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Delito de Opinião

Isto é serviço público

Pedro Correia, 22.11.21

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Última página da agenda de Salazar: 6 de Setembro de 1968

 

Celebre-se o arquivismo competente, ao serviço da investigação jornalística e da pesquisa histórica. É este o caso ontem justamente enaltecido nas páginas do Público: todas as agendas diárias de Salazar estão descodificadas e digitalizadas graças à diligência de uma arquivista chamada Madalena Garcia. 

São 1.781.004 palavras escritas durante 35 anos, entre 1 de Janeiro de 1933 e 6 de Setembro de 1968. Em 72 cadernos com cerca de 20 mil páginas, correspondentes a 13 mil dias. Num total de 9,3 milhões de caracteres e 4600 nomes diferentes ali registados.

Tudo agora enfim clarificado por quem, com paciência infinita, decifrou aquela caligrafia quase ilegível, aquelas abreviaturas enigmáticas, aquelas alusões que pouco dizem ao desprevenido leitor contemporâneo. Fruto de 16 anos de trabalho não consecutivos: os sete primeiros ocupados na leitura, inventariação, organização, classificação e transcrição, quando a arquivista trabalhava na Biblioteca Nacional; os restantes nove preenchidos com a reprodução integral das agendas, quando já se encontrava aposentada da Torre do Tombo, onde chegou a ser subdirectora.

Isto é serviço público. Parabéns a Madalena Garcia, exemplo de cidadania para todos nós.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 28.08.20

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Livro dois: Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares, de António Barreto

Edição Relógio d' Água, 2020

213 páginas

 

António Barreto destaca três figuras que deixaram marca no século XX português e justifica os motivos desta escolha em sucessivos blocos ensaísticos que nunca fogem da polémica. Os eleitos são António de Oliveira Salazar (1889-1970), Álvaro Cunhal (1913-2005) e Mário Soares (1924-2017). O primeiro, porque concentrou o poder quase absoluto durante quatro décadas consecutivas, moldando o País à sua vontade. O segundo, porque manteve o PCP durante meio século sob rígido controlo, impondo-lhe uma marca muito pessoal. O terceiro, porque rivalizou com o segundo na oposição ao salazarismo, sem destronar a hegemonia comunista neste combate mas vencendo-o no turbulento processo revolucionário pós-25 de Abril: protagonista no lançamento dos alicerces da democracia política em Portugal, foi primeiro-ministro e Presidente da República. «Estes três políticos viveram uns dos outros, porque viveram uns contra os outros.»

Não são olhares isentos nem descomprometidos. Barreto detesta Salazar e Cunhal, mantendo um indisfarçável apreço por Soares, com quem trabalhou como ministro no primeiro Governo Constitucional, e pertenceu ao núcleo central da sua campanha presidencial, em 1985.

As palavras mais agrestes estão reservadas ao antigo chefe do Governo e ao dirigente histórico comunista. Barreto, aliás, equipara-os em várias características: «Invulgarmente inteligentes, parece que detestavam os medíocres, mas estes foram-lhes indispensáveis. (…) O essencial, para ambos, era o seu próprio poder.» Mas nem Soares escapa ao crivo crítico do autor. No último capítulo, reservado ao fundador do PS, elege-o como herói da contra-revolução vitoriosa em 1976, mas critica-o na descolonização com a sua escrita acutilante que nunca perde elegância formal: «Queria simplesmente ver-se livre de África.» Em 1974 e 1975, sublinha, «os portugueses não negociaram coisa nenhuma, cederam, assinaram e vieram embora». Soares, ministro à época, viverá mal com esta memória até ao fim. Barreto testemunhou e cá está, felizmente, para nos lembrar.

 

Sugestão 2 de 2016:

Nada, de Carmen Laforet (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2017:

Singularidades, de A. M. Pires Cabral (Cotovia)

Sugestão 2 de 2018:

Deuses de Barro, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d' Água)

Sugestão 2 de 2019:

A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)

Uma fenda na muralha

Pedro Correia, 11.12.19

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Há trabalhos académicos a que falta a fluidez e a capacidade narrativa do bom jornalismo. E há textos jornalísticos a que falta o rigor e o aprofundamento temático que costumamos associar à investigação académica. O ideal é que rigor e fluidez de escrita surjam em simultâneo, embora isto suceda muito menos vezes do que se imagina.

Joana Reis, jornalista de política da TVI e doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica, supera este duplo desafio com assinalável sucesso num ensaio sobre a figura de Humberto Delgado centrado na campanha presidencial de 1958 sob o título Uma Campanha Americana. Arguta definição de um momento irrepetível na política portuguesa, quando a aparente solidez do salazarismo foi abalada até aos alicerces por uma figura que servira o regime nas três décadas anteriores.

Humberto Delgado fora um dos tenentes do 28 de Maio, pioneiro da Força Aérea portuguesa, o mais jovem general do seu tempo e um salazarista devoto. O fundador do Estado Novo confiou-lhe missões importantes e delicadas, como a negociação com Londres para a cedência da pista das Lajes, nos Açores, às forças aliadas em plena guerra mundial e a criação da TAP no ano em que o conflito bélico terminou. A troca de correspondência entre ambos revela uma relação próxima e até de relativa cumplicidade ao longo dos anos, com Salazar no papel de confidente das frequentes queixas do irrequieto oficial-general, em tudo oposto à deliberada placidez do ditador.

Por interesse próprio ou conveniência política, Salazar manteve Delgado longe do País durante os decisivos anos do pós-guerra. Primeiro no Canadá, onde representou Portugal na Organização da Aviação Civil Internacional, depois nos Estados Unidos, onde exerceu funções de adido militar e aeronáutico na nossa embaixada em Washington, membro do Comité de Representantes da NATO e chefe da missão militar nacional junto da Aliança Atlântica. Nessa década que decorreu entre 1947 e 1957, o antigo comissário-adjunto da Mocidade Portuguesa e ex-adjunto militar do Comando Geral da Legião Portuguesa alargou os horizontes políticos e converteu-se à democracia liberal. Esta metamorfose teria tradução prática no inesperado anúncio da sua candidatura à Presidência da República, em Abril de 1958 – a maior fenda jamais registada na muralha salazarista, que não voltou a ser a mesma.

 

28 dias na estrada

 

Joana Reis fez uma meticulosa investigação para sustentar a tese da “campanha americana” que dá título à obra. E fundamenta-a após ter passado em revista os discursos, as palestras e os apontamentos do general, as listas dos seus apoiantes em todas as regiões do País e até nas então chamadas províncias ultramarinas. Correspondência, relatórios, panfletos, artigos e recortes da imprensa portuguesa e estrangeira forneceram também base documental ao livro.

Salazar viria a chamar «génio da agitação» a Delgado, que virou o País do avesso nos 28 dias em que andou na estrada, ganhando o cognome de “General sem medo”. Nada comparável às anteriores campanhas da oposição, protagonizadas por vetustos militares que acabavam por desistir antes do escrutínio, alegando falta de condições políticas para chegar às urnas.

Uma Campanha Americana descreve em pormenor o contexto nacional e internacional da época, as complexas negociações de bastidores nas fileiras da oposição até o nome de Delgado se tornar consensual e a determinação do candidato para superar as infindáveis barreiras impostas pelo regime, incluindo a detenção de vários dos seus apoiantes às ordens da polícia política e a proibição do registo das acções de campanha na Emissora Nacional e na RTP. Ao ponto de não haver arquivos sonoros dos comícios captados por microfones jornalísticos e a única imagem televisiva do general, sem som, ser a do próprio momento em que votou, a 8 de Junho de 1958.

 

Campanha «de ar livre»

 

Mesmo com todas estas restrições, ele soube fazer a diferença. Enquanto o candidato oficial do regime, Américo Thomaz, se confinava a três sessões de esclarecimento à porta fechada no decurso da campanha, em Lisboa, Porto e Coimbra, Delgado percorria cidades em automóvel aberto ou de comboio, com paragens em diversas estações onde falava de modo espontâneo a quem acorria ao seu encontro.

