Sócrates de novo
Quem, com pulsões necrófilas e num momento de ócio, exumasse os numerosos textos que escrevi a partir de 2011 (antes disso a comunidade esteve tristemente privada do acesso às luminosidades do meu pensamento) nos desactivados blogues Rua Direita, Senatus, Forte Apache, Gremlin Literário, e actualmente neste muito activo que com generosidade me acolhe, e procurasse pela etiqueta Sócrates, descobriria 18 textos. Os quatro primeiros, todos de 2011, crucificavam a personagem, e o quinto, de 22 de Março de 2012, dizia, a ele se referindo, que o nosso país “está entupido de corruptos mentirosos e impunes”.
Porém, em 25 de Novembro de 2014 (no Gremlin Literário), logo a seguir à prisão preventiva, e em meio do gáudio do meu meio, comecei a torcer o nariz à evolução do processo, acabando assim: Razões por que veementemente desejo que Alexandre saiba o que anda a fazer. Começou mal, não por ter decidido o que decidiu - isso, precisamente, ficamos impedidos de avaliar - mas por achar que tem apenas que dar contas às partes e à sua consciência.
Carlos Alexandre ou não sabia o que estava a fazer ou sabia bem de mais. E, em ambos os casos, não dignificou a figura do juiz de instrução porque este existe para garantir que direitos fundamentais (como é o da liberdade) não são ofendidos salvo em circunstâncias que a lei prevê, e que ali só com raciocínios capciosos se verificavam, e não para satisfazer a sede de vingança da turba justiceira e o vozear dos jornais. A mesma turba que levou Sócrates num andor dando-lhe duas vitórias eleitorais e os mesmos jornais untuosos que o tachavam de “animal feroz”.
Daí para a frente fui censurando com crescente veemência o evoluir da lesma processual até que, a propósito de uma pesporrência qualquer do Ministério Público, publiquei um artigo no Observador (“O brasileiro Sócrates”), em 1 de Julho de 2022, que acabava assim: “Isto porque, aparentemente, as magistraturas envolvidas são incapazes de perceber que o tempo investido a perder tempo com formalismos faz falta para tratar da substância”.
Nem de propósito: A notícia de hoje é que a Relação de Lisboa decidiu dar uma punhada na mesa, dizendo esta coisa simples: Todos os requerimentos que se relacionem com questões já definitivamente decididas no âmbito do acórdão naquele tribunal, das quais se pretenda interpor recurso/aclaração/reclamação/nulidade ou incidente afim, serão processados em separado. Dito de outro modo: Se os advogados de Sócrates atiram areia para a engrenagem esta continua a funcionar e a areia é tratada em separado.
Resta uma pergunta, que o jornalista não faz (nem era de esperar que fizesse: é um especialista destas questões, portanto entende tudo o que é acessório mas raramente vislumbra o essencial): Porquê só agora? Tendo Sócrates feito uma quantidade de requerimentos, recursos e as outras trapalhadas (li que terão sido à volta de 40) em todos estes anos, de que é que os tribunais estiveram à espera?
Talvez de que algum magistrado se lembrasse da existência de um artigo obscuro do CPC, cuja aplicabilidade em processo penal não ocorreu, embora vista ao caso como uma luva.
Aquela pergunta, que ficará decerto sem resposta, não é ainda assim tão importante como outra: Por que razão é que, em ponderosos discursos em cerimónias oficiais (e creio que também entrevistas, não estou para ir escabichar) numerosos magistrados (incluindo, se não me engano, o presidente do STJ) têm vindo a dizer que é desejável cortar o cabelo às garantias processuais dos acusados, precisamente porque estes delas podem abusar, como se tais garantias não fossem precisamente uma salvaguarda perante abusos?
Sócrates tem sido acusado (creio que com razão) de tentar encravar os processos como expediente para chegar à prescrição. E isto diz a comunicação social (e a quase totalidade dos meus amigos, e até os reformados no meu café, quando não estão a falar de futebol), sem que ninguém jamais pergunte: Por que razão tais expedientes nunca são decididos prestes? Por que motivo o próprio Ministério Público encrava ele próprio quando decide recorrer de decisões que lhe sejam desfavoráveis, como se a guerrilha de egos jurídicos tivesse, para quem não pertence ao meio, qualquer importância?
Tem-me sido dito que não se compreende como posso defender Sócrates, e o faço consistentemente há anos, quando do meu lado do espectro, e até do outro, o que há é caras crispadas de virtuosa indignação justiceira.
Por duas razões, uma de vaidade e a outra de consciência histórica: Quando há manadas do pensamento, mesmo dos meus correligionários, às vezes recuo porque não sou um boi como os outros; e o Estado de Direito não é, nem nunca foi, aquele onde todos os que a comunidade acha que cometeram crimes vão parar à cadeia, mas sim aquele em que só vão quando decisores independentes e irresponsáveis (no sentido de não poderem ser responsabilizados), expostos a versões livres e contraditórias da acusação e defesa, concluam sem dúvidas razoáveis ter havido prática de crime.
Comecei por lembrar o caso da prisão preventiva e do juiz Alexandre. Toda a gente acha que, aconteça o que acontecer, aqueles nove meses trancafiado já ninguém lhe tira, e foram bem merecidos, quem é que ele julgava que era?
Era, e é, um cidadão como os outros. Atropelá-lo nos seus direitos, ainda que sejam os de quem pode muito, abre a porta ao menoscabo dos de quem não pode nada.
Razões pelas quais me sinto autorizado a recomendar aos bois da minha manada que vão pastar.