Luís Aguiar-Conraria publicou há tempos um livrinho (326 pág.s) a que deu o título “A Culpa Vive Solteira”, cuja leitura, com a autoridade que não tenho, recomendo: nele não se encontram os pedantismos académicos que são típico da tribo dos economistas, antes um discurso simples sem ser simplista, acessível sem ser vulgar, e interessante por tratar de quanto tema anda no ar contemporâneo das tendências sociais e políticas, sempre oferecendo soluções fundamentadas – e assumidamente discutíveis.
Quase sempre as soluções repousam em “estudos”; e quase nunca se questionam as variáveis que são tidas em conta. Entendamo-nos: quem faz estudos na área das ciências sociais não pode incluir todas as relevantes porque a análise ficaria demasiado complexa; e, consciente ou inconscientemente, as escolhidas correspondem quase sempre a um parti-pris dos investigadores. Daí que um céptico militante como eu, ademais desconfiado daquela seita, e ciente de que boa parte dos académicos usa um fato-feito ideológico que veste a todas as situações com pétrea suficiência, discorde, neste caso em pelo menos um terço das situações, dos remédios propostos.
Este longo intróito só se justifica por apreciar o autor e o escrito; e porque me dá jeito para comentar a expectoração de hoje de uma comunista que defende com vigor uma tradicional ideia deletéria que nunca deveria ter visto a luz do dia, isto é, o salário mínimo.
A senhora diz que um aumento de 40 euros é insuficiente: ela quereria 90.
Tem razão e eu, que sou mais isento na amizade que dedico aos trabalhadores porque não faço disso profissão, diria que 180 seria muito mais indicado. E isto para começo de conversa, porque o salário mínimo só não deveria ser para já igual ao da Holanda, que é de mais de 1.600 euros, porque possivelmente a nossa dieta deveria incluir outrossim um consumo anormal de batatas; nem ao da França, que é de mais de 1.500, porque nem de longe temos a mesma variedade de queijos; nem, ainda menos, o do Luxemburgo, que é de 2.200, porque o dr. Marcelo, se fosse nobre, nunca passaria por um grão-duque, além do que as empregadas domésticas que para aqui vêm prestar serviço costumam ser originárias de Cabo Verde e não de outros países europeus.
Isto é uma maneira séria de tratar o problema? Não, não é, mas tenho desculpa: a maneira como os técnicos se referem a este assunto também não.
Aguiar-Conraria, a pág.s 122 e seg.s, diz que o nosso problema não é o salário mínimo, é o médio ou mediano, porque o primeiro se aproxima demasiado daqueles, e isto porque há muitas empresas que dispõem de poder de monopsónio (que, graças a Deus, explica o que é). Isso ajuda a explicar por que razão os aumentos do salário mínimo não tenham provocado aumento do desemprego. Fantástico: há um certo número de empresas, que não se sabe bem quais são, que podem pagar mais sem pôr em risco a sua sobrevivência mas não pagam. E, portanto, os aumentos de salário não só não criaram desemprego como ainda tiveram o efeito benéfico de aumentar o consumo, que induz mais produção (o texto não reza exactamente isto, é interpretação minha). Daí que a recomendação para corrigir o desequilíbrio entre salário mínimo e o médio ou mediano seja “encontrar uma maneira de dar mais poder negocial aos trabalhadores”, razão pela qual não devemos diabolizar “os novos sindicatos e as novas formas de luta que lhes dão maior poder reivindicativo”.
Onde está a procura de outros factores que, sem ser apenas o bendito monopsónio, expliquem a contradição entre um aumento de preço que refrearia teoricamente a contratação (mais salário=menos emprego), mas na prática não o faz? Não está. E todavia sabemos que a enorme expansão do turismo, para a qual as políticas públicas contribuíram zero, e as low-cost e a Al-Qaeda muito, é provavelmente a principal razão para a queda do desemprego.
E está onde, a análise do efeito que poderá realmente ter a interferência do imperium público na liberdade contratual do patrão/trabalhador, que é o que significa o reforço dos “poderes negociais” de uma clique de profissionais da reivindicação, ainda por cima depositários, como é quase sempre o caso entre nós, de uma “visão” de sociedades alternativas onde o capitalismo, para se aperfeiçoar, deve caminhar para o seu desaparecimento?