Foi «uma campanha de ar livre, de estilo quase incendiário», como anota a autora, remetendo o leitor para a fonte de inspiração: as presidenciais norte-americanas de 1952 e 1956, protagonizadas com êxito pelo candidato republicano, Dwight Eisenhower – ele próprio um general. Delgado acompanhou estes processos eleitorais, enquanto residente nos Estados Unidos: foram momentos fundacionais do marketing político moderno, onde não faltavam banhos de multidão concebidos para a propaganda em cartazes, fotografias, filmes e programas televisivos.

Isto aconteceu então à modesta escala portuguesa. E a originalidade do livro – que tem por base a tese de doutoramento da autora, em 2018 – é detalhar a paradoxal influência americana num movimento em que socialistas e até comunistas ocupavam lugares de destaque. Estes últimos, cumpre sublinhar, só após ultrapassarem a aversão inicial que lhes merecia alguém a quem chegaram a chamar “General Coca Cola”.

 

Figuras tão diferentes como o jornalista Raul Rêgo, o escritor Manuel Mendes e a locutora da RTP Maria Armanda Falcão (mais tarde muito conhecida pelo pseudónimo Vera Lagoa) ocuparam postos destacados nesta campanha, inédita a vários títulos: foi a primeira em Portugal a incluir serviços de imprensa com ligação permanente aos jornais, a produzir comunicados a um ritmo diário e a contar com especialistas em escrever discursos, a que Delgado punha depois o seu cunho muito pessoal. Teve ainda sedes localizadas em locais estratégicos das maiores cidades (a de Lisboa estava a meio da Avenida da Liberdade, com um enorme retrato do general na fachada), edição de bilhetes-postais propagandísticos e pagamento de tempos de antena no Rádio Clube Português – neste caso de curta duração, devido às pressões políticas. Além de popularizar slogans de campanha, como «O medo acabou».

Tudo isto alicerçado em acções de angariação de fundos que já prenunciavam os movimentos actuais de crowdfunding para financiar movimentos sociais e políticos. Apesar de o candidato contar com donativos de conhecidos empresários e personalidades ligadas à banca, como Tomé Feteira, de Vieira de Leiria, e Cupertino de Miranda, de Famalicão.

«Para fazer as refeições ou pernoitar, Delgado escolhe ficar no melhor e mais conhecido hotel da região, o que indicia que se está perante um candidato de prestígio. (…) O facto de aparecer nas localidades num carro aberto, descapotável, a acenar à multidão, é também uma imagem recorrente nos líderes do século XX», anota a jornalista. Em certas cidades e vilas, esta imagem foi tão marcante que décadas depois o rasto da sua passagem ainda por lá perdurava na memória colectiva.

 

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Humberto Delgado votando em 1958: único momento que a RTP documentou

 

No seu estilo impetuoso e teatral, Delgado jogava aqui a cartada de uma vida, surdo aos apelos à precaução. Em seu redor não faltava quem o aconselhasse a «manter um tom cauteloso e não radicalizar o discurso»: ele procedeu ao contrário, como ficou visível na conferencia de imprensa – também à americana – no café Chave d’ Ouro, a 10 de Maio, perante um batalhão de repórteres portugueses e correspondentes estrangeiros. Quando apontou, alto e bom som, a porta de saída a Salazar: se fosse eleito, «obviamente», iria demiti-lo.

Nada voltaria a ser o mesmo na vida deste homem tocado pela tragédia. De tudo isto nos fala também Joana Reis ao conduzir-nos estrada fora pela campanha que electrizou um país atónito. Contra ventos e marés – desde a oposição deliberada de governadores civis em ceder espaços para as concentrações políticas até à impossibilidade de fiscalizar cadernos eleitorais na maioria das mesas de voto. Onde o braço do regime afrouxou, os resultados reais vieram à tona: foi o caso do distrito de Santarém, onde Delgado obteve a melhor média percentual a nível nacional e até a vitória em vários concelhos (Alcanena, Almeirim, Alpiarça, Cartaxo, Rio Maior e a sede do distrito). Bastou o governador civil, engenheiro Castro Reis, ter cumprido o dever de isenção que a consciência lhe ditou, em raro exemplo de cidadania.

 

Como salienta a autora, num registo que permanece imune à tentação de proselitismo político ou ideológico, «não é possível determinar com exactidão os resultados oficiais das eleições presidenciais, dada a amplitude da fraude», iniciada no próprio recenseamento eleitoral. Mesmo assim, os números oficiais atribuíram a Delgado quase 25% neste escrutínio. No ano seguinte, com uma revisão constitucional de emergência, Salazar punha fim às eleições presidenciais por sufrágio directo. Já Delgado se exilara no Brasil.

«Eu ando sempre num carro descoberto, a mostrar-me. Não tenho medo de ser assassinado», declarou o general em entrevista ao Daily Mail publicada no auge da campanha, a 3 de Junho de 1958. Havia algo de premonitório nestas palavras de aparente desassombro. Como se adivinhasse que tombaria vítima de uma cilada cobarde, longe da multidão que o vitoriara nas ruas, menos de sete anos depois.

 

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Uma Campanha Americana, de Joana Reis (Tinta da China, 2019). 310 páginas.
Classificação: ****

Desafio "Museu Salazar"

Cristina Torrão, 25.08.19

Vivendo no estrangeiro, estou um pouco de fora do teor desta polémica, embora já tenha lido algumas alusões pela net. Como sou uma apaixonada pela História (porque acho que só nos conhecemos, se conhecermos a nossa História) e como Salazar e o Estado Novo fazem parte da História de Portugal, decidi dar a minha opinião, principalmente, depois de ler o Editorial do “Público”, por Manuel Carvalho.

Tal como Manuel Carvalho, acho que um "Museu Salazar" não pode ser nunca uma homenagem branqueadora e normalizadora do ditador. Por outro lado, nas democracias não pode haver temas tabus, personagens apagados das fotografias ou lugares de esquecimento, porque isto também serve para branquear a História, apagando, ou fazendo por esquecer, aquilo que nos incomoda. Aliás, Portugal tem muita necessidade de trabalhar certos momentos da sua História de forma rigorosa e o mais objectiva possível.

Um "Museu Salazar" nunca deve ter como propósito homenagear um “grande homem” (como parece afirmar o autarca socialista de Santa Comba Dão), mas deve possuir o objectivo de educar e informar. Isso, sim, seria um centro interpretativo do Estado Novo. Aliás, o nome da instituição devia ser este, por exemplo, ou Museu do Estado Novo, em vez de "Museu Salazar".

Um museu, ou centro, deste tipo, além de fazer um retrato da vida de Salazar, devia, obrigatoriamente, incluir:

- Uma secção sobre a Censura à Imprensa, praticada durante todo o Estado Novo, com imagens de notícias censuradas e informações sobre que tipo de artigos o eram (porque não eram apenas os políticos, também se censuravam notícias de suicídios, por exemplo, ou de crimes familiares).

- Uma secção dedicada ao Tarrafal (com imagens e artigos, talvez vídeos, se os houver) e à perseguição dos comunistas e sindicalistas.

- Uma secção dedicada à PIDE e às prisões de Caxias e Peniche, também com imagens, documentos, descrição das torturas, testemunhos, etc.

- Uma secção dedicada ao assassinato de Humberto Delgado (e a outros crimes que se tenham cometido em relação a opositores do regime).

- Uma secção dedicada à guerra colonial, com fotografias (que não faltam) e, proponho também, vídeos que mostrem, por exemplo, os embarques das tropas, ou as mensagens de Natal que os combatentes enviavam, todos os anos, pela televisão.

Estas são as minhas sugestões. Os historiadores especialistas desta época teriam mais e deviam ser contactados. Para que se fizesse, em Santa Comba Dão, um verdadeiro Museu ou Centro Interpretativo do Estado Novo, que nos oferecesse uma visão aberta da História. De visita obrigatória para estudantes!

Será que o autarca socialista de Santa Comba Dão tem arcaboiço para tal?

Poderia Bolsonaro ser deputado do PS?

