos de multidão concebidos para a propaganda em cartazes, fotografias, filmes e programas televisivos.
Isto aconteceu então à modesta escala portuguesa. E a originalidade do livro – que tem por base a tese de doutoramento da autora, em 2018 – é detalhar a paradoxal influência americana num movimento em que socialistas e até comunistas ocupavam lugares de destaque. Estes últimos, cumpre sublinhar, só após ultrapassarem a aversão inicial que lhes merecia alguém a quem chegaram a chamar “General Coca Cola”.
Figuras tão diferentes como o jornalista Raul Rêgo, o escritor Manuel Mendes e a locutora da RTP Maria Armanda Falcão (mais tarde muito conhecida pelo pseudónimo Vera Lagoa) ocuparam postos destacados nesta campanha, inédita a vários títulos: foi a primeira em Portugal a incluir serviços de imprensa com ligação permanente aos jornais, a produzir comunicados a um ritmo diário e a contar com especialistas em escrever discursos, a que Delgado punha depois o seu cunho muito pessoal. Teve ainda sedes localizadas em locais estratégicos das maiores cidades (a de Lisboa estava a meio da Avenida da Liberdade, com um enorme retrato do general na fachada), edição de bilhetes-postais propagandísticos e pagamento de tempos de antena no Rádio Clube Português – neste caso de curta duração, devido às pressões políticas. Além de popularizar slogans de campanha, como «O medo acabou».
Tudo isto alicerçado em acções de angariação de fundos que já prenunciavam os movimentos actuais de crowdfunding para financiar movimentos sociais e políticos. Apesar de o candidato contar com donativos de conhecidos empresários e personalidades ligadas à banca, como Tomé Feteira, de Vieira de Leiria, e Cupertino de Miranda, de Famalicão.
«Para fazer as refeições ou pernoitar, Delgado escolhe ficar no melhor e mais conhecido hotel da região, o que indicia que se está perante um candidato de prestígio. (…) O facto de aparecer nas localidades num carro aberto, descapotável, a acenar à multidão, é também uma imagem recorrente nos líderes do século XX», anota a jornalista. Em certas cidades e vilas, esta imagem foi tão marcante que décadas depois o rasto da sua passagem ainda por lá perdurava na memória colectiva.
Humberto Delgado votando em 1958: único momento que a RTP documentou
No seu estilo impetuoso e teatral, Delgado jogava aqui a cartada de uma vida, surdo aos apelos à precaução. Em seu redor não faltava quem o aconselhasse a «manter um tom cauteloso e não radicalizar o discurso»: ele procedeu ao contrário, como ficou visível na conferencia de imprensa – também à americana – no café Chave d’ Ouro, a 10 de Maio, perante um batalhão de repórteres portugueses e correspondentes estrangeiros. Quando apontou, alto e bom som, a porta de saída a Salazar: se fosse eleito, «obviamente», iria demiti-lo.
Nada voltaria a ser o mesmo na vida deste homem tocado pela tragédia. De tudo isto nos fala também Joana Reis ao conduzir-nos estrada fora pela campanha que electrizou um país atónito. Contra ventos e marés – desde a oposição deliberada de governadores civis em ceder espaços para as concentrações políticas até à impossibilidade de fiscalizar cadernos eleitorais na maioria das mesas de voto. Onde o braço do regime afrouxou, os resultados reais vieram à tona: foi o caso do distrito de Santarém, onde Delgado obteve a melhor média percentual a nível nacional e até a vitória em vários concelhos (Alcanena, Almeirim, Alpiarça, Cartaxo, Rio Maior e a sede do distrito). Bastou o governador civil, engenheiro Castro Reis, ter cumprido o dever de isenção que a consciência lhe ditou, em raro exemplo de cidadania.
Como salienta a autora, num registo que permanece imune à tentação de proselitismo político ou ideológico, «não é possível determinar com exactidão os resultados oficiais das eleições presidenciais, dada a amplitude da fraude», iniciada no próprio recenseamento eleitoral. Mesmo assim, os números oficiais atribuíram a Delgado quase 25% neste escrutínio. No ano seguinte, com uma revisão constitucional de emergência, Salazar punha fim às eleições presidenciais por sufrágio directo. Já Delgado se exilara no Brasil.
«Eu ando sempre num carro descoberto, a mostrar-me. Não tenho medo de ser assassinado», declarou o general em entrevista ao Daily Mail publicada no auge da campanha, a 3 de Junho de 1958. Havia algo de premonitório nestas palavras de aparente desassombro. Como se adivinhasse que tombaria vítima de uma cilada cobarde, longe da multidão que o vitoriara nas ruas, menos de sete anos depois.
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Uma Campanha Americana, de Joana Reis (Tinta da China, 2019). 310 páginas.
Classificação: ****