Que fique claro: não dou os meus dez cêntimos para uma discussão nestes termos. Se desse, haveria de perguntar onde está a comparação entre as contas de exploração das empresas portuguesas e as suas congéneres estrangeiras, a ver se o valor acrescentado comporta aumentos salariais; e, se muitas vezes não comportassem, tentar perceber por que razão é assim e não de outra maneira, sem recurso à dolorosa falta de formação dos empresários, alegação que quem nunca fez empresas costuma adiantar sobre quem as faz.
Em vez de reforço dos poderes sindicais, recomendaria a extinção do Conselho de Concertação Social, um organismo corporativo onde tem assento uma quantidade de gente que finge representar os trabalhadores, e outra tanta que finge representar os patrões, uns e outros servindo interesses que, no melhor dos casos, correspondem aos que já estão representados no Parlamento; e anularia os privilégios legais dos representantes sindicais que os fazem ter um estatuto laboral diferente dos seus representados e um sobre-custo para as empresas de onde são originários, assim como obrigaria à declaração de greve ter o apoio expresso, e não tácito, da maioria dos trabalhadores – um programa fascista, já se vê, na novilíngua cripto-comunista que a comunicação social adoptou como se fosse português de lei.
Claro que, em nome da liberdade de associação, reconheceria personalidade jurídica aos sindicatos e protegeria de represálias os delegados sindicais – o que não é a mesma coisa que lhes conferir um poder de casta.
E então, como se corrige o risco bem real de, pela via do desequilíbrio de poderes de facto, os patrões se esquecerem de actualizações salariais, podendo fazê-lo? E como se pode conviver com salários de miséria naquelas empresas cujos dirigentes se outorgam a si mesmos rendimentos principescos, na flagrante indiferença que os ricos naturalmente têm por quem, no lugar do pão com manteiga que tomam como natural, vive com uma côdea de pão bolorento?
É um problema social e que, como tal, deve ser resolvido socialmente, sem criar distorções que prejudiquem o chão nivelado onde todos se devem mover. Se uma empresa não pode pagar o salário mínimo nem por isso deve desaparecer (e que se lixe o paleio das empresas zombie, objecto de outra crónica, e uma tolice quase inteiramente pacífica entre bancários e economistas, que têm tendência a copiar as modas de pensamento uns dos outros). Desaparecer ou não é uma questão de mercado a resolver pelo mercado, não uma questão de diktats dirigistas.
Resolver de que forma? Ora aqui é que os estudiosos são necessários: deve haver maneira de, sem ferir a liberdade contratual nem a independência da gestão empresarial (recorde-se: as empresas pertencem aos seus sócios, não à comunidade) conseguir que os que estão na base da pirâmide social tenham aquele mínimo de subsistência digna que a riqueza do país permita.
A porta da interferência de políticos praticamente inimputáveis está escancarada, tanto que as eleições são, em parte, leilões de bens roubados e outros prometidos, bem como para ideias peregrinas tais como a fixação de quotas por sexo (que aliás designam abusivamente por género) em lugares de direcção, que não têm sequer dignidade, as ideias, para serem consideradas na vida interna das empresas por outrem que não quem as dirige. Lembremos: as empresas não comem nem bebem, não jogam, nem têm amantes para as ou os quais comprem perfumes e apartamentos. Quem pode fazer essas coisas são as pessoas. E é sobre as pessoas, seja com impostos directos seja indirectos (há no livro uma interessante e provocatória tese sobre o IVA a 50%) que as redistribuições devem incidir, limitando ao mínimo as intervenções no jogo do mercado (que inclui o do trabalho) e garantindo o rendimento mínimo que o país possa pagar. O país, não patrões celerados assim considerados por uma súcia de enxeridos e as Camarinhas deste mundo.
Luís Aguiar-Conraria é, como outros socialistas (lembro-me de Sérgio Sousa Pinto, um bom exemplo), perigoso: são sérios, bem-intencionados, honestos, competentes e inteligentes. Substituiriam com vantagem a troupe infecta de demagogos que nos pastoreia; e garantiriam que, com contas certas, o país se mantivesse na cauda da Europa que vagas sucessivas de optimistas planificadores garantiram que iríamos abandonar.
É assim há 40 anos. Porque quem parte de pressupostos errados não pode chegar a conclusões certas.