Tiago Mota Saraiva, 23.08.19

Miranda Calha - deputado eleito nas listas do PS à Assembleia Constituinte, à Assembleia da República nas I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X e XI legislaturas eleito por Portalegre, à XII legislatura eleito pelo Porto e à XIII legislatura eleito por Lisboa - subscreveu com mais 85 deputados do PSD e CDS-PP um pedido de fiscalização sucessiva da lei sobre o direito à autodeterminação da identidade de género. Miguel Morgado, o seu mais destacado promotor, tem vindo a defender que se trata do início de um combate contra a "ideologia de género" termo que, como se sabe, é uma criação da máquina de propaganda de Bolsonaro e enferma de um "ligeiro" problema de rigor científico sobre o qual não me deterei neste escrito.

 

Leonel Gouveia foi eleito em 2013, nas listas do PS, como presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão e é, como se sabe, o grande defensor da ideia que o Estado deve construir um Museu Salazar. Não sei se será a mesma coisa mas, para 2019, já anunciou a realização, com dinheiros municipais, da "requalificação da Escola Cantina Salazar em Centro Interpretativo do Estado Novo".


Sabe-se que, num e noutro caso, a posição oficial do PS é, como seria natural, contrária ao que estes dois destacados militantes defendem. Por outro lado, o PS sempre defendeu que é um partido que aceita a diversidade de opiniões e faz disso uma bandeira. Ora em boa verdade, em todos os partidos há diversidade de opiniões e de formas diferentes elas são, mais ou menos, expressas no espaço público ou no seio do partido. O problema destes dois casos, e haverá outros no PS, não é a sua opinião mas a partir de uma posição pública alcançada nas listas do partido tomarem uma posição política e ideológica (e não opinativa) antagónica e que não pode, nem deve, deixar de comprometer o partido.
Esta qualidade de que o PS se orgulha é uma liberalidade que desrespeita e descredibiliza o voto popular. Quantos votantes do PS no distrito de Lisboa gostarão de saber que o seu voto serviu para eleger um deputado que se juntou à luta contra a "ideologia de género"? Quantos militantes do PS, ideologicamente anti-fascistas, gostarão de saber que um presidente de Câmara eleito nas suas listas é o principal defensor do Museu Salazar?
Um partido não deve ser meramente uma agremiação e gestão de interesses diversos, nem deve ter representantes ou militantes que defendam tudo e o seu contrário. Se é certo que deverá haver margem, maior ou menor, para acolher a diversidade de opiniões em qualquer partido também há que definir limites e fronteiras que o PS parece não ter.
Daí a questão que lanço no título deste post: poderia Bolsonaro ser deputado do PS?

Leitura recomendada

Pedro Correia, 30.11.18

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A peça de capa da edição desta semana da revista Sábado, que nos traz uma surpreendente revelação pela pena de Maria Henrique Espada: os milhões gastos pelo Governo de Salazar para promover a imagem de Portugal nos EUA, nas décadas de 50 e 60. Vários jornais aceitaram de bom grado este bónus financeiro, começando pelo New York Times

 

A excelente entrevista do nosso Adolfo - apresentado como "carismático vice-presidente do CDS" - ao diário espanhol El Mundo. Começando pelo título: «No podemos ceder ante proyectos que mitigan la libertad». Eis outra frase que merece destaque: «Não gosto do identitarismo da esquerda populista nem do contra-identitarismo da direita populista.»

Verdadeira homenajem a um pulitico estraordiriamente honesto

João Villalobos, 26.01.18

 

Amanhã, membros da Nova Ordem Social homenageiam António de Oliveira Salazar. Bandeiras e tochas desfilarão até à campa do senhor e o hino nacional será cantado porque, como eles próprios afirmam, nacionalistas sem o hino nacional não faria sentido algum. Aqui vos deixo uma amostra dos comentários na página de facebook da N.O.S., compilada para divertimento de uns e preocupação de outros:

 

"Sou criticado aqui na minha zona por apoiar o tempo do Estado Novo e gostar do Dr. Oliveira Salazar . Mas nas minhas ideias e no meu corpo ninguém manda e agora até deixei o Bigode à Hitler . VIVA Salazar"

 

"Não gosto que tragam o Hitler á baila. Esse era um ser humano desprezível por favor. Se quer ter bigodinho a Hitler vai parecer um palhaço."

 

"Não quero entrar em pormenores com o senhor (...) mas tenho uma resposta . Gosto de andar como eu quero isto é andar vestido ou manivestar- me à minha maneira sempre fui Patriótica e continuarei a ser. De andar com o Bigode à Hitler claro que nada tem de mal . . Hitler e Dr. Oliveira Salazar eram Patriotas . Enquanto que todos mas todos os nossos politicos governantes são uns corruptos e traidores à Pátria tenho dito"

 

"Afinal Salazar não foi ditador mas um dos melhores economistas português onde viveu com Hitler guerra colonial e nossos economias transformou em barras de ouros e um Estado forte ! Hoje estes que se dizem democratas rebentaram com tudo !"

 

"Uma coisa é certa já faltou mais para aparecer um novo Salazar"

 

"Nao posso mas apoio esta verdadeira homenajem pois um pulitico estraordiriamente honesto nao como estes puliticos de agora. pois aquele ou aquela que aperecesse com riqueza. extra ia de imediato saber de honde vinha e nos povo deixavamos a porta da casa aberta e ninguem tirava nada havia respeito aonde esta hoje esse respeito preferia esse. tempo que o de agora. LADROES"

Jornalismo a sofrer de amnésia

Pedro Correia, 02.05.17

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 Paulo VI e Salazar: fotografia do Século Ilustrado, Maio de 1967

 

A asneira anda cada vez mais à solta nas redacções. Sem revisores de textos, sem editores com capacidade ou competência para detectar erros, com jornalistas cada vez mais impreparados, os periódicos debitam disparates a uma velocidade estonteante.

Enquanto leitor atento, vou anotando estes erros como reflexo condicionado de mais de duas décadas passadas a rever textos alheios em redacções de jornais. Devo confessar que nesta matéria já quase nada me impressiona. Mas ainda consegui arregalar os olhos de espanto ao ler na contracapa da última edição do Expresso um par de erros do tamanho da Sé de Braga. Numa notícia que encima a página, sob o título "Só Salazar não deu tolerância de ponto". A propósito da próxima vinda do Papa Francisco a Portugal.

 

Escreve o semanário fundado por Francisco Pinto Balsemão - em prosa anónima - que em 1967, quando pela primeira vez um Papa visitou Fátima, "o ditador recusou encontrar-se com Paulo VI, depois de o Papa ter recebido, em Roma, representantes dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas".

É difícil escrever tantos disparates em tão pouco espaço. Bastava o anónimo escriba do Expresso dedilhar na Rede para logo lhe aparecerem imagens do encontro entre Salazar e Paulo VI, que aliás forçou o então Presidente do Conselho a deslocar-se à Cova da Iria pela sua recusa de visitar Lisboa. Uma dessas imagens, muito conhecida, ilustra este texto.

 

De resto, jamais Salazar poderia irritar-se com a audiência papal aos dirigentes dos movimentos africanos (Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos) pois já estava fora do poder quando esse encontro ocorreu, a 1 de Julho de 1970 - mais de três anos após a vinda de Paulo VI a Fátima e precisamente 26 dias antes do falecimento do fundador do Estado Novo, substituído em Setembro de 1968 por Marcelo Caetano.

Se algo ainda pode conferir utilidade aos jornais é a capacidade de nos transmitirem conhecimentos ou avivarem a memória. Mas como poderá isso acontecer se as redacções andam cada vez mais ignorantes e amnésicas?

 

 

ADENDA: Toda a peça é lamentável, começando pelo título. Salazar não "deu" tolerância de ponto: decretou o dia 13 de Maio de 1967 feriado nacional. Como é do conhecimento generalizado, um feriado dispensa do trabalho muito mais gente do que a tolerância de ponto, destinada aos funcionários públicos.

Leituras

Pedro Correia, 13.09.15

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«Germanófilo Salazar nunca o foi e o Governo de Sua Majestade nunca deixou de o saber. Verdadeiramente anglófilo também não, mas pressente-se que não mentiu a Theotónio Pereira quando lhe escreveu que convinha a Portugal uma moderada vitória inglesa.

(...) Curiosamente, foi com a Alemanha recuando em toda a linha que as relações entre os governos português e inglês se crisparam seriamente, enquanto se estragavam as de Salazar com o seu embaixador em Londres [Armindo Monteiro]. Em causa estiveram, nos dois casos, os Açores; agravando-se o primeiro com a questão do volfrâmio que, já em Londres, dominou os últimos meses desse ano, transitando para 1944. (...) E então, muito embora já não pudessem invocar o perigo de uma antecipação alemã, [os aliados] encararam seriamente a hipótese de ocupar as ilhas sem darem qualquer pré-aviso a Portugal. Acerca disso, Churchill chegou a acordo com os americanos e a coisa só não terá ido por diante porque [Anthony] Eden, com o Foreign Office, e [Clement] Attlee (ou seja, o Partido Trabalhista) a isso se opuseram.»

Manuel de Lucena, Os Lugares-Tenentes de Salazar, pp. 45-46

Ed. Alêtheia, 2015

Outros tempos, outros costumes

Pedro Correia, 03.02.14

Em Dezembro de 1962, Salazar chamou o seu ministro do Ultramar - tido como uma das figuras mais reformistas do regime - e comunicou-lhe a intenção de alterar a linha de rumo seguida desde Abril de 1961 que levara, entre outras inovações, à abolição da lei do indigenato nos territórios então oficialmente designados por províncias ultramarinas.
"Nós acabamos de mudar de política", anunciou o presidente do Conselho.
"Então acaba de mudar de ministro", limitou-se a retorquir o interlocutor, que se chamava Adriano Moreira. Dito e feito: abandonou o Executivo e nunca mais reassumiu um posto governativo.
Hoje é possível mudar de política mantendo inalterado o elenco ministerial. Mais do que possível, é moeda corrente. Não faltam exemplos para o provar.
Imagem: Adriano Moreira em 1961, durante uma visita oficial a África como ministro do Ultramar

Leituras

Pedro Correia, 17.08.13

 

«Les positions sur l'avenir de l'Angola sont en revanche nettement divergentes. Kennedy souhaite [en Mai de 1961] que le général fasse pression sur Salazar afin que le Portugal se désengage en Afrique. De Gaulle refuse: toute intervention de cette sorte risquerait, à ses yeux, de déboucher sur du désordre au Portugal, voire l'établissement d'un régime communiste. De nouveau le dialogue de sourds recommence.»

Eric Roussel, De Gaulle II. 1946-1970, pp. 270-271

Ed. Perrin, Paris, 2006

Há 50 anos

Luís Menezes Leitão, 18.12.11

 

Faz hoje precisamente 50 anos sobre a operação Vijay, através da qual a União Indiana procedeu à tomada de Goa. Historicamente foi o início da queda do orgulhoso Império Português, que o regime de Salazar acreditava ser eterno. Goa não tinha à altura qualquer importância económica ou estratégica para Portugal, possuindo apenas um valor simbólico e cultural. Era por outro lado um território militarmente indefensável, pelo que só por obstinação o país poderia pretender conservá-lo após a declaração de independência da Índia.

 

A estratégia de Salazar em defender obstinadamente Goa representou por isso um irrealismo total, que não hesitou em pedir um sacrifício humano inaceitável. Salazar pretendia a morte de todos os militares portugueses em Goa, apenas com o fim de provocar uma condenação internacional da Índia. Ao mesmo tempo ordenou que fossem retiradas de Goa as relíquias de São Francisco Xavier, algo que seria traumatizante para os católicos de Goa.

 

O absurdo da estratégia de Salazar atingiu o ponto de solicitar ajuda à Inglaterra com base na antiga aliança para combater a União Indiana em Goa. Como se os ingleses que foram expulsos de toda a Índia fossem a seguir entrar em guerra com a Índia apenas por causa de Goa. Seria como se a Inglaterra fosse pedir a Portugal que entrasse em guerra com o Brasil se o Brasil decidisse invadir a Guiana Inglesa.

 

Perante esta estratégia absurda o governador Vassalo e Silva tomou as decisões que se impunham. Não aceitou conduzir os militares seus subordinados a uma morte inútil, nem devolveu a Portugal as relíquias do santo, uma vez que sabia perfeitamente que os goeses nunca lhe perdoariam se o fizesse. Tal valeu-lhe a fúria do regime, tendo ficado com a carreira militar destruída. Mas teve o devido reconhecimento dos habitantes de Goa. Quando uns anos mais tarde lá voltou, foi apoteoticamente recebido. Os goeses sabiam que tinha sido graças a ele que a libertação de Goa não ficou manchada por um banho de sangue.

De como Humberto Delgado recebeu um voto que não lhe estava destinado

Rui Rocha, 28.05.11

As eleições de 1958 tiveram, como se sabe, Humberto Delgado e Américo Tomás como protagonistas principais. O que já muitos não saberão é que não foi apenas o resultado final das eleições que foi condicionado pelo regime. Na verdade, o próprio recenseamento eleitoral estava longe, na prática, de abranger o universo dos potenciais eleitores (em 1974 o número de eleitores recenseados não chegaria a um milhão). Outro aspecto surpreendente, aos nossos olhos, é o de os boletins de voto não estarem disponíveis nas assembleias eleitorais, mas serem previamente distribuídos pelos eleitores. Como seria de esperar, o regime assegurou a impressão e a distribuição, porta a porta, pela GNR e pela PSP, dos boletins de Américo Tomás. A tarefa de imprimir os boletins de Humberto Delgado foi bem mais complicada, pois até conseguir papel com as características impostas em quantidade suficiente foi um obstáculo difícil de superar. Quanto à distribuição, esta foi feita de mão em mão, entre aqueles que não temeram ver o seu nome associado à candidatura do General. Neste contexto, e tendo em conta o ambiente geral de intimidação, o controlo da imprensa e a falta de rigor na própria contagem de votos, pode imaginar-se que Humberto Delgado tenha perdido muitos votos. Pois bem, estou em condições de afirmar que também ganhou um que não lhe estava destinado. Pelo visto, o meu Bisavô, homem de muito mundo e não poucas dificuldades, valorizava a ordem e a disciplina que Salazar impusera ao país. O meu Avô, por seu turno, era um homem afável como poucos naquela época. Trabalhador incansável, acumulava a arte de alfaiate com a gestão da mercearia da terra. Tanto riscava a fazenda com giz como servia copos de vinho pela noite dentro aos não poucos bêbados da aldeia. Independentemente da hora a que se deitasse, às cinco da manhã dava à bomba para retirar água gelada do poço com que tomava o seu banho diário e inadiável. Homem de visão, teve três filhas e, coisa também pouco comum à altura, todas estudaram. E se uma das minhas tias não obteve a licenciatura, tal sucedeu bem contra a sua vontade. Ora, o Avô Adriano, para além de muitas outras qualidades, era também um democrata. Mas, foi em vão que tentou convencer o meu Bisavô a alterar o sentido de voto. Cansado de argumentar, o Avô Adriano decidiu, em estado de necessidade, tentar alterar o curso inexorável da história recorrendo a outros métodos. Assim, na manhã das eleições, quando o meu Bisavô se aprestava a sair de casa para votar, o Avô Adriano chamou-o. Deixe cá ver esse casaco, que lhe dou uma passadela. Que sim, que não, que não vale a pena, que deixa estar, que vai melhor que isto não se vota todos os dias. Finalmente, o Bisavô tirou o casaco. O ferro a carvão já fumegava, prontinho para o deixar impecável. Aos pés do Avô Adriano, escondida pela mesa de alfaiate, estava uma catraia, a minha mãe, com um boletim de voto de Humberto Delgado na mão. E enquanto a mão do Avô Adriano empurrava o ferro, a mão da minha mãe entrava no bolso do casaco do Bisavô e substituía o boletim de Américo Tomás que lá estava, muito bem dobrado, à espera de ser depositado na urna. Ora aqui está, já que não muda de ideia, ao menos que vá  com a devida apresentação. Não mudo não rapaz, e melhor farias tu em mudar. E enquanto um e outro se iam entretendo a terçar os últimos argumentos políticos, a minha mãe já se dirigia à mercearia para se apropriar da laranjada que o pai lhe tinha prometido.

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 15.03.11

 

VIII — ANGOLA É NOSSA!

«Andar rapidamente e em força»

 

A 15 de Março de 1961, poucas semanas depois de ter estalado "oficialmente" a guerra em Angola, Lisboa assistia ao embarque no Niassa das primeiras tropas (quatro companhias de Caçadores) para reforçar a modesta guarnição angolana. Nesse dia, a União das Populações de Angola (UPA), de Holden Roberto, com apoio congolês, atacava brutalmente e de surpresa a região de Dembos, no distrito de Cuanza-Norte.

Era manhã. A estrada Luanda–Carmona, alargada e arranjada através de um investimento apreciável, continuava a ser em terra batida e ainda estava alagada e quase intransitável pelas chuvas fortes da época, à espera da estação do cacimbo que voltaria a secá-la e a alisá-la. O estado dessa longa "via do ouro" (pela qual transitavam muitas riquezas a caminho do porto de Luanda), encharcada e ladeada por matas espessas e cafezais extensos, não assustava os rebeldes negros: cedo, pelas 7 horas, já se movimentavam em direcção a Quitexe, onde não havia razão para que a sua presença nesse dia pudesse ser estranha. Uma hora antes, porém, começara a circular a notícia de que uma centena de homens tinham abandonado uma fazenda próxima e o chefe do posto administrativo decidira percorrer algumas roças da região para verificar se estava tudo normal.

 

As primeiras vítimas foram encontradas nessa ronda, em poucas horas: proprietários e famílias inteiras, bem como empregados e criados, jaziam em poças de sangue, mortos à catanada. Os grupos rebeldes perseguiam os que procuravam fugir, armar-se ou pedir socorro. Muitos empregados, previamente recrutados em segredo pelos revoltosos, foram os próprios carrascos dos patrões; os que não pertenciam aos rebeldes, tombavam também com os brancos. Propriedade atrás de propriedade, homens, mulheres e crianças, brancos e negros, foram procurados, apanhados, violados e degolados ou retalhados.

A Quitexe seguiu-se Nambuangongo, que ficava mais isolada e que, por isso, a UPA reivindicou como seu quartel-general. A chacina prolongou-se por outras povoações da região e passou de Dembos a Uíge e à zona fronteiriça com o Congo ex-belga. Pelo caminho, eram destruídas pontes e assassinados os chefes de posto e as mulheres e filhos. A falta de forças policiais, de pistas de aviação e de unidades militares impediu praticamente qualquer reacção à escala.

 

Há quem afirme que agentes da CIA apoiaram discretamente Holden Roberto, com os EUA a alimentar sonhos de petróleo angolano. Há igualmente quem afirme que a acção envolveu uns 200 mil rebeldes, para os quais o alvo era uma comunidade com cerca de 50 mil brancos. A verdade é que a rebelião irrompera do Congo, em grande parte, e a surpresa da operação, preparada fora de portas com a ajuda do exército congolês, permitira que as vítimas fossem facilmente cercadas.

O massacre espalhou o terror por todo o Norte de Angola, em poucos dias transformado num mar de sangue. O resultado da chacina impiedosa e de invulgar violência nem sequer serviu os interesses a prazo de Holden Roberto ou foi útil para a UPA. Contudo, o saldo de milhares de pessoas barbaramente mortas e mutiladas não se adivinha no comunicado oficial de 17 de Março que foi publicado pela imprensa angolana: «Verificaram-se na zona fronteiriça do Norte de Angola alguns incidentes a que deve atribuir-se gravidade por demonstrarem a veracidade de um plano destinado a promover actos de terrorismo que assegurem, a países bem conhecidos, um pretexto para continuarem a atacar Portugal perante a opinião pública internacional (...) Chegaram a Luanda alguns feridos que foram carinhosamente recebidos, e toda a população de Angola demonstra a mais clara determinação em colaborar com as autoridades (...)»

 

A comunidade internacional criticava Portugal e o salazarismo fingia ignorar o que todos sabiam há muito que ia passar-se. Assim, o Estado Novo reagia sempre tarde e mal. Mesmo quando Salazar se dirigiu ao País e tirou partido da indignação popular para promover a situação intocável de Angola através da sua defesa militar, dizer que «andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão» não evitou milhares de mortes nem pôs a salvo muitas famílias que tombaram cruelmente sem direito a qualquer protecção.

Já a 20 de Fevereiro a Libéria pedira uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU para apreciação do caso angolano. Nesse mesmo dia 15 de Março, a reunião urgente terminava com uma moção a condenar a situação em Angola e a política portuguesa que a conduzia, moção essa que foi pela primeira vez votada simultaneamente pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Mas a guerra vai ser longa e revigora o salazarismo, que entende fazer peito não apenas aos EUA e URSS, como também às Nações Unidas. No isolamento de Portugal que se acentua, a marcha Angola É Nossa! há-de tornar-se uma espécie de hino angolano em tempo de guerra, só que cantado apenas do lado colonial.

 

Imagens

· Angola, 1961: elementos da Juventude da UPA

treinam com armas

· Vítimas do massacre de 15 de Março

· Manchete d' O Século (Março de 1961)

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 04.02.11

 

VII – COMEÇA A GUERRA COLONIAL

"O assalto às prisões de Luanda"

 

A 4 de Fevereiro de 1961, uma conjugação de acontecimentos em Luanda volta a abalar o Estado Novo. Desta feita, o abalo é para durar: formalmente, marca o início da longa guerra que Portugal vai travar nas colónias africanas, a que o regime vai chamar Guerra do Ultramar (para dar sentido ao fim da designação de "colónias" e à sua consagração, irrelevante, como "províncias ultramarinas"). A data é tão importante para Angola que o aeroporto de Luanda, depois da independência, vem a receber o nome de Aeroporto 4 de Fevereiro.

O conjunto de acções vulgarmente apelidado como "o assalto às prisões de Luanda" refere-se ao ataque concertado levado a cabo naquela cidade a 4 de Fevereiro, por militantes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), contra a Cadeia de S. Paulo, a casa de reclusão militar, uma esquadra ou posto policial, as instalações da Emissora Oficial de Angola (Emissora Nacional) e outras repartições públicas.

 

A iminência de uma guerra inevitável já é sabida em Lisboa, naquela altura. Esse dia 4, de resto, não parece que tenha sido escolhido ao acaso: apesar do desfecho do "assalto ao Santa Maria" em terras do Brasil, na véspera, ainda muita gente espera que Henrique Galvão acabe por conseguir levar o paquete até Angola e, por isso, há uma quantidade de repórteres de vários países em Luanda, prontos a cobrir esse caso.

Tudo indica que é a possibilidade de ampla cobertura internacional que despoleta a acção do MPLA, interessado em ganhar visibilidade. A decisão tem de ser tomada rapidamente, para assim aproveitar a presença favorável de diversos órgãos de comunicação social estrangeiros.

 

É impossível escamotear a ligação entre a acção em Luanda e a revolta prolongada e mal pacificada na Baixa do Cassange, onde os negros que trabalham na cultura do algodão da poderosa Cotonang (luso-belga) se manifestam desde o início do ano contra as condições impostas e os salários. Ainda em Janeiro, à greve dos indígenas no Cassange contrapõe-se a força de militares e polícias mobilizados para essa região e que os perseguem por ar e por terra. Os tumultos agudizam-se e o regresso à normalidade — apenas aparente — dá-se à custa da chacina de muitos revoltosos e seus familiares, fuzilados entre os supostos cabecilhas da revolta.

A Baixa do Cassange é influenciada pela região vizinha do ex-Congo Belga, país já independente desde 30 de Junho do ano anterior, onde também se estendem  as imensas plantações de algodão que exploram mão-de-obra intensa e com obrigações que são praticamente impossíveis de cumprir. Com a deslocação de efectivos militares e policiais para controlar os protestos no Cassange, Luanda é uma cidade pouco segura nesse momento. A segurança precária e a presença de jornalistas estrangeiros são os aspectos determinantes, mas o primeiro objectivo do assalto às prisões consiste em soltar dirigentes do MPLA que estão presos.

 

Além de diversos atacantes mortos nesse 4 de Fevereiro, do lado oposto perdem também a vida um cabo do Exército e sete agentes policiais. O funeral destes em Luanda culmina em mais violência: previamente armados, vários elementos da população branca perseguem os indígenas pelas ruas da cidade e arredores, matando muitos deles (há quem fale em três mil mortos).

Estas feridas abertas juntam-se às hostilidades mais antigas. De acção em acção, de resposta em contra-resposta, estão traçados os contornos de uma guerrilha que opõe, numa visão grosseira, colonos e negros ou brancos e indígenas, sujeitos a um estatuto oficial que não concede igualdade de cidadania às duas partes. Lá no fundo, cresce e persiste a vontade de libertação, consubstanciada no direito à autodeterminação reivindicado pelos líderes, muitos deles possuidores de preparação intelectual e académica obtida em território continental — na velha Metrópole, que acorda tarde para a necessidade de ter quadros superiores no seu Ultramar.

 

A guerra colonial há-de estender-se à Guiné, em 1963, e a Moçambique, em 1964. Vai durar longos anos e, em certa medida, como que acaba por fornecer uma inesperada legitimidade ao salazarismo, que sai reforçado ao aproveitar para unir os portugueses, tanto quanto possível, em torno de uma causa nacional de relevância óbvia. Por outras palavras: há muito que não há uma causa que justifique o prolongamento do regime e essa defesa do solo pátrio vem dar um novo fôlego (apenas interno, que não externo) à manutenção do Estado Novo. Tratando-se de operações de guerrilha, é de fraca precisão tentar saber quem ganha ou quando e onde se ganha. Só se sabe que Portugal apresenta o maior esforço de guerra europeu no pós-Guerra e que, à época, as antigas colónias africanas pertencentes a países da Europa estão a obter a sua independência a bom ritmo.

O nosso país (leia-se: o regime) não quer abdicar dos territórios do velho Império, mas o quadro social muda substancialmente a partir de 1961. Por um lado, a emigração (clandestina ou "a salto") tem mais uma razão de ser: fugir à guerra, o que significa recusar o cumprimento do serviço militar obrigatório. Por outro lado, as famílias portuguesas absorvem um novo ritual: a despedida dos seus filhos, pais, irmãos e maridos que embarcam no cais de Alcântara, o drama do adeus aos soldados que partem. Muitas vezes, é o último adeus.

 

Imagens

· Luanda: o Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro

· Monumento angolano aos Heróis do 4 de Fevereiro

· Placa com palavras de Agostinho Neto alusivas

à fundação do MPLA em 1956

· Primeiro dístico (raro?) do MPLA (integralmente

escrito em francês)

· Funerais em Luanda após o 4 de Fevereiro

· Embarque de tropas no Tejo

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 03.02.11

 

VI – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (5)

(conclusão)

A 3 de Fevereiro de 1961, antes do desembarque no Recife, os passaportes dos passageiros portugueses e espanhóis do Santa Maria são carimbados com um visto assinado por Henrique Galvão e um selo do grupo rebelde, o DRIL, «numa cerimónia bem-humorada» e «sem qualquer formalidade», mas apenas porque «fará irritar certamente os funcionários de Salazar» (Henrique Galvão, O Assalto ao "Santa Maria").

Nesse derradeiro momento, vê-se que Galvão conserva a preocupação de deixar uma boa impressão e quer descontrair aqueles com quem andou no mar treze atribulados dias.

 

A edição da revista Paris Match de 4 de Fevereiro sai para todo o mundo com uma reportagem amplamente ilustrada de 12 páginas. Na capa, dedicada por inteiro ao caso, a chamada para o «Exclusivo – A bordo do Santa Maria – Fotos e relato» é completada assim: «La fantastique aventure de Galvao et des pirates de la révolution». No interior, lê-se: «Désormais sur le paquebot de luxe règne l'aventurier de la révolution: Galvao». Referindo-se ao encontro com aquele a quem chama "aventureiro", o jornalista descreve-o como um «adversário severo do presidente que governa Portugal há mais de 30 anos», um «capitão, autor dramático, deputado e evadido da prisão» e um «homem desesperado de 65 anos que fez a entrada mais espectacular no palco do mundo».

Sobre o paquete, diz que «o palácio flutuante era o "primeiro pedaço da pátria libertada"». A revista transcreve o que Galvão comunica quando se dirige aos passageiros no pequeno-almoço «dans les salles à manger où fument le thé et le café habituels», após assumir o comando do navio: «Mesdames, messieurs, vous êtes désormais sur une parcelle de Portugal libre... Nous ne nous rendrons à personne, mais nous nous portons garants de vos existences et même de votre confort...» Convenhamos que, apesar da forçada mudança de planos no início da acção — para desembarcar os feridos em Santa Luzia — a simbólica declaração de liberdade resulta em pleno: o golpe mais rude para o Estado Novo não é o desafio a Salazar, mas o velho regime passar a ser alvo de uma azeda atenção mundial.

 

O Santa Maria deixa o Recife no dia 7 para regressar a Lisboa e entrar engalanado no Tejo a 16. A 17, quando atraca perante uma multidão no cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, é recebido por Salazar em pessoa. "Obrigado, portugueses" — diz o presidente do conselho. "O Santa Maria está connosco." No mês seguinte, o paquete passa de novo a operar e, sete anos depois, é alvo de uma boa remodelação e faz cruzeiros à Madeira, Canárias e Caraíbas.

Em 1973, ao sair do Tejo para uma viagem, o navio sofre uma avaria e já não parte. A desfocada visão da época (aliada a um regime político fechado) só tem olhos para o crescimento da aviação comercial e não percebe o caminho favorável que leva o mercado dos cruzeiros de luxo. Assim, é desperdiçado o potencial do Santa Maria, apesar do seu requinte e de ainda não ter 20 anos. Em resultado dessa falta de visão, o paquete é vendido a um sucateiro naval de Taiwan, onde acaba desmantelado. (O filme Assalto ao Santa Maria, de Francisco Manso, estreado em 2010, recorre ao navio-hospital Gil Eanes, no qual se introduzem alterações cénicas no convés para o efeito.)

 

Henrique Galvão fica a viver no Brasil. Continua a escrever e a encontrar-se com alguns opositores de Salazar, sempre na mira de conspirar contra o regime, e conserva uma ideia: ver Portugal longe do salazarismo e do comunismo.

Mentor e líder da "Operação Dulcineia", a qual fica nos anais da acção política pela insólita tomada de meios aeronavais, acaba por não assistir ao enterro do Estado Novo. Morre exilado em São Paulo, a 25 de Junho de 1970, aos 75 anos, com a doença de Alzheimer.

 

Imagens

· Capa e página interior da Paris Match de 4 de Fevereiro de 1961

· Recife: Galvão e Delgado (no canto inferior direito) deixam o paquete

· Fotografia de Henrique Galvão na Paris Match

· Na ilha de Santa Luzia: lancha do Santa Maria que transportou

dois feridos, acompanhados por cinco tripulantes,

e cuidados hospitalares aí recebidos

· Regresso a Lisboa: o Santa Maria atracou engalanado em Alcântara

· O Assalto ao Santa Maria foi realizado por Francisco Manso

· Henrique Galvão ficou exilado até morrer, com 75 anos, em 1970

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 02.02.11

 

V – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (4)

(continuação)

A 2 de Fevereiro de 1961, o Santa Maria dá entrada e fica ancorado no porto de Recife. Há centenas de jornalistas a cobrir o caso, o que chama a atenção da comunidade internacional para o regime político instalado em Portugal. Paralelamente, quem está também no Recife é Humberto Delgado, que chegara ao paquete na véspera, no barco de pesca alugado por repórteres da Time e da Life. A presença de Delgado e a maneira como ele quer sobressair gera grande desaguisado entre os rebeldes espanhóis, já crispados pela evidente liderança portuguesa da operação.

Dias antes, o francês Dominique Lapierre, jornalista do prestigiado semanário francês Paris Match, está nos EUA quando se sabe do caso na sede da revista. Recebe dez mil dólares (montante então apreciável) e instruções para voar para o Recife, a fim de obter toda a história da "Operação Dulcineia" da boca do próprio Henrique Galvão — e em exclusivo.

 

Ao chegar ao Recife, com o paquete ainda a movimentar-se ao largo da costa, Dominique Lapierre calcula que encontra aí um milhar de enviados especiais em reportagem e fica aflito. "Pela primeira vez vi um jornalista chinês!" — diz ele mais tarde. Acompanhado pelo fotojornalista da Paris Match Gil Delamare, percebe que tem de improvisar: aluga uma avioneta e toma parte entre os poucos que vão com antecedência ao encontro do paquete. Delamare até se lança do pequeno avião para fazer as primeiras fotografias e é recolhido da água pelos norte-americanos. Deste modo, já faz tempo que estão instalados a bordo quando começam a subir ao barco muitos outros repórteres.

Lapierre tem apenas de continuar a ser imaginativo para ganhar a confiança de Henrique Galvão e obter o exclusivo para a revista. Entrara disfarçado de bombeiro e não perde tempo ao avistar Galvão. Estende-lhe a mão e dispara: "Tem aqui dez mil dólares para a sua causa." É assim que combinam encontrar-se numa cabina previamente destinada ao jornalista, onde este recebe do "pirata" português o relato pormenorizado da operação e a garantia do exclusivo (o que interessa a ambos, afinal). "Foi um exclusivo mundial" — conta Lapierre. "Falou um francês sublime durante toda a noite. Via-se que era um fidalgo."

 

Salazar mandara agentes da PIDE e membros da Legião Portuguesa para o Recife: não podem actuar, mas podem ser úteis. Durante a noite daquela entrevista, alguns homens da PIDE estão já a bordo e mantêm-se à escuta do lado de fora da porta da cabina até às tantas da madrugada. No final, quando os dois saem para comer qualquer coisa, Lapierre mostra receio pelo perigo de serem surpreendidos pelos agentes, mas Galvão tranquiliza-o com ironia: "A polícia secreta de Salazar tem horários de funcionário público."

O jornalista há-de recordar essa e outras passagens da conversa que mais o impressionaram, entre as quais a descrição do momento em que Henrique Galvão tinha mudado o nome do paquete. «Os passageiros estavam a tomar o pequeno-almoço quando ele falou aos microfones e disse: "Tenho a honra de vos informar que não estão mais no Santa Maria, mas no 'Santa Liberdade'."»

 

Os passageiros começam a mostrar-se nervosos e a tripulação está a ficar tensa. Já é dia 3 e ainda se sucedem as negociações entre os rebeldes e as autoridades norte-americanas (com o vice-almirante Allen Smith à cabeça) e brasileiras. Henrique Galvão está a assegurar que o desembarque e a entrega do navio hão-de correr pelo melhor. Sobretudo, apesar da impaciência de muitos passageiros, está a fazer render o tempo, não só para que o novo governo brasileiro entre plenamente em funções, mas também para deixar que continue a haver despachos noticiosos e reportagens para toda a parte.

Por fim, chega a hora de desembarcar os passageiros e, a seguir, a tripulação. O navio é entregue às autoridades do Brasil, que o devolvem aos representantes de Portugal: um comando e elementos da Legião Portuguesa entram a bordo nessa noite. Por seu lado, Galvão e Delgado sentem-se satisfeitos: acreditam ter provocado os estragos possíveis ao salazarismo e alertado a comunidade internacional para a realidade política que vigora em Lisboa. Pela mão de Lapierre, uma conhecida revista francesa vendida em muitos países está prestes a confirmar isso mesmo.

(continua)

Imagens

· O Santa Maria ancorado no porto de Recife

· O paquete (duas fotos) ao largo da costa de Pernambuco

· 'Santa Liberdade': os rebeldes conservam o novo nome até ao fim

· Recife: Galvão em dois momentos das negociações a bordo

(o vice-almirante Allen Smith à esquerda)

· Momentos (duas fotos) do desembarque dos passageiros

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 25.01.11

 

IV – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (3)

(continuação)

A 25 de Janeiro de 1961, o Santa Maria já navega há quatro dias conduzido pelos seus sequestradores quando é avistado e contactado pela primeira vez. O alerta é dado por um avião de patrulha dos EUA sobre as Caraíbas. Sobrevoado e intimado para se dirigir a Porto Rico, por haver mais de três dezenas de norte-americanos a bordo, o capitão Henrique Galvão faz saber que recusa ser tratado como pirata e receber ordens de estrangeiros. Porém, já há navios de guerra a interceptá-lo.

Como já pedira à ONU e a Washington o reconhecimento do estatuto de "rebeldes políticos em guerra" e pretende ampliar a visibilidade internacional que o move, Galvão responde que quer dar uma conferência de imprensa internacional a bordo, mas sem jornalistas portugueses e espanhóis.

 

O paquete continua a navegar — com as luzes apagadas à noite, para se confundir com um cargueiro — e não há tensão por parte dos tripulantes e passageiros, que estão a colaborar pacificamente com os seus "piratas": «passam-se filmes nos cinemas, que são bastante frequentados», enquanto «nos salões, com as cortinas corridas, as orquestras do navio tocam e os passageiros dançam», e «o nosso grupo» mantém-se «sempre nas melhores relações com a tripulação» (Henrique Galvão, O Assalto ao "Santa Maria"). É um quebra-cabeças para as autoridades em terra, pois ninguém entende se o navio se dirige para o Brasil, Angola, Cabo Verde ou outro lugar. Portugal aposta em Cabo Verde e mobiliza para aí meios aéreos e navais no dia 26, mas o paquete, a 27, parece rumar ao Recife (Brasil).

No mesmo dia, o poeta angolano e activista político Mário Coelho Pinto de Andrade (1928–1990), presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), emite uma declaração a dizer que a luta pela libertação das colónias é independente dos planos de Galvão e Delgado para pôr fim à ditadura.

 

Henrique Galvão percebe que começa a ser encarado como rebelde quando é informado de que os comandos navais dos EUA pretendem negociar com ele. Vendo-se respeitado de acordo com as circunstâncias, aceita receber um representante em mar aberto e coloca a condição de ser escoltado e protegido. Comunica também a Humberto Delgado que, até aí, a operação está a ser bem sucedida.

Depois de negado um pedido de asilo enviado ao Congo, que manifesta já ter problemas internos que cheguem, o Santa Maria continua a aproximar-se do Brasil, seguido por meios aeronavais dos EUA. Com a falta de colaboração de outros países (excepto a Espanha), Portugal continua a desenvolver palpites e a proceder a buscas em vão, que se prolongam pelo dia 28.

 

Não há dúvida: Washington está a velar pelos 34 norte-americanos a bordo e quer evitar qualquer ataque que os ponha em perigo, eventualmente ordenado por Salazar ao saber do paradeiro do paquete. Portanto, os EUA não estão a informar Lisboa, que demora a ficar ao corrente dos acontecimentos. Entretanto, a 29 e já em águas brasileiras, a audácia de alguns jornalistas leva-os a chegar ao barco em primeiro lugar. Um deles é o activista comunista português Miguel Urbano Rodrigues, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, exilado depois de trabalhar no Diário de Notícias e no Diário Ilustrado.

Sempre escoltado pelos norte-americanos, o navio aproxima-se definitivamente da costa de Pernambuco e, a 30, está a posicionar-se em frente ao Recife. Galvão faz contas, pois sabe que precisa de esperar pela substituição de Kubitschek de Oliveira — que actuaria conforme a vontade de Salazar — por Jânio Quadros, cuja tomada de posse está marcada para o dia seguinte. A bordo, a vida continua descontraída: além do menu para o jantar do dia 30, prepara-se uma festa de despedida; não falta quem se tenha colocado ao lado dos rebeldes e já se dá como certo que o desfecho do golpe está para breve.

 

Salazar fica furioso quando toma conhecimento de que o Santa Maria, no dia 31, está ancorado ao largo do Recife e que Galvão recebe a bordo, ainda de madrugada e com honras militares, o vice-almirante Allen Smith, com quem conferencia e que se faz acompanhar por outras individualidades (incluindo o elemento para os assuntos políticos da embaixada dos EUA no Rio de Janeiro e o cônsul no Recife), além de vários jornalistas. Confirma-se formalmente que o estatuto reivindicado pelos rebeldes é reconhecido pelos EUA e pela comunidade internacional em geral.

Galvão ainda não está informado, mas o dia 31 de Janeiro é muito complicado em Portugal e não só por causa do Santa Maria: o governo não reconhecera a eleição democrática da direcção da Casa dos Estudantes do Império e enfrenta uma agitação estudantil, o jornal República é suspenso e, como se não bastasse, estala uma revolta do MPLA na Baixa do Cassange, onde a situação se encontra muito instável desde os primeiros dias do ano.

 

A ira de Lisboa ainda cresce mais a 1 de Fevereiro, por saber que o novo presidente Jânio Quadros faz chegar a Henrique Galvão uma mensagem de boas-vindas e de solidariedade democrática, com a total disponibilidade para conceder asilo político no Brasil a todos os rebeldes. Quadros e Galvão já se conheciam e tinham estado juntos na Venezuela no ano anterior.

No dia seguinte, o paquete dá entrada no porto de Recife. O mentor da arrojada operação entende que esta tem de ficar por ali. Sem dinheiro para reabastecimentos e com asilo político garantido em terra amistosa, basta-lhe assegurar o maior eco possível através da comunicação social internacional. A imprensa britânica, bem informada, já está a influenciar a opinião pública interna e externa com este desafio ao salazarismo, mas pode atrair-se maior atenção graças à presença dos muitos jornalistas enviados a Pernambuco para cobrir o caso. Ignorado pelos governos a que pedira apoio e já muito abalado, o Estado Novo vai sofrer danos maiores nos momentos que se seguem.

(continua)

Imagens

· O Santa Maria sobrevoado em alto mar

· O paquete freguentava o porto do Funchal:

muitos madeirenses viajaram no Santa Maria

· Miguel Urbano Tavares Rodrigues

· António de Oliveira Salazar nos anos 60

· Recife no início da década de 60: ponte de Santo António para as ilhas

· Vista da popa do navio à chegada ao Recife

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 22.01.11

 

III – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (2)

(continuação)

A 22 de Janeiro de 1961, pouco passa das 0 horas, o paquete Santa Maria navega em águas internacionais rumo a Miami, com o arquipélago das Antilhas Holandesas já para trás. A bordo, no sossego da noite, ainda ninguém desconfia da "Operação Dulcineia", entre os mais de 350 tripulantes e cerca de 600 passageiros: conforme fontes oficiais, à saída de Vigo o navio leva 371 tripulantes, incluindo 22 oficiais, um médico português, um médico espanhol e nove marinheiros espanhóis; quanto a passageiros, à saída da ilha de Curaçau há 237 espanhóis, 189 portugueses, 87 venezuelanos, 44 holandeses, 34 norte-americanos, quatro cubanos, dois brasileiros, um italiano e um panamiano.

Ainda ninguém desconfia, mas a operação está prestes a entrar na sua fase decisiva. O objectivo do golpe é tomar posse do paquete e dispor dos três dias que a viagem levaria até Miami, talvez até quatro se telegrafarem a dizer que estão atrasados por uma avaria no motor. Isso permite-lhes navegar fora da rota sem levantar suspeitas, pelo que só andariam a ser procurados a partir do sexto dia, provavelmente, altura em que já hão-de estar distantes. Contam chegar de surpresa à ilha de Fernando Pó e à Guiné Equatorial, colónias espanholas onde podem arranjar armamento, canhoneiras, lanchas de desembarque e dois ou três aviões, e seguir depois para Angola, para obter apoio e aí proclamar um governo revolucionário capaz de derrubar o governo de Lisboa e de fazer de Portugal um Estado federado.

 

Passa da meia-noite e as armas já estão montadas e distribuídas. Todos os elementos do grupo se reúnem discretamente no deck superior, mas Henrique Galvão e José Fernandéz Vásquez (o líder da parte espanhola, também conhecido por Jorge Soutomaior) desentendem-se quanto a alguns detalhes da acção. Soutomaior tem a seu cargo a chefia militar do golpe desde o início e Galvão, mentor da operação e com a chefia política, cede na discórdia entre os dois. No espaço do convés usado para lazer dos passageiros da 1.ª e 2.ª classe, estabelecem dividir-se em dois grupos de assalto: o do líder português é destinado às instalações do segundo convés, onde estão as cabinas do comandante, do imediato e de outros oficiais; o do líder espanhol fica com o encargo de neutralizar a sala de transmissões, a ponte e a casa do leme.

É pouco provável que Galvão já saiba da morte de João Villaret em Lisboa, ocorrida na véspera. Fica a ler um livro, até dar ordem para avançar. É 1 hora e 45. As várias posições são ocupadas e o pessoal de serviço dominado. Apenas o grupo espanhol, ao ocupar a ponte de comando, depara com a resistência de um dos pilotos e gera-se um curto tiroteio, que termina com a morte do piloto e deixa mais três feridos em estado crítico. As comunicações são rapidamente interrompidas para impedir que o barco seja localizado, mas o plano tem de ser alterado: rumam à ilha de Santa Luzia (então possessão britânica nas Pequenas Antilhas) para desembarcar os dois feridos mais graves a precisar de cuidados hospitalares, acompanhados por cinco tripulantes. Está comprometida a possibilidade de atingirem a costa de África sem ser descobertos. Os desembarcados não perdem tempo a informar Lisboa do sucedido.

 

Quando o paquete se afasta de Santa Luzia, as comunicações são retomadas, por ser escusado manter o silêncio. Passageiros e tripulantes podem contactar as famílias. Nessa altura, considerando que o Santa Maria já é uma parcela livre do território português, Henrique Galvão muda-lhe o nome para 'Santa Liberdade', num dístico branco escrito a vermelho e colocado no castelo da proa (onde também é colocada uma bandeira do DRIL).

Ao tomarem conhecimento do caso, as autoridades portuguesas criam um gabinete de crise e desenvolvem contactos diplomáticos, no sentido de obter ajuda aérea e naval para localizar o navio. Londres disponibiliza-se e Washington (onde John Kennedy acabara de tomar posse no dia 20) coloca aviões e barcos de guerra na busca.

 

O plano falhado não é a derrota. Galvão adapta-se e reage à altura da situação, para tirar partido dela. Contacta a France Press e a United Press e consegue falar através da NBC, para atrair a atenção da opinião pública internacional: dá a conhecer o "sequestro político" do paquete, declara-se disposto a desembarcar os passageiros e tripulantes no primeiro porto neutro que lhes garanta a segurança e diz que actua em nome do general Humberto Delgado, «presidente-eleito da República Portuguesa, privado dos seus direitos de forma fraudulenta pelo governo de Salazar» (Henry A. Zeiger, The Seizing of the Santa Maria). É então que Kennedy põe termo à busca, visto que não se trata de pirataria, mas de um acto político contra uma ditadura. O próprio Delgado, no Brasil (onde Jânio Quadros está a poucos dias de substituir Juscelino Kubitschek de Oliveira), assume a liderança da operação e sublinha que esta é exclusivamente política. Só em Madrid, naturalmente, vinga a tese do "assalto de piratas".

Os EUA vão limitar-se a assegurar que os passageiros norte-americanos chegarão a bom porto sãos e salvos, mas o Santa Maria ainda vai passar alguns dias a despistar muitos perseguidores sem precisar de consumir muito combustível, alimentos e água. Entre a costa americana e a costa africana, sem alargar excessivamente a sua navegação, continuará a ser procurado em diferentes regiões e a queimar muitos cérebros em terra consumidos com os mais variados palpites.

(continua)

Imagens

· O Santa Maria durante a operação: o nome de 'Santa Liberdade'

e a bandeira do DRIL colocados na ponte de comando

· O paquete visto de proa

· João Henrique Pereira Villaret (1913–1961)

· Henrique Galvão a bordo do Santa Maria durante a operação

· Jânio da Silva Quadros (1917–1992)

 e John Fitzgerald Kennedy (1917–1963)